Roda de Armas Afiadas: História e Estrutura

Hoje, eu gostaria de começar nossa discussão sobre um importante texto conhecido como Roda de Armas Afiadas (mTshon-cha ’khor-lo). Eu comecei a estudá-lo com um dos meus professores na Índia, Geshe Ngawang Dhargyey, e o traduzi sob sua supervisão, juntamente com Sharpa Rinpoche, Khamlung Rinpoche e Jonathan Landaw, há muito tempo, na década de 1970. Esta primeira tradução foi uma rendição poética para tentar torná-lo bonito para ser recitado. Bem mais tarde, eu o traduzi literalmente enquanto o ensinava lenta e metodicamente em Berlim, ao longo de alguns anos. As gravações desses ensinamentos estão no site, mas ainda no processo de serem transcritas.

Histórico do Texto

O texto é da tradição de treinamento mental lojong (blo-sbyong) e foi escrito pelo Mestre Indiano Dharmarakshita no final do século X e início do século XI. Dharmarakshita foi um dos professores de Atisha, que ao todo teve 157 professores. Muitas vezes as pessoas não entendem como lidar com vários professores. Sua Santidade o Dalai Lama diz para imaginá-los como Avalokiteshvara de 11 faces e 1000 braços. Eles são como rostos diferentes em uma figura, e todos se encaixam de uma maneira muito harmoniosa e integrada. Isso é muito útil.

Atisha foi um grande mestre indiano que viajou para Sumatra, na Indonésia, apenas para receber a linhagem especial dos ensinamentos de treinamento da mente. Depois, voltou para a Índia e foi convidado para ir ao Tibete. Atisha foi a pessoa que iniciou a segunda transmissão do dharma indiano no Tibete, depois de seu declínio no final da primeira transmissão, da qual derivam os ensinamentos Nyingma.

Não existe uma versão sânscrita original disponível para este texto. E no colofão final da versão tibetana, não está listado nenhum tradutor. Isso é estranho. O costume nas traduções tibetanas de textos indianos é colocar o título em sânscrito no início e o nome dos tradutores no final. Neste caso, no texto tibetano só é dito que ele foi transmitido por Atisha a Dromtonpa, seu discípulo tibetano, e então lista a linhagem subsequente. Eu suspeito que ele tenha sido transmitido oralmente de Dharmarakshita para Atisha, e só escrito mais tarde, no Tibete, talvez por Dromtonpa ou outra pessoa depois. Isso também se confirma pelo fato de que a linguagem e o estilo do texto são puramente tibetanos, e não há nada do estilo que se vê em textos traduzidos do sânscrito.

Em todo caso, de acordo com Dromtonpa, Atisha tinha três professores de bodhichitta, dois na Índia, Dharmarakshita e Maitriyogi, e um de Sumatra, Serlingpa, seu professor da Ilha Dourada, o nome de Sumatra naquela época. De acordo com a tradição, Dharmarakshita tinha tanta compaixão que cortou um pedaço de carne de sua própria perna para dar, como remédio, a um homem doente. Maitriyogi era tão avançado em sua prática de tonglen - dar sua felicidade aos outros e tomar para si o sofrimento deles - que desenvolveu hematomas em sua perna quando um cachorro estava sendo espancado. Ele conseguiu tomar essa lesão para si. Mas, Atisha disse que a principal fonte dos ensinamentos de treinamento da mente foi Serlingpa.

Naquela época, e nos vários séculos anteriores, havia muito comércio marítimo entre Índia e Indonésia, mais especificamente, Sumatra. Naquela época, um grande reino budista florescia em Sumatra. Recentemente, as ruínas da instituição monástica foram encontradas, onde presumivelmente Serlingpa ensinou e Atisha estudou. Era um enorme centro de ensino, ainda maior que a Universidade de Nalanda. Muito pouco se pesquisou sobre o budismo indonésio, mas muitos textos foram traduzidos para o antigo javanês. Sumatra tinha esse grande centro de ensino, e Serglingpa era um grande mestre nessa universidade monástica. Atualmente, o local onde estava essa instituição é chamado de Muara Jambi, e as pessoas estão tentando fazer com que ele seja reconhecido como um Patrimônio da Humanidade, para que sejam feitas mais escavações arqueológicas dessa descoberta.

Embora Atisha tenha dito que a principal fonte dos ensinamentos de treinamento da mente estava em Sumatra, em Serlingpa, minha teoria é que antes de viajar para lá, ele havia recebido ensinamentos semelhantes, como este texto, a Roda de Armas Afiadas, e um segundo texto de Dharmarakshita, intitulado A Destruição do Veneno pelo Pavão (rMa-bya dug-’joms)Esses textos têm muito em comum com os ensinamentos de treinamento da mente, e, portanto, minha teoria é que Atisha queria aprender mais, após ter sido apresentado a esses ensinamentos na Índia. Para isso, ele precisou ir a Sumatra, para depois levar os ensinamentos completos de volta à Índia, e então transmiti-los ao Tibete.

A questão é se este texto realmente é parte da tradição de treinamento da mente ou é um precursor dela. Como classificá-lo? Se olharmos para a coleção de textos de treinamento da mente do século XIV, Centenas de Treinamentos da Mente, veremos que nela estão dois textos de Dharmarakshita. Em algumas edições, se acrescenta ao título Roda de Armas Afiadas, o subtítulo Um Treinamento Mental Mahayana, que não faz parte do título que Dharmarakshita escreveu.

O texto tem muitos aspectos em comum com os ensinamentos de treinamento da mente, em particular com a prática de tonglen, dar e tomar, e aceitar a derrota para si e dar a vitória aos outros. A fonte de ambos os ensinamentos é o texto de Nagarjuna Uma Guirlanda Preciosa:

(484) Que todos os potenciais negativos deles amadureçam em mim e que todos os meus potenciais construtivos amadurem neles.

Shantideva, em Engajando-se no Comportamento do Bodhisattva (O Caminho do Bodhisattva), também ensina a prática de dar e receber na oração de dedicação no final de seu texto, onde escreve:

(X.56) Qualquer que seja o sofrimento dos seres errantes, que ele amadureça em mim e, por meio da assembleia de bodhisattvas, que os seres errantes desfrutem de felicidade.

Essa tradição de dar e tomar, com sua longa história na Índia, foi elaborada por Dharmarakshita, com a ênfase que deu em seu texto sobre as desvantagens do autocentramento. Uma atitude assim tão autocentrada nos impede de realmente assumir os sofrimentos dos outros com compaixão e dar-lhes felicidade com amor.

O amor e a compaixão são a base para o desenvolvimento de Bodhichitta. Bodhichitta é uma mente que visa a própria iluminação, que ainda não aconteceu, mas que pode acontecer, com base em nossos aspectos da natureza búdica. Isso é acompanhado da intenção de alcançar essa iluminação e, assim, beneficiar todos os seres. De maneira mais específica, Bodhichitta visa o aspecto Dharmakaya de nossa iluminação que ainda-não-está-acontecendo.

Há dois estágios: bodhichitta convencional e bodhichitta mais profunda. A Bodhichitta convencional é direcionada ao aspecto de Consciência Profunda de Dharmakaya (Corpo de Sabedoria); em outras palavras, a mente iluminada onisciente, com sua natureza convencional de poder originar os Corpos de Forma de um buda, a aparência de um buda. A Bodhichitta mais profunda é direcionada ao Svabhavakaya, a Natureza Essencial de Dharmakaya, nomeadamente a vacuidade da mente iluminada e as verdadeiras cessações.

A Estrutura do Texto

Antes de nos aprofundarmos, eu gostaria de dar uma visão geral do texto, para que tenhamos uma ideia da estrutura como um todo, e como cada uma das quatro partes, em que acho que ele pode ser dividido, se relacionam. 

O texto tem 118 versos, e começa com a prostração às Três Joias: o Buda, o Dharma e a Sangha, e se intitula Roda de Armas Afiadas - Atingindo o Ponto Vital do Inimigo. Depois vem a prostração a Yamantaka, que também é conhecido como Vajrabhairava, a forma enérgica de Manjushri. Prostrações a Yamantaka não são muito comuns, então precisamos entender por que Yamantaka tem um lugar tão proeminente nas duas obras de Dharmarakshita.

Yamantaka

Yamantaka é a forma enérgica de Manjushri. Manjushri representa a consciência discriminativa, ou sabedoria da vacuidade, que destrói o inimigo - que é a nossa ignorância, nosso apego a um eu falso e impossível que simplesmente não existe, e o autocentramentos que deriva disso. A única maneira de superar essas coisas é através da percepção de que o que projetamos sobre o eu não corresponde à realidade. Precisamos dessa consciência discriminativa da vacuidade para discriminar entre o que é a realidade e o que é pura projeção de fantasias.

A Distinção Entre o Eu Convencional e o Falso Eu

Quando temos um texto que lida com o autocentramento, e sua superação e destruição, é importante entender o que isso envolve. Quando falamos em um eu, ou uma pessoa no budismo, precisamos distinguir o eu convencional do o falso eu.

O eu convencional realmente existe. Claro, podemos entrar em uma profunda discussão filosófica sobre o que significa existir; mas, para dar uma explicação simples, significa que funciona. Executa uma função. Nós fazemos coisas. Nós agimos, positiva ou negativamente, e experimentamos os resultados do nosso comportamento. Nesse sentido, participamos do mecanismo de causa e efeito, e não podemos dizer que o eu não existe de maneira alguma. Isso seria o extremo niilista.

Nós não vamos para os extremos do eternalismo ou do niilismo. O niilista diz que não há nada; mas se fosse assim, o que fazemos não teria importância, pois não haveria consequências para nada do que fazemos, e não experimentaríamos nenhum resultado do nosso comportamento. Isso certamente não é o que ensina o budismo. A posição eternalista é que temos um eu sólido, e esse eu sólido nunca muda, não é afetado por nada, e pode existir independentemente de um corpo e mente. Na libertação, ele vai para um estado transcendental chamado moksha, libertação, e existe por si só. Isso também negaria a ideia de causa e efeito. Se ele fosse estático e não afetado por coisa alguma, o que fazemos não teria importância, pois não experimentaríamos nenhum efeito do que fazemos. Isso também é refutado pelos ensinamentos budistas.

Há um eu convencional. Nós todos concordamos com isso, e o experimentamos da mesma maneira, como uma imputação nos cinco agregados; ou para simplificar, no corpo e mente. O que percebemos, as emoções e todos os mecanismos com os quais a mente trabalha, como a atenção, a concentração, o interesse, essas coisas, tudo isso está acontecendo ao mesmo tempo. Essas muitas partes diferentes, como aquilo em que estamos prestando atenção, as emoções que estão presentes, as sensações no corpo, todas essas coisas estão mudando em um ritmo diferente. O eu não existe como algo separado disso. Também não é idêntico a nenhuma dessas coisas; ele é aquilo que é conhecido como uma "imputação" com base neles.

Imputação

Eu acho que a maneira mais fácil de entender o que é uma imputação – que, na verdade, é um conceito bastante difícil - é usando a relação entre o todo e as partes. A relação entre o eu e os agregados não é exatamente a mesma coisa; mas, próxima o suficiente para termos uma ideia. Há muitas partes, mas também há um todo. Não podemos dizer que o todo não existe; mas não há como o todo existir independentemente das partes. Você não consegue encontrar o todo em uma das partes; no entanto, há um todo. Qual é a relação entre o todo e as partes? É que o todo é aquilo que é conhecido como uma imputação nas partes.

De um determinado ponto de vista, poderíamos dizer que objetivamente existe um “todo” porque ele é uma convenção com a qual todos concordamos. Da mesma forma, há a convenção de que existe um eu, e sentimos isso.

O Falso Eu

Claro, o problema é que por causa de nosso hardware limitado, nossa mente limitada, o “eu” parece ser auto estabelecido e independente. Parece não ter partes, nunca mudar, e ser algo que experimentamos como tendo a ver com essa voz que ouvimos em nossa cabeça. É como se houvesse um eu sentado dentro da gente, o controlador que está falando, reclamando e comentando tudo. Há esse sentimento muito convincente de que há um “eu” dentro da gente, que de alguma forma vive em nossa cabeça, ou dentro do nosso corpo, que fica continuamente comentando coisas como: "O que devo fazer agora? Todo mundo está olhando para mim. O que as pessoas pensam de mim? " Ele está sempre inseguro e tentando encontrar alguma maneira de se sentir seguro.

A partir dessa insegurança, temos o mecanismo das emoções perturbadoras, como o desejo ansioso e a luxúria. Sentimos: "Se eu conseguisse obter e manter isso, me sentiria seguro". Com a raiva é: "Se eu conseguisse me livrar disso, me sentiria seguro "; e com ignorância: "Se eu fingir que isso não existe e erguer muros à minha volta, me sentirei seguro".

Mas, claro, nenhuma dessas estratégias funciona, e a raiva, a ganância, ou a ignorância, nos levam ao comportamento compulsivo. É disso que trata o carma, e isso traz problemas. Obviamente, nosso comportamento compulsivo traz problemas para os outros, mas principalmente para nós, pois estabelecemos um forte hábito de repetir o comportamento. Então, entramos em um loop e ficamos praticamente viciados em nosso comportamento autodestrutivo.

Tudo isso está baseado nessa projeção de como o “eu” parece existir. Ele parece ser essa entidade sólida dentro de mim, que é identificada em nosso texto como o "inimigo". Nosso verdadeiro inimigo é essa projeção falsa, imaginária, sobre o eu convencional. Mas precisamos ser cuidadosos aqui. O eu convencional não está sentado dentro do nosso corpo ou mente, nós é que projetamos esse falso eu e queremos que ele corresponda à realidade.

Autoapego

O termo "auto apego" (etim. a+pegar) tem dois níveis de significado. "Pegar" (’dzin) é a mesma palavra que se usa para “tomar algo como seu objeto”. No primeiro nível de significado, a mente toma algo como seu objeto; a mente projeta essa aparência e parece que há alguém falando dentro de nossa cabeça - eu. Essa é a percepção que temos. O segundo aspecto do que chamamos de apego é que pensamos que isso corresponde à realidade e a como as coisas realmente existem.

Temos que nos livrar dessa crença. Isso é lixo; é como uma ilusão. E, assim como uma ilusão, parece que corresponde à realidade, mas não corresponde. Primeiro, temos que acabar com essa crença ilusória e, então, temos que fazer nossas mentes pararem de projetar essa aparência enganosa. Quanto mais estivermos convencidos de que isso é um absurdo, e mais nos concentrarmos na ausência de qualquer coisa que corresponda à nossa projeção, que é aquilo a que a vacuidade está se referindo, menor será nosso auto apego.

Eu prefiro o termo "vacuidade" em vez de "vazio" para traduzir shunyata. Shunyata não quer dizer que há um eu convencional encontrável, sentado lá, mas vazio no que diz respeito a um falso eu. Não é como se houvesse um copo na mesa e não houvesse água no copo. Esse não é o significado de shunyata. Shunyata significa que não há tal coisa, não há esse eu impossível, esse falso eu. No entanto, isso não contradiz o fato de que fazemos coisas e experimentamos os resultados de nosso comportamento. O carma continua operando; causa e efeito continuam operando.

O que queremos fazer é quebrar a continuidade dessa crença de que a aparência de um falso eu corresponde à realidade. Quanto mais focamos em não há tal coisa, mais diminuímos a força de nossa mente para fazer essa projeção. Durante a absorção total na vacuidade, focada, de maneira não conceitual, em não há tal coisa, a mente não está criando a aparência de um falso eu. Com isso, a inércia dessa aparência e a força de nossa mente em fazer com que ela apareça de novo e de novo é interrompida. Nossa projeção e falsa crença se tornam cada vez mais fracas à medida que focamos de maneira não conceitual na vacuidade.

Dessa forma, em algum momento a mente irá parar de produzir esse lixo, essa projeção. É assim que a superamos. Isso é muito importante entender, porque esse é o ponto principal que estamos discutindo aqui neste texto. Este é o inimigo: agarrar-se, apegar-se, a um eu impossível. Em outras palavras, a mente o faz aparecer e depois acreditamos que isso corresponde à realidade.

Autocentramento

Do autoapego vem o "autocentramento". Autocentramento significa pensar: "Eu sou a pessoa mais importante do mundo, e você não conta. Você não me importa." É essa atitude. No Ocidente, falamos mais em termos de autocentramento ou auto preocupação; é só eu, eu, eu. Esse eu, eu, eu é o falso eu. Aquele “eu” na nossa cabeça dizendo: "Eu quero que seja assim; eu sou muito importante, e todo mundo deve prestar atenção em mim. Eu deveria ser o primeiro na fila e eu deveria obter o melhor lugar." Obviamente, isso acontece com todos nós, e é muito convincente, porque parece que é como as coisas são. Isso é autocentramento, essa crença de que: "Eu sou o mais importante e tenho que cuidar de mim primeiro".

Yamantaka, a Forma Enérgica de Manjushri

Isso é o que caracteriza Manjushri: a consciência discriminativa, que discrimina entre o que existe, a realidade, e o que é fantasia. Precisamos acabar com essa visão falsa de uma forma enérgica. Isto é o que Yamantaka representa: uma forma enérgica de Manjushri.

Às vezes ouvimos as pessoas se referirem a essas formas enérgicas com “iradas”. Ao menos no inglês, eu não acho que "irado" tem a conotação que buscamos. "Irado" significa que a mente está com raiva; a pessoa fica um tanto perturbada quando a mente está irada. Embora tenhamos muitas imagens assim, e Dharmarakshita as usa, acho que o ponto é que é muito enérgica. Queremos usar uma energia muito forte contra nossas emoções perturbadoras e autoapego. A ideia é dizer a nós mesmos para parar de agir como bebê, ou parar de agir como um idiota. Pare com isso! É esse tipo de ação enérgica que precisamos. Pare! - assim. Isso é Yamantaka.

A Roda de Armas

No segundo capítulo dos capítulos condensados dos ensinamentos tântricos raiz de Vajrabhairava, de onde vêm os ensinamentos de Yamantaka, ou Vajrabhairava, há uma descrição de rituais usando vários instrumentos para ações extremamente enérgicas contra seres nocivos. O texto dá instruções sobre como fazer esses instrumentos para os rituais. Entre esses rituais, há a construção de uma roda de armas. Uma roda de armas seria como uma estrela da tradição ninja japonesa. Parece uma estrela com buraco no centro, e com lâminas nas pontas. Ela é arremessada como uma arma terrível. Se você olhar para a iconografia de várias figuras que seguram essa roda de armas, como Yamantaka, verá que ela é ilustrada assim. Yamantaka tem trinta e quatro braços, e segura essa roda em um deles, usando-a em sua guerra contra o inimigo, o nosso inimigo, o apego a um falso eu cuja existência é impossível.

Quando fiz a tradução poética do texto e o nomeei "Roda de Armas Afiadas", esse título de alguma forma ficou como o nome que outras pessoas também usaram. Essa guerra contra o falso eu é uma imagem que se encontra em toda a literatura budista. O Buda, afinal, veio da casta dos guerreiros, portanto, é natural ver imagens marciais na literatura budista. Por exemplo, a tradução tibetana da palavra arhat, um ser liberado, significa literalmente, conforme traduziu Jeffrey Hopkins, destruidor de inimigos: aquele que destrói o inimigo. Uma das maneiras de fazer isso é com o uso dessa estrela de arremesso, essa roda de armas afiadas.

O Disco de Guerra de Vishnu

A proeminência da roda de armas pode ser rastreada até a iconografia do Deus Hindu Vishnu. Vishnu, que vem do tempo dos Vedas, que é antes da época do Buda, segura um disco de guerra, embora ele não tenha lâminas. Esse disco é chamado de "roda de ensinamentos corretos". Essa roda aparece frequentemente nos ensinamentos indianos. Ela representa o samsara, a roda da existência recorrente. É a roda dos ensinamentos corretos, na antiga filosofia indiana não-budista. Vishnu segura essa roda em uma de suas quatro mãos, e ela representa o reestabelecimento da roda do Dharma, da roda dos ensinamentos, mesmo que para isso seja necessária uma guerra. Vishnu arremessa esse disco para derrotar o inimigo e reestabelecer o dharma puro. Esta imagem também é utilizada nos ensinamentos budistas.

Treinamento Mental

Como fazer isso no contexto budista? Na tradição do treinamento mental, é através da transformação de circunstâncias adversas em circunstâncias que nos ajudam a progredir no caminho para a iluminação. Eu acho que essa é a essência dos ensinamentos de treinamento mental.

O termo "treinamento mental" é muito usado, mas temos que ter cuidado para saber do que estamos falando. Não estamos falando apenas do treinamento em concentração; isso não é tudo. Quando falamos em mente, estamos falando de nossas atitudes. A palavra tibetana para "mente" no termo "treinamento mental", lo (blo), é frequentemente usada para indicar as atitudes que temos e como vemos as coisas. Nossa atitude é muito importante, dependendo se temos uma atitude negativa ou positiva em relação às situações. Podemos mudar nossa experiência de uma situação difícil mudando nossa atitude em relação a ela.

Certa vez, Sua Santidade o Dalai Lama estava falando sobre depressão em resposta a uma pergunta. “As coisas estão terríveis no mundo, e especialmente no que diz respeito à situação do Tibete; o que você faz para não se desanimar com o que está acontecendo?” Sua Santidade respondeu que quando você encontra algo um pouco melhor do era antes, isso lhe dá esperança; e a esperança é a chave para se conseguir superar a depressão e o desânimo.

Se mudarmos assim nossa atitude, perceberemos que algo positivo pode acontecer, mesmo que seja algo muito pequeno. Essa mudança de atitude em como vemos as circunstâncias é o que nos permite transformar circunstâncias adversas ou difíceis em positivas. A palavra usada para "treinar", jong (sbyong) também tem a conotação de "limpar"; queremos limpar as atitudes negativas de nossas mentes e desenvolver, ou cultivar, alguma coisa – uma vez que essa palavra tibetana também é usada com o significado de “educar”. Queremos cultivar atitudes positivas, e o fazemos principalmente através desse tonglen, dar e receber.

Reflexão: O Entendimento Correto Como um Prelúdio para a Meditação

Tire um tempo para refletir. É disto que vamos falar: como superar o auto apego. Há uma diferença entre o eu convencional e o eu falso. O eu convencional, o todo, não é o mesmo que as partes, mas também não é diferente das partes e não existe separado das partes; no entanto, existe um todo, existe um eu. Ele funciona, mesmo que não consigamos apontar exatamente onde ele está. A projeção de que há algo como um eu sentado em minha cabeça, falando e tentando controlar as coisas – isso é impossível.

Quando dizemos que é para refletirmos ou pensarmos sobre isso, o que queremos dizer é que precisamos tentar entender do que estamos falando. Primeiro, repetimos em nossa mente: "Eu existo: existe um eu convencional, mas eu não existo da maneira que pareço existir para mim. A maneira como pareço existir para mim é uma projeção absurda, mas isso não significa que eu não existo." É nisso que pensamos.

Se já tivermos recebido uma explicação clara disso, passamos a tentar entender o que estamos repetindo em nossas mentes. Uma vez entendido o significado das palavras, temos que ver se elas fazem sentido e se o ensinamento está correto. Temos que buscar em nossa experiência; temos que olhar em termos do que acontece quando pensamos assim e quando aceitamos isso. Nossa compreensão se baseia em todos esses pontos.

É somente quando nos convencemos de que isso está correto, que fazemos o que chamamos de meditação, para transformar isso em um hábito benéfico. Entender os ensinamentos e estar convencido de que estão corretos são fatores essenciais. Pois, meditar em algo que não entendemos e não estamos convencidos, não nos leva muito longe.

Esse é o propósito do debate na tradição tibetana. Nós não desafiaríamos nossa própria compreensão de maneira tão implacável e vigorosa como os outros o fazem no debate. O que nossos oponentes estão sempre tentando fazer em um debate é desafiar nossa compreensão e fazer com que a gente se contradiga. Através de um processo de discussão com os outros – não tem que ser debate formal – podemos verificar nosso entendimento para ver se realmente entendemos corretamente.

Concentrar-se em uma compreensão incorreta pode ser desastroso. Queremos ter uma compreensão correta e estarmos convencidos dela, para que não tenhamos dúvidas. Quando temos dúvidas, dizemos que é uma "dúvida aflitiva", e esse é o grande obstáculo na meditação nesses aspectos mais profundos. Claro, também não queremos começar a divagar sobre o almoço, mas isso é outra coisa. Porém, em um nível mais sutil, é essa dúvida sobre o que algo realmente significa que nos impede de focar de forma significativa em um ponto do dharma.

No processo de escutar, pensar e meditar, o que chamamos de "pensar" significa contemplar e analisar. Isso é o que tentamos fazer. A maioria de nós não está no estágio onde conseguimos meditar de acordo com a definição do que é meditação. Precisamos tentar digerir os ensinamentos primeiro e descobrir o que eles realmente querem dizer.

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