Equívocos Comuns sobre o Budismo

Existem muitos equívocos a respeito dos ensinamentos budistas, e por vários motivos diferentes. Alguns são culturais, específicos à cultura ocidental, ou à Asiática e outras culturas influenciadas pelo pensamento ocidental moderno, e outros são mais genéricos, devido às aflições mentais das pessoas. Algumas confusões surgem por conta da complexidade do assunto e outras porque os professores não explicam claramente o tópico ou deixam coisas por explicar, e acabamos projetando o significado que achamos que essas coisas tem. Pode ser, também, que o próprio professor não compreenda bem o assunto, pois existem muitos que não são totalmente qualificados: muitos são enviados ou requisitados à ensinar antes mesmo de estarem qualificados. E ainda, mesmo que os professores expliquem claramente, podemos não escutar direito ou não lembrar no futuro. Ou podemos tomar notas não muito precisas e talvez sequer lê-las. As confusões são muitas, mas vamos tentar esclarecer as mais comuns a respeito de alguns poucos tópicos.

Equívocos Gerais sobre o Budismo

Achar Que o Budismo É Pessimista

O primeiro ensinamento que o Buda deu foi sobre as quatro nobres verdades e, dessas, a primeira é a “verdade do sofrimento”. Quer estejamos falando da infelicidade, das formas comuns de felicidade ou do ciclo de renascimentos incontroláveis que permeia toda nossa experiência, tudo é sofrimento. “Sofrimento”, entretanto, é uma palavra um tanto pesada no português. O que queremos dizer, aqui, é que todos esses estados são insatisfatórios e problemáticos, e como todo mundo quer ser feliz e ninguém quer ser infeliz, precisamos superar os problemas de nossa vida.

É um equívoco achar que o budismo diz que há algo errado em ser feliz. Mas a forma comum de felicidade tem seus defeitos — ela nunca dura, nunca é satisfatória e, quando acaba, queremos sempre mais. Se ganharmos uma quantidade demasiada de algo que gostamos, como nossa comida favorita, ficamos cansados e infelizes se tivermos que comer mais. Portanto, o budismo nos ensina a lutar por uma felicidade que não possui essas situações insatisfatórias. Isso não significa que o objetivo principal é não sentirmos nada. Significa que existem diversos tipos de felicidade, e a que normalmente experimentamos, apenas de não ser infelicidade, não é a maior ou melhor felicidade que podemos experimentar.

Achar Que a Impermanência Tem uma Conotação Apenas Negativa

É um equívoco pensar na impermanência apenas em relação à felicidade comum: ela se acabará e se transformará em insatisfação e infelicidade. A impermanência também quer dizer que qualquer período de infelicidade em nossa vida passará. Isso faz com que a possibilidade de cura esteja sempre presente e que possamos tirar vantagem de novas oportunidades para melhorarmos nossa vida. Portanto, o budismo oferece uma enorme quantidade de métodos para mudarmos nossa atitude e a forma como vemos a vida, e finalmente, para nos liberarmos e alcançarmos a iluminação. Todas essas mudanças são possíveis por causa do princípio da impermanência.

Achar Que o Budismo É uma Forma de Niilismo

O Buda ensinou que a verdadeira causa de nossos problemas é nossa falta de consciência (ignorância) da realidade — ou seja, como nós, os outros e tudo o mais existe. Ele ensinou que a vacuidade (vazio) é o antídoto para essa confusão. É um equívoco achar que a vacuidade é uma forma de niilismo e que o Buda disse que nada existe — você não existe, os outros não existem, seus problemas não existem, e portanto a solução dos seus problemas é perceber que nada existe.

A vacuidade não tem nada a ver como isso. Nós projetamos na realidade todo tipo de forma impossível de existência — como, por exemplo, uma existência isolada e independente de qualquer coisa. Não temos consciência de que todas as coisas estão inter-relacionadas e dependem umas das outras para existir, de forma holística, orgânica. Nossa confusão habitual sobre isso é a causa para que nossa mente faça as coisas parecerem existir de uma forma que é impossível, como esse website que parece existir assim, por si só, independente das dezenas de milhares de horas de trabalho de mais de uma centena de pessoas. Essa forma impossível de existência não corresponde a nada que seja real. A vacuidade é a absoluta ausência de uma referência para nossas projeção de formas impossíveis de existência. Nada existe por si só; mas isso não significa que nada existe.

Equívocos sobre a Ética e os Votos

Achar Que a Ética Budista Está Baseada em Julgamentos Morais de Bom e Mau

Em termos de ética, acho que neste caso e em muitos casos, o equívoco pode muitas vezes surgir por causa de termos de traduções. Muitas vezes, projetamos conceitos não-budistas nos ensinamentos. Por exemplo, usamos certos termos que têm uma conotação bíblica, como as palavras virtuoso, não-virtuoso, mérito, e pecado. Palavras como essas projetam nos ensinamentos sobre ética budista a ideia do julgamento moral e da culpa: que algumas coisas são virtuosas, o que quer dizer boas e apropriadas, e seremos boas pessoas se fizermos isso. E desenvolvemos méritos, como um tipo de recompensa. Mas se agirmos de uma forma não-virtuosa, de um modo “não sagrado”, somos maus e acumularemos pecados, pelos quais sofreremos. Essa é claramente uma projeção da ética bíblica sobre a ética budista.

A ética budista está baseada apenas no desenvolvimento da consciência discriminativa. Aprendemos a discriminar entre aquilo que é construtivo e aquilo que é destrutivo, entre aquilo que será benéfico e aquilo que será prejudicial, e então, através da compreensão, evitamos comportamentos destrutivos.

Achar Que a Ética Budista Está Baseada na Obediência à Leis

O próximo equívoco é a crença de que a ética budista está baseada na obediência à leis ao invés de baseada na consciência discriminativa. Em algumas culturas as pessoas levam as leis muito a sério e por isso ficam muito inflexíveis: elas não querem quebrar a lei. Já os tibetanos são bem tranquilos em relação às diretrizes éticas. O que não quer dizer que sejam relaxados, mas que em certas situações a pessoa tem que usar a consciência discriminativa para aplicar a diretriz. O que estamos tentando discriminar aqui é se estamos agindo sob a influência de uma emoção perturbadora ou se há uma razão construtiva para a nossa forma de comportamento.

Achar Que Votos São Como Leis, com Possíveis Brechas

No outro extremo, poderíamos olhar para os votos como um advogado olha para as leis, e procurar por brechas na apresentação do karma, a fim de encontrar desculpas para agir de forma destrutiva ou para comprometer e diluir um voto. Por exemplo, podemos fazer o voto de evitar o comportamento sexual impróprio e depois afirmar que o sexo oral não é impróprio porque trata-se de uma expressão de amor. Inventamos essa desculpa por que gostamos desse tipo de comportamento sexual. Ou, depois de fazer o voto de parar de beber, dizemos que não tem problema beber vinho durante uma refeição com nossos pais para não ofendê-los, ou é bom beber ocasionalmente contanto que não fiquemos bêbados. Inventamos essas desculpas para tentar contornar o voto.

O ponto é que, se você fizer um voto, você faz o voto completo. Você não faz um voto parcial. Se não pudermos manter todos os detalhes do voto ou de nenhum voto específico, como está especificado no texto, então não façamos o voto. Não há obrigação de fazer o voto.

Há uma alternativa. Na discussão do abhidharma sobre votos, eles possuem três categorias: há um voto no qual você se compromete basicamente a evitar algo que seja destrutivo. Depois, há algo que realmente é difícil de traduzir – é literalmente um anti-voto. É um voto para não evitar algo destrutivo como, por exemplo, matar – se você for para o exército, você atirará no inimigo – ou algo assim. E depois também há um meio-termo: podemos evitar apenas uma parte daquilo que está especificado em um voto.

É essa categoria intermediária que podemos aplicar aqui. Por exemplo, no voto leigo de evitar o comportamento sexual inadequado, se houver partes do voto que achamos que realmente não somos capazes de manter, podemos prometer apenas uma parte, como não ter relações sexuais com o parceiro de outra pessoa e não usar de violência no sexo, como estuprar ou forçar alguém a ter relações sexuais. Fazer uma promessa como essa realmente não é um voto como está especificado no texto. Mas é bem mais positivo, desenvolve força moral positiva – eu prefiro chamar força positiva ao invés de mérito, e força negativa ao invés de pecado então, isso desenvolve mais força positiva em nosso contínuo mental do que apenas evitar esse tipo de comportamento. Isso não compromete o voto e ainda é uma forma muito forte de prática ética.

Achar Que a Ética Budista é Humanista – Apenas Evita Prejudicar os Outros

Outro equívoco é achar que a ética budista é humanista. “Humanista” quer dizer que simplesmente evitamos fazer coisas que possam prejudicar os outros. Portanto, se não prejudicar ninguém, tudo bem. Isso é a ética humanista, ou pelo menos a minha compreensão de ética humanista. E embora seja muito bacana, muito bom, não é a base da ética budista. A base da ética budista está na ênfase em evitar o que é autodestrutivo, pois não sabemos o que pode machucar os outros: você poderia dar um milhão de euros para uma pessoa pensando que está beneficiando-a. E no dia seguinte, por ter esse dinheiro, a pessoa é roubada e assassinada. Portanto, não sabemos o que é realmente benéfico para outra pessoa. Não podemos ver o futuro. O que está especificado nos ensinamentos budistas é que agir de forma destrutiva, com base nas emoções destrutivas – raiva, cobiça, desejo, ciúme, ingenuidade, e assim por diante – é autodestrutivo, porque desenvolvemos o hábito negativo de repetir esse tipo de comportamento, o que nos causará sofrimento. Essa é a base da ética budista.

Equívocos sobre o Renascimento

Ignorar o Renascimento e, Portanto, Não Trabalhar em Nossos Comportamentos Negativos e Emoções Perturbadoras

O equívoco de se achar que a ética budista é humanista – apenas não prejudicar os outros – muitas vezes parece vir de uma ênfase prematura na prática Mahayana, de pensarmos que podemos pular os estágios iniciais e intermediários do lam-rim. “Lam-rim” refere-se aos estágios graduais no caminho para a iluminação. O nível inicial de motivação é evitar renascimentos piores. O nível intermediário de motivação é evitar o ciclo de renascimentos incontroláveis. Bom, mas ainda não acreditamos em renascimento, então nada disso nos parece importante; e pensamos “vamos pular essa parte”. Mas nos sentimos atraídos pelos ensinamentos Mahayana porque, de várias maneiras, eles soam muito como algumas das tradições ocidentais de amor, paciência, compaixão, generosidade, caridade, e assim por diante. Tudo isso nos soa muito bem e assim nos sentimos atraídos, mas acabamos pulando ou minimizando a importância desses escopos iniciais.

Ao fazermos isso, pulamos também uma parte importante do conteúdo desses escopos, que é trabalhar para superarmos o comportamento destrutivo e as emoções e atitudes perturbadoras por que são autodestrutivos. Mergulhamos de cabeça em tentar ajudar os outros. Isso é um erro. É importante enfatizarmos o Mahayana, mas ele precisa estar embasado nos escopo inicial e intermediário. Primeiro precisamos trabalhar em nosso comportamento destrutivo e emoções perturbadoras, uma vez que interferem drasticamente em nossa capacidade de ajudar os outros.

Não Levar o Renascimento a Sério

Uma forte razão pela qual muitos de nós preferiríamos pular os ensinamentos dos estágios iniciais é porque achamos que o renascimento não existe. A ênfase do escopo inicial está em evitar renascimentos piores; por isso tomamos refúgio (damos um direcionamento positivo a nossas vidas) e seguimos as leis do karma para evitar comportamentos destrutivos, pois isso nos trará renascimentos piores. Portanto, pulamos esse estágio ou não damos a ênfase necessária, pois não acreditamos em renascimento. E certamente não acreditamos em reinos infernais e nos reinos dos fantasmas aprisionados (espíritos famintos), nem nos deuses e anti-deuses. Pensamos que eles não existem de verdade e que as descrições nos textos do Dharma referem-se apenas a estados psicológicos humanos. Isso realmente é uma injustiça em relação aos ensinamentos e é um grande equívoco.

Video: Khandro Rinpoche — “Inferno no Budismo”
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Não Levar a Sério o Renascimento em Formas de Vida Não-Humanas e Não-Animais

Não quero entrar em muitos detalhes, mas se pensarmos em termos que uma mente, um contínuo mental, que seja o nosso ou de outra pessoa, não existe razão para que ele não possa experimentar o espectro total de felicidade e infelicidade e prazer e dor, ao invés de apenas uma pequena faixa desse espectro, que está definida pelos parâmetros de nosso corpo e mente humanos. Afinal, esse é o caso dos vários tipos de percepção extra-sensorial. Alguns animais enxergam a uma distância muito maior que nós, alguns escutam melhor, e assim por diante. Então por que os limites de felicidade, infelicidade, prazer e dor, também não podem ser estendidos, e termos uma forma física apropriada como base, tal como o corpo de um ser infernal ou divino.

Reduzindo Outras Formas de Vida a Meros Estados Psicológicos Humanos

Embora a apresentação sobre o karma afirme que na vida humana experimentamos efeitos ou rescaldos de vidas passadas em outros reinos — vivenciamos coisas que são similares ao que vivemos nesses reinos; isso não significa que possamos reduzir a discussão sobre essas e outras formas de existência, que nós e os outros podemos vir a ter, simplesmente a estados psicológicos humanos. Isso seria fazer pouco dos ensinamentos.

Achar Que o Karma Não Faz Sentido, Por Limitar a Existência a Apenas uma Vida

Por não aceitarmos o renascimento e esses outros estados de existência, achamos que o karma descreve meramente as consequências de nossas ações que acontecerão nesta vida; isso causa muitos problemas. Essas limitações geram muitas dúvidas a respeito dos ensinamentos sobre karma. Afinal, existem grandes criminosos que parecem conseguir escapar da punição de seus crimes. E coisas horríveis podem acontecer em nossas vidas, como morrer de cancer, sem que nunca tenhamos feito nada de extraordinariamente destrutivo. O karma não parece fazer sentido algum se limitarmos nossa discussão e nossa visão a apenas esta vida.

Equívocos sobre o Dharma

Extraindo as Partes Que Não Gostamos do Budismo

Tudo isso salienta um problema bem maior, um equívoco bem maior sobre o Dharma, que é achar que podemos escolher entre os ensinamentos apenas aqueles que gostamos, e podemos descartar ou ignorar aquilo que temos dificuldade em aceitar: o assim chamado budismo “higienizado”. Extraímos ou limpamos tudo o que é difícil.

Quando ouvimos histórias sobre o karma, como a de elefantes que vão para debaixo da terra e excretam ouro, e todas essas outras coisas... “Ah! Me poupe! São contos de fadas para crianças!” Não enxergamos que há uma lição ali. A questão não é se tomamos isso de forma literal, como alguns tibetanos fazem. A questão é não rejeitar; faz parte dos ensinamentos. Outro exemplo é o dos sutras Mahayana, onde os Budas ensinam a centenas de milhões de seres; e há centenas de milhões de budas presentes; e em cada poro de um Buda, outra centena de milhão; e assim por diante. Ficamos com vergonha desses ensinamentos e dizemos “isso é esquisito demais”, e não os aceitamos como parte do Dharma.

O problema é escolhermos as partes que gostamos. Existem certos votos tântricos, e de bodhisattva, contra descartar certos ensinamentos budistas ou dizer que não são autênticos. Em outras palavras, pegamos determinadas partes dos ensinamentos e ignoramos outras, pegamos apenas aquilo que gostamos. Se vamos aceitar o budismo como nosso caminho espiritual, pelo menos precisamos estar abertos o suficiente para dizer, “não entendo este ensinamento”, mesmo que ele soe estranho para nós, e “pelo menos eu adiarei meu julgamento até ter um entendimento melhor, uma explicação melhor e mais profunda.” É importante não fechar a mente e rejeitar os ensinamentos.

Achar Que Vai Ser Fácil Obter Outro Renascimento Humano

Outro equívoco é, mesmo no caso de aceitarmos o renascimento, achar que será fácil ter uma vida humana preciosa novamente. Muitas vezes pensamos que “sim, sim, creio no renascimento. E claro, serei um ser humano. Claro que terei todas as oportunidades para continuar praticando.” e assim por diante. Isso é ser muito, mas muito ingênuo. Especialmente se pensarmos na quantidade de comportamentos destrutivos que tivemos e na quantidade de tempo que passamos sob a influência de emoções perturbadoras – raiva, cobiça, egoísmo, etc. – comparada com a quantidade de tempo que agimos por puro amor e compaixão, então ficará bem claro que será bem difícil conseguir um renascimento humano precioso novamente.

Lutar por um Renascimento Humano Precioso para Continuar com Nossos Entes Queridos

Outra falácia que ocorre aqui, outro equívoco, é que por apego à amigos e família, nos empenhamos para ter um renascimento humano precioso, de forma a continuar com eles. Ou então pensamos que se alcançarmos novamente um renascimento humano precioso, bem, é claro que encontraremos todos os amigos, parentes e entes queridos novamente. Isso também é um equívoco. Há incontáveis formas de vida e seres sencientes. Renasceremos em diversas situações diferentes, conforme nosso histórico kármico. Não há absolutamente nenhuma garantia da forma que teremos ou de quem encontraremos. Inclusive, existe uma possibilidade bem maior de levarmos um longo tempo até encontrarmos alguém que conhecemos nesta vida. Pode ser que encontremos. Não é que isso seja impossível. Mas é um equívoco pensar que será muito fácil ou que está garantido.

Equívocos sobre o Karma

Achar Que Somos Maus e Merecemos as Consequências do Amadurecimento de Nossos Potenciais Kármicos Negativos

Outra ponto a respeito de karma e renascimento é que mesmo se aceitarmos que o sofrimento desta vida é o amadurecimento de potenciais kármicos negativos desenvolvidos em vidas passadas, podemos pensar “bem, se eu sofrer, se algo ruim acontecer comigo é por que eu mereço.” Ou você merece, se algo aconteceu com você. O problema aqui é que isso implica em um “eu” sólido que existe e quebrou a lei, é culpado e mau, e agora está recebendo a punição que merece. Colocamos, portanto, a culpa de não entendermos as leis do karma, das causas e efeitos dos comportamentos, no “eu” — esse “eu” sólido que é mau e que está sendo punido.

Achar Que Somos Responsáveis pelo Amadurecimento do Karma Alheio

Depois estendemos esse conceito de culpa para o nosso papel no amadurecimento do karma alheio. Não vemos que há muitos fatores e circunstâncias envolvidos na experiência do amadurecimento do karma, e cada um tem suas próprias causas. Trata-se de um erro, um equívoco, pensar que somos a causa do amadurecimento do karma de outras pessoas. A experiência delas depende de vários fatores, não apenas de nós.

Vou dar um exemplo. Suponhamos que eu tenha sido atropelado por um carro. O que eu fiz na minha vida passada não é a causa da outra pessoa me atropelar. Se eu pensar “bom, sou karmicamente responsável por me atropelarem”, isso não está certo. Minha responsabilidade é sobre a experiência de ser atropelado. E o karma da outra pessoa é o responsável por ela ter me atropelado. Assim, o que ocorre conosco é o resultado da interação de muitos, muitos fatores kármicos diferentes, e também emoções perturbadoras e fatores em geral – como o clima: estava chovendo, a estrada estava escorregadia, etc. Tudo isso combinado cria uma situação na qual experimentamos sofrimento ou problemas.

Esses são alguns dos equívocos que podem surgir em termos de ética, karma, e assim por diante. Tenho certeza de que há muitos, muitos mais. Esses são apenas aqueles que me vieram à mente e nos quais eu estava pensando hoje.

Equívocos sobre Gurus

Ignorando o Fato de Que Gurus Precisam Ser Qualificados e Nos Inspirar

Agora, em relação aos gurus, acho que essa é uma área com muitos equívocos, e não apenas entre os ocidentais. Antes de mais nada, por causa da ênfase na importância do guru, tendemos a negligenciar o fato de que ele precisa ser qualificado – e há uma lista de qualificações. E mesmo que o guru seja qualificado, temos que nos sentir inspirados pela pessoa.

Uma das principais razões da importância de um professor espiritual é que o ele nos dá inspiração, energia para praticarmos, é o modelo que queremos seguir. Podemos receber informação de livros, da Internet e assim por diante. É claro que gurus precisam saber responder perguntas e nos corrigir quando estivermos cometendo erros em nossa prática de meditação. Mas se eles não nos inspiram, não iremos muito longe.

Aceitar Alguém como Guru Sem uma Investigação Prévia Adequada

Por causa desse equívoco em relação à necessidade do guru ser qualificado e realmente precisar nos inspirar, temos pressa em aceitar alguém como nosso guru, sem examiná-lo plenamente, de forma adequada. Nos sentimos pressionados por esta ênfase: “Você tem que ter um guru; você tem que ter um guru.” E arriscamos a possibilidade de nos desiludirmos quando, mais tarde, virmos de forma objetiva que ele tem defeitos. Não o examinamos apropriadamente. Esse é um grande problema, pois muitos escândalos aconteceram com professores espirituais que foram, com ou sem razão, acusados de comportamento inadequado. Às vezes as acusações são corretas; eles realmente não eram qualificados, e talvez tenhamos nos sentido pressionados a aceitar essa pessoa como guru, devido a essa ênfase que existe na relação com o guru. Depois ficamos sabendo dos escândalos envolvendo nosso guru e ficamos arrasados.

Achar que Todos os Tibetanos, Especialmente os com Votos Monásticos e os Que Carregam Títulos, São Budistas Perfeitos

Para piorar, podemos pensar que todos os tibetanos ou, pior, que todos os monges e monjas; ou, ainda pior, todos os Rinpoches, Geshes e Kenpos – são perfeitos exemplos de prática budista. Esse é um equívoco muito comum. Pensamos, “ah, eles devem ser budistas perfeitos: são tibetanos.” ou “budistas perfeitos: estão vestindo mantos.” “ Perfeitos budistas: têm um título de Rinpoche, devem ser iluminados.” Isso é muito ingênuo. Trata-se de pessoas comuns.

Deve haver uma proporção maior de budistas praticantes entre os tibetanos do que na maioria das sociedades e deve haver certos valores budistas que são parte da cultura deles; mas isso não quer dizer que todos eles são perfeitos, de forma alguma. E se alguém vira monja ou monge, pode haver muitas razões para isso. Entre os tibetanos, pode ser que a família o tenha colocado no monastério quando ainda era criança, pois não era capaz de alimentá-lo, e ali ele receberia comida e educação. Pode ser por uma razão ainda mais egoísta – que a pessoa tinha problemas e precisava da disciplina da vida monástica para superá-los.

Conforme explicou um de meus amigos Rinpoches, “vestir o manto é um sinal de que preciso dessa disciplina, pois sou uma pessoa muito indisciplinada, tenho muitas emoções perturbadoras e realmente estou empregando todo o meu esforço para superá-las” Isso não quer dizer que ele as tenha superado. Então não deveríamos pensar ingenuamente que são iluminados, especialmente os Rinpoches. Como Sua Santidade o Dalai Lama sempre diz: basear-se apenas no nome importante do antecessor é realmente um grande erro. Ele enfatiza que esses Rinpoches têm que demonstrar e provar suas qualificações nesta vida, e não basear-se apenas na reputação de seus nomes.

Não Respeitar Monges e Monjas, Fazê-los Servir os Leigos

Por outro lado, é um equívoco não respeitar nem dar suporte a monges e monjas, e fazer deles servos de leigos nos centros de Dharma. Isso ocorre muitas vezes quando há um centro de Dharma e eles tem um monge ou uma monja residente. Eles têm que limpar a casa, organizar e arrumar tudo para os ensinamentos, cobrar as contribuições e assim por diante. Se for um centro residencial e tiver um curso no final de semana, eles têm que cuidar das acomodações e coisas do gênero, e não conseguem nem assistir aos ensinamentos de tão ocupados que ficam. É como se os leigos pensassem que eles são seus servos.

Deveria acontecer justamente o oposto. Como monges e monjas, eles merecem todo o respeito, independente do nível de ética que tiverem. E essa é uma parte dos ensinamentos no que diz respeito à direção segura e ao refúgio na Sangha: respeitar até mesmo o manto. Isso não quer dizer que somos ingênuos e achamos que eles são perfeitos. Mas é preciso demonstrar um certo respeito.

Achar Que o Guru é Literalmente um Buda Infalível e Colocar Toda a Responsabilidade Sobre Nossas Vidas em Suas Mãos

Também existe um grande mal-entendido no que diz respeito ao que chamamos “devoção ao guru”. Eu acho que não é uma tradução muito útil, porque parece implicar em uma adoração quase cega ao guru, como em uma seita. Isso é um grande mal-entendido. O termo usado aqui para o relacionamento com o professor espiritual significa confiar em um professor espiritual qualificado como confiaríamos em um médico qualificado. O termo tibetano usado para a relação com o guru é o mesmo termo usado para a relação com o médico. Entretanto, por causa da instrução de vermos o guru como um Buda, nós cometemos o equívoco de pensar que o professor é infalível e que temos que ter uma obediência cega ao guru, como em uma seita. Isso é um erro. Por causa disso, renunciamos a todo senso crítico e responsabilidade por nós mesmos, e nos tornamos dependentes, pedindo “mos” (mo, adivinhação com dados) – joguem os dados e tomem todas as nossas decisões por nós.

Temos o objetivo de nos tornar Budas, desenvolver a consciência discriminativa para sermos capazes de tomar decisões inteligentes e compassivas. Portanto, se um/a professor/a tem como objetivo somente nos tornar dependentes dele/a, como em uma luta de poder, há algo de errado. É um equívoco achar que isso está correto e participar desse tipo de síndrome de poder e controle com um professor que não está realmente seguindo as orientações de forma apropriada.

Projetar no Guru o Papel de Terapeuta ou Pastor

Também é um equívoco projetar em um professor de budismo o papel de um pastor ou terapeuta com quem falamos de nossos problemas pessoais e buscamos conselhos. Esse não é o papel de um professor espiritual budista. Tradicionalmente, um professor espiritual budista dá ensinamentos e cabe a nós descobrir como aplicá-los. É verdade, só é apropriado tirarmos dúvidas sobre os ensinamentos e sobre nossa prática de meditação.

Se você tiver problemas psicológicos, vá a um terapeuta; não a um professor espiritual. E o que é especialmente inadequado é discutir problemas de relacionamento ou sexuais com um monge ou uma monja. Eles são celibatários. Não estão envolvidos com isso. Não são pessoas para as quais devemos perguntar sobre esses problemas. Mas vindos de uma tradição de pastores, padres e rabinos, esperamos que eles assumam essa função normal de pastor, de nos guiar nos tempos difíceis de nossa vida pessoal.

Vou dar um exemplo. Eu estive com o meu professor espiritual Serkong Rinpoche por nove anos, sempre muito próximo, na maior parte do tempo, todos os dias. Nunca, nesses nove anos, ele me perguntou algo pessoal. Nunca. Sobre a minha vida pessoal, sobre a minha família, sobre as minhas origens, nada. Tudo no dia-a-dia girava em torno de ele me ensinar ou de trabalharmos juntos para beneficiar pessoas – eu traduzia para ele, organizava suas viagens, coisas do gênero. Era bem diferente dos relacionamento a que estamos acostumados no ocidente, e não é muito fácil entendermos.

Trivializar a Tomada de Refugio - A Tomada de uma Direção Segura em Nossas Vidas

Por falar em trabalhar com o professor, isso nos traz para o tópico do refúgio, que eu gosto de chamar “direcionamento seguro”. Trata-se de dar um direcionamento em nossas vidas, indicado pelo Buda, Dharma e Sangha. É um equívoco trivializar o refugio como se estivéssemos nos tornando sócios de um clube. Você corta um pequeno pedaço de cabelo, recebe um pequeno fio vermelho, um novo nome, e agora fazem parte de um clube. Isso é um problema principalmente quando, pelo fato do professor ser de uma linhagem específica, consideramos que o clube ao qual estamos nos associando é uma linhagem específica do budismo tibetano, ao invés de ser o budismo em geral. “Agora eu meu tornei um Gelugpa.” “Agora eu me tornei um Karma Kagyu” “Agora eu me tornei um Nyingma.” “Agora eu me tornei um Sakya.” Ao invés de “Agora estou seguindo o caminho do Buda.” Por causa desse equívoco, nos tornamos sectários, exclusivistas, e nunca vamos a outros centros de Dharma. Realmente, é impressionante como no Ocidente os praticantes budistas frequentam apenas um centro de Dharma e nunca vão a outros.

Todo Professor Que Vem para o Ocidente Precisa Estabelecer Seu Próprio Centro de Dharma ou Organização

O que ainda é mais confuso é que cada professor que vem parece querer estabelecer seu próprio centro de Dharma e sua própria organização, o que é um grande erro, eu acho, pois isso se torna insustentável. Não se pode sustentar quatrocentos diferentes tipos de budismo indefinidamente no futuro, e fica muito confuso para os novos alunos. E trata-se de um grande dreno financeiro e um peso dar suporte a todos esses locais com seus altares e suas livrarias, pagando aluguel, e assim por diante. No Tibete, embora muitos professores tenham vindo da Índia e do Nepal e diferentes monastérios tenham sido estabelecidos, eventualmente eles todos se reuniram e formaram grupos distintos. Não os mesmos grupos que se tinha na Índia – não se tinha Kagyu ou Sakya na Índia – mas grupos que então se tornaram sustentáveis, que reuniram várias linhagens.

Portanto, embora tenhamos grandes organizações no Dharma ocidental, com as de Trungpa Rinpoche, Sogyal Rinpoche, Lama Yeshe, Lama Zopa, etc. – precisamos pensar na junção de grupos para formar linhagens maiores, conforme aconteceu no Tibete. Mas ao fazer isso existem dois extremos que devemos evitar. Um deles é que se o budismo ocidental for fragmentado demais, não funcionará. Por outro lado, se for regulamentado demais, também não funcionará. Portanto, é preciso sermos muito cuidadosos aqui. Mas eu acho que a sustentabilidade é uma questão importante.

Achar Que Se Temos um Professor Não Podemos Estudar com Outros Professores

No que diz respeito a não irmos a outros centros de Dharma, também é um equívoco achar que não podemos estudar com outros professores, mesmo dentro da linhagem de nosso próprio professor. A maioria dos tibetanos têm muitos professores, não apenas um. Existe o registro de que Atisha teve 155 professores. Diferentes professores têm diferentes especialidades. Um é bom ao explicar isso; outro é bom ao explicar aquilo. Um vem dessa linhagem; outro vem daquela linhagem. Ter vários professores não é ser desleal. Como diz Sua Santidade o Dalai Lama: podemos olhar para nossos professores como se fossem o Avalokiteshvara de onze cabeças, cada professor é uma face diferente, e todas juntas constituem um corpo de orientação espiritual.

Ter Vários Professores Cria Desarmonia Entre Eles

É muito importante não ter vários professores que estejam em conflito uns com os outros. Isso não funciona. Vocês precisa achar professores que tenham um bom – o que é chamado de dam-tshig em tibetano – elo entre si; que tenham harmonia. Pois, infelizmente, acontecem coisas que às vezes chamamos de “guerra nas estrelas” espiritual entre vários professores que discordam de forma muito enfática sobre algumas questões – seja sobre os protetores, ou sobre quem é o verdadeiro Karmapa, ou o que seja. Se você pretende ter mais de um professor, escolha aqueles que estão em harmonia.

Achar Que Ouvir uma Palestra Faz do Palestrante Seu Professor

É essencial aqui perceber que apenas escutar uma aula de um professor budista não torna essa pessoa automaticamente nosso professor espiritual com todas as implicações da devoção ao guru, embora tenhamos que lhe demonstrar respeito. Como diz Sua Santidade, “você pode ir à aula de qualquer pessoa e assistir como se fosse uma palestra, como você assistiria a uma palestra na universidade.” Isso não implica em nada além disso.

Equívocos sobre a Prática

Não Combinar Estudo com Prática

Em relação à prática é um equívoco pensar que a tradição Gelug é puramente uma linhagem de estudo e a Kagyu e a Nyingma são puramente linhagens de prática. Essa ingenuidade nos faz pensar que se seguimos uma delas, podemos negligenciar o outro aspecto — negligenciar o estudo ou a meditação. Quando os professores enfatizam um ou outro desses dois – estudo ou meditação – isso não quer dizer que devemos fazer apenas um deles e ignorar o outro. Está muito claro que precisamos de ambos.

Recentemente, em uma audiência com o grupo de ocidentais que tinha estudado na Biblioteca de Dharamsala nos anos 70 e 80, Sua Santidade usou um exemplo muito bom. Ele disse que tantra, mahamudra e dzogchen são como os dedos de uma mão. A palma da mão, a base, são os ensinamentos da tradição indiana do monastério Nalanda, os ensinamentos dos mestres indianos de Nalanda sobre sutra. O equívoco é colocar demasiada ênfase nos dedos. Às vezes os professores fazem isso, eles colocam muita ênfase nos dedos. Eles fazem seus alunos estudarem apenas os dedos e se esquecem da mão. Os dedos são uma extensão da mão e não são funcionais se estiverem sozinhos. Essa foi a imagem, a analogia que Sua Santidade usou, e eu acho que se trata de um conselho muito útil. É um equívoco pensar que “ bem, tudo o que tenho que fazer é praticar dzogchen; apenas sentar e ser natural e assim por diante.” Isso é simplificar demais os ensinamentos sem que tenhamos uma base.

Achar Que Somos Milarepas e Que Precisamos Passar o Resto da Vida em Retiro de Meditação

Da mesma forma, é um equívoco pensar que somos Milarepas; que todos – especialmente nós – têm que fazer um retiro de uma vida inteira, ou pelo menos um retiro de três anos. Apenas umas poucas pessoas estão aptas a uma vida de meditação em tempo integral; a maioria precisa se envolver no bem-estar social. Esse conselho vem diretamente de Sua Santidade o Dalai Lama. É muito, muito raro que realmente tenhamos essa aptidão para passar a vida em um retiro de meditação ou que possamos realmente nos beneficiar de um retiro de três anos, sem simplesmente sentar e repetir mantras por três anos, ao invés de realmente trabalhar em um nível profundo de nós mesmos.

Achar Que Podemos Nos Iluminar Meditando Apenas Durante Nosso Tempo Livre

É claro que a prática intensiva e em tempo integral do Dharma é necessária para a liberação ou iluminação, e é um erro nos superestimarmos pensando que podemos alcançar a liberação ou a iluminação sem praticar em tempo integral, pensando “bem, eu posso praticar apenas em meu tempo livre e vou me libertar e me iluminar”. Isso é um equívoco. Mas também é um erro não sermos objetivos conosco e com nossa capacidade de conseguir fazer uma prática intensiva agora. Pois, o que pode acontecer é que se nos esforçarmos mas realmente não formos capazes de fazer esse tipo de prática, podemos ficar muito frustrados, ficamos com aquilo que os tibetanos chamam de lung, energia frustrada e nervosa, e isso realmente nos desequilibra psicológica, emocional e fisicamente.

Não Pensar de Forma Realista Que Levaremos Eons de Vidas para Alcançar a Iluminação

Isso também envolve um pouco o fato de não acreditarmos no renascimento, pois se não acreditarmos no renascimento, não estaremos olhando com seriedade nossos objetivos de longo prazo, de muitos, muitos eons de prática. Há o ensinamento que diz que é possível atingirmos a iluminação nesta vida, mas isso não deve ser uma desculpa para pensarmos, “bom, temos apenas esta vida, pois não há o renascimento” e, assim, nos esforçarmos além do que somos capazes no momento.

Subestimar a Importância da Prática Diária Sustentada

Por outro lado, é um erro subestimar a importância da prática de meditação diária. É muito importante, se queremos sustentar a nossa prática do Dharma, ter uma rotina diária de meditação. Há muitos, muitos benefícios disso em termos de disciplina; em termos de compromisso; em termos de trazer estabilidade para as nossas vidas; confiança: que sempre façamos isso todos os dias, não importa o que acontecer. Se realmente queremos desenvolver mais hábitos benéficos – e é disso que a meditação trata – precisamos praticar.

Video: Geshe Lhakdor — “Meditação Real”
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O que significa “praticar”? Significa criar hábitos salutares através da análise e da repetição. Por exemplo, em um ambiente controlado, podemos imaginar várias situações que normalmente nos deixam chateados e analisar as causas de nossa irritação. Podemos investigar: “Por que estou chateado com esta ou aquela situação? Por que fico irritado quando estou doente? É porque...” Aí vamos mais e mais fundo, e vemos que “Bom, estou focando em mim. Estou sofrendo. Pobre de mim.”

Mesmo se não pensarmos conscientemente “pobre de mim”, quando estivermos doentes, temos que admitir que nosso foco está no “eu”, que é o que há de mais proeminente em nossas considerações. Por não gostarmos daquilo que estamos vivenciando, ficamos irritados e projetamos isso em outras pessoas. Portanto, durante a meditação, analisamos situações como essas, que vem de nossa experiência pessoal, e geramos uma atitude mais salutar — nesse caso, paciência — em relação à situação desafiadora. Uma prática diária na qual examinamos essas coisas e trabalhamos em algum hábito salutar é muito benéfica. É um grande equívoco pensar que podemos passar sem isso.

Achar Que Praticar Budismo É Simplesmente Fazer Rituais

Também é um equívoco pensar que a prática budista significa apenas fazer rituais, ao invés trabalharmos principalmente em nós mesmos. Muitas pessoas recitam periodicamente a sadhana, um texto de visualizações tântricas, sozinhas ou em grupo. E frequentemente recitam em tibetano — um idioma que sequer entendem — e acham que isso é “praticar”. Dzongsar Khyentse Rinpoche, fez uma maravilhosa analogia sobre isso. Ele disse que se os tibetanos tivessem que recitar orações e várias práticas todos os dias em alemão, escrito foneticamente com letras tibetanas, sem ter a mínima ideia do que estavam dizendo, ele duvida que os tibetanos realmente fizessem isso. No entanto, nós ocidentais fazemos, consideramos isso prática e cremos que isso basta para atingirmos a iluminação. Mas a verdadeira prática significa trabalhar em nós mesmos: trabalhar em mudar nossas atitudes, em superar as emoções perturbadoras através da análise e do entendimento e, assim, criar mais hábitos benéficos, como o amor, a compaixão, a compreensão correta e assim por diante.

Achar Que para Praticar o Dharma Adequadamente Precisamos Seguir os Costumes Tibetanos

Outro equívoco é pensar que para praticar o Dharma de forma apropriada temos que seguir os costumes tibetanos ou outros costumes asiáticos, como ter um altar elaborado no estilo tibetano, ou um santuário, ou até mesmo um centro de Dharma. Muitos professores tibetanos que vêm para o Ocidente gostam, é claro, de criar um centro de Dharma e decorá-lo como um templo tibetano, com as paredes pintadas da mesma forma, as gravuras de deidades e assim por diante.

Como diriam meus amigos tibetanos, “se os ocidentais gostam disso, por que não? Mal não faz…” Mas pensar que isso é absolutamente necessário é um grande erro. Especialmente quando há um gasto tremendo, e o dinheiro poderia ser usado de uma forma muito mais benéfica. Portanto, quer seja em um centro do Dharma ou em nossa casa, não precisamos de nada elaborado, ou com estilo tibetano, para praticar o Budismo Tibetano. Contanto que o quarto onde meditamos esteja arrumado, limpo e, assim, respeitando o que estamos fazendo, isso é o suficiente.

Achar Que Rapidamente Nos Livraremos das Emoções Perturbadoras

Embora a ênfase principal do Dharma seja eliminar para sempre as causas do sofrimento – isto é, nossa ignorância ou inconsciência em relação à realidade e nossas emoções perturbadoras, é um equívoco achar que a superação das emoções perturbadoras acontecerá rapidamente. Esquecemos facilmente que só quando nos tornarmos um arhat, um ser liberado, estaremos completamente livres da raiva, apego e assim por diante, apesar deles irem diminuindo ao longo do caminho. Se nos esquecermos disso, ficaremos desencorajados quando acontecer de sentirmos raiva mesmo após anos de prática. Isso é muito, muito comum.

É um erro, portanto, não termos paciência com nós mesmos. Temos que entender que a prática do Dharma tem altos e baixos, assim como os samsara tem altos e baixos. No longo prazo, podemos esperar melhorias, mas não vai ser tão fácil. É um erro perder a paciência quando tivermos nossos baixos. Por outro lado, temos que evitar o extremo de ser permissivos demais com nossos hábitos negativos e negligentes ou preguiçosos em relação a trabalhar em nós mesmos. O caminho do meio, aqui, é não nos mortificar quando sentirmos que ainda ficamos com raiva mas, por outro lado, não dizer apenas “bem, estou sentindo raiva” ou “estou de mau humor” sem tentar aplicar algum método do Dharma para superar isso.

É muito interessante ver ao que recorremos quando estamos de mau humor. Será que recorremos à meditação? Será que recorremos ao refúgio? Ou será que comemos chocolate, recorremos ao sexo, à televisão, ou à conversa com amigos? Ao que recorremos? Eu acho que isso revela bem a nossa prática do Dharma – a forma como lidamos com nossos episódios de mau humor.

Conclusão

Esses foram alguns dos equívocos que me ocorreram quando sentei e pensei no assunto. Tenho certeza que existem muitos, muitos outros que poderiam ser listados. Conforme mencionei, existem muitos equívocos que surgem simplesmente pela complexidade dos assuntos, especialmente no que diz respeito à vacuidade, aos diferentes sistemas filosóficos, e assim por diante. Um dos pontos do Dharma é: tudo o que o Buda ensinou foi para beneficiar os outros. Se levarmos isso à serio, tentaremos compreender todos esses aspectos confusos dos ensinamentos. Se não compreendermos, tentaremos entender usando os métodos do Dharma e a lógica e, se ainda assim não entendermos, perguntaremos a alguém que acreditamos ter autoridade no assunto. Se estivermos abertos e dispostos a aceitar que grande parte de nossa confusão é decorrente de mal-entendidos, estaremos abertos para aceitar correções, para que possamos tirar maior proveito dos ensinamentos.

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