Convicção no Dharma

Revisão dos Pontos Principais do Lam-rim

O lam-rim é dividido em três escopos, cada um deles envolve diferentes estados mentais que agem como caminhos que nos possibilitam atingir a iluminação. Essa estrutura foi formulada primeiro pelo grande mestre indiano do século onze, Atisha, que levou o Dharma da Índia ao Tibete pela segunda vez. Seus ensinamentos estão em um texto chamado Uma Lamparina no Caminho para a Iluminação (Sct. Bodhipatha-pradipa).

Podemos rastrear a tradição Kadam até chegarmos a Atisha. Com o tempo, ela se fragmentou e foi reformada por Tsongkhapa, quando se tornou a tradição Gelug. A tradição Kadam também influenciou as outras tradições, pois o lojong, ou os ensinamentos do treinamento mental, é ensinado em muitas partes e vem principalmente das linhagens Kadam. Outro exemplo da influência Kadam pode ser achada com Gampopa, de quem se desenvolveram muitas das tradições Kagyu, que é conhecido com um grande mestre que combinava as tradições Kadam e Mahamudra.

Atisha derivou a ideia desse esquema do lam-rim de uma linha do ensinamento de Shantideva sobre Engajando-se no Comportamento de um Bodhisattva (I.4), na qual ele escreveu:

Conquistei este corpo, com folgas e oportunidades, tão difícil de encontrar, que pode realizar os desejos de todos os seres. Se nesta vida eu não conseguir atualizar seus benefícios, quando é que, mais tarde, terei uma doação tão perfeita de um corpo?

"Todos os seres", elabora Atisha, referindo-se aos três níveis de pessoas dos três escopos.

O escopo inicial cobre os tópicos de um relacionamento saudável com um professor espiritual, nosso precioso renascimento humano, a morte e o renascimento, os sofrimentos dos três piores reinos, o refúgio ou um direcionamento seguro, as qualidades de Buda, Dharma e Sangha, uma discussão sobre o carma e evitar o comportamento destrutivo.

O escopo intermediário apresenta, juntos, os sofrimentos dos três reinos mais elevados de renascimento e os sofrimentos do samsara, ou seja, dos renascimentos incontrolavelmente recorrentes. Ele inclui uma apresentação das emoções perturbadoras, dos fatores mentais dentro do contexto das quatro nobres verdades, e da verdadeira causa do sofrimento. Também temos uma explicação mais específica e detalhada dos 12 elos da originação interdependente, e como as nossas emoções perturbadoras realmente geram a primeira nobre verdade, o verdadeiro sofrimento. Depois, nos são apresentados os três treinamentos mais elevados em autodisciplina ética, concentração e consciência discriminativa, como meios para sair do samsara e alcançar a libertação. Além disso, há uma discussão sobre os votos monásticos e os votos do chefe de família, incluídas nos termos da autodisciplina ética mais elevada. Tudo isso está dentro do enquadramento mental da renúncia (a determinação de ser livres) e constitui o escopo intermediário de motivação.

Para o escopo avançado, temos os ensinamentos sobre os vários métodos para desenvolver um ideal de bodhichitta. Há a meditação de causa e efeito em 7 partes, começando com base na equanimidade e reconhecendo primeiro a todos como tendo sido nossas mães. O segundo método é equalizar e trocar a atitude que temos em relação a nosso eu e aos outros, incluindo a prática de “tonglen”, do dar e receber. Tsongkhapa apresentou o procedimento da meditação em 11 partes para combinar essas duas maneiras de desenvolver o ideal de bodhichitta. Há também a apresentação sobre os votos de bodhisattva, e uma explicação destes. Temos a prática das 6 atitudes de amplo alcance, com uma apresentação muito extensa sobre como alcançar a estabilidade mental ou a concentração de amplo alcance através da realização de shamatha, um estado mental aquietado e estável. A elaboração da consciência discriminativa de amplo alcance é apresentada em termos dos ensinamentos de como desenvolver vipassana, um estado mental excepcionalmente perceptivo. Tudo isso faz parte do escopo avançado dos ensinamentos.

Podemos ver a partir dessa rápida pesquisa que os ensinamentos do lam-rim englobam uma quantidade enorme de material, sendo que tudo faz parte dos ensinamentos dos sutras, se os dividirmos em sutra e tantra. Ter um certo nível de proficiência em todas essas áreas é um pré-requisito absoluto para a prática do tantra, um ponto com o qual concordam todos os tibetanos.

Os Pontos Cobertos pelo Lam-rim se Encontram em Todas as Tradições Tibetanas

É impossível entrar em detalhes sobre cada um dos pontos que acabei de enumerar. Além disso há muitos outros textos que apresentam esse material. São textos de vários tamanhos e que citam as escrituras, usando fontes indianas, para dar sustentação aos ensinamentos e às instruções. A versão mais longa foi escrita por Tsongkhapa e é chamada de Lam-rim chen-mo, ou Grande Apresentação dos Estágios Graduais do Caminho, na qual ele oferece uma quantidade incrível de detalhes precisos em relação aos estados de shamata e vipassana. A versão do Quinto Dalai Lama dá muitas orientações pessoais sobre as meditações. Há muitas variantes, e cada texto tem características individuais especiais.

É importante saber que todo o material coberto pelo lam-rim é encontrado em todas as tradições do budismo tibetano. A única diferença é a forma como a apresentação está estruturada. Por exemplo, Gampopa tem duas formas de apresentar seu material. Em sua Joia Ornamental da Libertação, ele o divide em termos de causa, ou seja, da discussão sobre a natureza búdica, e depois ele continua com a apresentação da preciosa vida humana como base de apoio, confiando no professor espiritual como sendo a condição, e as instruções do guru como sendo o método. Tudo está voltado para as mesmas coisas que temos no lam-rim, com o objetivo de obter renascimentos melhores,  libertação, e iluminação. A seguir, Gampopa estrutura os métodos em termos de superar os quatro obstáculos, o que é uma reminiscência da apresentação Sakya do mesmo material segundo o texto “Desvinculando-se dos Quatro Apegos”. Em suas outras formulações do material, Gampopa apresenta aquilo que conhecemos como “Os Quatro Dharmas de Gampopa”.

Na tradição Drigung Kagyu, temos apresentações que organizam o material em termos de base, caminho, e resultado, e achamos algo semelhante na tradição Sakya, chamado de “As Três Visões”. Há a visão impura, a visão da experiência, e a visão pura. Algumas apresentações combinam os quatro Dharmas de Gampopa com os três escopos, e outras os combinam com os quatro apegos. Outro exemplo é o texto de Patrul, As Palavras de Meu Professor Perfeito, no qual ele fala de preliminares externas e internas. Tudo cobre o mesmo material, então não deveríamos ter uma visão sectária, pensando que há apenas a versão que estamos estudando, ou que se trata da melhor versão. Algumas citações de fontes indianas podem ser ligeiramente diferentes. Mas, a princípio, é tudo a mesma coisa.

Os Três Tipos de Crenças em Fatos

Vimos que é possível entender o lam-rim dentro do contexto das quatro nobres verdades, e que é absolutamente essencial estarmos convencidos dos objetivos, se realmente quisermos ser capazes de nos desenvolver de acordo com o Dharma Autêntico. Essa certeza vem de duas coisas. Uma delas são os três tipos daquilo que geralmente é traduzido como “fé”. Acho que uma tradução melhor seria “crença em fatos”, pois não estamos falando do tipo de fé de que o mercado de ações melhorará amanhã, ou algo assim, que é algo que realmente não sabemos. Estamos falando sobre a crença em algo verdadeiro, não apenas a fé em algo impossível de entender.

Primeiro temos o tipo purificador de crença, que purifica ou estabiliza a mente em relação a qualquer atitude perturbadora. Por exemplo, ela acalma a mente no que diz respeito à indecisão, à dúvida e ao medo. O medo poderia estar relacionado à iluminação, quando sentimos: “Quem seria capaz de alcançar algo assim?”. Ou podemos ficar apegados e pensar: “Uau, isso é incrível, quero isso para mim, mim, mim!” A crença purificadora acalma tudo isso e é conquistada com base no segundo tipo de crença, que é a confiança baseada na razão. Em outras palavras, saber que o objetivo de alcançar a libertação e a iluminação é razoável. É um objetivo lógico, faz sentido e não é nem irracional, nem impossível. O terceiro tipo é a crença com uma aspiração, quando acreditamos que o objetivo é possível, que somos capazes de alcançar a iluminação, e portanto, aspiramos alcançá-la.

Desses três tipos de crença em fatos, podemos ver que é essencial estar convencidos de que os objetivos são razoáveis, que é possível alcançá-los e que cada um de nós, individualmente, é capaz de alcançá-los. Ao conquistar essa confiança, nossas mentes ficam calmas, sem medos, dúvidas ou exageros, não sentimos inveja dos outros que alcançaram esses objetivos, nem nos tornamos arrogantes em relação ao que já conseguimos alcançar.

Os Dezesseis Aspectos das Quatro Nobres Verdades

Outra faceta dos ensinamentos que sublinham a importância da convicção é o estudo dos dezesseis aspectos das quatro nobres verdades. Já falamos sobre um arya, ou um “ser nobre”, isto é, alguém que tem uma cognição não-conceitual da vacuidade (vazio). Na verdade, não apenas da vacuidade, mas a cognição não-conceitual dos dezesseis aspectos das quatro nobres verdades. Não os listarei aqui. Há quatro deles para cada uma das verdades, mas é importante estudá-los e ter confiança neles. Precisamos de convicção no fato de que uma verdadeira cessação é possível, que a verdadeira causa do sofrimento é a falta de consciência, e que os caminhos mentais realmente nos livrarão das causas do sofrimento para sempre. Os dezesseis aspectos explicam tudo isso e nos ajudam a desenvolver a confiança.

Convicção nas Verdadeiras Cessações e nos Verdadeiros Caminhos Mentais Como Bases de um Direcionamento Seguro (Refúgio)

Estou mencionando todos esses detalhes para ilustrar a importância e o benefício de tentar integrar aspectos dos ensinamentos do Dharma a nossas vidas. Fazer isso reforça e aprofunda o nosso entendimento de qualquer ponto individual dentro do Dharma. Se realmente tomarmos refúgio – em outras palavras, se realmente tivermos um direcionamento seguro para nossas vidas, indicado pelas Três Joias (Três Joias Preciosas): Buda, Dharma, e Sangha – então realmente vamos querer ir em direção a isso.

Qual é o direcionamento da Joia do Dharma? É a terceira e a quarta nobre verdade, ou a verdadeira cessação e os verdadeiros caminhos mentais do contínuo de um arya. Deveríamos saber essa definição. A terceira e a quarta nobre verdade não existem de forma independente no céu, elas existem com base em nosso contínuo mental. Trata-se da cessação, da remoção permanente do sofrimento e de suas causas do contínuo mental. Esperemos que isso aconteça com o nosso contínuo mental. Os caminhos mentais são o entendimento que gerará isso. Os budas (a Joia do Buda) são aqueles que alcançaram plenamente essas verdadeiras cessações e verdadeiros caminhos mentais. A Sangha arya (a Joia da Sangha) os alcançou parcialmente, mas não plenamente.

Quanto realmente levamos a sério o refúgio? Quando cortamos um pouco de cabelo e ganhamos um nome tibetano, será que isso é só blá-blá-blá? E no que estamos tomando refúgio, no Coelhinho da Páscoa? O refúgio é um direcionamento seguro, portanto temos que tomar refúgio em algo que acreditamos que existe. Temos que ter confiança que existe algo como as verdadeiras cessações e os verdadeiros caminhos mentais, que há pessoas que os alcançaram, e que nós também podemos alcançá-los. Precisamos confiar na existência dos estágios graduais para alcançá-los e que o Buda de fato os ensinou. Decidiremos ir nessa direção quando tivermos certeza que se trata de algo que realmente existe. Então, quando adicionarmos a bodhichitta, teremos a intenção de percorrer todo o caminho até nos tornarmos um buda para poder beneficiar os outros.

Inicialmente, o refúgio está dentro do contexto da liberação. Ou seja, quando repetimos um verso tibetano de motivação, primeiro tomamos refúgio ou um direcionamento seguro no Buda, Dharma e Sangha, até a liberação; e depois, pela força positiva gerada pelo dar e assim por diante, alcançamos a iluminação pelo bem de todos. A primeira parte tem como objetivo a liberação. A segunda parte, bodhichitta, tem como objetivo a iluminação. Temos que passar através desses estágios.

Então, toda a base para nos tornarmos uma pessoa do escopo inicial, depois do intermediário e finalmente do avançado, depende de uma crença muito confiante de que esses objetivos podem ser alcançados. Aqui está o caminho que os levará a ter confiança nisso. Tudo dentro do lam-rim tem que ser compreendido dentro do contexto do objetivo da liberação ou da iluminação. É isso que faz com que qualquer prática seja de fato uma prática budista dentro do contexto do direcionamento seguro, pois o que distingue o budismo do não-budismo é o refúgio. Se o deixarmos de fora, o escopo inicial se parecerá com quase todas as outras religiões. Podemos querer ter renascimento melhores ou podemos querer ir para o céu, mas nenhuma dessas opções é especificamente budista!

O Direcionamento Seguro nas Três Joias Preciosas Diferencia o Budismo

Há muitas práticas que os budistas têm em comum com as tradições não-budistas. A renúncia, ou seja, a determinação de livrar-se da existência mundana, é encontrada em várias tradições, e há instruções completas para alcançar-se shamata e vipassana em muitas das tradições indianas não-budistas. Pode ser que não tenham o foco da vacuidade, mas certamente têm métodos para alcançar tais estados mentais. E há também versões hindus do tantra que trabalham com os chakras, canais e energias, exatamente como no budismo.

O que faz com que qualquer uma dessas práticas seja budista? Será que é o amor e a compaixão? Não, pois achamos isso em quase todas as religiões. Será que é confiar no professor espiritual? Não, pois isso também existe em muitas outras tradições. Tem a ver com seguir uma disciplina ética? Não. Ou com tornar-se monge ou monja? Ou com fazer rituais ou pujas? Não, achamos tudo isso em outras religiões.

Então, o que faz com que elas sejam práticas budistas? Podemos ler a resposta em qualquer texto – é o direcionamento seguro do refúgio. Esta não é uma afirmação trivial. Não se trata de dizer: “Meu Buda é melhor que o seu Deus”. Trata-se do direcionamento seguro e da terceira e quarta nobre verdade, da verdadeira cessação do sofrimento, baseada em se libertar para sempre de suas causas, e dos verdadeiros caminhos mentais que levarão a isso. Em outras palavras, trata-se da verdadeira liberação.

Pode ser que outras religiões indianas também falem sobre liberação, mas do ponto de vista budista não se trata da liberação completa, pois os praticantes desses sistemas continuam a ter algumas emoções perturbadoras e problemas que o entendimento não dissipou. Não podemos acreditar que aquilo que o Buda ensinava é verdadeiro simplesmente por termos fé no Buda, pensando: “os ensinamentos do Buda são verdadeiros porque ele disse que são”. Nossa crença tem que ser baseada em uma convicção racional de que a liberação indicada pelo Buda é a verdadeira liberação. Essa convicção tem que ser baseada na razão, de forma que as nossas mentes sejam purificadas de atitudes perturbadoras em relação a essa convicção. Não estamos dizendo que a nossa liberação é melhor do que as outras. Não somos arrogantes nem apegados a ela. Não duvidamos dela com teimosia nem ficamos com a mente fechada, tampouco somos sectários ou invejosos. Não queremos competir com ninguém. Temos o terceiro tipo de crença, que é a crença no fato de que a aspiração faz com que a liberação seja possível e nós conseguiremos alcançá-la. Assim, todo o contexto do lam-rim começa a fazer sentido.

Examinando a Nossa Própria Motivação

Precisamos examinar a nossa própria motivação para ver se temos uma visão de Dharma-Light. Será que estamos tentando melhorar apenas esta vida com os métodos do Dharma ou estamos pensando nas vidas futuras? Será que temos alguma noção do que é a iluminação e pensamos que ela é possível?

Se praticamos o Dharma-Light, não há culpa nem julgamento em relação a isso. Está tudo bem. É onde começa a maioria dos ocidentais, onde eles têm que começar, por causa de suas origens. Se estivermos trabalhando com o Dharma-Light, então é realmente importante saber que o Dharma Autêntico é algo diferente, e devemos respeitar isso. Podemos ter a esperança de no futuro ser capazes de lidar com o Dharma Autêntico. Se voltarmos à nossa análise da motivação, precisamos ter certeza em relação aos três objetivos autênticos.

Um próximo passo é ter algum aspecto emocional que nos faça querer alcançar esses objetivos. Pode ser que acreditemos que renascimentos melhores, que a liberação e a iluminação são possíveis, mas temos muita resistência em realmente trabalhar para atingi-los. Quando entendermos que é possível alcançar todos os três objetivos, precisaremos trabalhar nas forças motrizes emocionais que nos farão sair da letargia e fazer algo para alcançá-los. Para transformar o trabalho com o Dharma-Light em Dharma Autêntico, precisamos trabalhar em duas dimensões. Uma delas é o entendimento e a outra é o aspecto emocional. Nenhuma delas pode ser ignorada. Ambas são igualmente importantes.

Quem Somos Nós e O Que Queremos?

A terminologia usada no lam-rim é significativa, quando falamos de “pessoas”. Que tipo de pessoas somos nós? Será que somos uma pessoa que apenas está preocupada com a prosperidade, com amor, e assim por diante, nesta vida? Será que somos uma pessoa que realmente pensa nas próximas vidas e se certifica de que não serão piores, para que tenhamos a oportunidade de continuar nosso desenvolvimento espiritual? Somos uma pessoa que trabalha para superar todo o sofrimento e alcançar a liberação?

Lembrem-se que o Dharma Autêntico trata da libertação dos renascimentos incontrolavelmente recorrentes, enquanto na versão Dharma-Light a liberação é apenas liberação dos problemas incontrolavelmente recorrentes nesta vida. Será que temos a iluminação como objetivo de beneficiar a todos, a cada indivíduo do universo? Isso inclui todos os insetos também! Isso é vasto. A isso chamamos de “Mahayana”, um vasto veículo da mente. Esses objetivos definem o tipo de pessoa que somos e isso é significativo. Trabalhar para alcançar esses objetivos certamente molda nossas vidas muito mais do que nossa nacionalidade, ocupação ou gênero. O lam-rim lida com o tipo de pessoa que somos.

Portanto, temos que lidar com esse tipo de questões, para entender o que molda nossas vidas. Se não nos questionarmos, nosso estudo do Dharma será como estudar qualquer coisa, será apenas algo interessante e talvez um pouco útil, como quando aprendemos a consertar um carro. Pode ser divertido e útil às vezes, mas não moldará toda a nossa vida. Aquilo que de fato molda a nossa vida é trabalhar para nos tornarmos esses três tipos de pessoas em uma ordem gradual.

Sendo Honestos Conosco

Estou me lembrando de uma linha do ensinamento sobre lojong chamado O Treinamento Mental em Sete Pontos no qual Geshe Chaykawa especifica como uma das formas de medir o sucesso no treinamento mental o seguinte: “Entre duas testemunhas, escolho a principal.” Isso significa que entre aqueles que podem testemunhar e avaliar nosso nível de motivação e desenvolvimento espiritual, isto é, os outros e nós, quem realmente sabe somos nós. Sabemos se estamos sendo honestos conosco. Estamos realmente trabalhando para libertar cada inseto do universo, ou não, quando recitamos com tanta facilidade: “Que eu alcance a iluminação para o benefício de todos os seres sencientes”? Quem estamos enganando? Será que alguém realmente tem a intenção de fazer isso ou pensa no significado disso? Nós somos mais capazes de nos avaliar do que qualquer outra pessoa. De um lado, temos que fazer isso sem culpa nem julgamento. De outro lado, tem que ser feito sem complacência, quando pensamos, por exemplo: “Ok, nesse momento é assim que sou, e esse é um fato. Sou uma pessoa raivosa com um mau gênio, e é melhor que todo mundo se acostume a isso.” Ao invés disso, tentamos cultivar a seguinte atitude: “Estou assim agora, mas gostaria de mudar e melhorar.”

Mas o que acontece quando temos perguntas como: “Será que estou preparado para fazer esse tipo de prática?” Trata-se de algo que podemos perguntar a nossos professores ou fazer uma autoavaliação em relação a isso? Claro que podemos pedir um conselho a nossos professores, ninguém diria que não devemos consultá-los. Mas no que se refere a perguntas como: “Será que superei meu egoísmo?”, perguntamos a outra pessoa ou fazemos uma auto avaliação?

Aqui a coisa se torna um pouco mais complexa. Às vezes não temos consciência de como estamos interagindo com os outros e precisamos de feedback, mesmo que possa parecer duro quando alguém for objetivo conosco. Podemos perguntar: “Tenho agido de forma egoísta em nosso relacionamento?” e a outra pessoa pode expor suas próprias questões emocionais. No entanto, em última instância, ninguém pode julgar melhor do que nós se temos agido de forma egoísta ou não. Com base em nossos próprios sentimentos ou no feedback alheio, podemos nos avaliar. É mais fácil nós sermos objetivos a nosso respeito do que os outros, pois nos conhecemos melhor.

Superando a Resistência Emocional À Mudança

Como já mencionei, mesmo se quisermos mudar e melhorar, muitas vezes temos que lidar com alguma resistência emocional. Para superar isso, precisamos aprofundar nossa análise da confusão por detrás da resistência e tentar descobrir o que a está causando. No nível que todos as escolas indianas do budismo têm em comum, a confusão é a nossa crença em um “eu” que existe de forma autosuficiente. Essa confusão é o que oferece resistência, então temos que começar a desconstruir esse “eu”. Trata-se de um “eu” aparentemente independente, como quando, por exemplo, ele pensa: “Não quero alcançar a iluminação; não quero ajudar os outros.” Parece que há um “eu” que existe de forma totalmente independente e não quer praticar.

Será que é uma mente que não quer praticar? Ou será preguiça? Do que exatamente se trata? Pensamos em termos de um “eu” que pensa, por exemplo, “não quero praticar”, mas esse “eu” é apenas imputado a uma mente que contem preguiça, medo, insegurança e outros fatores mentais. Se quisermos nos referir a todo esse conjunto da mente e seus fatores mentais, emoções e inseguranças, podemos nos referir a ela em termos de “eu”. Realmente temos a sensação de que “eu” não quero praticar.

Mas esse “eu” não existe de forma independente, e pode apenas ser conhecido no contexto dessas outras coisas. Para mudar a situação e superar a nossa resistência à prática, se estivermos pensando em nós em termos de um “eu” autossuficiente, que podemos conhecer, então alguém tem fazer com que esse “eu” pare de resistir. É como se pudéssemos gritar conosco. “Ora essa, pare de agir dessa forma!”, ou nos punir e nos forçar a praticar. Isso não funciona. É baseado em uma ideia errada a respeito do “eu”.

Portanto, é importante saber qual é o alvo dos antídotos; não é o “eu” autossuficiente e conhecível, pois ele não existe. Precisamos usar antídotos contra os vários fatores mentais e emoções perturbadoras que rotulam o “eu”. Temos que usar os métodos perfeitos do Dharma para trabalhar com nosso medo, preguiça, insegurança, e assim por diante, que se tornaram a base para rotularmos um “eu” que não tem interesse em praticar. Quando dissiparmos tudo isso, acharemos uma base para rotular um “eu” que quer praticar com entusiasmo, e assim por diante. É assim que podemos aplicar a análise da vacuidade. Não é nem tão intelectual, nem tão difícil; trata-se simplesmente de uma maneira de entender aquilo de que se está falando e como aplicar isso de uma forma prática.

Conclusão

Quem somos nós e o que queremos? Não se trata realmente de uma questão fácil, e requer que passemos tempo nos examinando de forma honesta. Quer acabemos praticando o Dharma-Light com alegria ou sigamos buscando pelo escopo inicial, intermediário ou avançado de motivações, pelos menos saberemos onde estamos. No final das contas, somos a nossa melhor testemunha.

Como vimos, o refúgio, ou o direcionamento seguro, é realmente o que faz com que o budismo seja diferente das outras tradições espirituais. O direcionamento seguro é, na verdade, o portal para todos os ensinamentos budistas, e o início de uma viagem na qual purificaremos emoções perturbadoras, engajando-nos no autodesenvolvimento, e viajando no caminho para o estado búdico.

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