Os Outros Dois Níveis de Autodisciplina Ética

Sumário

Em uma fase inicial do desenvolvimento espiritual, exercitamos a autodisciplina a fim de nos abstermos de comportamentos destrutivos. Nosso objetivo é evitar que as coisas piorem, não só nesta vida mas também nas próximas. Buscamos renascimentos melhores e os estados comuns de felicidade que podemos experimentar nessas vidas. O que nos move em direção ao nosso objetivo é o medo de mais sofrimento e infelicidade. Compreendemos que existe uma maneira de evitarmos isso, que é o autocontrole e nos abstermos de agir de forma destrutiva. Quando sentimos o impulso de agir, falar ou pensar em algo destrutivo, com base em emoções perturbadoras, como a ganância ou a raiva, percebemos o impulso mas não o seguimos. Apesar de precisarmos desacelerar muito para perceber esse espaço entre o impulso e a ação compulsiva, e certamente isso é muito difícil no começo, podemos treinar essa percepção.

Pense em uma situação em que você está sentado tentando trabalhar, fica entediado e surge o impulso de olhar o Facebook, ou as notícias no seu celular, ou mandar uma mensagem para um amigo. Nessa fase do desenvolvimento espiritual, percebemos quando o impulso surge e decidimos “Se eu agir com base nesse impulso não terminarei meu trabalho, e isso me trará problemas. Portanto, não importa que tenha vontade, simplesmente não farei isso”.

Video: Dr Chönyi Taylor — “Eliminando Padrões Viciados”
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Segundo Nível: Trabalhando para Superar o Ciclo de Renascimentos

O nível intermediário de motivação do lam-rim é trabalharmos para superar o ciclo de renascimentos incontroláveis. Lembre-se, isso é o samsara, renascimentos que ocorrem de forma incontrolável, são cheios de problemas, que também ocorrem de forma incontrolável, e você não consegue fazê-los parar. Os problemas não são só a infelicidade, mas também os outros dois aspectos do sofrimento verdadeiro indicados pelo Buda: o sofrimento da mudança e o sofrimento que tudo permeia.

Felicidade Comum

O sofrimento da mudança refere-se à felicidade comum, que infelizmente é cheia de problemas. Para começar, não dura — por isso chamamos “sofrimento da mudança” — e nunca nos satisfaz, porque queremos sempre mais. Se tivermos muita felicidade comum, e por muito tempo, acabaremos entediados ou virará sofrimento. Por exemplo, tomar sol: é muito bom por um tempo, mas você não vai querer ficar no sol quente para sempre. Depois de um tempo, você tem que ir para a sombra. Pense no caso de quando uma pessoa que você ama fica acariciando e apertando sua mão. Se ela fizesse isso por três horas, sem parar, sua mão ficaria toda dolorida! Portanto, é assim, a felicidade comum tem problemas.

A felicidade comum resulta de agirmos construtivamente, de forma positiva, mas ainda um tanto confusa, como no exemplo do perfeccionista neurótico, que limpa compulsivamente a sua casa, certificando-se de que tudo esteja sempre arrumado. Quando ele termina a limpeza, sente-se feliz por um tempo, mas logo fica insatisfeito, pensando “Não está limpa o suficiente. Acho que aquele pedaço não ficou bem limpo. Tenho que limpar novamente”. A felicidade que esse tipo de pessoa sente não dura muito, pois ela acha que a casa pode ficar sempre mais limpa.

O Problema Que Tudo Permeia

O terceiro tipo de sofrimento é chamado de “problema que tudo permeia”. Ele refere-se ao ciclo incontrolável de renascimentos e está ligado ao fato de renascermos com um tipo de corpo e mente que automaticamente produz problemas e dificuldades. Pense bem, com o tipo de corpo que temos, não conseguimos andar sem pisar em algum ser e matá-lo. Não há como comer sem que algum inseto, ou algum outro ser, morra no processo de produção da comida, mesmo no caso dos vegetarianos. Nossos corpos adoecem e, tanto o corpo como a mente, se cansam. Temos que descansar; temos que comer; temos que ganhar a vida. Não é fácil, não é mesmo?

Então, em nossa próxima vida, se tivermos sorte, nasceremos humanos novamente, e começaremos a vida como um bebê. Que horror! Você não pode se expressar, a não ser pelo choro; não consegue fazer nada por si mesmo e ainda tem que aprender tudo novamente. Isso é muito entediante! E o pior é que temos que fazer isso vez após vez, infinitamente. Imagine ter que ir para a escola de novo! Você gostaria de ir para a escola mais um milhão de vezes e fazer intermináveis deveres de casa e intermináveis provas?

Portanto, esse é o problema que tudo permeia, que é uma consequência do ciclo de renascimentos incontroláveis. Mesmo que nasçamos em uma situação muito melhor, mesmo que tenhamos um renascimento humano precioso, ainda assim teremos esses problemas que tudo permeiam. É disso que queremos nos libertar e, para isso, precisamos superar todas as formas de carma compulsivo, não apenas o negativo, mas também o positivo.

A Felicidade Que Vem da Liberação

Considere novamente a felicidade comum. Tecnicamente, ela é chamada de “felicidade maculada” porque está manchada, ou misturada com confusão, no sentido de que surge da confusão, é acompanhada de confusão e, a menos que mudemos nossa atitude para com ela, gera ainda mais confusão. O que queremos, na verdade, é um tipo de felicidade que não seja misturada com confusão, o tipo de felicidade que perdura e satisfaz. É muito diferente da nossa felicidade comum. É uma felicidade que vem de estarmos livres de todas as emoções perturbadoras. Não há nada de confuso nesse tipo de felicidade.

Considere um pequeno exemplo, que é pouco parecido com essa felicidade de que estamos falando, mas, logicamente, não é a mesma coisa: digamos que você tenha que usar sapatos muito apertados durante todo o dia. No final do dia você tira o sapato e sente aquela sensação de alívio. “Ah! Estou livre dessa restrição e da dor nos pés!” Esse é um tipo de felicidade diferente daquela que sentimos ao comer uma coisaque gostamos, não é? Estamos falando de uma sensação que é quase um alívio, por estarmos livres dos pensamentos neuróticos, livres de preocupações, livres de insegurança, de todos esses tipos de coisas. Não seria maravilhoso, se nunca ficássemos emocionalmente desequilibrados, inseguros ou preocupados novamente? Que alívio seria!

Isso é uma pequena amostra do que estamos nos referindo quando falamos de liberação do ciclo de renascimentos incontroláveis — liberação de todo o verdadeiro sofrimento, que inclui esse próprio renascimento. Para isso, precisamos superar a compulsividade de todas as formas de carma, não apenas as formas destrutivas. Precisamos superar a compulsão de agir, até mesmo de forma positiva. Não há nada de errado em sermos limpos e tentarmos fazer as coisas direito. O problema é quando isso se torna uma síndrome compulsiva, neurótica, que perturba a paz mental e está fora de controle; é disso que temos que nos livrar.

Distinguindo Emoções Positivas de Atitudes Perturbadoras

Quando agimos de forma positiva, emoções positivas acompanham nossas ações, como:

  • Desapego — não nos fixarmos a nada; é o oposto de apego.
  • Não querer causar mal.
  • Não ser ingênuo — estar consciente do efeito de nosso comportamento em nós mesmos e nos outros.

Outros fatores mentais construtivos que também acompanham o comportamento positivo ou construtivo são:

  • Respeito às boas qualidade e àqueles que as possuem.
  • Autocontrole para abster-se de ações negativas.
  • Um sentido de auto-dignidade moral, para que tenhamos respeito por nós mesmos e pelos nossos sentimentos.
  • Preocupação a respeito de como nossas ações refletem nos outros.

Nenhuma dessas qualidades nos cria problemas. Elas acompanham nosso comportamento positivo, construtivo; não queremos nos livrar delas. O que cria problemas, e que acompanha nosso comportamento positivo compulsivo, é a atitude perturbadora. Colocando de uma forma bem simples, seria nos apegarmos a um “eu” sólido. Por exemplo, por estarmos confusos a respeito de como existimos, imaginamos que existimos como uma entidade sólida, concreta, “eu”, com uma identidade verdadeira permanente como, por exemplo, alguém que tem que ser bom o tempo todo, que tem que ser perfeito. “Eu tenho que ser bom. Eu tenho que ser prestativo. Eu tenho que ser útil.”

Um exemplo comum é o de pais com filhos adultos. Os pais ainda querem ser necessários e úteis, e então oferecem seus conselhos e ajuda, mesmo quando os filhos não querem. Isso é compulsivo, porque eles têm essa sensação de um “eu” sólido. “Eu só tenho valor e existo se meus filhos ainda precisarem de mim”. Eles se agarram a isso como a verdadeira identidade desse “eu” sólido, como uma forma de deixar o “eu” seguro. É como se sentissem, “Se ajudo meus filhos, existo”.

A emoção que está por trás do oferecimento de conselho e ajuda é positiva. Eles oferecem porque amam seus filhos. Eles querem ser gentis e prestativos. Não há nada de errado nisso. O problema é a atitude que têm sobre eles próprios,sobre esse “eu”: “Eu só tenho valor como pessoa se meus filhos ainda precisarem de mim.” Isso é o que causa o aspecto neurótico compulsivo, de oferecer ajuda mesmo quando ela é totalmente desnecessária e inapropriada.

Você pode sentir que está experimentando esse aspecto neurótico, porque, novamente, “emoção destrutiva” e “atitude destrutiva” são expressões definidas pela mesma palavra - “destrutiva”. Tanto a atitude quanto a emoção fazem com que percamos a paz mental e o autocontrole. Se você é um pai ou mãe cuja atitude é “Eu só tenho valor como pessoa se conseguir fazer algo pelos meus filhos”, qual é o sentimento que indica a falta de paz mental? É um sentimento de insegurança; você está inseguro e, portanto, sente que precisa ficar se intrometendo na vida dos filhos, como, por exemplo, na maneira como eles criam seus próprios filhos. Você não tem paz mental e, obviamente, também não tem autocontrole, mesmo que emoções positivas de amor e preocupação estejam presentes. É para isso que precisamos de autodisciplina.

Precisamos de autodisciplina ética, portanto, para superar a compulsividade de nosso carma positivo construtivo, que só traz felicidade comum — a felicidade breve que logo se transforma em algo desagradável. Quando, por insegurança e necessidade de nos sentirmos valorizados, temos vontade de oferecer, por amor e preocupação, um conselho que não foi pedido, temos que perceber que apesar de isso nos trazer uma felicidade momentânea, logo se transformará em infelicidade, quando nossa filha mostrar ressentimento por não ter gostado do que falamos. Portanto, exercitamos autodisciplina e não falamos nada. Mas é muito difícil ficarmos de boca fechada!

O Segundo Nível de Autodisciplina Ética de Acordo Com a Motivação Intermediária do Lam-Rim

Apesar de o exercício do autocontrole — o primeiro nível de autodisciplina ética — poder nos ajudar a evitar o problema do sofrimento da mudança, conforme explicado acima, continuamos com o problema que tudo permeia, que é o ciclo incontrolável de renascimentos. Uma versão simplificada desse problema é a síndrome de oferecermos repetidamente conselhos não solicitados, e não conseguirmos nos controlar. Não conseguimos evitar uma interferência bem intencionada — amor — mas que vem de um lugar de insegurança.

Para realmente superarmos o sofrimento da mudança, e o problema que tudo permeia, precisamos do segundo nível de autodisciplina ética, isto é, aplicar autodisciplina para nos livrarmos da atitude confusa e perturbadora de nos fixarmos a um “eu” sólido. Não é que queiramos parar de ajudar ou parar de amar nossos filhos, o que queremos é parar com essa insegurança neurótica e essa fixação no “eu” sólido, que é o que está por trás do nosso comportamento compulsivo repetitivo.

Tomemos como exemplo algo em que precisamos trabalhar, como o amor. A definição budista de amor é o desejo de que os outros sejam felizes e encontrem as causas da felicidade, independente do que eles façam. Entretanto, esse amor pode vir acompanhado de confusão, apego e insegurança. “Não me deixe nunca!” “Porque não me ligou?” “Você não me ama mais.” “Eu preciso de você.” “Eu, eu, eu.” Realmente queremos que a outra pessoa seja feliz, mas “Nunca me deixe” e “Você tem que me ligar todos os dias!” O problema não é o amor. O problema é o apego, e esse grande “eu” que está por trás de tudo. No nível intermediário, usamos de autodisciplina ética para superar essa atitude contraproducente e perturbadora de “eu, eu, eu”.

Reflexão Sobre o Segundo Nível de Autodisciplina Ética

Antes de passarmos para o terceiro nível, porque não gastamos alguns minutos para digerir tudo isso? Procure identificar o que discutimos em sua própria vida. Existe um dizer budista que é assim: “Não deixe o espelho do Dharma virado para fora, para refletir os problemas dos outros (como os dos nossos pais), vire-o para dentro, para que reflita você”. Portanto, procure identificar em sua vida, em sua própria experiência, situações em que, mesmo que tenha uma atitude construtiva, age de forma neurótica e preocupada com si mesmo, e acaba criando problemas. Procure reconhecer o grande e sólido “eu”por trás dessa síndrome, que gera o sentimento de “Eu tenho que ser perfeito. Tenho que ser bom, tenho que ser prestativo. Tenho que ser necessário e útil.” Reconheça o problema que isso traz.

Procure compreender que não precisamos provar nada a ninguém. Não precisamos provar que somos uma boa pessoa, oferecendo sempre a nossa ajuda, mesmo quando não requisitada. Não precisamos provar que somos uma pessoa limpa ou perfeita. Será que estamos pensando “Sou limpo, logo, existo” ou “Sou perfeito, logo, existo”, como “Penso, logo, existo?” Só sentimos que temos que provar que somos bons, ou temos valor, porque nos sentimos inseguros em relação a esse “eu, eu, eu”.

Não precisamos provar nada. Pense nisso. O que será que estamos tentando provar ao sermos tão perfeitos, tão bons, tão limpos, tão produtivos? Esse é o segredo: não existe motivo para nos sentirmos inseguros, e não há nada que tenhamos que provar. Apenas faça o que tiver que ser feito! Seja útil aos outros.

Obviamente, não é tão fácil usar apenas de autodisciplina ética para dizer, “Pare de se sentir inseguro”. É necessária uma compreensão de que a insegurança está baseada na confusão a respeito de como existimos, e essa confusão não está baseada em nada que corresponda à realidade. Sobre o quê estamos inseguros? Um mito! Um mito de que se eu sou produtivo e útil, logo, existo. Se não sou produtivo, deixo de existir? Isso seria um tanto estranho, não seria? O que eu preciso provar sendo um workaholic fanático? Se quiser ajudar os outros, ótimo, ajude-os, mas não de forma compulsiva. Esse é o problema. Isso é o que temos que parar de fazer. Esse é o segundo nível, ou o escopo intermediário da autodisciplina ética. Usamos de autodisciplina para compreender que não há nada a ser provado e, com essa compreensão, dissipamos a insegurança que está por trás do nosso comportamento cármico compulsivo.

O Terceiro Nível: Superando a Falta de Conhecimento do carma Alheio

Com o nível avançado de motivação do lam-rim, trabalhamos para superar a falta de conhecimento a respeito do carma alheio. Queremos ajudar os outros. Se tivéssemos atingido o estado liberto, estaríamos livres do ciclo de renascimentos incontroláveis e, portanto, não seriamos mais compulsivos, não agiríamos de forma destrutiva, e não teríamos o impulso neurótico de agir compulsivamente de maneira construtiva, mesmo quando isso não é apropriado. O problema é que, apesar de termos a forte aspiração de ajudar os outros, não sabemos qual é a melhor maneira de fazê-lo. Não sabemos as razões cármicas e os antecedentes que levaram as pessoas a serem como são. E também não sabemos qual será o efeito daquilo que ensinamos — tanto na própria pessoa, quanto em todas as outras pessoas com quem ela interagir. Por não termos a mínima ideia do impacto daquilo que aconselhamos ou ensinamos, somos muito limitados nas nossos formas de ajudar.

Trabalhando para o Benefício Alheio

Como a autodisciplina pode ajudar nessa situação? Primeiro, precisamos trabalhar com disciplina para não sermos apáticos ou complacentes. “Agora que estou livre do sofrimento, só vou sentar aqui, meditar, e ficar sempre em um estado de bem-aventurança e felicidade.” Precisamos de autodisciplina ética para trabalhar pelos outros. Você experimenta o que estamos falando quando alcança um sucesso significativo na sua prática de meditação. Você senta, sua mente fica livre de distrações e torpor, e você entra em êxtase — não de uma forma perturbadora, mas realmente sente-se muito bem. Ficaria muito contente em permanecer assim. Se fosse um praticante muito avançado, poderia ficar nesse estado por muito tempo e, se já fosse liberado, poderia ficar assim para sempre.

O que nos tira dessa complacência e contentamento? Se você realmente tiver se liberado do ciclo de renascimentos incontroláveis, você nem mesmo tem um corpo comum, nunca tem fome ou qualquer outra necessidade. O que o estimula a mover-se é o pensamento a respeito das outras pessoas. “Como posso sentar-me aqui em êxtase, sentindo-me maravilhosamente bem, quando todos os outros seres sentem-se mal?” Precisamos de autodisciplina ética para superar a preocupação com nosso próprio bem-estar, pensar nos demais e trabalhar para eles.

O fato disso aparecer como o passo seguinte, depois de trabalharmos para nosso próprio benefício, é muito significativo. Se tentarmos ajudar os outros enquanto ainda nos sentimos mal e somos neuróticos, teremos problemas. Ficaremos impacientes e irritados com as outras pessoas, quando não seguirem nossos conselhos e não progredirem suficientemente rápido. Ou nos apegaremose teremos ciúmes quando procurarem outro professor. Ou pior, podemos sentir atração sexual por elas, e isso cria um enorme problema quando queremos ajudar alguém. Realmente precisamos nos trabalhar primeiro. Entretanto, não é que primeiro precisemos nos liberar completamente, para depois tentar ajudar os outros — isso levaria muito tempo. A questão é não negligenciarmos o nosso trabalho pessoal no processo de trabalharmos como os outros.

Ao nos trabalharmos, ainda precisamos focar em superar nossas emoções e atitudes perturbadoras e a compulsividade do carma. Ainda precisamos de autodisciplina para superarmos nosso auto-centramento; mas nesse estagio também precisamos de disciplina para trabalharmos em superar as limitações de nossa mente, que nos impedem de sermos oniscientes. Por não sabermos tudo, não conseguimos ver o quadro completo; não conseguimos ver a interconexão de todas as coisas. O que quer que aconteça, é uma combinação de muitas, mas muitas causas e condições, e cada uma dessas causas e condições também tem suas causas e condições.

Em nosso estagio atual, nossas mentes são muito limitadas; não conseguimos perceber tudo o que está envolvido no que acontececom os outros. E pior, achamos uma determinada causa pode ser a única responsável por um efeito, especialmente quando achamos que nós somos a causa. Por exemplo, se alguém com quem interagimos cai em depressão, imaginamos que a culpa é nossa, simplesmente porque fizemos ou dissemos alguma coisa. Isso não corresponde à realidade. O que quer que aconteça às pessoas, é o resultado de muitas e muitas causas, e não apenas do que fizemos, “A causa do seu problema é que você não frequentou uma boa escola”. Reduzimos o que aconteceu ao resultado de uma única causa. Ou dizemos, “Todos os seus problemas devem-se ao fato de seus pais terem feito isso ou aquilo quando você era criança.” Simplesmente não conseguimos enxergar o quadro completo. Ele é bem maior que isso.

Nosso Pensamento Não Corresponde à Realidade

Precisamos de uma compreensão muito maior do que a que temos no momento. O problema é que nossas mentes projetam categorias, como caixas, e compartimentalizamos tudo nessas caixas. Isolamos as coisas como se existissem em caixas, independentes de todo o resto, e acreditamos que isso corresponde à realidade. Não enxergamos a interconexão e interdependência de tudo. “Essa é a única causa. Isso é mau, isso é bom.” Nós categorizamos.

Bom, não é assim que as coisas existem. As coisas não existem isoladas de todo o resto. Precisamos de disciplina para entender que apesar de parecer assim, isso não corresponde à realidade. Aqui vai um exemplo simples: Você fica em casa o dia todo com as crianças. Seu parceiro chega em casa e não fala com você. Ele simplesmente entra no quarto, fecha a porta e deita-se. Em nossa mente, colocamos o parceiro na caixa chamada “pessoas que não me amam”. Aliás, também o jogamos na caixa de “pessoas terríveis” e “pessoas que não são gentis”. Por trás disso está a preocupação com o grande “eu”. Ele está na caixa das “pessoas terríveis” porque “eu” — eu, eu, eu — quero falar com ele. Eu quero, eu quero, eu quero! Quero alguma coisa dele. Por colocá-lo em uma caixa, não conseguimos ver a interconexão entre tudo o que ele viveu antes de chegar em casa e como ele agiu quando chegou. Ele pode ter tido um dia difícil no trabalho, e tal e tal coisa pode ter acontecido no caminho para casa, e assim por diante.

Quantas vezes as coisas parecem ser assim? Alguém chega em casa e é como se tivessesurgido do nada — nada aconteceu com essa pessoa antes dela chegar e tudo começou no momento que ela atravessou a porta. Olhe por outro ângulo. Se a outra pessoa fosse quem estivesse em casa com as crianças e você tivesse chegado do trabalho, como isso pareceria a você? Lá está seu parceiro, como se nada tivesse acontecido com ele durante o dia, antes de você chegar em casa.

Se pensar, é claro que verá que não é assim! Estamos falando aqui de como nossa mente faz as coisas parecerem. Ela faz com que a interação com nosso parceiro pareça começar naquele lugar, naquele momento em que entramos pela porta, como se nada tivesse acontecido antes. Tudo aparece nas caixas com as quais categorizamos as coisas. É para superarmos esse hábito profundamente arraigado, de colocar pessoas, coisas e situações em caixas, que precisamos de disciplina. Precisamos compreender que essa visão compartimentalizada do mundo não corresponde à realidade.

Só para certificar-me de que entenderam esses pontos, vamos ver um outro exemplo comum. Colocamos pessoas na caixa de “minha parceira” e não consideramos o fato de que elas tem relacionamentos e amizades com outras pessoas. Por as colocarmos nessa caixa mental, pensamos, “Ela é só minha. Ela tem que estar disponível sempre que eu quiser, porque isso é a única coisas que ela é: minha parceira. Não há nada mais acontecendo em sua vida” Não pensamos no contexto de ela ter obrigações com os pais, ter outros amigos ou outras atividades. Não, elas estão apenas nessa única caixa. O pior é que isso parece ser a verdade, e acreditamos que corresponde à realidade. Obviamente, com base nisso, nos apegamos e ficamos com raiva se ela tem que sair para encontrar outra pessoa.

O Terceiro Nível de Autodisciplina Ética de Acordo Com a Motivação Avançada do Lam-Rim

No nível avançado de motivação do lam-rim, trabalhamos para alcançar o estado onisciente de um Buda totalmente iluminado, para podermos ajudar os outros da melhor forma possível. Para ajudarmos da melhor maneira possível, precisamos de um entendimento completo do carma de cada pessoa. Precisamos compreender todo seu comportamento compulsivo passado, além de todas as outras variáveis de causas e condições que a levaram ao presente estado, e precisamos saber quais serão as consequências de tudo o que lhes ensinarmos. Para conseguirmos perceber a interconexão de causa e efeito, especialmente as conexões causais que envolvem o carma, precisamos parar de isolar as coisas umas das outras e categorizá-las em caixas mentais, imaginando que realmente existem dessa forma.

Portanto, não precisamos desenvolver a autodisciplina ética apenas para superar a preocupação exclusiva connosco e desenvolver uma preocupação sincera com os outros. Também precisamos de autodisciplina para compreender que, a forma como nossa mente faz as coisas aparecerem em caixas não corresponde à realidade. Precisamos tentar enxergar o quadro completo.

Reflexão no Terceiro Nível de Autodisciplina Ética

De acordo com a estrutura do caminho gradual do lam-rim, existem três níveis de autodisciplina ética conectada com o carma:

  • A disciplina para nos abstermos de comportamentos destrutivos compulsivos.
  • A disciplina para vencermos as emoções e atitudes perturbadoras que estão por trás do comportamento compulsivo, seja ele negativo ou positivo.
  • A disciplina para vencermos as limitações da forma ilusória com que nossa mente faz as coisas parecerem — parar de pensar de forma pequena, que coloca coisas em caixas mentais — e a disciplina para não ser apático e complacente com nossa própria situação, para que consigamos entender o carma das outras pessoas e ajudá-las a superá-lo.

Através da meditação discriminativa, tentemos reconhecer como nossa mente faz com que as coisas surjam em caixas, isoladas de todo o resto. Pense nas pessoas nesta sala, ou, se estiver lendo isso em casa, pense nas pessoas que você vê no ônibus ou metrô. Você as vê como se tivessem surgido do nada. Elas simplesmente apareceram ali, e o que estava acontecendo em suas casas de manhã não aparece, assim com o fato de elas terem filhos ou não, ou se tiveram alguma dificuldade em chegar até ali — nada disso aparece para nós. Por isso, realmente não sabemos em que tipo de humor se encontram, e não sabemos que efeito terá algo que dissermos ou fizermos. Elas podem estar muito cansadas, ou perturbadas, ou chateadas pelo o que aconteceu de manhã, ou talvez não tenham dormido o suficiente. Como saber? Se as pessoas surgem como se tivessem vindo de lugar nenhum, sem qualquer antecedente, como poderíamos saber a melhor forma de ajudá-las?

De alguma maneiratemos que não acreditar nessa aparência e eventualmente conseguir que nossa mente pare de fazer as coisas parecerem dessa forma. E então, mesmo nesse estagio, mesmo que não saibamos o que aconteceu com alguém de manhã, pelo menos podemos considerar o fato de que algo aconteceu com essa pessoa antes de a vermos. Se estivermos realmente interessados, perguntaremos, mas não como se estivéssemos fazendo uma pesquisa científica. Estamos falando aqui de preocupação sincera, com amor e compaixão: “Desejo que seja feliz e não seja infeliz”.

Tente reconhecer, portanto, como nossa mente cria essas aparências enganadoras. Tente enxergar o quanto elas são limitantes quando acreditamos que correspondem à realidade, e como elas causam problemas.

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