Mal-entendidos sobre o Tantra
Achar Que o Tantra e o Dzogchen são Caminhos Fáceis para a Iluminação
São muitos os mal-entendidos no que diz respeito ao tantra. E frequentemente surgem por causa da forma inteligente com que o tantra é divulgado. Por alguma razão, muitos professores tibetanos, e ocidentais, vendem o tantra e o dzogchen como caminhos fáceis, caminhos rápidos, caminhos mais elevados. Por causa desse marketing, seus alunos ficam com uma ideia equivocada e pensam que o tantra e o dzogchen são realmente caminhos fáceis.
Mas por que as pessoas são atraídas por práticas que acham que serão rápidas e fáceis? Conforme destacou um de meus professores, pode ser porque são preguiçosas e não querem fazer todo o trabalho necessário; ou porque querem um atalho. Querem iluminar-se gastando pouco, da mesma forma que procuramos por ofertas quando fazemos compras. Muitas vezes temos essa mentalidade quando analisamos os vários métodos do Dharma: “O que será que está em oferta essa semana?”
A realidade é que a prática do tantra e do dzogchen são tremendamente sutis e difíceis, e requerem uma quantidade enorme de trabalho árduo. Para começar, essas práticas especificam que, antes mesmo de iniciar, você necessita fazer as práticas preliminares, o ngondro, com 100.000 ou mais prostrações. Isso não é muito fácil - pode levar anos!
Achar Que 100.000 Prostrações Farão Milagres
Mesmo que aceitemos que precisamos fazer as práticas preliminares, como as prostrações, é um equívoco achar que farão milagres. Essa falsa impressão também pode ter vindo da divulgação das práticas ou simplesmente por superestimarmos o poder das preliminares. “Eu estou tão desesperado. Apenas diga-me o que fazer. Ok, jogo-me no chão 100.000 vezes, repito algumas sílabas em um outro idioma 100.000 vezes, e então todos os meus problemas serão resolvidos. Ótimo, vou fazer isso.” Isso é um engano. Mas, por desespero, fazemos e esperamos que no final alguma cura milagrosa aconteça. E não acontece. Então nos desiludimos completamente com a prática do Dharma e deixamos para lá.
Agora, é claro que as práticas de purificação podem ser eficazes, mas não se durante 99.9% do tempo sua mente estiver vagando, sem foco no que você está fazendo e não houver nenhum sentimento ou compreensão por trás, ou você não tiver uma motivação forte e adequada. Para que essas práticas sejam eficazes - e mesmo quando são eficazes elas não produzem milagres - é preciso fazê-las corretamente, com total concentração, motivação totalmente correta, uma profunda e sincera sensação de estar dando um direção segura em sua vida (tomando refúgio), uma boa compreensão do que isso significa e assim por diante. Isso não é fácil, é?
Também é um erro terminar as 100.000 repetições e pensar “Ok, já cumpri com minha obrigação. Agora vamos começar a parte boa.” De certa forma, essa atitude é quase como barganhar com as práticas preliminares, como se elas fossem uma taxa de entrada. Pensando apenas em completá-las, você não percebe o poder que podem ter para purificar alguns potenciais negativos e gerar força positiva — ao fazê-las, você está continuamente reforçando a direção positiva indicada pelo Buda, Dharma e Sangha, por exemplo. “Esta é a direção que estou tomando.” Ou, continuamente gerando bodhichitta. Essas práticas preliminares são muito boas, muito úteis.
Fazer Práticas de Ngondro Prematuramente, sem uma Compreensão Básica do Dharma
Além disso, é um erro fazer o ngondro antes de se ter uma compreensão básica do budismo, e acabar considerando-o apenas como uma maneira de nos livrarmos de nossos pecados, como se esse fosse o seu propósito. No ocidente, às vezes você conhece um professor de Dharma e imediatamente, antes de você receber qualquer ensinamento ou desenvolver um entendimento, ele lhe diz, “Faça 100.000 prostrações!” E o que é surpreendente é que algumas pessoas realmente fazem!
Aí você se pergunta, “Por que fazem?” Geralmente é por desespero, achando que vai acontecer algum milagre. Ou, como em um culto, as pessoas desistem de se responsabilizar por suas vidas e simplesmente obedecem o professor poderoso, como no exército. Isso é um erro: obedecer sem questionar e achar que sua relação com o professor deve ser como a de um soldado com seu comandante.
É muito importante não perdermos o senso crítico. Sua Santidade o Dalai Lama sempre enfatiza isso. Seja crítico. Isso não significa criticar, embora a palavra possa soar assim em português. “Criticar” pode ter a conotação de desdenhar alguém com arrogância, com uma atitude agressiva, negativa e pensar “Eu sou bem melhor, e você é terrível” mas ser “crítico” significa examinar o que está acontecendo. Portanto, se formos fazer as práticas do ngondro, é importante termos uma boa fundação nos ensinamentos budistas básicos e compreendermos o que estamos fazendo e por quê estamos fazendo. Isso não significa apenas saber todos os detalhes de uma visualização complexa, mas ter clareza quanto ao estado mental que estamos tentando gerar e deixar enraizado.
Fazer Práticas Tântricas Prematuramente
Um equívoco ainda maior é fazer práticas tântricas prematuramente, mesmo quando começamos pelo ngondro. Por exemplo, nas tradições que dão forte ênfase às práticas preliminares, existe um ngondro compartilhado, ou comum, que são os quatro pensamentos que transformam a mente e nos conduzem ao Dharma. Eles cobrem basicamente o mesmo material encontrado no lam-rim (o caminho gradual). Só depois de fazermos as preliminares comuns que devemos partir para as preliminares incomuns, que são as prostrações e assim por diante. Pular etapas, trivializar ou minimizar as preliminares comuns (os ensinamentos básicos do lam-rim), passando imediatamente às prostrações e demais preliminares incomuns pode nos levar a uma atitude irrealista em relação as prostrações, ao mantra de 100 sílabas, etc. Depois de um tempo, você começa a questionar, “Por que afinal estou fazendo isso? Qual é o sentido de tudo isso?” Mas, se antes de começar essas práticas, você tiver pelo menos um pouco de clareza sobre a importância de se gerar força positiva e eliminar potenciais negativos (ou pelo menos minimizá-los) a fim de se alcançar um determinado objetivo espiritual, então as preliminares passarão a fazer um certo sentido.
O problema aqui não é apenas começar prematuramente a prática do ngondro, mas começar o tantra prematuramente. E por que isso acontece com tanta frequência? Pode ser porque pedimos a lamas visitantes que deem iniciações mesmo quando nosso grupo não está pronto para fazer as práticas. Mas também pode ser porque os lamas visitantes oferecem iniciações mesmo quando a audiência é totalmente despreparada. Portanto, não somos de todo responsáveis por esse equívoco de enfatizar demais o tantra e apresentar prematuramente a prática para a maioria das pessoas.
Por que pedimos para tomar uma iniciação? Pode haver muitas razões. Podemos achar que é algo elevado, que isso é que é prática de verdade, que é exótico. Pode ser que as pessoas que administram o centro budista achem que isso atrairá mais pessoas, ou seja, que arrecadarão mais dinheiro para que possam pagar o professor visitante e sustentar o centro. Assim, também pode ser por razões financeiras; o que é um infortúnio.
Os professores mesmo podem motivar-se pensando, “Ok, não irão praticar, mas isso plantará sementes para suas vidas futuras.” Bem, a maioria dos ocidentais não acredita em vidas futuras, portanto isso é um engano. Pode ser, também, que os professores não compreendam que os ocidentais não têm a mesma base que os tibetanos para poder praticar o tantra de forma eficaz. E pode ser que estejam sendo pressionados a levantar fundos para os monastérios e monges de seu lugar de origem .
Pode haver muitas razões para pedirmos iniciações ou para professores oferecerem-nas. Mas o que sempre se recomenda é, se houver um professor visitante, pedir os ensinamentos básicos. E, se quisermos ensinamentos mais avançados, devemos pedir os ensinamentos avançados do sutra, sobre bodhichitta ou vacuidade (vazio).
Achar Que se Tivermos Recebido uma Iniciação Tântrica Prematuramente Estamos Fadados a Ter Que Fazer a Prática
O fato é que muitas pessoas recebem iniciações tântricas antes de estarem suficientemente preparadas para fazer a prática. Mas algumas acham que, se não fizerem a prática, são maus budistas e podem ir para algum tipo de inferno. Assim, tentam manter a prática, mas com quase nenhuma compreensão do que estão fazendo ou do motivo pelo qual estão fazendo, e logo desenvolvem uma atitude hostil perante a prática. Entretanto, é um erro pensar que as únicas alternativas são práticas torturantes ou torturas no inferno.
Serkong Rinpoche dava um conselho muito útil para essas pessoas. Ele dizia que, nesses casos, deve-se considerar que tomar a iniciação é como plantar, no continuum mental, sementes para o futuro. Se, mesmo depois de analisar honestamente a situação, você ainda achar não está pronto para iniciar as práticas, imagine-se colocando-as em uma prateleira bem elevada em sua mente. Mas faça isso com muito respeito e com a intenção sincera de tirá-las da prateleira e praticá-las quando estiver mais preparado.
Achar Que Podemos Atingir a Liberação ou a Iluminação sem Superarmos Questões Biológicas, Principalmente no Que Diz Respeito à Libido
É um equivoco achar que podemos atingir a liberação ou a iluminação sem superar questões biológicas, principalmente no que diz respeito à libido. Esse é um ponto particularmente difícil. Apesar de no tantra ser possível, em estágios avançados, usar o desejo e a energia sexual para nos livrarmos do desejo e da energia sexual, isto é só se aplica quando estamos em estágios extremamente avançados e temos controle sobre nosso sistema de energias sutis. É um erro sério achar que o tantra é um método para fazermos sexo exótico. Nós estamos tentando atingir a liberação. Liberação significa atingir a liberação deste tipo de corpo físico samsárico, com todas suas movimentações biológicas e assim por diante. Estamos tentando obter o tipo de corpo de um ser liberado, ou iluminado: feito de luz e livre de limitações biológicas. Entretanto, frequentemente procuramos uma atalho em nossa prática budista. Queremos atingir a liberação e a iluminação sem esforço, sem ter que deixar de lado os prazeres corporais. Isso é um equívoco.
Achar Que a Parte Mais Importante da Prática Tântrica é Visualizar Todos os Detalhes Corretamente
Quando estamos envolvidos com o tantra e queremos instruções sobre como praticá-lo, é um equivoco achar que a ênfase principal da prática está na visualização e, portanto, preocupar-se em conseguir acertar todos os pequenos detalhes. Meu professor, Serkong Rinpoche, costumava dar um exemplo para ilustrar esse engano comum entre os ocidentais: “As pessoas vêm me perguntar se Yamantaka ou Vajrayogini têm umbigo. Isto é ridículo. Estão perdendo os aspectos importantes da prática.”
Se quisermos desenvolver concentração unifocada utilizando-nos das práticas de visualização do tantra, certamente precisaremos de todos os detalhes, mas não é isso que temos que focar ou enfatizar no começo. Primeiro precisamos focar em adquirir uma compreensão básica daquilo que Tsongkhapa chama de “os três aspectos principais do caminho,” e em como esses aspectos se relacionam com a prática tântrica de nos visualizarmos na forma de uma figura búdica, como Tchenrezig ou Tara.
- Renúncia - a determinação a ser livre - renunciar ao apego à nossa aparência comum e à crença de que nós, e todo mundo, temos uma existência verdadeira, autoestabelecida.
- Bodhichitta - visamos atingir a iluminação e essas figuras búdicas representam a iluminação que estamos buscando. Portanto, para a chegarmos mais rapidamente, imaginamos que já estamos lá. Sem bodhichitta, por que imaginarmos que temos essas formas e agimos em benefício alheio? Queremos ser assim a fim de beneficiar os outros.
- Vacuidade (vazio) - sabemos que no momento não existimos dessa forma, entretanto, possuímos o potencial para nos transformar em Budas, que é aquilo que essas figuras representam. Mas também entendemos que para alcançar a iluminação precisamos nos esforçar. Ou seja, compreendemos que a vacuidade, a operação da causa e efeito, e a originação interdependente, andam juntas. Não achamos que realmente somos Tara - ou Cleopatra.
Assim, se algum dia você for pedir ensinamentos sobre o tantra, certifique-se que estejam nesse nível. O que temos que enfatizar é o propósito da prática tântrica e o que estamos tentando fazer com ela. É por isso que precisamos de toda uma preparação inicial, e de não ficarmos preocupados apenas com detalhes da visualização: como são as joias e coisas do gênero. Embora realmente existam descrições de como elas são, não deixe que a ênfase seja essa, principalmente no começo.
É interessante que na iniciação de Kalachakra em Toronto, no Canadá, em 2004, Sua Santidade o Dalai Lama tenha dado um ensinamento preliminar por três dias sobre um dos textos de Nagarjuna a respeito a vacuidade, Versos Fundamentais sobre o Caminho do Meio, Chamado "Consciência Discriminativa." Só depois disso ele deu a iniciação. Era visível que o número de pessoas que estavam lá para a iniciação era muito maior que o número de pessoas que compareceram aos ensinamentos sobre a vacuidade. Sua Santidade disse à audiência que ele realmente estimava mais àqueles que foram somente para os ensinamentos de Nagarjuna e não permaneceram para a iniciação do que as pessoas que fizeram o oposto - que pularam os ensinamentos básicos iniciais e foram apenas para a iniciação. Isso diz muito.
Pensar nas Figuras Búdicas Como se Fossem Santos para Quem Rezamos Pedindo Bênçãos
Esse é mais um equívoco no tantra, ver as figuras búdicas, os yidams, como se fossem santos para os quais rezamos pedindo ajuda: Santa Tara, Santo Tchenrezig, e assim por diante, e venerá-los. Essa forma equivocada de ver as figuras búdicas não está limitada aos ocidentais. Muitos budistas tradicionais os veem dessa forma, porém não em uma analogia aos santos cristãos. Essas figuras búdicas podem nos inspirar, assim como os budas e a linhagem de gurus mas, para nos iluminamos, precisamos fazer o trabalho sozinhos.
Alguns desses mal-entendidos estão ligados à tradução das orações de solicitação, em que fazemos pedidos aos vários gurus e Budas. Primeiro, para nós, a palavra “oração” tem a conotação de orar para Deus: "Deus, conceda meus pedidos”, ou de rezar para um santo, para que ele aja como nosso intermediário perante Deus, para que Deus nos conceda algo. Essa é uma interpolação cristã, e não é apropriada nesse contexto.
O que pedimos nessas, assim chamadas, “orações" é o que no tibetano chamamos chin-gi-lab (byin-gyis rlabs), que normalmente é traduzido como “bênçãos.” Nós pedimos, na tradução, “Me abençoe para poder fazer isso. Me abençoe para poder fazer aquilo”, como se tudo que precisássemos fosse que essas figuras viessem e nos abençoassem e, do nada, obteríamos várias realizações. Isso não é Budismo.
Traduzir usando a palavra “bênção” dá um conotação completamente diferente do significado real do termo, e pode acabar causando um mal-entendido. O significado literal do termo tibetano é elevar e clarear. O termo original sânscrito, adhisthana, significa pôr alguém ou algo em uma posição mais elevada, exaltar. Eu prefiro traduzir esse termo como “inspirar.” Pedimos ao Buddha, gurus, figuras búdicas que nos inspirem a obter essa ou aquela realização. Mas essas figuras, por si só, por poder próprio, não nos concedem desejos e fazem tudo o que queremos, de forma que só o que temos que fazer é pedir. Isso, novamente, é uma interpolação, é projetar uma ideia ou conceito ocidental no budismo. A ênfase principal é que precisamos fazer o trabalho sozinhos. Os Budas, os gurus, podem nos inspirar, ensinar, guiar, mas não podem fazer o trabalho por nós. Temos que entender isso.