Integrando Nossas Vidas com as Cinco Sabedorias Búdicas

Exercício Para Harmonizar os Vários Aspectos de Nossas Personalidades

Outra aplicação deste método de meditação usando os cinco tipos de consciência profunda (sabedorias búdicas) é como um método para estarmos mais conscientes das várias facetas de nossa personalidade e integrá-las e equilibrá-las. Fazemos isso sem julgar, percebendo objetivamente as vantagens e desvantagens de cada uma, a fim de equilibrá-las. Isso requer atenção especial às facetas que tendemos a negligenciar ou às que exageramos e que tendem a nos dominar. Vamos começar o exercício fazendo o seguinte:    

  • Para harmonizarmos todas as facetas de nossa personalidade, começamos trazendo à mente, com a consciência profunda como um espelho (sabedoria do espelho), várias delas, tantas quanto possível.  
  • Então, com a consciência profunda da igualdade (sabedoria da igualdade), consideramos as várias facetas como partes iguais, nenhuma mais importante do que as outras.   
  • Com a consciência profunda da individualidade (sabedoria discriminativa), focamos em uma faceta em particular, que talvez tenhamos banalizado, negligenciado ou mesmo enfatizado demais. 
  • Com a consciência profunda da realização (sabedoria da causalidade), levamos nossa energia e disposição a essa faceta, de modo a atendê-la e não ignorar ou exagerar sua importância. 
  • Com a consciência profunda da realidade (sabedoria de dharmata), temos consciência do que é essa faceta e, ao reconhecer e valorizar suas qualidades, e reconhecer e desvalorizar as características negativas, temos a consciência de como equilibrá-la em nossas vidas,   
  • Em seguida, nos acalmamos, focamos na respiração e deixamos a experiência se estabelecer. Lentamente, abrimos os olhos e voltamos ao momento presente. 

Pergunta Sobre Como Aplicar Este Método em Nossas Vidas

Durante o exercício, quase que uma lista dos diferentes aspectos da minha personalidade veio à mente, automaticamente, desde os mais grosseiros até os sutis. Além disso, descobri que mesmo quando focada nos aspectos inconvenientes ou negativos da minha personalidade, eu posso encontrar algo positivo e aumentar seu potencial de forma positiva. Minha pergunta é: No cotidiano e em nossa prática do dharma, você sugere que devemos trabalhar com esses aspectos de nossa personalidade um de cada vez ou (a personalidade) como um todo?

O sistema que estou usando vem da tradição Karma Kagyu de examinar nossa personalidade com o que essa tradição chama de "consciência básica", "consciência geral" e "consciência específica". Esses três tipos de consciência estão correlacionados, respectivamente, à consciência profunda semelhante a um espelho, da igualdade e da individualidade. Momento a momento, nossa atividade mental está originando o campo cognitivo das aparências, o qual percebemos com a consciência básica, e também (está originando) a imagem geral do que aparece no campo, que percebemos com a consciência geral, e os vários detalhes, que são os objetos que percebemos com a consciência específica. Basicamente, as três funcionam juntas, mas aqui, com este exercício, fazemos isso em etapas. Dentro do campo de nossas vidas, trazemos à mente a nossa personalidade como um todo, mas depois trabalhamos para equilibrar cada aspecto individualmente, no contexto do todo.        

Todos nós temos muitas facetas ou aspectos diferentes em nossa personalidade. Eles são a matéria prima com a qual temos que trabalhar nesta vida. Por exemplo, podemos ter um bom senso de humor ou um temperamento muito explosivo; podemos ser lentos ou muito rápidos. Podemos ser muito sérios ou informais, atléticos ou intelectuais. Podemos ser uma pessoa mais sociável ou menos sociável. Temos muitos traços de personalidade e precisamos reconhecer, e (precisamos) trabalhar com todos eles em nossas vidas. Como trabalhar com eles? Como equilibrá-los, como minimizar os aspectos negativos e maximizar os positivos? É nisso que este exercício pretende nos ajudar. 

Agora, é claro, surge a pergunta: Será que é realmente possível mudar nossa personalidade? Talvez essa seja uma distinção artificial, mas acho que existem, de um lado, traços de personalidade e, de outro, emoções perturbadoras. As emoções perturbadoras não são necessariamente uma parte integrante de nossa personalidade básica nesta vida.  

Por exemplo, ser bem-humorado ou sério é muito diferente de ter ganância ou raiva. Dentro do contexto das emoções perturbadoras, todos podemos trabalhar com os métodos do dharma para nos livrar da ganância, do egoísmo, da raiva, da inveja, da arrogância e assim por diante. Mas, preferir estar com muitas pessoas ou preferir sozinho seria mais um traço de personalidade. Nenhuma dessas preferências é necessariamente problemática.     

Algumas coisas, como nosso nível de inteligência, por exemplo, não são muito fáceis de mudar. Obviamente, podemos aumentar nossa inteligência com vários métodos, mas é uma espécie de característica básica que temos. Podemos ter uma imaginação muito forte ou não. Novamente, podemos treinar nossas habilidades para imaginar, mas há um nível básico com o qual começamos nesta vida. Outras características de personalidade, por exemplo, podem envolver ser muito ou pouco criativo; ter necessidade de afeto ou muito pouca necessidade de afeto; ter um impulso sexual forte ou um impulso sexual fraco. Podemos tentar equilibrar aquilo que conseguirmos, podemos aproveitar os pontos fortes e minimizar os pontos fracos de cada uma dessas facetas.   

No entanto, independentemente da matéria prima que temos para trabalhar, é importante tentarmos combiná-la de uma forma harmoniosa e bem integrada; é como os vários instrumentos diferentes de uma orquestra. Queremos combiná-los para tocar uma bela sinfonia, não queremos que sejam discordantes e dissonantes. Para usar essa abordagem, realmente precisamos trabalhar com cada faceta de nossa personalidade - primeiro, uma de cada vez - e depois harmonizar mais e mais facetas juntas.    

Aplicando o Método para Harmonizar os Vários Relacionamentos em Nossas Vidas

Essa metodologia também pode ser estendida a outras dimensões de nossas vidas. Por exemplo, podemos olhar para todos os diferentes relacionamentos que temos. Temos relacionamentos com vários membros de nossa família, amigos, professores, colegas de trabalho e pessoas que trabalham nas lojas que frequentamos. Podemos examinar todos esses relacionamentos e aplicar as mesmas etapas para maximizar os aspectos positivos de cada um e minimizar os negativos ou prejudiciais. Podemos tentar harmonizar todos os diferentes relacionamentos que temos em nossas vidas.

Isso não significa, porém, que todos os nossos amigos e familiares tenham que se dar bem uns com os outros, ou que temos que estar com todos ao mesmo tempo ou por períodos iguais. A questão é: como cada relacionamento se encaixa em nossa vida. Estamos exagerando demais a importância de um relacionamento e negligenciando a de outro? Um relacionamento está sabotando outro? Essa é uma área interessante de se explorar, e os cinco tipos de consciência profunda podem nos ajudar.   

Às vezes, não reconhecemos a importância de um relacionamento específico em nossa vida. Por exemplo, podemos estar muito envolvidos com a família e não perceber a importância de ter amizades fora do âmbito familiar ou de ter amigos que não sejam amigos em comum do casal. É muito importante para uma mulher ter amigas mulheres e para um homem ter amigos homens, independentemente de estar em um relacionamento ou casamento. Se isso for negligenciado, pode nos causar dificuldades e contribuir para a sensação de que algo está faltando.

Integrando Outros Aspectos de Nossas Vidas

Outra dimensão para a aplicação deste método é examinar os vários capítulos de nossas vidas e tentar integrar todos eles. Muitas vezes, tendemos a superestimar certos aspectos de nossa história. Por exemplo, uma determinada fase da vida em que fomos intimidados ou abusados. Podemos deixar que isso se torne o principal evento de toda a nossa vida. E pode ser que haja outros capítulos que queiramos esquecer completamente, como um período em que estivemos em um relacionamento tóxico. Também podemos examinar os vários tópicos que estudamos durante nossa educação formal. Como integrar todos esses elementos? Se tivemos experiências ruins, o que aprendemos com elas? O que podemos tirar de positivo de nossas experiências negativas? Novamente, tentamos equilibrar toda a nossa vida.  

Lembre-se de nossa conversa anterior sobre o “eu” convencional e como esse “eu” convencional, como pessoa, é uma imputação em uma base de imputação. Em nossas conversas anteriores, falamos, de uma maneira geral, que a base para imputação do “eu” é os cinco agregados: corpo, mente e assim por diante. Mas, na verdade, essa base de imputação inclui tudo que diz respeito a nós: todas as facetas de nossa personalidade, todos os nossos relacionamentos, do presente e do passado, e todas as coisas que aconteceram conosco em nossa história. Essa é a base para a imputação do "eu". Quanto mais ampla for essa base, mais saudável será a nossa sensação de um “eu” convencional. Além disso, devemos estar sempre abertos a ampliar essa base e incluir novos relacionamentos, novas coisas que aprendemos e novos aspectos que desenvolvemos.           

O falso “eu” surge quando identificamos “eu” com apenas um ou dois aspectos, (quando o consideramos) o verdadeiro “eu” e esquecemos todos os outros aspectos que também pertencem à base de imputação. Aí temos muitos problemas. Vamos pensar nisso por um momento.  

A Relação Entre os Exercícios e a Compreensão da Vacuidade

Refletindo sobre os exercícios com os cinco agregados e os cinco tipos de consciência profunda, descobri que existem muitos pensamentos, emoções e sentimentos presentes em cada momento, e que tenho a capacidade de fazer com que amadureçam de uma forma positiva, ou de uma forma negativa. Também percebi que há um curto espaço de tempo antes de cada um desses pensamentos ou sentimentos surgirem e que tudo o que penso ou sinto é um processo de surgimento e desaparecimento. Com isso, tenho a possibilidade de trabalhar com todos esses aspectos de forma construtiva ou destrutiva. Essas novas descobertas me ajudarão na compreensão da vacuidade, do renascimento e da experiência do bardo?

Todas essas descobertas são de fato muito úteis para a compreensão da vacuidade. Conforme acabamos de mencionar, uma pessoa, o “eu” convencional, é um fenômeno de imputação que tem como base os cinco agregados. Os fatores que constituem nossos cinco agregados estão constantemente mudando; não há nada estático, nada que permaneça igual momento a momento. Os cinco tipos de consciência profunda que nos ajudam a perceber e tomar conhecimento das coisas também estão constantemente tomando objetos diferentes e mudando, momento a momento. O “eu” convencional é meramente um fenômeno de imputação que tem como base tudo isso; não há nada encontrável nessa base que seja um "eu" estático, imutável e monolítico.                 

Mas o que me torna “eu”? Essa é uma questão muito importante. Se a base para o "eu" é o que vivenciamos, e também os diferentes fatores de nossa personalidade, relacionamentos e história, e se tudo isso está constantemente mudando, o que está me fazendo "eu"? Do ponto de vista da Gelug Prasangika, conforme conversamos, assim como não há como encontrar um "eu" convencional nos agregados, também não há como encontrar uma característica definidora individual no "eu" convencional que, por seu próprio poder, o torne “eu”. Uma vez que não há como encontrar a pessoa nem a marca característica individual da pessoa na base de imputação, a única maneira de se estabelecer a existência da pessoa ou da marca definidora é como sendo apenas aquilo a que a palavra "pessoa", ou o termo “marca característica de uma pessoa”, ou o conceito de uma pessoa, ou o conceito de uma marca característica de uma pessoa, se referem quando designados ou mentalmente rotulados em uma base que é um conjunto de agregados.                        

Além disso, se não há nenhuma marca característica que possa ser encontrada na pessoa, com o poder de me fazer "eu", então não há algo como um gancho na base, no qual possamos enganchar a palavra "eu" ou o nosso nome, como o gancho e a argola de um colchete. Não há uma argola na base onde possamos enganchar o gancho da palavra “eu”.     

Mas o fato de não encontrarmos um “eu” não significa que eu não existo e que não sou uma pessoa. Então, o que prova ou estabelece que eu existo como uma pessoa validamente cognoscível, um "eu" convencional? Esta é a questão que os vários sistemas de princípios filosóficos budistas abordam. Poderíamos dizer que o que prova que eu existo é que faço coisas e vivencio coisas. Essa é uma maneira de ver as coisas. Mas a Prasangika aborda essa questão de outro ponto de vista.  

Todos nós temos o conceito "eu" e a palavra "eu", e a Gelug Prasangika diz que o “eu”, o "eu" convencional, como pessoa, é meramente ou exclusivamente aquilo a que o conceito e a palavra “eu” se referem, com base nos cinco agregados que estão sempre mudando. Não há nada encontrável no “eu” ou nos agregados que estabeleça a existência desse "eu", mesmo quando em conjunto com o rotulamento mental dos agregados com o conceito "eu" ou a designação com a palavra "eu". Não há nenhuma característica definidora nos agregados ou em um "eu" localizável com o poder de me tornar "eu", que tenha uma argola onde o gancho do conceito e da palavra "eu" possa enganchar.            

Todos nós aceitamos que existe a convenção “eu” e a palavra "eu". Quem vê meu corpo andando na rua, me vê. Ninguém com uma visão perfeita discordaria disso. Mas esse “eu” e isso que me faz “eu” não são encontrados no meu corpo, porque essas coisas não existem, e ninguém que entenda corretamente a vacuidade discordaria disso. Esses três pontos estabelecem que existe um “eu” convencional que é meramente aquilo a que a convenção, ou o conceito e a palavra, “eu” se referem, com base nos agregados.     

Veja bem, rotular mentalmente o conceito “eu” nos agregados e designá-los com a palavra “eu” não cria o “eu”; e se não o rotulássemos e designássemos mentalmente, o “eu” não existiria. O “eu” convencional, a pessoa, é um fenômeno de imputação com base nos agregados, e isso é um fato. Mas, esse “eu” é como uma ilusão, pois parece sólido; parece que é sólido e que pode ser conhecido por si só, mas não é. Ele está mudando momento a momento, pois nossas experiências estão mudando momento a momento. E isso não significa que “eu”, como pessoa, seja algo sólido e que está mudando a cada momento para outra coisa sólida, porém ligeiramente diferente e depois para outra coisa sólida ligeiramente diferente, mas sempre permanecendo basicamente o mesmo. Esse também não é o caso.                   

O que é difícil de entender é que não há nada em "mim", na base para "mim", que me torne "eu". Não existe uma marca característica definidora que possa ser encontrada; não obstante, cada um de nós é uma pessoa individual e conseguimos distinguir corretamente uma pessoa da outra, assim como os pinguins conseguem distinguir corretamente um pinguim de outro daquele bando da Antártica. 

Existem marcas características definidoras que permitem que nosso agregado da distinção diferencie corretamente uma coisa da outra. Mas se tais marcas pudessem ser encontradas no objeto e tivessem o poder de estabelecer esse objeto como uma coisa validamente cognoscível, seria como se elas estivessem dentro do objeto, gerando um revestimento de plástico em torno dele e, assim, tornando-o uma coisa, separada das demais.       

Um exemplo simples de que não é assim que as características definidoras funcionam é o espectro de luz e a gama de cores. Existe alguma coisa no espectro de luz dividindo-o em cores distintas - por exemplo, isso é vermelho, isso é laranja, isso é amarelo, etc.? Existe um revestimento plástico em torno de cada cor demarcando sua gama e além do qual a luz é de uma cor diferente? Existe algo lá criando um revestimento plástico em torno de uma determinada faixa de luz do espectro, transformando-a em uma cor específica, a qual as pessoas dão um nome depois? Isso é impossível. Não há linhas divisórias no espectro de luz. As várias cores são apenas convenções conceituais. Algumas pessoas se reuniram e concordaram que, entre este e aquele comprimento de onda da luz, vamos chamar de vermelho ou laranja; elas apenas inventaram palavras. Se pensarmos nas pessoas das cavernas, elas meio que juntaram grunhidos e sons e concordaram que uma combinação sem sentido de sons seria uma palavra - um som que transmitiria um significado.     

O que estabelece, então, que existe algo como a cor que convencionalmente chamamos de “vermelho”? Só podemos dizer que o que estabelece que o vermelho existe é que ele é meramente aquilo a que o conceito e a palavra "vermelho" se referem, com base em uma determinada faixa predefinida de comprimentos de onda de luz e no fato de que um grupo de pessoas concorda com essa convenção. É a mente conceitual que divide o espectro de luz em cores específicas, e não algo que possa ser encontrado na luz em si.    

Apesar disso, o vermelho não é azul. As cores são cores individuais. Elas não são uma grande sopa. Como então as distinguimos? Distinguimos na mente, usando o fator mental da distinção e o agregado da distinção. Fazemos a distinção de acordo com as características definidoras convencionais, que são totalmente fabricadas.        

E quanto ao objeto que nossas mentes conceituais rotulam com um conceito e designam com uma palavra? O objeto é uma tela em branco solidamente existente e sobre a qual podemos projetar qualquer coisa? Não - se fosse, poderíamos dar qualquer nome a qualquer coisa. Palavras e nomes são válidos apenas pelo poder das convenções que um grupo de pessoas adota. Se não tivéssemos as convenções de um idioma, não conseguiríamos nos comunicar. Precisamos concordar uns com os outros sobre como chamar as coisas.     

Embora nada que tenha o poder de estabelecer a existência de algo como um objeto validamente conhecível e distinguível possa ser encontrado nas coisas, elas funcionam. Elas produzem efeitos, desempenham uma função. A mesa tem a função de segurar um copo em cima dela. Não importa como chamamos esse objeto. Existem muitas palavras diferentes em muitos idiomas diferentes que significam o que queremos dizer em inglês com a palavra “table” (em português, mesa), mas ainda assim este objeto na minha frente desempenha uma função.

Com base na capacidade dos objetos de desempenhar uma função, alguns sistemas de princípios budistas afirmam que o que realmente estabelece que algo é verdadeiramente uma mesa é o fato de ela desempenhar a função de mesa. Mas aquilo a que a palavra "mesa" se refere pode executar mais de uma função e muitos tipos de objetos diferentes podem executar o que é chamado de "a função de uma mesa".

A capacidade de realizar uma função pode ser encontrada no objeto? Novamente, a Prasangika diz "não". Até mesmo a função de uma mesa só pode ser estabelecida como existente mera e exclusivamente como aquilo a que o conceito e a expressão “função de uma mesa” convencionalmente se referem quando mentalmente rotulados e designados no objeto.     

Em relação ao nosso exemplo, desta mesa, ela está fazendo muitas coisas. Ela está sustentando o copo, a jarra d'água, o gravador e a toalha de mesa. Ela está adornando a sala e fazendo-a parecer bonita. Ela está desempenhando a função de fornecer um fundo para as flores à sua frente. Também está criando uma sombra. Claramente, ela está fazendo muitas coisas diferentes. Essas funções estão encapsuladas em plástico como coisas que podem ser encontradas em algum lugar neste objeto, como cores separadas encapsuladas em plástico e de alguma forma encontráveis existindo no espectro de luz? Não. Por outro lado, é apenas um objeto em branco que podemos rotular mentalmente como tendo uma função e então ele desempenhará essa função? Não, este objeto não está mantendo os ladrões longe de nossa casa ou impedindo que o céu caia, por exemplo. Não podemos simplesmente rotular mentalmente qualquer função nele.    

O que estabelece que este objeto realmente desempenha uma função? Tem que ser uma cognição válida, e isso é estabelecido por parte da mente. O objeto funciona em termos de causa e efeito de acordo com resultados verificáveis. Qualquer pessoa com uma mente sã e válida pode ver que a mesa está segurando um copo, mas não está impedindo que o céu caia. Claramente, você percebe isso. Se movermos este objeto para lá, o céu cai ou não? Não. O céu não cai. O objeto não estava desempenhando essa função.    

A Gelug Prasangika diria que não conseguimos nem mesmo encontrar algo no objeto que estabeleça sua existência como um objeto validamente cognoscível. Se pensarmos que há um revestimento de plástico em torno dele, uma linha imaginária tornando-o uma coisa, um objeto, por si só; se procurarmos, será que conseguiremos encontrar isso? Onde está o limite sólido entre os átomos da mesa e os átomos do ar? Não há uma linha, não é? 

Vamos aplicar isso aos tópicos sobre os quais falamos no espectro das emoções e sentimentos, que são partes de nossos agregados. É possível encontrar em algum lugar dentro do nosso corpo ou mente coisas encapsuladas chamadas de senso de humor, inteligência ou qualquer um desses traços de personalidade ou emoções de que falamos? É como o exemplo das cores. Sua existência como este ou aquele traço de personalidade, ou emoção, só pode ser estabelecida pelo fato de ser meramente aquilo a que nossos conceitos e palavras se referem, com base em momentos de experiência.   

Até mesmo as definições de cada traço de personalidade e emoção são estabelecidas exclusivamente por convenção e rotulagem mental. Por exemplo, diferentes culturas definirão de diferentes formas uma palavra para o que chamamos de “loyalty” em inglês (“lealdade” em português). O Japão, os Estados Unidos e a França medieval têm, ou tinham, conceitos bastante diferentes de lealdade, não é?    

Mesmo dentro de uma mesma cultura, as várias emoções retêm sua individualidade: a raiva não é ganância. Só porque não há linhas divisórias sólidas transformando as coisas em pacotes separados, como bolas de pingue-pongue, não significa que tudo é como uma grande sopa indiferenciada. Elas são coisas individuais; no entanto, não há nada nessas coisas, como um revestimento de plástico, fazendo com que sejam uma coisa.      

O mesmo se aplica ao nosso relacionamento com outras pessoas. Existe um revestimento plástico em torno de algum dos nossos relacionamentos isolando-o de tudo mais em nossas vidas e de todas as outras pessoas com quem nós e a outra pessoa se relaciona? Não, claro que isso não é verdade. A base para o fenômeno de imputação “eu” é assim; não há linhas divisórias sólidas na base, e não há nada encapsulando isso ou aquilo como sendo um relacionamento, um traço de personalidade ou uma emoção. E mesmo o “eu” como pessoa, como fenômeno de imputação nesses traços e emoções, não é algo encontrável, encapsulado em plástico.          

Usar a imagem de bolas de pingue-pongue pode ser bastante útil: se nossos traços de personalidade, emoções e outros fatores mentais que compõem nossos agregados fossem bolas de pingue-pongue e o "eu", como pessoa, fosse um grande pote, nenhuma delas poderia mudar, então nunca poderíamos crescer ou mudar. Nada as afetaria, pois seriam apenas um conjunto de bolas em um grande pote. Elas não poderiam interagir umas com as outras; as bolas poderiam estar apenas próximas umas das outras. Elas não podiam ser integradas umas às outras e permaneceriam apenas como um conjunto de bolas de pingue-pongue em um grande pote.  

No entanto, traços de personalidade e emoções não existem como bolas de pingue-pongue. Não há nada em nenhuma dessas coisas tornando-a uma bola de pingue-pongue, sólida. Por isso, elas podem interagir e podem mudar. E por isso, o “eu”, que é um fenômeno de imputação que as tem como base, não é como um pote que as contém e também pode mudar e crescer. 

Então, respondendo à sua pergunta, sim, é desta forma que nosso estudo dos cinco agregados e desses cinco tipos de consciência profunda pode nos levar a uma compreensão mais profunda de vários aspectos do dharma, e particularmente do aspecto relativo à vacuidade.        

Dedicação

Para tornar nossa dedicação mais significativa, vamos dedicar um ou dois minutos para digerir esta última parte de nossa conversa e tudo o que aprendemos ou vivenciamos nesta série de palestras. Em outras palavras, examine a força positiva e a compreensão que surgiram dessa conversa. Reafirme que esta força positiva e compreensão não são como bolas de pingue-pongue que coletamos, e que dedicá-las à iluminação não é como jogá-las na cesta da iluminação. Não é assim. 

Então, qualquer compreensão que tenhamos obtido, qualquer força positiva que tenha vindo de nosso tempo juntos, que isso aja como uma causa para que todos alcancem a iluminação para o benefício dos demais ... e não apenas a minha iluminação, mas a iluminação de todos. Obrigado.  

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