Orientações para Estudar a Vacuidade

A vacuidade é um dos tópicos mais importantes entre os ensinamentos do Buda, e também um dos mais difíceis de entender. Mas não devemos temer a vacuidade. Conforme Shantideva, o grande mestre indiano, explicou em Engajando-se no Comportamento do Bodhisattva (Caminho do Bodhisattva), se é para termos medo de alguma coisa, que seja da ignorância, da falta de consciência que causa todos os nossos problemas. Não deveríamos ter medo daquilo que, quando compreendido, nos livrará das causas de nossos problemas. É como se ao invés de termos medo de nossos inimigos, dos ladrões, bandidos e assassinos das ruas, tivéssemos medos do nosso guarda-costas. A vacuidade não é fácil de entender, mas isso é normal. Por que deveríamos esperar que fosse fácil? Se fosse, todo mundo já tinha entendido e ninguém mais teria problemas.

A Necessidade de Gerar Força Positiva Suficiente para Compreender a Vacuidade

Para compreender a vacuidade, ou a realidade, precisamos gerar uma tremenda quantidade de força positiva, normalmente chamada de “mérito”. Isso é muito importante. Basicamente, a força positiva é gerada quando nos abstemos de agir destrutivamente. Agora, você pode dizer, por exemplo: “Mas eu não já não caço e nem pesco”, então como o fato de eu não me engajar nessas atividades irá gerar força positiva? A questão é, quando aquele mosquito estiver sobrevoando seu braço ou cabeça, abstenha-se de matá-lo, encontre um outro meio, um meio não violento de lidar com ele. Obviamente isso é muito mais desafiador, mas esse ato de abster-se de agir destrutivamente quando queremos agir assim é o que gera a força positiva.

Também geramos muita força positiva ao nos engajarmos em ações construtivas, como ir aos ensinamentos do dharma, contemplá-los, meditar e tentar compreendê-los da melhor maneira possível. Também acumulamos muita força positiva ajudando ao máximo os outros, apesar de que, no estágio em que estamos, em geral não sabemos realmente o que ajudará mais. Além disso, precisamos tentar nos livrar do máximo de forças negativas ou potenciais negativos, fazendo várias práticas de purificação. Tudo isso nos ajuda a estarmos mais abertos e à nossa mente estar mais clara e conseguirmos entender melhor. Se nossa mente for fechada ou estiver obscurecida com confusão, ou se estivermos sempre agindo destrutivamente e não tentando ser mais construtivos, como entender algo tão difícil de compreender quanto a vacuidade?

Similarmente, quando queremos ouvir os ensinamentos ou tentar entendê-los, se apenas sentarmos e começarmos, pode ser difícil fazer a transição entre uma mente ocupada e uma mente clara. Para evitar esse problema, primeiro recitamos o mantra de Manjushri “OM ARA-PATSANA DHIH” muitas vezes, e depois repetimos durante uma respiração o máximo possível de silabas semente de Manjushri “DHIH-DHIH, DHIH-DHIH, DHIH-DHIH”. A maioria dos tibetanos fazem isso. No entanto, é essencial repetirmos isso com a forte intenção de que nossa mente fique clara. Em um nível mais avançado, podemos adicionar visualizações gráficas para ajudar a deixar nossa mente mais clara. Mas, se não conseguirmos visualizar com facilidade, não precisamos forçar isso em um estágio inicial; repetir o mantra já é suficiente.

Todas essas preparações são muito necessárias, mas além delas precisamos principalmente desenvolver pelo menos algum nível de ideal de bodhichitta, de alcançar a iluminação a fim de poder beneficiar mais os outros. Se não tivermos essa forte motivação ou emoção positiva por detrás, “Porque quero entender isso?”, “O que quero fazer com essa compreensão?” não colocaremos muita energia construtiva em nosso esforço e não teremos muito resultado. Uma forte motivação é absolutamente necessária. Quanto mais nosso coração for aberto a todos – não apenas aos seres humanos, mas também aos insetos, a todos – e quanto mais aberto estiver nosso coração para a iluminação, para a onisciência de um buda, que é muito vasta, mais a nossa mente estará aberta e será capaz de compreender a vacuidade. Precisamos nos desapegar de crenças limitantes que talvez ainda tenhamos, como: “Sou incapaz de entender, não sou bom o suficiente”. Precisamos abrir nossas mentes para grandes possibilidades, para o que podemos conquistar gerando essa força positiva com o ideal de bodhichitta e a recitação de mantras. Tudo isso nos permitirá eventualmente compreender a vacuidade. Mas sem isso, será extremamente difícil.

A força positiva nos dá a energia para romper nossos bloqueios mentais. Nossa compreensão então ficará cada vez mais profunda e tudo o que aprendermos trabalhará junto para que gradualmente vejamos como as coisas se encaixam em uma visão holística. Uma analogia da física pode nos ajudar a entender como fazer esse rompimento. Quando você coloca mais e mais energia de calor no gelo, eventualmente ele passa por uma transição e se transforma em água. Se ainda mais energia for adicionada, ele se transformará em  vapor. Nossa prática progride assim. Podemos ficar em um determinado nível por bastante tempo, mas a fim de avançarmos para o próximo, precisamos colocar uma quantidade tremenda de energia adicional. Com a energia de força positiva suficiente, nosso contínuo mental e a compreensão que ele contém passará por uma fase de transição. De repente vamos entender em um nível muito mais profundo.

Também é muito importante nunca ficarmos satisfeitos com o nosso nível de entendimento. Até que estejamos muito avançados no caminho – e pode ter certeza que ainda não estamos – não compreendemos completamente ou com a profundidade necessária. Não importa a nossa idade ou a quantos anos estudamos o dharma, sempre podemos revisar e melhorar nossa compreensão para que ela seja ainda mais precisa. Isso, claro, requer ainda mais estudo e meditação e mais profundidade. À medida que nossa mente fica mais aberta e ficamos com menos medo das implicações da vacuidade, conseguimos compreender explicações cada vez mais complicadas.

Necessidades Adicionais

Para progredirmos dessa maneira, precisamos estar totalmente convencidos da importância e da necessidade de compreendermos a vacuidade. Além disso, precisamos estar convencidos de que é algo que não só pode ser conhecido, mas plenamente conhecido. E mais importante, precisamos estar convencidos de que “eu posso entender completamente; eu sou capaz”. Se tivermos baixa autoestima, precisaremos trabalhar nos ensinamentos sobre a natureza búdica – esses aspectos que todos nós possuímos e que nos permitem atingir o estado búdico.

Ademais, nunca conseguiremos compreender a vacuidade se não tivermos pelo menos um nível funcional de concentração. Nossa concentração não precisa ser perfeita, mas se nossa mente estiver sempre perdida em devaneios, entorpecida ou sonolenta, não haverá sequer como aprender, quanto mais compreender a vacuidade. Como podemos aprender quando não conseguimos nem ler uma página sem ficarmos cansados ou nos perdermos em devaneios?

Vemos, portanto, que se realmente quisermos atingir a liberação e a iluminação e ajudar os outros a fazerem o mesmo, precisaremos de uma boa preparação. Quando entendermos que levará muito tempo e que temos que seguir lentamente, passo a passo, teremos a paciência para essa grande empreitada. Temos que ser realistas no que diz respeito ao caminho budista e particularmente no que diz respeito a desenvolver um ideal sincero de bodhichitta, o que é extremamente avançado e difícil de desenvolver. É importante não trivializar a aspiração de ajudar todos os seres limitados, pensando que ela não é importante ou reduzindo-a à mera repetição de palavras: “Estou praticando para o bem de todos os seres sencientes”. Na maioria dos casos, essas palavras não são acompanhadas de um sentimento profundo e carecem de sentido. Precisamos levar a sério a bodhichitta.

Quando ouvirem ensinamentos que soam muito fáceis, sobre bodhichitta e vacuidade, por favor estejam cientes de que isso indica que esses tópicos certamente estão sendo simplificados. O problema não é eles serem simplificados; o problema é a nossa arrogância e presunção em pensar que é muito fácil. Precisamos escutar as simplificações primeiro para que consigamos compreender o que é que estamos querendo entender em um nível mais profundo. Caso contrário, estaremos almejando algo misterioso, que não temos a mínima ideia do que é, e logo perderemos o interesse. Ou então perderemos o rumo por não termos a mínima ideia do que estamos almejando.

E quando ouvirmos explicações mais complexas do que somos capazes de entender, também precisamos ter uma atitude adequada. Uma atitude adequada e útil é reconhecer: “Talvez eu não consiga entender esse ensinamento agora, mas há outras pessoas nesta sala e talvez elas consigam entender com um pouco mais de profundidade” e nos alegramos por isso. Cada um entenderá em um nível diferente. Então o que quer que entendamos, está bom; sempre haverá algo que não entenderemos. Essa é a realidade, e temos que aceitá-la. Isso é ser realista, e não precisamos nos desencorajar ou nos envergonhar do nosso nível atual de entendimento. 

É importante não cair na armadilha de nos convencer de que somos idiotas, o que serve apenas para deixar nossa mente ainda mais fechada. Ao invés disso, só precisamos entender que ainda não chegamos nesse nível, que ainda estamos muito no começo dos nossos estudos. Quando adotamos essa postura e ouvimos explicações mais complexas, ficamos inspirados, ao invés de deprimidos.  O fato de haver pessoas que já entendem é uma fonte de inspiração. Ao invés de ficarmos com inveja, podemos ficar inspirados e motivados a nos esforçarmos mais, para que também entendamos um pouco mais.

A menos que tenhamos gerado uma quantidade inacreditável de força positiva em vidas anteriores, não conseguiremos entender na primeira vez que ouvirmos. Ainda não estamos no estágio de Sua Santidade o Dalai Lama. Meu professor, Serkong Rinpoche, era um de seus professores e o acompanhava a todas as aulas. Rinpoche me disse que só precisavam explicar uma vez para que Sua Santidade imediatamente entendesse. E ele não apenas entendia da primeira vez que ouvia, ele retinha na memória e você nunca mais tinha que repetir isso a ele. Ele retinha tudo o que escutava e estudava perfeitamente. Para se ter uma mente com essa capacidade é necessária uma tremenda quantidade de força positiva.

Mas ainda não estamos nesse nível, ou estamos? Porém, se ele conseguiu gerar essa força positiva, nós também podemos. Atividade mental é apenas atividade mental, não importa de quem ela é. E não há nada de especial a respeito do contínuo mental de um indivíduo. A única coisa que faz diferença é a quantidade de força positiva e negativa acumulada naquele contínuo mental e que está afetando a qualidade de sua atividade mental. Então, se acumularmos força positiva, nos treinando agora, ficará cada vez mais fácil, não apenas nesta vida, mas em vidas futuras, progredir no caminho espiritual. Mas só nos treinaremos se tivermos uma forte motivação positiva, baseada na compreensão da enorme necessidade de fazermos isso.

Se levarmos à sério as vidas futuras, mesmo não entendendo como funciona o renascimento e do que se trata exatamente os ensinamentos budistas, à medida que envelhecermos teremos motivação e razão ainda mais forte para não parar de estudar e praticar. Vamos querer continuar a treinar nossa mente para acumular ainda mais força positiva. Treinaremos ainda mais para gerar bons hábitos, pois saberemos que hábitos positivos fortes irão afetar nossas vidas futuras de maneira positiva.

A não ser que desenvolvamos Alzheimer ou algo do gênero, sempre seremos capazes de aprender mais e progredir. Tenho uma aluna em Berlim que tem mais de oitenta anos e não desiste. Ela sempre vai às aulas, mesmo andando de bengala e tendo dificuldade de locomoção. Ela se esforça e vai, e tenta entender. Isso é muito inspirador para todos.

Então, especialmente se for jovem, não desista: temos o potencial para trabalhar muito ainda. A vida é complicada, então não devemos pensar que o caminho budista não vai ser complicado. Os professores costumam dizer que se nos sentirmos atraídos por um caminho fácil, no sentido de um caminho que não requer muito trabalho e é rápido, isso é uma indicação de que somos preguiçosos.

A Necessidade de Ter Paciência

Antes de entrarmos no assunto em questão, a vacuidade, deixe-me apontar algumas coisas vacuidade que podem servir de base para revisarmos esse seminário no futuro, para trabalharmos com ele e nos aprofundarmos nas questões que quero levantar.

O principal objetivo de um professor visitante é oferecer uma dose de material novo ou explicar o que já foi explicado, mas talvez de uma forma mais avançada ou sobre outro ângulo. Professores visitantes ficam com você por pouco tempo. Não dá para passar lentamente por cada assunto para que todos consigam entender. Não há tempo para isso. Um professor visitante só consegue apresentar uma sinopse. Isso se aplica até quando Sua Santidade o Dalai Lama ensina para grandes audiências. Para a maioria de nós, o principal é conseguir o material e trabalhar nele depois, adicionando mais detalhes e descobrindo as implicações. Então, seja paciente. Aquilo que conseguir entender de primeira, ótimo. O que não conseguir, também é ótimo, pois vocês poderão trabalhar nisso mais tarde com seus professores e entre si, e se aprofundarem.  Para compreender a vacuidade leva tempo. Em Berlim, por exemplo, eu estou ensinando o nono capítulo de Engajando-se no Caminho do Bodhisattva, de Shantideva, que é sobre a vacuidade, há dois anos e meio, uma vez por semana, e ainda estamos no primeiro terço do capítulo!

O Problema do Idioma

Também temos que considerar o problema do idioma. O sânscrito original, assim como o tibetano, é incrivelmente preciso em definir termos para todos os diferentes aspectos da vacuidade. Não é fácil encontrarmos equivalentes nos idiomas ocidentais. Fica ainda mais difícil quando temos traduções equivocadas, baseadas em termos traduzidos há cinquenta ou cem anos atrás. Naquela época, os tradutores não tinham muito material disponível para ajudá-los a escolher a terminologia. A dificuldade fica ainda maior quando traduzimos do inglês, que já não possui os termos precisos, para o espanhol ou outra segunda língua.

Se formos sérios e realmente quisermos entender as coisas, neste ponto da história do budismo no ocidente, teremos que aprender os idiomas asiáticos originais. A menos que realmente tenham um dom para isso, não é necessário que os alunos e praticantes aprendam todo o idioma e tornem-se tradutores. O essencial é aprender os termos técnicos em sua forma original. A maioria dos tradutores, se forem gentis, darão ao menos um glossário dos termos que estão traduzindo ou, como eu, colocarão também o termo original no sânscrito e no tibetano.  Isso ajuda o leitor a saber sobre o que o artigo está falando.

O maior problema em estudar dharma no ocidente e na Ásia moderna, e particularmente no que diz respeito à vacuidade, é que cada livro que você lê traduz as palavras de uma maneira diferente, então você não sabe como combinar duas apresentações. A única maneira de sair disso é aprender os termos originais.  Assim, quando vocês receberem professores visitantes com treinamento suficiente, e ficarem confuso sobre o que eles estão dizendo, vocês podem perguntar de qual termo ele ou ela está falando. Esse é um grande problema que enfrentamos hoje em dia e, apesar de demandar muito trabalho, não sei uma maneira melhor de lidar com isso. Nunca conseguiremos fazer com que todos os tradutores concordem sobre os termos.

Vacuidade no Contexto das Quatro Nobres Verdades

É bom ter uma perspectiva ampla dos ensinamentos. Seguindo essa linha, podemos abordar a vacuidade da perspectiva das quatro nobres verdades.

  • A primeira nobre verdade fala do verdadeiro sofrimento, principalmente do sofrimento que tudo permeia, do fato de que nossos agregados maculados – corpo, mente, emoções, etc. – vem da falta de consciência e são acompanhados de falta de consciência.  Por isso, nossos agregados maculados continuam a se perpetuar com os renascimentos incontrolavelmente recorrentes (samsara). Se não fizermos nada para parar isso, o ciclo continuará para sempre.
  • A causa para o ciclo de renascimentos ser assim, vir da falta de consciência, estar acompanhado de falta de consciência e perpetuar ainda mais a falta de consciência é óbvio. A causa é a falta de consciência da realidade, ou seja, falta de consciência da vacuidade. Essa é a segunda nobre verdade, a verdadeira causa que dá origem a esse sofrimento básico que tudo permeia.
  • A terceira nobre verdade diz respeito ao verdadeiro cessar. O que queremos que cesse? Queremos um verdadeiro cessar da falta de consciência da realidade, da falta de consciência da vacuidade.
  • O que acabará com nossa falta de consciência para que ela não ocorra novamente? Uma verdadeira mente do caminho (caminhos mentais) que compreenda a vacuidade de uma forma não conceitual e assim nos livre para sempre do verdadeiro sofrimento. Essa é a quarta nobre verdade, uma verdadeira mente do caminho, que compreende a vacuidade.

Portanto, podemos ver que as quatro nobres verdades são todas sobre a vacuidade.  Elas resumem o que acontece quando não compreendemos a vacuidade e o que acontece quando compreendemos.

Falta de Consciência

O que é, então, a falta de consciência? Para entendermos, precisamos voltar à pergunta sobre o que é atividade mental. Podemos descrever atividade mental como o ato de criar um holograma de alguma coisa. Essa criação de um holograma mental é o equivalente a tomar conhecimento do objeto, vendo-o, ouvindo-o, pensando sobre ele e assim por diante. Afinal, a única coisa que acontece quando vemos algo é que luz [refletida] pelo objeto bate em células fotossensíveis dos olhos. Isso é traduzido em impulsos elétricos e processos químicos e, então, ocorre a experiência subjetiva individual da consciência de um holograma mental que representa o objeto.

Atividade mental é só isso. Não existe um “eu” separado, separado de todo esse processo, que está fazendo ele acontecer ou usando uma máquina chamada “mente” para fazer ele acontecer. Também não há um “eu” sentado em algum lugar na nossa cabeça, separado da atividade mental e observando ela acontecer. A atividade mental subjetiva individual está apenas acontecendo. No entanto, por causa de nossos hábitos de falta de consciência da realidade, nossa atividade mental produz hologramas mentais de coisas que não existem, como, por exemplo, um “eu” que existe independente dessa atividade mental e que está vendo ou pensando alguma coisa. E o que é terrível nisso é que também parece que é assim, parece que existe um “eu” separado.

A falta de consciência é um fator mental perturbador; é um dos fatores mentais incluídos no agregado que acompanha a criação de um holograma mental. Mais precisamente, a falta de consciência acompanha nossa cognição do holograma mental e é uma maneira de tomar cognitivamente esse holograma – uma certa maneira de tomar consciência dele.

Podemos entender em dois níveis a forma como a consciência toma cognitivamente um objeto. O primeiro é que a falta de consciência simplesmente não sabe que aquilo que aparece para ela não corresponde a nada que seja real. Simplesmente não sabe que aquilo que aparece é algo impossível. O nível mais profundo de entendimento, o nível Prasangika, é que a falta de consciência conhece seu objeto inversamente, ou seja, ela toma seu objeto como se correspondesse a algo real, que é o inverso do que é correto. Não é apenas que ela não saiba que o que aparece é impossível; a falta de consciência realmente toma isso como sendo possível.

Fenômeno de Negação

Quando sabemos que o que aparece não corresponde à realidade, que simplesmente não é possível – que é o que precisamos saber quando compreendemos a vacuidade – estamos lidando com um fenômeno de negação. Na discussão do que existe e do que não existe, o que existe é qualquer coisa que possa ser validamente conhecida. O que não existe pode ser conhecido, como, por exemplo, algo impossível como invasores da quinta dimensão, mas não pode ser validamente conhecido.

O que existe – o que pode ser validamente conhecível – pode ser dividido de várias formas. Uma forma é dividindo entre coisas que são estáticas e coisas que não são estáticas, mas há uma outra forma de dividirmos esta torta. Nossa torta do que existe, do que pode ser validamente conhecido, também pode ser dividido entre fenômenos de afirmação (sgrub-pa) e fenômenos de negação (dgag-pa): fenômenos que são afirmações e fenômenos que são negações. Pense em estático e não estático dividindo a torta horizontalmente e afirmação e negação dividindo verticalmente.

Temos que ter cuidado aqui. Não estamos falando em positivo e negativo no sentido de construtivo e destrutivo. Um exemplo de um fenômeno de afirmação é “um copo” e um fenômeno de negação é “não é um copo”. Quando vemos um objeto, podemos validamente saber “isso é um copo” e também podemos validamente saber “isso não é um copo”. Não precisamos saber nada mais para saber “copo”; porém, para validamente saber “não é copo”, temos que primeiro saber o que é um “copo” para depois saber “não é copo”.

Essa é uma discussão fascinante na qual podemos passar muito tempo, pois podemos chegar na questão de como um bebê aprende. Um bebê primeiro pensa que tudo é comida e põe tudo na boca, mas depois tem que aprender “não é comida”, não é mesmo?

Há dois tipos de fenômenos de negação. Um é “isso não é uma maçã”. O outro é “não há maçãs”. Na terminologia técnica, gosto de chamar de negações implicativas (ma-yin dgag) e negações não-implicativas (med-dgag). Outros tradutores chamam de negações afirmativas e negações não afirmativas.

Não precisamos ir no detalhe técnico neste momento. “Isso não é uma maçã” e “não há maçãs” são ambos fenômenos de negação, mas são diferentes, não são? O primeiro, “isto não é uma maçã”, depois de negar “maçã”, deixa para trás “isto”. Ou seja, nos sobra um “isto”, apesar desse “isto” não ser uma maçã. É outra coisa, que não uma maçã. Enquanto “não há maçãs” não deixa nada para trás depois de negar “maçãs”. Simplesmente não há maças. Essa é a diferença.

O segundo tipo de fenômeno de negação também tem dois tipos: “não há maçãs” e “não há invasores da quinta dimensão”. O primeiro é “não há algo que poderia estar lá, mas não está”; e o segundo é “não há algo que é impossível e nunca poderia estar lá”. A vacuidade é o segundo tipo de fenômeno de negação. Não há um objeto ao qual esse holograma mental de algo impossível esteja se referindo. Uma outra forma de dizer é que a vacuidade é uma ausência total: uma ausência total de um objeto que corresponda ao holograma mental. 

Por exemplo, uma criança tem o holograma mental de um monstro debaixo de sua cama e está com medo dele. Mas não existe tal coisa, não há um monstro; o holograma mental não corresponde a nada que seja real. O medo da criança não é baseado nela ter visto ou ouvido o monstro debaixo da cama e então a mente ter gerado o holograma mental dele. Existe uma total ausência de um monstro debaixo da cama. O holograma mental surgiu simplesmente do medo da criança. Esse é um exemplo de uma negação não implicativa de um objeto que não corresponde à realidade.

No entanto, a vacuidade é uma negação não implicativa de um modo de existência que não corresponde à realidade – por exemplo, que um gato existe como um monstro. Quando uma criança imagina que o gato debaixo da cama é um monstro, o holograma mental não vem de um monstro de verdade debaixo da cama. Ele vem da projeção de um modo de existência impossível em um gato que realmente está lá. A vacuidade, portanto, é a total ausência de um modo de existência que corresponda ao modo de existência que aparece no holograma mental. Nada existe como um monstro; esse é um modo impossível de existência, pois não existem monstros.

Nossos hologramas mentais de coisas impossíveis e maneiras impossíveis de existência são apenas criações dos hábitos de nossa falta de consciência.  Eles não surgem da cognição válida do que realmente existe, como no caso em que validamente vemos ou ouvimos algo através de um holograma mental acurado. Por causa dos hábitos de paranoia, por exemplo, a mente projeta hologramas mentais de todo mundo estar contra nós. Mas isso é impossível. Talvez uma ou duas pessoas estejam contra nós, mas todo mundo não odeia a gente. No entanto, a pessoa com paranoia sente e acredita e que todo mundo está contra ela. Para ela, isso é real; mas, na verdade, não é real. Perceber esse holograma de algo impossível realmente perturba a pessoa; porém ele não corresponde a nada que seja real.

Novamente, para saber que “isso não é uma maçã”, precisamos saber o que é uma “maçã”. Portanto, para saber que “não há essa coisa impossível” precisamos saber o que é “essa coisa impossível”. No entanto, não podemos validamente conhecer algo que é impossível, pois é inexistente. Então como conhecer validamente algo que é impossível para saber que não existe? A solução é que podemos validamente conhecer a aparência de algo impossível, apesar de não podermos conhecer a coisa impossível em si. Por podermos validamente conhecer, dessa forma indireta, o que é impossível, Tsongkhapa, o fundador da tradição Gelug, enfatiza que devemos “conhecer o objeto que está sendo refutado”. Precisamos saber o que está sendo negado para saber que não existe. Se não conseguirmos identificar corretamente aquilo que é impossível nos hologramas mentais que nossa atividade mental faz aparecer, nunca conseguiremos refutar e nos livrar da nossa crença nisso.

Níveis Diferentes de Maneiras Impossíveis de Existência

No que diz respeito à aparência do que é impossível, projetamos muitos níveis diferentes de modos impossíveis de existência; não projetamos apenas um modo impossível. As diferentes posições filosóficas budistas indianas, o assim chamado sistema de “princípios”, nos ajudam muito a estudar, pois nos ajudam a entender de uma forma gradual o que é impossível.

Começamos com o nível mais grosseiro e, uma vez que o tenhamos refutado e nos livrado de nossa crença nele, continuamos refutando níveis cada vez mais sutis de projeção de algo impossível. Seguindo essas escolas em sua ordem gradual, começamos a reconhecer níveis cada vez mais sutis de modos impossíveis de existência. No entanto, só quando nos livramos do primeiro nível de projeção é que ficam claros os outros níveis mais profundos que deixamos de fora. Só então é possível nos livrar do nível seguinte. Sem passarmos por esse processo, é muito difícil.

Se imediatamente formos para o nível de projeção mais sutil e o negarmos, o modo impossível de existência que refutamos poderá soar trivial. Por exemplo, podemos nos perguntar: “Onde está o self? Está no nosso nariz, na nossa axila, em nossas pernas, em nosso estômago”? Quando investigamos, não conseguimos encontrar o self – mas, e daí?! Coloque desta maneira: a questão do self tornou-se trivial. Foi trivializada, pois não passamos por todos os passos anteriores para perceber qual é realmente a questão. 

Por exemplo, quando entramos em casa no inverno e queremos nos despir, primeiro precisamos tirar o casaco; depois precisamos tirar a blusa de lã; depois a camisa e finalmente a roupa de baixo. Não podemos simplesmente tirar a roupa de baixo sem ter passado pelos outros passos. Acho que essa imagem nos ajuda a lembrar da importância de passar por cada um desses sistemas para realmente entender do que eles estão falando, apesar de isso exigir paciência e muito tempo. Cada um dos sistemas é complexo e profundo.

Hoje em dia, há muitos livros disponíveis, são traduções de textos sânscritos e tibetanos que explicam a vacuidade no nível mais profundo. Precisamos nos perguntar para quem esses textos eram originalmente dirigidos. Eles eram dirigidos a monges que estudaram muitos anos. Esses livros não foram escritos como uma introdução da vacuidade para iniciantes! Os tibetanos treinados nos monastérios não os estudam primeiro; eles precisam estudar lógica, debate e vários sistemas de princípios filosóficos por muitos anos antes de terem acesso a esse material. Portanto, apesar de ser um longo processo, é bom começar com a chamada explicação “simples” da primeira escola de princípios filosóficos e tentar digerir as implicações [de suas afirmações] antes de irmos para um nível mais sutil e avançado.

O Exemplo Vaibhashika

Conforme disse Shantideva, se conseguirmos entender um princípio básico em um nível simples, poderemos nos aprofundar cada vez mais. Deixe-me dar um exemplo. A primeira escola budista indiana de princípios filosóficos que estudamos chama-se Vaibhashika. Essa escola afirma que existem dois tipos de fenômenos. Existem as coisas que parecem sólidas e os átomos dos quais elas são constituídas. Tanto os objetos sólidos quanto os átomos que os constituem são descrições corretas do que aparece para nós. Porém, como isso aparece segundo dois pontos de vista diferentes, é chamado de duas verdades.

Se pensarmos profundamente, o nível em que tudo parece ser sólido é o nível superficial, também chamado de nível das aparências; enquanto o verdadeiro e mais profundo fenômeno é os átomos que constituem a matéria. Ambos os fenômenos – objetos sólidos e átomos – são igualmente verdadeiros, mas um é uma verdade mais profunda. Pense nisso. Esta cadeira e o meu corpo, ambos são um conjunto de átomos. Isso significa que são campos de energia e principalmente espaço vazio. No entanto, eu não caio da cadeira. A implicação desses dois fatos é extraordinária.

Agora podemos entender a semelhança uma ilusão. É como uma ilusão o fato da cadeira e do meu corpo serem sólidos; eles parecem ser sólidos, mas na verdade ambos são conjuntos de átomos. Portanto, sua solidez é como uma ilusão. Mas agora precisamos adicionar a frase mais importante, que é “Ainda assim, funciona: eu não caio através da cadeira”.  Se realmente conseguirmos assimilar isso, pensar e digerir que as coisas são como uma ilusão, pois parecem sólidas apesar de não serem, e, contudo, elas funcionam – se conseguirmos aceitar isso e lidar com a vida à luz desse entendimento, sem surtar, estaremos prontos para prosseguir para o próximo nível, de uma ilusão mais sutil.

O próximo nível de ilusão é que meu estado de humor, por exemplo, parece ser sólido, mas, na verdade, é um conjunto de pequenos momentos, que são todos diferentes. Portanto, a solidez de meu estado de humor também é uma ilusão; entretanto, esse mau humor funciona, no sentido de acabar com o meu dia.

A linguagem é ainda mais milagrosa em seu funcionamento, pois tudo o que acontece em um dado momento, tudo o que ouvimos em um dado momento, é uma pequenina parte do som de uma letra de uma palavra. No momento seguinte, esse pequenino som não existe mais; ainda assim, parece que as palavras e sentenças que nós e os outros falamos são sólidas e reais, não parece? Sua solidez é como uma ilusão; entretanto, conseguimos nos comunicar uns com os outros.

Não subestime a Escola Vaibhashika, não pense que ela é tão simples que você pode pular: “Ah, isso é coisa de criança”.  Ela nos oferece um insight extremamente profundo sobre o mundo, que é verdadeiro e que demoramos muito tempo para digerir e integrar à nossa vida. Podemos facilmente entender esse insight intelectualmente como parte do sistema filosófico, mas só quando o tivermos digerido que estaremos emocionalmente prontos para seguir para o próximo nível de projeção. Portanto, o processo de entender que “tudo é como uma ilusão, mas mesmo assim funciona” é como uma escada. Se conseguirmos entender no primeiro degrau da escada que objetos são constituídos de átomos e eventos mentais são constituídos de momentos, então estaremos prontos para seguir para o próximo degrau. Estaremos prontos para entender um nível sutil daquilo que é como uma ilusão, mas funciona. Precisamos começar a subir essa escada pisando primeiro no primeiro degrau. Os outros degraus são muito altos e difíceis de alcançar se partirmos diretamente do solo.

No fim, iremos compreender a vacuidade no nível mais profundo: os hologramas mentais de pessoas, objetos e eventos que aparecem para nós são como uma ilusão. A forma como eles parecem existir não corresponde a nada que realmente exista. Há uma total ausência (uma vacuidade) desse modo impossível de existência. Contudo, apesar de ser como uma ilusão, tudo funciona.

Perguntas

A projeção de uma criança de que há um monstro debaixo de sua cama é o mesmo tipo de fenômeno que a projeção neurótica de um adulto sobre, por exemplo, amar ou odiar uma determinada pessoa? O fato de nós adultos termos sido muito condicionados, enquanto as crianças não, faz diferença?

As projeções de um adulto ou de uma criança são basicamente o mesmo tipo de fenômeno: ambas são ocorrências perturbadoras que surgem automaticamente. Não precisamos ensinar uma criança a projetar um monstro debaixo da cama e não precisamos ensinar um adulto a amar ou odiar alguém. Em um nível mais simples, podemos dizer que todos exageramos, tanto as crianças quanto os adultos. Acrescentamos coisas que não estão lá ou exageramos o que está. Raiva, por exemplo, exagera as características negativas de uma pessoa. Exageramos a importância de “você disse aquilo para mim...!” excluindo todos os outros aspectos de nosso relacionamento com a pessoa, e depois ficamos com raiva.

Também podemos exagerar as qualidades positivas e, por exemplo, nos apegar a uma pessoa com base em um certo olhar que ela nos deu.  Por conta de nossa falta de consciência, não percebemos que esse holograma inflado não corresponde à verdadeira pessoa ou levamos para o lado oposto: “Sim! Essa pessoa é a pessoa mais maravilhosa do mundo”. Na verdade, é só uma pessoa que nos olhou de uma determinada maneira.

A influência de nossa sociedade e cultura pode reforçar nossa tendência automática de exagerar os aspectos positivos e negativas de pessoas, eventos e objetos. Mas mesmo sem essa influência, ainda ficaríamos com raiva ou apegados às coisas por exagerar algum aspecto delas. Da mesma forma, as crianças podem ter sido ensinadas sobre os monstros, [que eles não existem], mas ainda assim elas automaticamente têm medo de barulhos que escutam à noite.

Voltando à pessoa que estava se despindo. Os diferentes sistemas de princípios filosóficos têm o objetivo de nos proporcionar estágios graduais através dos quais podemos nos livrar dos diferentes níveis de nossas próprias projeções?

Sim, é assim que os tibetanos entendem. Historicamente, os sistemas de princípios filosóficos se desenvolveram separadamente na Índia em diferentes épocas e muitas vezes em diferentes lugares. Originalmente, as pessoas e escolas simplesmente seguiam um ou outro desses sistemas, e foi assim que o budismo chegou na China. Algumas escolas budistas chinesas seguem apenas um único sistema indiano. No entanto, mais tarde, esses sistemas foram estudados juntos, como um todo, no currículo de universidades monásticas indianas como Nalanda, e os tibetanos que visitaram esses monastérios entenderam que era um caminho gradual.

Também é importante lembrar que o sistema mais profundo pode não ser adequado a todas as pessoas, como, por exemplo, nós mesmos. Pode ser que eventualmente ele seja bom para nós, mas por enquanto precisamos perceber que esta escola e explicação é suficiente, pois funciona para nós agora e é tudo o que podemos administrar no momento. Não tem problema, especialmente se estivermos cientes de que existem níveis mais profundos.  

Precisamos lembrar que todos os níveis são bons e que podemos progredir muito em cada um deles. Também é importante não forçar no estudo e tentar ir além daquilo para o qual estamos intelectualmente ou emocionalmente preparados. Além disso, podemos ler os textos Prasangika antes de estarmos prontos e eles podem apontar as conclusões absurdas que se pode chegar com as crenças dos sistemas menos sofisticados, mas jamais pense que essas escolas são bobas. Conforme dizia meu professor Serkong Rinpoche, pensar assim é um sinal de arrogância. O Buda ensinou todas elas para ajudar as pessoas.

Quando estamos sob pressão e projetando muito, o que podemos fazer para parar a corrente de projeções?

Existem medidas provisórias e definitivas. Compreender a vacuidade e aplicar essa compreensão é uma medida definitiva. Conforme expliquei anteriormente, precisamos de tremenda preparação, força positiva, concentração e assim por diante, para conseguirmos aplicar um entendimento correto da vacuidade. Antes, aplicamos medidas preventivas, e a mais simples é focar na respiração. Por que? Porque isso nos traz de volta ao corpo e é algo relativamente regular e constante. A respiração nos aterra e evita que nos percamos em fabricações mentais. Recomenda-se isso como uma medida preventiva básica. Isso não irá resolver o problema para sempre, mas nos ajuda a acalmar, o que precisamos muito.

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