A Análise de Quatro Pontos: Nem Um, Nem Muitos
Já falamos sobre a vacuidade ou o vazio no budismo, particularmente no que diz respeito à ausência de uma identidade verdadeira em nós - a ausência de um falso "eu" impossível - e conversamos um pouco sobre como meditar. Agora vamos juntar essas duas coisas e analisar uma das maneiras mais comuns de meditar sobre a vacuidade. Geralmente chamamos de "análise de quatro pontos", que é usada com uma linha de raciocínio, chamada "nem um, nem muitos". O primeiro ponto é reconhecer o objeto a ser refutado; o segundo é se convencer de que a linha de raciocínio para refutá-lo, ou seja, “nem um, nem muitos”, realmente o refuta; o terceiro ponto é refutar "um"; e o quarto refutar “muitos”. A conclusão é: como o falso “eu” não é um nem muitos, o falso “eu” não existe. O objetivo da linha de raciocínio é chegarmos a essa conclusão. Quando chegamos a essa conclusão, tentamos nos discernir à luz do que entendemos e depois tentamos estabilizar essa visão.
Já falamos do primeiro ponto, ou seja, reconhecer o objeto a ser refutado, em discussões anteriores. Para simplificar, vamos usar a ideia de um falso "eu" como uma "coisa sólida". Com uma visão enganosa em relação a uma rede transitória, podemos identificar esse falso "eu" com alguma parte dos agregados, como nosso corpo, e depois pensar: "Sou atraente". Ao fazer isso, estamos vendo as coisas como se fossem sólidas, como se tudo tivesse uma linha sólida ao seu redor, como num livro de colorir infantil. Pensamos que as coisas existem como se houvesse linhas sólidas ao redor delas: "Este sou 'eu'. Este é o ‘meu’ corpo. Essa é a ‘minha’ mente” e assim por diante.
Se as coisas existissem dessa maneira, só poderia haver uma ou muitas coisas. Ou há uma coisa com uma linha ao seu redor ou há muitas coisas com linhas ao redor delas. Se não há nem uma nem muitas coisas com linhas ao redor, então não existe algo com uma linha ao redor. Essa é a linha de raciocínio, colocada de uma forma muito simples.
É preciso refletir um pouco para entender esse racional e convencer-se de que ele prova o que diz provar. Por exemplo, se há baratas no quarto e nenhuma maneira de se entrar ou sair, há apenas duas possibilidades: ou há apenas uma barata no quarto ou há muitas baratas no quarto. Não há outra possibilidade. Se não conseguimos encontrar nem uma barata nem muitas baratas no quarto, qual é a conclusão? Poderíamos ficar paranoicos e dizer que as baratas estão se escondendo, mas a conclusão lógica é que estávamos enganados. Não há baratas no quarto.
Essa é a mesma linha de raciocínio que usamos para coisas existentes com linhas ao seu redor, como um "eu", um "corpo", uma "mente" e assim por diante. Ou existe uma dessas coisas ou existem muitas, e se nem a primeira e nem a segunda opção for verdadeira, essa coisa não existe. Não é tão difícil de entender.
Mas, temos que entender claramente o que "um" e "muitos" significam. "Um" significa totalmente idêntico – uma única coisa. Se estamos falando de palavras, por exemplo, "Alex" e "Alex" são um; "Alex" e "Alexander" são dois - são muitos. Não importa que estejam se referindo à mesma coisa, são duas palavras.
O que são as baratas em nosso exemplo? As baratas são coisas com linhas sólidas ao redor, ou seja, esse "eu" e os agregados. Elas são uma única coisa? Elas são idênticas? Por exemplo, quando pensamos "sou sexy", estamos identificando "eu" com um corpo sexy, que faz parte do agregado das formas. Se "eu" e o corpo sexy fossem totalmente idênticos, todos que me vissem deveriam ver um corpo sexy. Isso significa que, mesmo quando o cachorro ou o bebê me vissem, eles me veriam como um corpo sexy. Mas eles não veem. Quando eu estivesse bêbado e vomitando, todo mundo também me veria como um corpo sexy e nada mais. Isso também não acontece.
Outro exemplo de "um" seria uma mulher que se identifica com ser "mãe". Ela acredita que "eu" e "mãe" são a mesma coisa. Pensando assim, mesmo quando seu filho tem trinta anos, ela ainda precisa ser mãe e dizer ao filho o que vestir e o que comer. Ela tem que ser mãe de todo mundo, até de pessoas que não querem que ela seja mãe delas. Isso pode se tornar bastante neurótico. Portanto, podemos concluir que um “eu” com uma linha sólida ao redor e alguma coisa nos agregados com uma linha sólida ao redor não podem ser a mesma coisa.
Então precisamos considerar: “Talvez haja muitas coisas com linhas sólidas ao redor; talvez haja muitas baratas no quarto.” Se houvesse muitas coisas com linhas sólidas ao redor, deveria haver um “eu” com uma linha ao redor aqui, um corpo com uma linha ao redor ali e uma mente com uma linha ao redor lá, e assim por diante - tudo totalmente separado, com linhas sólidas ao redor e sem relação entre si. No livro de colorir das crianças, existem muitos objetos separados com linhas ao redor. Eles não estão interagindo um com o outro; eles estão apenas lá. Isso não é realista. Nós temos um relacionamento com o corpo. Não é algo completamente separado. Quando cortamos o corpo, dizemos que nos cortamos, não é mesmo? Nós reagimos. Existe uma relação. Sentimos dor com base nisso. Não é como se existissem muitas coisas separadas com linhas ao redor delas, como muitas baratas no chão do quarto.
Absorção Total na Vacuidade
Se não há uma, nem muitas baratas no quarto, temos que concluir que não há baratas no quarto. Convencidos da verdade, examinamos cuidadosamente o quarto e descobrimos que não há baratas. Vemos uma ausência de baratas e depois focamos nessa ausência. Este ponto não é tão fácil. Não estamos focando no chão do quarto; estamos focando no fato de que não há baratas no quarto. Em outras palavras, não vemos nada lá. Se fizermos isso direito, eventualmente nada aparecerá, exceto essa ausência - como o espaço.
Há talvez um exemplo mais fácil, no que diz respeito a projetar uma identidade verdadeiramente existente em outra pessoa. Estamos sempre procurando pela princesa ou príncipe encantado, a companheira ou companheiro perfeito. Projetamos isso em alguém e depois ficamos com raiva quando ele ou ela nos decepciona por não agir como a companheira ou companheiro perfeito. A conclusão desse tipo de análise da vacuidade é que não existe uma princesa ou príncipe encantado. É um belo conto de fadas, mas não se refere a nenhuma pessoa real.
Depois de percebermos esse vazio ou ausência de uma princesa ou príncipe encantado, não é que, nesta fase da meditação, estamos nos concentrando na pessoa e vendo que ela não é uma princesa ou príncipe encantado. Isso vem depois. Aqui, com total absorção na vacuidade, estamos focando no fato de que não há algo como uma Princesa ou Príncipe Encantado. É como se experimentássemos o estouro de uma bolha. Percebemos que nossa projeção era apenas uma fantasia de algo impossível; algo que simplesmente não existe, nunca existiu e nunca existirá. Percebemos que estamos batendo a cabeça contra a parede por nada. Acreditar em princesa ou príncipe encantado causou a nós e à outra pessoa muitos problemas e obstáculos no relacionamento. Agora a bolha está estourada e vemos que não existe tal coisa. É vazio e, portanto, não há mais blocos, nada atrapalhando o movimento, a atividade ou o relacionamento, porque não estamos projetando essa maneira impossível de existir na outra pessoa.
Embora seja difícil, tentamos focar apenas nessa ausência, que é como um espaço vazio. Com total absorção nessa vacuidade - que muitos tradutores chamam de "equilíbrio meditativo na vacuidade" -, simplesmente focamos nessa ausência com perfeita compreensão, convicção e concentração. Em uma linguagem mais simples, sentimos essa verdade profundamente. Há uma grande diferença entre ver que não há baratas no quarto e a incrível sensação de alívio quando realmente internalizamos isso: "Não há baratas aqui, não preciso ter medo". Nós digerimos o fato.
Se nossa absorção total se tornar um pouco obscura, precisamos procurar novamente. "Ah, sim, não há" e depois internalizar mais isso. Em outras palavras, precisamos alternar os dois aspectos da meditação que discutimos antes: meditação de discernimento e estabilização, ambas focadas na vacuidade que é como o espaço.
Realização Subsequente
Após um período de total absorção na vacuidade, continuamos nossa prática com a fase de realização subsequente. Essa fase geralmente é traduzida como o "período pós-meditação", mas essa tradução não é muito precisa. Essa fase da prática pode ocorrer enquanto ainda estivermos meditando ou entre as sessões de meditação. Ela se refere simplesmente ao que percebemos, ou à realização que alcançamos, depois que saímos da absorção total na vacuidade que é como o espaço.
Durante a absorção total, percebemos – continuando com nossa analogia - que não há baratas no quarto. Focamos nessa ausência, que é como focar no espaço: uma ausência de impedimento para a existência espacial de alguma coisa. Durante a fase de realização subsequente, nos concentramos em ver o quarto sem nenhuma barata e percebemos que, embora pareça haver baratas nele, o quarto que parece ter baratas é como uma ilusão. É como uma ilusão, no sentido de que o modo como aparece não corresponde ao modo como existe. O quarto, no entanto, é apenas como uma ilusão, não é o mesmo que uma ilusão. O quarto não é uma ilusão: o usamos todas as noites para dormir.
Da mesma forma, durante a fase de realização subsequente, focamos em nossa companheira ou companheiro com o entendimento de que ela ou ele não existe como uma princesa ou príncipe encantado, embora pareça existir assim. Em outras palavras, ao focar em nosso companheiro, entendemos explicitamente que ele ou ela é um ser humano, como todo mundo, e implicitamente entendemos que ela ou ele não é a princesa ou príncipe encantado. Eles são uma pessoa que apenas tem a aparência ilusória de ser um príncipe ou princesa. Mas, nosso parceiro ou parceira é apenas como uma ilusão, pois parece existir de uma maneira em que não existe. Nosso parceiro ou parceira não é uma ilusão.
O mesmo acontece com o "eu" convencional. Estou sentado aqui e conversando. Posso ter cometido um erro, mas sou um ser humano: os seres humanos cometem erros. O que está ausente é que sou verdadeiramente um idiota que nunca consegue acertar nada. A primeira realização, durante a fase de absorção total, é que não existe um "eu" que seja um "idiota total". A segunda realização, durante a fase de realização subsequente, é que existe o "eu" convencional e eu disse algo errado, que surgiu de causas e condições, carma e assim por diante. Nós não estamos negando o carma. Não estamos negando o que realmente está acontecendo. Isso seria niilismo. A realidade convencional de pessoas cometendo erros, no entanto, é desprovida de existir como "pessoas que são idiotas", com uma grande e sólida linha ao redor. Embora o que dissemos possa ser convencionalmente considerado uma idiotice, isso não nos faz existir concretamente como um "verdadeiro idiota".
Como é o “eu” convencional? É como uma ilusão. Parece existir como um idiota, com uma grande linha sólida ao seu redor, mas ele não existe dessa maneira, nunca existiu e nunca existirá. O "eu" convencional, que disse algo errado, é apenas aquilo a que a palavra "eu" se refere, quando rotulada em um conjunto de agregados, que incluem falar incorretamente. Esse "eu" convencional é como uma ilusão: parece existir como um idiota concreto, mas idiotas concretos não existem.
Este é um ponto crucial. Coisas convencionais, como por exemplo o "eu", são como uma ilusão, não são uma ilusão. Há uma grande diferença. Elas são como um sonho, mas não são um sonho. Há uma grande diferença em dizer algo cruel a alguém em sonho e na vida real, não há?
Esses são os passos da meditação sobre a vacuidade, como o espaço e como uma ilusão.
Perguntas
A Base para o “Eu” Convencional
Você pode falar mais sobre a base para se rotular o “eu” convencional? Você disse que é um aspecto da mente.
Deixe-me tentar explicar isso usando alguns exemplos. Minha mãe tem a doença de Alzheimer e está nos estágios finais. Quem é minha mãe? A memória dela se foi; seu reconhecimento de sua família se foi. Ela provavelmente nem sabe quem é. Não sei se ela sabe mais o próprio nome. Sua personalidade se foi. Quem é ela? Ela ainda é minha mãe? Sim, temos que dizer que ela ainda é Rose Berzin. A personalidade, a memória e todas essas coisas se foram, mas ainda deve haver algo que seja uma base para a rotulagem correta dela como minha mãe, certo? Ela ainda está viva; ela não está morta.
A mesma coisa pode acontecer com o corpo. Uma pessoa pode perder um braço ou uma perna; pode sofrer um derrame e ficar paralisada; pode ser terrivelmente queimada em um incêndio - pode perder muito do corpo e até ter partes substituídas, como um coração ou um fígado. Ela ainda é sua mãe? E se estiver em coma? Sua mãe ainda será sua mãe se estiver em coma? Você há de dizer "Sim, essa ainda é minha mãe", mesmo que a mente mais grosseira tenha sumido. E se ela estiver com morte cerebral, mas seu coração continuar batendo e sua respiração for mantida artificialmente com uma máquina de suporte à vida? Isso vai se tornando muito complicado, pois nem todos concordam com o limite após o qual alguém está realmente morto.
Essa questão sobre a base definitiva para rotular um “eu” convencional e até quando ele ainda está presente e quando se foi, talvez fique um pouco mais clara quando vemos um cadáver. A maioria de nós no Ocidente não vê cadáveres, exceto em um estado não natural, deitado em um caixão chique, todo limpo e usando maquiagem e roupas elegantes. Isso é uma pena. É verdade, não é agradável ver um cadáver em sua condição natural, mas o Buda aprendeu muito vendo um cadáver. Nós também poderíamos aprender.
Eu tive muita sorte de ter tido uma experiência na Índia cerca de dez dias atrás, quando um ocidental que morava em Dharamsala morreu. Ele dormiu com um fogão a carvão aceso no quarto e se esqueceu de deixar a janela aberta; morreu dormindo, devido ao monóxido de carbono. Embora eu não o conhecesse pessoalmente, coube a mim e a alguns outros membros mais antigos da comunidade ocidental ir ao necrotério, buscá-lo e crema-lo. As autoridades indianas já haviam realizado a autópsia. Então lá estava o homem, deitado nu no chão de concreto dentro de uma cabana de concreto, como um peixe morto, com o estômago aberto e meio que grosseiramente costurado de volta com um barbante, e cheirando horrivelmente. Eles não fizeram nada para preservar o corpo. Tivemos que buscá-lo, carregá-lo até o jipe e sentar ao lado dele enquanto dirigimos para o local da cremação. Ele realmente parecia um peixe morto, tinha até cores semelhantes. Foi realmente incrível. Tivemos que tirá-lo do jipe, jogá-lo em uma pilha de madeira e queimá-lo, como papel ou lixo.
Achei que foi uma experiência incrivelmente útil, por mais terrível que tenha sido. Ficou muito claro em minha mente que essa pessoa não era seu corpo, e quão fortemente nos identificamos com nosso corpo. Todas essas coisas que discutimos começaram a ficar realmente relevantes e vivas. Quem era esse cara? Era alguém que vivia dentro daquele corpo e se foi? Essa é uma das visões enganosas e falsas, não é? Ele era alguma coisa que tinha entrado nesse corpo e feito uso dele, como usamos um computador, e que agora faz uso de outro corpo? Qual era o relacionamento entre essa pessoa e esse corpo? Torna-se realmente muito interessante. Quando você vê um cadáver em decomposição em seu estado natural, sua experiência é de um monte de lixo. Ninguém quer um cadáver por aí. Você quer queimá-lo o mais rápido possível, porque cheira muito mal.
A base definitiva para se rotular o “eu” convencional não é esse corpo; não é a memória; não é o conjunto dessas coisas. Como eu disse, quando vemos um cadáver ou visitamos alguém com Alzheimer, isso começa a se tornar mais óbvio. Uma pessoa pode perder muitas partes e ainda ser validamente rotulada como um "eu" convencional, enquanto um cadáver não é mais um "eu". Mesmo quando uma pessoa não tem a consciência de um “eu”, como quando está em coma, ainda é uma pessoa; ainda é um "eu". Talvez ainda tenha um senso inconsciente de "eu", mas isso é difícil de dizer, não é? Ainda temos um sentimento de "eu" quando estamos sonhando, mas e quando estamos dormindo sem sonhar? Eu não sei.
A discussão do "eu" convencional no budismo, no entanto, não se refere ao fato de uma pessoa estar consciente ou ter a sensação de ser "eu". O budismo trata apenas da questão do "eu" convencional poder ou não ser validamente rotulado em algo que nunca cessa e que continua, sem interrupção, de uma vida para outra, sem começo nem fim, até a iluminação. Como discutimos anteriormente, ninguém precisa rotular ativamente esse “eu” - o ato de rotulá-lo é irrelevante para a discussão. O "eu" convencional é simplesmente aquilo a que a palavra ou rótulo ou conceito "eu" se refere, quando rotulado ou imputado em uma base apropriada para a rotulagem. O "eu" precisa ser validamente imputável, não necessariamente validamente imputado por alguém.
Em resposta à sua pergunta, o budismo afirma que o nível mais sutil da mente ou atividade mental, juntamente com a energia mais sutil de sustentação da vida, é o que continua incessantemente de uma vida para a outra e, finalmente, esta é a base para se rotular o “eu.” Na classe mais alta do tantra, o anuttarayoga, esse nível sutil da mente ou atividade mental é chamado de “clara luz” - a “mente de clara luz”.
Lembranças de Vidas Passadas
Às vezes ouvimos de grandes mestres tibetanos que eles conseguem se lembrar de suas vidas anteriores. Como pode?
Isto é muito interessante. Antes de mais nada, temos que olhar para as vidas anteriores sem pensar nelas como minha vida anterior. Não é como se houvesse um "eu" sólido que possuísse vidas anteriores e sempre mantivesse a mesma identidade fundamental, como pensar "o Alex teve vidas anteriores". Temos que ter vidas passadas e futuras de forma totalmente impessoal, embora o contínuo de vidas de cada pessoa seja individual. Talvez seja útil pensar em vidas passadas como cenas anteriores de um filme. Assim como poderíamos rotular "eu" nas cenas que estão acontecendo agora, também poderíamos rotular "eu" nas cenas que estavam acontecendo a uma hora atrás ou em outro corpo em outra vida.
Agora, precisamos trazer para essa discussão a visão budista de como a memória funciona. O que o budismo entende como memória não está se referindo ao armazenamento de informações, mas à recordação. O mecanismo é o mesmo que o dos hábitos. Não encontrei uma boa tradução da palavra tibetana para "hábito", porque ela também contempla o modo como a memória funciona. Recordar-se de algo é semelhante a repetir um hábito. Nos dois casos, experimentamos uma série de eventos semelhantes.
Por exemplo, podemos ter fumado em muitas ocasiões passadas. Com base nisso, podemos rotular ou imputar o hábito de fumar cigarros. Não é que tenhamos fumado o mesmo cigarro todas as vezes, ou que feito exatamente o mesmo gesto ao segurar o cigarro. Fumamos cigarros diferentes e fumamos de maneira diferente. Mas cada cigarro que fumamos era semelhante aos anteriores, e cada ato de fumar era semelhante aos anteriores. Com base nesse hábito, talvez fumemos outros cigarros semelhantes no futuro.
Da mesma forma, vivenciamos algo uma vez, digamos, encontrar alguém e, mais tarde, em outras ocasiões, nos recordamos desse encontro. Nós não temos exatamente o mesmo pensamento sempre que recordamos do encontro, não é mesmo? Temos um pensamento similar a cada vez - algo que se assemelha a esse encontro, mas não o encontro em si. Com base nessa sequência de ocasiões em que pensamos algo semelhante em relação ao encontro, podemos rotular ou imputar uma recordação. É o mesmo que repetir ações semelhantes, e com base nisso, rotular um hábito.
Da mesma forma, é possível nos recordarmos de algo semelhante que aconteceu, não apenas nesta vida, mas também em uma vida anterior. Isso ocorre porque há uma continuidade ininterrupta da mente mais sutil e do "eu" convencional. Hábitos, e recordações como uma subcategoria dos hábitos, têm como base para o rotulamento essa continuidade da mente mais sutil, bem como o "eu" convencional rotulado nessa continuidade, e, portanto, recordações e hábitos têm o mesmo tipo de existência que o “eu” convencional. Eles não são sólidos nem encontráveis. Eles não estão fisicamente armazenados na mente mais sutil ou no “eu”. As recordações são meros fenômenos não estáticos imputáveis que não são formas de fenômenos físicos nem maneiras de se estar ciente de alguma coisa.
Lidando com a dor
Se não existe um “eu” sólido, não deveríamos sentir dor como sentimos, ou deveríamos? Poderíamos pensar: "É apenas dor" e não ficarmos tão deprimidos. Há sofrimento, mas não um sofredor.
Quando você bate o pé contra uma mesa no escuro, há duas maneiras de lidar com isso. Uma é pular para cima e para baixo e fazer disso uma grande coisa. Oh! Pobre de MIM! Eu bati meu pé! Não é justo!” É como se você quisesse que sua mãe viesse beijá-lo e assim fizesse a dor passar. Por trás dessa maneira de reagir, está o apego a um “eu” sólido verdadeiro. A outra maneira de lidar com isso é: você bate o pé, dói e você não faz disso um drama. Você apenas pensa: “Ok, eu bati meu pé. Isso realmente dói; e daí?” Então você continua fazendo o que estava fazendo sem projetar uma grande linha sólida em torno do “eu”, do acidente ou da dor.
No entanto, convencionalmente falando, houve a batida do pé. Não é que nada tenha acontecido. Então, você calmamente verifica seu pé para ver se está sangrando ou se quebrou um osso. E se você precisar de tratamento médico, busque esse tratamento.
Quando sentimos muita dor física durante um longo período de tempo, como nos casos de câncer, é muito mais difícil lidar com isso, porque a reação de ficar deprimido ou zangado sempre surge. Como podemos nos livrar dessa reação compulsiva?
Eu acho que é a mesma coisa. Existem muitas maneiras de lidar com a dor do câncer. A meditação da atenção plena na respiração é muito útil. Ela confirma que estamos vivos e nos conecta com algo mais estável e duradouro que a dor. Se formos muito fortes em nossa prática Mahayana, também podemos fazer a meditação do dar e receber, o tonglen, imaginando que assumimos a dor do câncer de todos os outros seres e lhes damos calma, felicidade e saúde. Mas essa é uma prática muito avançada e difícil de ser realizada com sinceridade. É mais fácil fazer essa prática quando estamos sentados aqui e sem muita dor.
Também poderíamos tentar fazer a meditação da vacuidade como uma maneira de lidar com a dor crônica. O que está acontecendo aqui? Existe um "eu" sólido com uma grande linha ao redor; uma doença sólida com uma grande linha ao redor; uma dor sólida com uma grande linha ao redor? Essas coisas são como três baratas? Ou não são sólidas? Quando pensamos: “Pobre de mim, a vítima! Eu sinto essa dor e é terrível!” O primeiro ponto é reconhecer o que deve ser refutado: o verdadeiro “eu”, que seria a vítima, essa verdadeira dor e esse desastre. Quando entramos na mentalidade de sermos uma vítima, isso só faz adicionar uma quantidade enorme de sofrimento mental à dor física. Precisamos perceber que não existe uma vítima sólida. Essa percepção pode contribuir para nos libertarmos do estado físico e mental de tensão que acompanha a mentalidade de vítima.
Acho que podemos entender isso com outro exemplo. Quando tomamos uma injeção, podemos ficar com medo, pensando: "Isso vai doer muito!" Então nossos músculos se tencionam e, com certeza, dói muito mais. Se, em vez disso, pensarmos: "vou tomar uma injeção. Ok " e ficarmos relaxados, nossos músculos estarão relaxados e, sim, a injeção irá doer, mas será uma dor suportável e deixaremos passar.
É a mesma coisa com qualquer tipo de dor. Quando estamos nos agarrando a um "eu" sólido, ficamos literalmente tensos. Estamos nos agarrando. Se estivermos assim e sentados na cadeira do dentista, será uma tortura. Se ficarmos relaxados, será muito melhor. A compreensão da vacuidade nos ajuda com isso. Podemos conseguir algo semelhante meditando sobre a impermanência. Podemos perceber que não vamos ficar nesta cadeira de dentista pelo resto da vida, isso nos ajuda a relaxar. Mas a meditação da vacuidade é muito mais forte.
Acho que todos nós aqui somos talvez muito fracos para começar com um método tão sofisticado de meditação, como a meditação na vacuidade. Quando alguém simplesmente permanece alegre, independentemente do sofrimento, há um elemento nesse estado de espírito que já superou o sofrimento.
Sim. Existem muitos métodos nos ensinamentos do lojong, ou treinamento da mente. Se batermos o pé, podemos pensar: "Fico feliz por não ter quebrado o pé". Ou: "Fico muito feliz por ter me livrado de algum obstáculo cármico pior que poderia ter surgido. Agora o carma negativo está terminado, e de uma maneira não tão ruim.” Existem muitas maneiras de transformar o evento.
Isso nos leva ao fim do nosso curso. Não tivemos tempo para realmente fazer a meditação da vacuidade juntos e desculpem-me por isso, mas acho que a descrevemos o suficiente para poderem praticá-la.
Que qualquer potencial positivo e entendimento resultante dessa explicação e de escutar essa explicação atue como uma causa para que todos alcancem a iluminação, para o bem de todos. Obrigado.