Os Principais Aspectos do Dzogchen

A tradição Nyingma é um conjunto de muitas linhagens e ensinamentos, incluindo o dzogchen. Vamos examinar alguns de seus aspectos principais.

Nove Veículos

O Nyingma (período antigo de tradução) divide os ensinamentos do Buda em nove veículos (theg-pa dgu): três relacionados com os sutras e seis relacionados com os tantras. Isto difere das escolas Sarma (período novo de tradução) de Kagyu, Sakya e Gelug, que dividem os ensinamentos em três veículos de sutras e quatro veículos de tantra.

  • Os três veículos do sutra são os dos shravakas, dos pratyekabudas e o veiculo do bodisatva. Os dois primeiros estão na categoria do Hinayana, enquanto que o último pertence ao Mahayana.
  • Os três tantras externos são kriya, charya e yoga.
  • Os três tantras internos são mahayoga, anuyoga e atiyoga ou dzogchen.

Os seis primeiros veículos em Nyingma e Sarma são os mesmos. Os três veículos Nyingma de tantra internos são quase equivalentes à categoria Sarma de anutarayoga tantra. Isto porque ambas as categorias trabalham com um nível de atividade mental (mente) mais sutil do que o utilizado nos veículos inferiores para compreender a terceira e quarta verdades nobres – as verdadeiras paragens para a primeira e segunda nobres verdades (o sofrimento e suas causas) e os caminhos verdadeiros da mente que produz e possui paragens verdadeiras. Causas verdadeiras são: a confusão sobre a realidade (ignorância) e sobre os níveis efêmeros de atividade mental nas quais operam. Por serem estes níveis efêmeros, podem ser removidos.

Maha, Anu e Atiyoga em Comparação com os Anutarayogas Pai, Mãe e Não-Duais

Mahayoga, anuyoga e atiyoga contém todos os mesmos elementos básicos de prática do caminho tântrico para a iluminação. Eles diferem em termos de ênfase. A mesma distinção também se encontra em relação às três divisões de anutarayoga tantra: pai, mãe e tantras não-duais. Entretanto, os esquemas de duas divisões não são equivalentes.

A prática de anutarayoga abarca o estado de geração (bskyed-rim) e o estado completo (rdzogs-rim, estado de compleição). No estado de geração, geramo-nos como figuras búdicas meramente pelo poder de nossa imaginação (visualização). No estado completo, tudo está completo para de fato efetuar a geração das causas imediatas para o corpo e a mente de um buda – não somente na nossa imaginação.

No estado completo, fazemos com que os ventos-energias (rlung, Skt. prana) entrem, permaneçam e se dissolvam no canal central. Isto nos permite acessar o nível mais sutil de atividade mental (a clara luz, ‘od-gsal) e utilizá-lo para a cognição não-conceitual da vacuidade – que é a causa imediata para a mente onisciente de um buda. Utilizamos o nível mais sutil de vento-energia, que é o suporte para a atividade mental da clara luz, para surgir na forma de um corpo ilusório (sgyu-lus) que é a causa imediata para a rede de corpos de forma (Sansc. Rupakaya) de um buda.

Dentro deste esquema de anutarayoga tantra:

  • O tantra pai enfatiza a prática do corpo ilusório;
  • O tantra mãe enfatiza a prática da clara luz;
  • O tantra não-dual enfatiza o par unificado de corpo ilusório e clara luz.

Se utilizarmos o mesmo esquema do anutarayoga para analisar a apresentação Nyingma, e dividirmos o estágio completo em duas fases – anterior à obtenção de uma verdadeira cognição não-conceitual da vacuidade com a clara luz, e posterior, quando obtemos a causa imediata para o rupakaya, então:

  • mahayoga enfatiza o estado de geração;
  • anuyoga enfatiza a primeira fase do estado completo, trabalhando com os ventos-energia, os canais e os chakras;
  • atiyoga (dzogchen) enfatiza a segunda fase do estado completo, na qual obtemos as causas imediatas da mente iluminante e os corpos de forma de um buda.

Três Linhas de Transmissão Classificadas de Acordo com suas Origens

Existem três linhas principais de transmissão dos nove veículos. A primeira inclui todos os nove veículos, enquanto que as últimas duas incluem alguns dos textos mahayoga e anuyoga, mas principalmente o dzogchen.

A Linhagem Distante das Palavras do Próprio Buda

A extensa linhagem distante (ring-brgyud) das palavras do próprio Buda (bka’-ma) inclui os ensinamentos trazidos da Índia ao Tibete pelos mestres indianos e tibetanos, transmitida diretamente por meio de uma linha ininterrupta de discípulos.

A Linhagem Próxima dos Textos-Tesouro

A mais curta linhagem próxima (nye-brgyud) dos textos-tesouro (gter-ma, “terma”) inclui textos colocados ou em um local físico (as-gter), como por exemplo dentro de uma pilastra de um templo, ou então nas mentes dos discípulos (dgong-gter). Os primeiros mestres indianos e tibetanos que trouxeram os ensinamentos da Índia esconderam-nos assim para resguardar-los durante épocas que não seriam propícias para as suas práticas. Séculos depois, reveladores dos textos-tesouro (gter-ston, “terton”) os recuperaram e transmitiram para linhas ininterruptas de discípulos.

Enterrar textos-tesouros não é coisa única ao Tibete, ou no Tibete, à tradição Nyingma. Na Índia, Asanga enterrou três textos de Maitreya, inclusive o texto intitulado O Continuum mais Duradouro (rGyud bla-ma, Skt. Uttaratantra) que foram recuperados pelo mestre indiano Maitripa. Dentro das tradições Kagyu, o discípulo de Milarepa (Mi-la Ras-pa) chamado Rechungpa (Ras-chung-pa) enterrou os textos mahamudra, e o fundador da linhagem Drugpa Kagyu, Tsanpa Gyarey (gTsang-pa rGya-ras) os recuperou.

Uma variante desta maneira de transmissão foi usada pelo Buda ao confiar os Sutras Prajnaparamita aos nagas (klu, guardiões de tesouros que são metade humanos, metade serpentes), que os esconderam no fundo do mar. O mestre indiano Nagarjuna foi até o reino dos nagas, no fundo do mar, e os recuperou muitos séculos mais tarde.

A Linhagem Profunda de Visões Puras

A linhagem profunda (zab-brgyud) de visões puras (dag-snang, revelação) inclui ensinamentos, recebidos em visões por figuras búdicas ou fundadores de linhagem.

Encontramos mais um precedente indiano com Asanga, que foi levado à terra pura de Tushita pelo Buda Maitreya e ali recebeu a visão pura dos cinco textos de Maitreya.

As Três Categorias dos Textos-Tesouro

Os textos relacionados ao dzogchen classificam-se em três categorias:

  • A categoria mental (sems-sde) que enfatiza a percepção pura (rig-pa) como sendo a base para tudo (kun-gzhi, Sanscr. Alaya).
  • A categoria espaço aberto (klong-sde) enfatiza o aspecto de espaço aberto (klong) como sendo a base para tudo.
  • A categoria de ensinamentos quintessenciais (man-ngag sde) enfatiza a percepção como sendo primordialmentepura (ka-dag). Outro nome para esta categoria é a categoria da essência do coração (snying-thig). Vários textos que incluem o termo nyingtig em seus títulos pertencem a esta divisão.

As primeiras duas categorias derivam de textos-tesouro enterrados por Vairochana, um dos primeiros sete monges tibetanos budistas. A categoria mental se origina de textos indianos que Vairochana traduziu; a categoria do espaço aberto se origina dos seus ensinamentos orais. A categoria de ensinamentos quintessenciais se origina de textos enterrados ou por Guru Rinpoche (Padmasambhava) ou então do mestre indiano Vimalamitra. Somente esta terceira é praticada extensivamente hoje em dia.

Três Tipos de Visões Puras

Os três ensinamentos da classe do tantra superior que derivam das visões puras também pertencem a três categorias:

  • Aqueles que têm sua origem em experiências meditativas;
  • Aqueles que surgem nos sonhos;
  • Aqueles que surgem diretamente das consciências sensoriais – ver e ouvir de fato uma figura búdica estando desperto, e não durante os sonhos ou meditação.

A terceira classe constitui a linhagem mais profunda. Um precedente que aconteceu na Índia foi o de Asanga, que recebeu os cinco textos de Maitreya vendo-os diretamente em Tushita.

Três Linhas de Transmissão Classificadas de Acordo com a Maneira de tê-las Recebido

O sistema Nyingma apresenta um esquema de classificação adicional para as linhas de transmissão das três classes de tantra internos, dividido de acordo com a maneira pela qual os mestres que fundaram a linha de transmissão receberam os ensinamentos.

  • A linha de transmissão da intenção do Buda Triunfante (rgyal-ba dgongs-brgyud) é recebida por um mestre quando ele ou ela alcança a iluminação e compreende diretamente a intenção completa dos ensinamentos do Buda.
  • A linha de transmissão dos gestos de um contemplativo da consciência pura (rig-‘dzin brda-brgyud) é recebida por um mestre em uma visão pura da emanação de um buda, quando ele ou ela obtém realização através de ver um gesto executado por esta emanação.
  • A linha de transmissão ouvida por uma pessoa (gang-zag snyan-brgyud) é recebida oralmente dos ensinamentos de grandes mestres. A maioria deriva de ensinamentos ouvidos diretamente ou do Guru Rinpoche ou então de Vimalamitra.

Rigpa

A prática de dzogchen enfatiza o acesso a rigpa (rig-pa, consciência pura), o nível mais sutil da atividade mental. Rigpa é um fenômeno não afetado (‘dus-ma-byed), não no sentido de ser estático, mas no sentido de não ser artificial ou fabricado como algo temporário e novo. Está primordialmente presente, é continuo e perpétuo. Não está manchado por atividade mental passageira – em outras palavras, rigpa não as tem.

Rigpa é completo com todas as boas qualidades (yon-tan) de um Buda, como a compreensão e a compaixão. Estas são inatas (lhan-skyes) a rigpa, o que significa que surgem juntas em cada momento de rigpa, e primordiais (gnyugs-ma), no sentido de não terem um começo.

Não necessitamos criar boas qualidades do nada, ou apenas de potenciais. Assim como a qualidade inata do espelho de refletir, que está presente mesmo quando sua superfície está totalmente obscurecida pela poeira, não precisamos adicionar nada para que as boas qualidades do rigpa funcionem. Temos somente que remover as manchas passageiras, a poeira. Antes da iluminação, porém, mesmo quando o rigpa já estiver manifesto, suas boas qualidades ainda não estarão todas evidentes ao mesmo tempo.

Entre as qualidades inatas de Rigpa está a consciência profunda que surge de si mesma (rang-byung ye-shes), também conhecida como consciência profunda reflexiva (rang-byung ye-shes). Esta é a consciência da própria face de rigpa (rang-ngo-shes-pa) como sendo a face de Samantabhadra (Kun-tu bzang-po, Aquele que é Totalmente Excelente, dotado de todas as boas qualidades). Quando a consciência profunda reflexiva não está manifesta, por causa do fator estupefação que surge automaticamente (rmongs-cha, estupidez, deslumbramento), que obscurece o conhecimento de rigpa de sua própria natureza, a atividade mental se converte em sem (sems, consciência limitada) e já não é mais rigpa.

Fator fugaz de estupefação é outro nome para a falta de consciência que surge automaticamente (lhan-skyes ma-rig-pa) em relação aos fenômenos. Este não é na verdade uma atitude perturbadora, mas apenas nominal (nyon-mongs-kyi ming-btags-pa), já que pertence à categoria de obscurecimentos relativos a tudo que se pode conhecer, e que impedem a onisciência (shes-sgrib).

No mais, o não-conhecimento (ignorância)

  • Aqui não tem o sentido de cognição invertida e aferramento da aparência cognitiva das coisas (phyin-ci-log-par 'dzin-pa), percebendo-as como existindo de um modo que não corresponde à sua realidade, e o aferramento a elas como existindo verdadeiramente desta maneira.
  • Nem sequer é o não-conhecimento no sentido de não se dar conta (mi-shes-pa) de que as aparências dualistas são falsas.
  • Mais exatamente, é o não-conhecimento no sentido de não conhecer sua própria natureza. Ele não “ reconhece sua própria face”.

Três Aspectos de Rigpa

A consciência profunda de rigpa e a consciência de sua natureza tríplice (“sua própria face”). Isto se refere aos três aspectos de rigpa: a sua natureza essencial (ngo-bo, essência), sua natureza influente (‘phrin-las, atividade) e sua natureza funcional (rang-bzhin, natureza própria).

  • A natureza essencial de rigpa refere-se à categoria de fenômeno que é. Em essência, rigpa é pureza primordial (ka-dag). Isto significa que rigpa é primordialmente (sem começo) pura de quaisquer manchas. Isto é tanto no sentido de ser vazia de si mesma (rang-stong, vazia de maneiras impossíveis de existir) como no sentido de vazia de outro (gzhan-stong, uma consciência que tem esta natureza vazia e destituída de níveis fugazes mais grosseiros). Portanto, a pureza primordial deriva de uma união dos ensinamentos do segundo e terceiro ciclos de transmissão (giros da roda do dharma), sobre o vazio de si mesmo e da natureza búdica, respectivamente.
  • A natureza influente de rigpa refere-se à forma na qual rigpa influencia outros. Esta forma relaciona-se com seu aspecto de capacidade de resposta (thugs-rje, compaixão). Em outras palavras, a natureza de rigpa que influencia os outros é a que responde sem esforços e espontaneamente, sendo compassiva na comunicação.
  • A natureza funcional de rigpa refere-se especificamente ao que ela faz. Rigpa estabelece aparências espontaneamente (lhun-grub) e sem esforços.

As Duas Verdades em Nyingma

Nyingma apresenta as duas verdades (bden-gnys) em varias maneiras. No sentido mais amplo:

  • Rigpa, com sua criação pura de aparências, é a verdade mais profunda (Don-dam bden-pa, verdade última).
  • Sem, com a sua criação impura de aparências, é verdade superficial ou convencional (kun-rdzob-bden-pa, verdade relativa).

Criação impura de aparências (ma-dag-pa’i snang-ba) dá origem às aparências das coisas como ou tendo existência verdadeira, ou carecendo de existência verdadeira, ou ambos ou nenhum dos dois.Criação pura de aparências (dag-pa’i snang-ba) da origem às aparências das coisas como existindo além destes quatro extremos.

Dentro do contexto de rigpa:

  • O aspecto de pureza primordial – como o lado vazio de rigpa (stong-cha) e o lado da consciência (rig-cha) – é a verdade mais profunda de rigpa.
  • O aspecto do estabelecimento espontâneo de aparências, baseado na aspecto de responsividade – como o lado das aparências de rigpa (snang-cha) e o lado de criar aparências (gsal-cha) – é a sua verdade superficial ou relativa.

Desta maneira, os três aspectos de rigpa, assim como suas duas verdades, são sempre inseparáveis (dbyer-med) e surgem simultaneamente (lhan-skyes).

As Fases Básica e Resultante dos Três Aspectos de Rigpa

A fase básica dos três aspectos de rigpa refere-se aos três como sendo aspectos da natureza búdica de todos os seres limitados (sems-can, seres sencientes).

A fase resultante dos três aspectos refere-se à sua manifestação como sendo a natureza completamente realizada de um buda. Nesta fase:

  • A natureza essencial de rigpa manifesta-se como o dharmakaya (chos-sku, um corpo que tudo abarca, a consciência onisciente de um buda e a inseparabilidade de suas duas verdades).
  • A natureza influente de rigpa manifesta-se como o sambogakaya (longs-sku, um corpo de formas sutis de palavra e comunicação que faz uso completo dos ensinamentos mahayana).
  • A natureza funcional de rigpa manifesta-se como o nirmanakaya (sprul-sku, um corpo de emanações do sambogakaya, que surge na aparência em corpos físicos).

Os Três Aspectos na Fase do Caminho

Com o objetivo de remover as manchas fugazes dos três aspectos da fase básica de rigpa de maneira que seu funcionamento como os três aspectos da fase resultante possa ocorrer sem impedimentos, trabalhamos com os três na fase do caminho. Fazemos isto em três etapas:

A Etapa Atiyoga

O atiyoga possui duas fases extremamente avançadas de prática com rigpa: lograr (khregs-chod) e saltar (thod-rgal).

  • A prática de lograr enfatiza a natureza essencial de pureza primordial de rigpa. Nesta etapa, acessamos rigpa, com sua cognição não-conceitual da vacuidade, e alcançamos um caminho mental de visão (mthong-lam, caminho da visão), o que nos torna um arya (‘phags-pa). Isto equivale a alcançar a etapa de clara luz em anutarayoga tantra. Ainda que ambas as verdades sejam inseparáveis e surjam simultaneamente em rigpa, somente sua verdade mais profunda – isto é, sua pureza primordial -, destaca-se nesta etapa. A verdade superficial de rigpa (sua criação de aparências) e todas as demais qualidades não estão ainda completamente desenvolvidas.
  • Depois da etapa de lograr, a prática de saltar enfatiza a natureza influente da capacidade de resposta de rigpa e sua natureza funcional de estabelecer aparências espontaneamente. Ao permanecer repetidamente em rigpa, cortamos a continuidade de sem, que é a condição imediatamente precedente (de-ma-thag rkyen) para que nossa experiência seja composta de nossos cinco fatores agregados ordinários (phung-po lnga). Conseqüentemente, rigpa espontaneamente dá origem a uma aparência de si mesmo como um corpo de arco-íris (‘já’-lus). Ambas as verdades são inseparáveis e surgem simultaneamente, mas aqui a verdade superficial de rigpa – sua capacidade de resposta e o estabelecimento espontâneo de aparências – é mais proeminente. Esta etapa equivale à etapa do par unificado do corpo ilusório e da clara luz, e um caminho mental de familiarização (sgom-lam, caminho da meditação).

Existem dois tipos de praticantes: os que avançam por etapas (lam-rim-pa) e aqueles para os quais tudo ocorre de uma só vez (cig-car-ba). Depois de obter a fase de lograr, os primeiros progridem através das etapas distintas da fase de saltar, uma a uma, percorrendo os dez níveis bumi mentais (as-bcu) dos arya bodisatvas, até alcançar a iluminação. Os últimos conseguem tudo de uma vez, a fase de lograr, de saltar, até a iluminação, devido à enorme quantidade de acumulação de força positiva de iluminação (mérito) de suas práticas intensivas anteriores, que frequentemente já surgem de vidas anteriores.

Etapa Mahayoga

Como preparação para a etapa atiyoga da prática de dzogchen, necessitamos da prática equivalente ao estado de geração, como enfatizada na mahayoga. Por isto, a atiyoga é frequentemente conhecida pelo nome de maha-atiyoga.

A característica mais importante da prática do estado de geração do mahayoga é a dos três samadhis (ting-nge-‘dzin gsum, três absorções meditativas), nos quais trabalhamos com os três aspectos de rigpa em nossas imaginações:

  • O samadhi da base na natureza autentica (gzhi de-bzhin-nyid-kyi ting-nge-‘dzin, de-ting). Concentramo-nos imaginariamente em uma aproximação da pureza primordial de rigpa. Fazemos isto, por exemplo, recordando-nos que a pureza primordial nem surge de parte alguma, nem reside em parte alguma, nem vai a parte alguma. Ē um estado de consciência que está livre de ser patético e débil (lham-me lhen-ne), livre de ser inquieto e explosivo (‘ar-ma ‘ur-ma), livre de inclinar-se a este ou àquele lado (zur), e livre de fazer ou abandonar planos (rgya-chad). Em outras palavras, este é um estado de receptividade aberta (klong), que é a base para a capacidade de ajudar aos demais como um buda.
  • O samadhi do caminho que tudo ilumina (lam kun-snang-ba’i ting-nge-‘dzin, snang-ting). Movidos pela compaixão ante o desconhecimento que têm seres limitados da pureza primordial de seu rigpa, completo com todas suas qualidades, concentramo-nos em uma aproximação da capacidade de resposta de rigpa. Este é o movimento mental sutil que aparece e responde, que é o caminho para ajudá-los.
  • O samadhi resultante na causa ('bras-bu-rgyu'i-ting-nge-'dzin, rgyu-ting). Aqui, surgimos como uma silaba semente, por exemplo, hum, que é a causa para manifestarmo-nos como uma figura búdica. Concentramo-nos na visualização desta silaba que representa com aproximação a natureza funcional de rigpa de estabelecer aparências espontaneamente. Imaginar que aparecemos numa forma visível que se transforma em uma figura búdica, traz o resultado real de ajudar os seres limitados.

A prática dos três samadhis do mahayoga purifica nossa experiência ordinária da morte, do bardo e do renascimento.

  • A morte é como a pureza primordial, carente de níveis grosseiros de atividade mental e de vento de energia.
  • O bardo é como a capacidade de resposta, com um ligeiro movimento dos ventos de energia sutis.
  • O renascimento é como estabelecer aparências espontaneamente, com a aparência de uma semente que se transformará em um corpo completo.

Em outras tradições tibetanas, por exemplo, a Gelug, a prática equivalente ao estado de geração chama-se adotar os caminhos mentais para alcançar os três corpos de um Buda (sku-gsum lam-‘khyer):

  • Adotar a morte como um caminho mental para alcançar o dharmakaya,
  • Adotar o bardo como um caminho mental para alcançar o sambogakaya,
  • Adotar o renascimento como caminho mental para alcançar o nirmanakaya.

Etapa de Empoderamento

Para obter a capacidade de praticar mahayoga e atiyoga com sucesso, necessitamos receber um empoderamento (dbang, “wang”, iniciação) e manter os votos conferidos naquela ocasião.

Em geral, o empoderamento tântrico ativa os fatores da nossa natureza búdica através da experiência consciente de um estado mental específico, junto com compreensão, durante o ritual; e por meio de sentir-se exaltado pela inspiração (byin-rlabs, bendições) do mestre tântrico.

Neste caso, experienciar algo conscientemente não se refere a ter uma experiência mística. Em vez disto, refere-se à geração consciente de um estado mental acompanhado de compreensão, com ou sem esforço.

  • No sistema Gelug, a experiência consciente refere-se a certo nível de uma consciência bem-aventurada da vacuidade.
  • Nos sistemas não-Gelug, está focalizada tanto na natureza búdica de nossos mestres tantricos como também de nós mesmos, com certo nível de compreensão da natureza búdica.
  • No dzogchen, está focalizada especificamente na base dos três aspectos de rigpa como fatores da natureza búdica tanto de nossos mestres tântricos como de nós mesmos.

Três fatores circunstanciais que correspondem aos três aspectos de rigpa contribuem para a nossa compreensão profunda e consciente da natureza búdica:

  • O samadhi (absorção meditativa) do mestre tântrico corresponde à pureza primordial,
  • Os mantras que o mestre tântrico repete correspondem à capacidade de resposta e à comunicação compassiva,
  • Os objetos rituais que o mestre tântrico utiliza durante o ritual correspondem às aparências estabelecidas espontaneamente.

Para obter a inspiração de um mestre tântrico de forma mais completa, precisamos focalizar-nos com concentração e compreensão nestes três fatores circunstanciais. Sustentamos a experiência consciente que alcançamos, ao receber e manter os votos de bodisatva e os votos tantricos.

Preliminares Internas

Para que possamos ser suficientemente receptivos e maduros para receber um empoderamento, e não somente estar assistindo e não experienciando nada, precisamos ter primeiro praticado as seis preliminares internas (nang-gi sngon-‘gro). Tal qual foram esquematizadas pelo mestre do século XIX, Dza Patrul (rDza dPal-sprul O-rgyan 'jigs-med dbang-po), no Guia de Instrucoes de Meu Mestre Espiritual (Samantabadra) Totalmente Excelente (Kun-bzang bla-ma'i zhal-lung, palavras perfeitas de meu excelente mestre), elas são, em ordem inversa:

  • Guru yoga, na qual reconhecemos e nos focalizamos na natureza búdica tanto de nossos mestres espirituais como na nossa própria, e criamos um elo ou vinculo entre os dois.
  • Poderemos fazer isto com êxito, com a base de previamente ter feito as oferendas kusali de chod (chod), nas quais imaginamos que cortamos e oferecemos nosso corpo ordinário, o qual se origina e está acompanhado do não-saber (ignorância).
  • Poderemos fazer isto com êxito, com a base de haver feito, de antemão, as oferendas do mandala, nas quais desenvolvemos a generosidade e fortalecemos nossa rede de força positiva, construtora da iluminação (acumulação de méritos) ao imaginar que oferecemos o universo.
  • Poderemos fazer isto com êxito, com a base de haver praticado de antemão a recitação de Vajrasatva , para purificar os obstáculos grosseiros que poderiam impedir-nos de conseguir fazer uma rede de força positiva, construtora da iluminação.
  • Poderemos fazer isto com êxito, com a base de haver cultivado previamente a bodhicitta e as atitudes de largo alcance (phar-byin, Sanscr. Paramita, perfeições), de modo a estar aspirando à iluminação e dedicando nossas ações construtivas para consegui-la, para assim beneficiar a todos os demais, tanto quanto possível.
  • Poderemos fazer isto com êxito com a base de haver dado previamente à nossa vida a direção segura do refugio, o que teria sido feito junto com prostrações que mostram respeito aqueles que já realizaram rigpa e à nossa própria natureza búdica que nos permitirá consegui-la.

Preliminares Externas

Somos capazes de praticar as seis preliminares internas com a base de haver praticado anteriormente as seis preliminares externas (phyi’i sngon-‘gro).

Novamente, em ordem inversa:

  • Construir e manter uma relação saudável com o mestre espiritual, como sendo um exemplo vivo de uma direção segura.
  • Seremos capazes de conseguir isto com a base de haver entendido previamente o que são os benefícios da liberação, de maneira que buscaremos um exemplo disto.
  • Somente pensaremos na liberação quando houvermos compreendido previamente a causa e o efeito kármico e o fato de que somos capazes de liberar-nos disto.
  • Somente pensamos no karma porque é a causa das faltas do samsara.
  • Somente vemos isto quando previamente tivermos reflexionado sobre a morte e a impermanência e do fato de que os problemas e sofrimentos continuam vida atrás de vida.
  • Reflexionamos sobre a morte somente quando tivermos apreciado previamente nosso precioso renascimento humano.

As Quatro Classes de Rigpa

  • Rigpa base (gzhi’i rig-pa). Dentro da classificação de base, caminho e resultado, esta é a base. Podemos experienciá-la no momento da clara luz da morte, embora normalmente nunca a reconheçamos. As duas classes seguintes correspondem ao caminho.
  • Rigpa resplandecente (rtsal-gyi rig-pa), às vezes também chamada rigpa base criadora de aparências (gzhi-snang-gi rig-pa), é o aspecto de estabelecimento espontâneo de rigpa, o que reconhecemos primeiro no caminho.
  • Rigpa essência (ngo-bo’i rig-pa), às vezes também chamada rigpa natural (rang-vzhin-gyi rig-pa), é o aspecto de pureza primordial (natureza essencial) de rigpa, tal como é reconhecida no caminho depois que tivermos reconhecido rigpa resplandecente. Às vezes, ainda falamos de uma quarta classe de rigpa:
  • Rigpa da presença espontânea que abrange tudo (lhun-grub sbubs-kyi rig-pa) é o rigpa resultante equivalente ao dharmakaya.

Rigpa Base e o Alaya dos Hábitos

Um sinônimo para rigpa base é o alaya primordial mais profundo (ye-don kun-gzhi, fundamento ou base primordial mais profunda que abrange tudo), devido ao fato de ser a fonte de todas as aparências de samsara e nirvana.

Sem ter começo, rigpa base tem estado fluindo com um fator passageiro de estupefação, o qual obscurece sua profunda consciência reflexiva, assim impedindo rigpa de conhecer seu próprio rosto.

Devido à combinação de rigpa base com a estupefação, rigpa base funciona como um alaya dos hábitos (bag-chags-kyi kun-gzhi, fundamento ou base dos hábitos que abrange tudo), que é uma classe de sem. Os hábitos incluem os hábitos de aferramento a uma existência verdadeira, os hábitos kármicos, e as memórias (hábitos para recordar algo repetidamente).

O alaya dos hábitos é a clara luz normal da morte dos seres ordinários ou comuns, assim como também é aquilo que está sob e o que acompanha cada momento dos níveis mais grosseiros de cognição enquanto estamos vivos. Não é que rigpa base seja a causa do alaya dos hábitos, porque essencialmente são o mesmo (ngo-bo gcig, o mesmo elemento descrito de dois pontos de vista diferentes).

Assim como sucede com todas as outras classes de consciência não-conceituais, o alaya dos hábitos conhece as coisas, mas não os rótulos (um processo conceitual), nem constrói uma cadeia de pensamentos a partir delas. O alaya dos hábitos dá origem a seis classes de consciências primarias (rnam-shes) e às aparências cognitivas de seus objetos de cognição.

As seis classes de consciências primárias são as cinco sensoriais, que sempre são não-conceituais, e a consciência mental, que pode ser conceptual ou não-conceptual (como nos sonhos, nos quais surgem aparências cognitivas de objetos sensoriais, ou então em percepções extra-sensoriais). As consciências primárias e a aparência cognitiva surgem, moram e desaparecem simultaneamente em cada momento, e seus momentos tem uma ordem ou seqüência de acordo com o karma.

Consciência Perturbadora

A consciência perturbadora (nyon-yid, consciência enganosa, consciência contaminada) acompanha a alaya dos hábitos, e ambas são consideradas como tipos de consciências primarias. Deste modo, na escola Nyingma, sem inclui oito classes de consciências primárias, cinco sensoriais, uma mental, uma perturbadora, e o alaya dos hábitos.

A consciência perturbadora co ncebe o alaya dos hábitos como um “eu” inalterado, monolítico e que existe independentemente, que governa sobre os fatores agregados da experiência, tais como o corpo e a mente. Isto leva à atitude perturbadora de conceber o “eu” como “eu, o experienciador, aquele que possui o controlador daquilo que for conhecido”.

Mais detalhadamente, a cognição não-conceptual através das seis classes de consciência dura somente um milissegundo. A consciência perturbadora não funciona neste momento. Porém, imediatamente depois deste milissegundo, com a cognição conceptual (mental), a consciência perturbadora dá origem à aparência, à percepção, e ao aferramento (crença em) um chefe aparentemente independente como sendo um “eu”. Logo, dá origem à aparência dualista de “eu, aquele que experiência algo, aquele que possui, que controla” e “o objeto que eu experiencio, possuo, controlo”. Baseados nisto, experienciamos as emoções e atitudes perturbadoras, os impulsos do karma e o sofrimento.

A Diferença entre o Alaya Para os Hábitos na Tradição Nyingma e o Alayavijnana na escola Chitamatra

O budismo tibetano classifica as visões filosóficas das principais escolas budistas indianas em quatro sistemas de princípios (grub-mtha’), como eram estudados nas universidades monásticas da Índia, quando os tibetanos começaram a estudar o budismo nestes lugares, no oitavo século. Porém, cada uma das quatro tradições tibetanas explica as afirmações dos quatro sistemas de princípios de maneira diferente. Inclusive dentro de uma mesma tradição tibetana, vários mestres apresentam os quatro de forma diferente, e alguns mestres, como Tsongkhapa, explicaram alguns dos pontos em seus textos de maneiras diferentes, em distintas épocas de suas vidas.

Dentro dos quatro sistemas filosóficos, a escola Chitamatra (sems-tsam-pa, mente só) fala do alayavijnana (kun-gzhi-rnam-shes, a consciência base de tudo, “o armazém da consciência”). Este é o nível de atividade mental que continua de uma vida à outra, levando consigo todos os hábitos samsáricos.

Todavia, os ensinamentos dzogchen são apresentados dentro do contexto da escola Madhyamika (dbu-ma). Ainda que a tradição Nyingma do Madhyamika aceite em suas descrições da verdade superficial (relacionando-a com sem) muitas das categorias de fenômenos utilizadas na escola Chitamatra – tais como o alaya, a consciência perturbadora, e a consciência reflexiva (rang-rig) – a tradição Nyingma apresenta sua forma de existência e algumas de suas características de maneira diferente.

Quanto ao alaya dos hábitos na tradição Nyingma e ao alayavijnana na tradição Chitamatra, estes são apresentados na tradição Nyingma da seguinte forma:

  • A forma de existência do alaya dos hábitos está além das palavras e dos conceitos, além dos quatro extremos de ter uma existência verdadeira não-imputada, de carecer de uma existência verdadeira não imputada, de ambas e de nenhuma delas. A escola Chitamatra apresenta a alayavijnana como tendo uma existência verdadeira não imputada.
  • O alaya dos hábitos é essencialmente o mesmo que o rigpa base. O alayavijnana não é o mesmo que a esfera pura da mente (chos-kyi dbyings). As duas estão misturadas juntas, como leite e água. Quando se dá a liberação, o alayavijnana se separa da esfera pura da mente, como o leite coagulado, e sua continuação se acaba.
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