Lidando com Ofensas
Queremos atingir o estado de Buda para que possamos beneficiar todos os seres sencientes. É uma ideia bastante difícil de digerir. Estamos lendo o texto de Gyalse Togme Zangpo, chamado 37 Práticas de Bodhisattvas. Chegamos ao versículo 12 e, embora tenhamos discutido bastante sobre ele na última sessão, gostaria de continuar com ele um pouco mais hoje.
(12) A prática de um bodhisattva é: se alguém, sob domínio de um desejo muito forte, nos roubar ou faça com que alguém roube toda a nossa riqueza, dedicar a essa pessoa seu [próprio] corpo, recursos e ações construtivas dos três tempos.
Como eu disse antes, essas palavras são muito bonitas, mas também são muito difíceis de colocar em prática. A pergunta que surge automaticamente é: “Por que diabos eu deveria dar meu corpo, meu status, meus méritos a outra pessoa?” Talvez achemos que não há problema em dar essas coisas para nossa família ou para alguém que amamos muito, mas para estranhos que não conhecemos? Por que deveríamos? A pergunta certamente virá à nossa mente e é totalmente normal que ela venha. No entanto, para os bodhisattvas é estranho não dar tudo. É totalmente o oposto do que sentimos. Para eles, é normal doar seus corpos e méritos. Para nós, isso não é normal.
É uma maneira diferente de pensar e há lógica por trás de ambas. Se você ama muito alguém, então não se arrepende de dar a essa pessoa seu corpo ou sua riqueza - sem questionamentos. Isso é normal. Os bodhisattvas fazem essa prática com todos, sem distinção, até mesmo com seus inimigos e com estranhos. Os bodhisattvas, com sua prática, percebem o imenso benefício de doar seu corpo, méritos e posses. Isso lhes dá muito prazer e felicidade. E isso lhes dá muita energia. Um exemplo vivo disso é Sua Santidade o Dalai Lama. Ele viaja muito e, mesmo com 85 anos de idade, ainda tem forças. Seus médicos sempre lhe dizem para não viajar tanto, mas viajar é normal para ele. Ele diz que é muito cansativo, mas ainda assim, no fim das contas, lhe traz felicidade. Vale a pena dedicar energia a essa prática.
Então, quando poderemos ser como ele? A resposta é: a partir de quando adquirirmos bodhichitta. Aqui, neste momento, estamos pesquisando a bodhichitta. Não estamos fazendo isso simplesmente porque o Buda ou Sua Santidade o Dalai Lama dizem que é muito importante. Estamos aqui para pesquisar a bodhichitta porque estamos interessados em desenvolver esse tipo de pensamento. Até agora, temos nos concentrado apenas em mim, no meu, na minha família, nos meus amigos. Colocamos todos os outros de lado. Inimigos e estranhos - não nos importamos com eles. Mas isso é ignorância. Se um inimigo nos insulta, nos sentimos imediatamente dispostos a brigar com ele. Mas se a nossa família faz o mesmo, tentamos entender. Para os bodhisattvas, todo ser senciente é sua família.
O que quer que os seres sencientes digam, os bodhisattvas aceitam. Se os seres sencientes quiserem derrotar os bodhisattvas, eles aceitam. Eles não são estúpidos. De forma alguma. Se alguém quiser bater neles, eles realmente permitem que a pessoa o faça. Talvez nós achemos isso estúpido, mas os bodhisattvas não acham. Eles tentarão evitá-lo, se possível, mas se não houver como evitar, os bodhisattvas aceitarão a surra e terão o máximo de paciência possível.
Mahatma Gandhi era um excelente praticante hindu. Ele escreveu em seu livro sobre paciência que, se alguém quiser bater em você, você deve tentar impedi-lo, mas se ele realmente quiser bater em você, você deve deixar. É como o que Jesus diz na Bíblia: se alguém bater na sua face direita, ofereça-lhe a face esquerda também. Quando o ser senciente estiver satisfeito, não haverá mais bochechas para bater. Esse é apenas um exemplo. Não estou dizendo que devemos aceitar que os outros nos batam. Entretanto, se algo assim acontecer conosco, podemos desenvolver uma maneira diferente de pensar.
Demonstrando Amor pelos Outros
Se não conseguirmos gerar uma enorme quantidade de amor pelos outros, essa prática será impossível. No momento em que formos capazes de ver todos os seres sencientes como nossa família, se eles nos prejudicarem, se encorajarem outros a tomar nossa riqueza, qualquer que seja a ação negativa deles para conosco, não reagiremos com violência. Entenderemos que essa pessoa está acumulando muito potencial cármico negativo e, se não reagirmos mal, sua carga automaticamente ficará mais leve! Isso não é divertido? A pessoa tem tanta aversão a nós e diz tantas coisas ruins a nosso respeito, mas não a levamos a sério. Nós simplesmente a amamos. Não há ganhar ou perder. Se fôssemos contra ela e revidássemos, juntos acumularíamos muito potencial cármico negativo. Não vamos participar disso. Estaremos contribuindo menos para o potencial cármico negativo do outro. Esse é um grande benefício que podemos oferecer a todos.
A questão agora é: qual é a melhor maneira de demonstrar nosso amor a eles? Lembre-se de que amor é quando você quer que os outros sejam felizes. O que é felicidade? É a riqueza? Imagine que você é a pessoa mais rica do mundo e tem uma máquina de imprimir dólares e, todos os dias, imprime e distribui dinheiro. Você poderia tornar todos ricos. Teríamos muitos bilionários com quantidades incríveis de dinheiro. Seria de se esperar que todos ficassem felizes. Mas todos ainda teriam problemas. Há a reputação de cada um, as expectativas dos outros e a infelicidade mental contínua. O dinheiro e o renome realmente não são tudo. Podemos aprender isso facilmente com as celebridades. Já que gostamos de segui-las, deveríamos pelo menos aprender algo com elas. Temos certeza que ser rico e famoso traz felicidade, mas ouvimos falar de casos de celebridades que até cometeram suicídio. Portanto, o renome e a fama não são suficientes para proporcionar felicidade.
Então, o que é a verdadeira felicidade? Bem, o Buda ensinou como alcançar a felicidade genuína. Ele ensinou as quatro nobres verdades e disse que havia encontrado a melhor e mais duradoura felicidade. Ele disse que, para obter essa felicidade, há um caminho a ser seguido. Em primeiro lugar, é preciso entender o sofrimento e suas causas e, em seguida, entender como é possível parar o sofrimento e como podemos seguir o caminho que o fará parar.
Vendo e Entendendo o Sofrimento
Na verdade, uma das coisas mais difíceis é conhecer o sofrimento. É claro que todos nós sabemos que dores de cabeça e de estômago são sofrimento. Até os animais sabem disso. No entanto, mesmo para pessoas instruídas é difícil entender que a mudança (também) é o verdadeiro sofrimento. Para nós, seres humanos, o sofrimento é a mudança. Estamos felizes, mas devagar, devagarinho, a felicidade se transforma em sofrimento.
Felizmente, nós, seres humanos, somos inteligentes o suficiente para seguir as etapas do caminho. O caminho é algo que chamamos de religião. E há muitas religiões. Todas elas surgiram porque há sofrimento e tristeza no mundo. A religião nos dá esperança. Não precisamos nos preocupar porque Deus criou o mundo e, se você fizer o bem, acabará no céu, e se fizer o mal, irá para o inferno. Todos esses tipos de ideias e conceitos surgiram porque há sofrimento no mundo. Ainda assim, além do sofrimento das dores de cabeça e do sofrimento da mudança, o budismo aponta para um terceiro tipo de sofrimento. Em outras religiões, não se fala sobre isso. É o sofrimento que tudo permeia. O sofrimento que tudo permeia é a base dos outros dois sofrimentos, o sofrimento do sofrimento e o sofrimento da mudança.
Não importa se nascemos nos reinos inferiores ou nos reinos superiores, estamos apenas viajando de um lado para o outro. Podemos ir para qualquer lugar, mas temos que “voltar para casa”. Esse lar é, na verdade, nosso verdadeiro sofrimento. Onde quer que estejamos no samsara, mesmo no nível mais elevado, ainda estamos sofrendo. No hinduísmo, eles também falam sobre esses níveis e os reinos celestiais. Na verdade, não se sente sofrimento algum no reino mais elevado, pois não é neste mundo. Eles falam sobre isso no hinduísmo. Os cristãos e os muçulmanos não falam sobre isso.
Grandes praticantes e mestres rezam para não renascerem num reino celestial. Eles sabem que, caso isso aconteça, desfrutarão demais de suas vidas, não haverá a prática do Dharma e eles não se prepararão para a próxima vida. Nossa vida humana é realmente uma vida humana preciosa, porque podemos praticar. Temos uma vida boa e difícil e isso nos ajuda a praticar o Darma.
Portanto, há um método para acabar com a causa de nosso sofrimento, que é a nossa mente ignorante. Podemos eliminar essa causa. Mas o que é essa ignorância? Quando falamos de ignorância, trata-se da falta de consciência de como existimos e de como tudo existe. Nós nos sentimos como um “eu” sólido que é a pessoa mais importante do universo. Nós realmente nos iludimos ao pensar assim. É como no Sutra do Coração, onde se fala em analisar onde está o “eu”. Quando você medita na cabeça, nariz, orelha, língua, não consegue encontrar o “eu”. Você também não consegue encontrar o “eu” no corpo físico ou na mente. A resposta do Buda é que não existe um “eu” sólido.
Ainda assim, nós sentimos, falamos, nos movemos e comemos. Essa é a verdade relativa da existência. Mas é apenas uma aparência. É como um belo arco-íris com belas cores. No entanto, mesmo que possamos vê-lo claramente, não podemos tocar um arco-íris, não há nada para segurar. Devemos entender que tudo o que sentimos, vemos e desfrutamos, é semelhante a esse arco-íris. Temos que apreciá-lo como apreciaríamos uma ilusão. Esse é o ensinamento do Buda.
Às vezes, ficamos com raiva. Depois, quando nossa mente se acalma e refletimos, não temos mais certeza do porquê da raiva. O grande inimigo que achávamos que existia quando estávamos com raiva não parece ser como pensávamos inicialmente. Percebemos como somos estúpidos. Não estou dizendo que não existe inimigo. Mas não há nada pelo que sentir ódio.
Se conhecermos e praticarmos a vacuidade, a verdade suprema, e virmos que ela reduz a raiva e o apego, sentiremos que encontramos um remédio incrível. Ele pode nos curar de todos os nossos problemas e sofrimentos. Também pode curar todos os outros seres sencientes. Portanto, a próxima pergunta é: ao termos esse precioso remédio, por que deveríamos dá-lo aos outros? É o que os bodhisattvas fazem. Os outros seres sencientes foram muito gentis conosco. Portanto, precisamos trabalhar para o benefício deles. O sofrimento deles e o nosso são os mesmos. Os bodhisattvas acreditam que todos os seres sencientes são sua própria família. Até a iluminação, não há separação. Os bodhisattvas não se preocupam em absoluto se seu renascimento será nos reinos inferiores ou superiores. Eles desejam renascer onde quer que seja possível beneficiar os seres sencientes. É para isso que dedicaram as ações da mente e do corpo e o seu tempo.
Por que nós não conseguimos fazer isso agora? É muito fácil de entender. Digamos que acabamos de comprar um novo iPhone. Cuidamos muito bem dele. Mostramos à nossa família porque confiamos nela, dizendo: “Só não deixe cair!” Se um mendigo viesse e dissesse: “Passa pra mim!” De jeito nenhum. Não podemos dar tudo aos outros. Nem mesmo mentalmente. Materialmente então, pode esquecer.
Os bodhisattvas não se importam. Mesmo que tenham o celular mais recente, eles o darão a quem o quiser. Se alguém o deixar cair, eles não se importam. Mesmo que não possamos praticar dessa forma, pelo menos mentalmente devemos estar abertos a isso. Materialmente, podemos deixar de lado, por enquanto, porque ainda nos apegamos demais. E vamos incluir nossos inimigos também. Sua Santidade inclui todos os oficiais chineses em suas orações. Se Mao Zedong estivesse vivo hoje e encontrasse Sua Santidade, Mao estaria infinitamente mais estressado e nervoso. Mao pensaria que o Dalai Lama é um separatista e que, portanto, é preciso ser muito cuidadoso. Mas Sua Santidade ficaria calmo porque pensaria apenas que está conhecendo outro ser humano. Mao não teria esse tipo de conhecimento. Devido à bodhichitta, Sua Santidade inclui Mao em sua prática. Isso é muito saudável. É bom para a mente e o corpo.
Tomar o Sofrimento como Parte do Caminho do Bodhisattva
(13) A prática de um bodhisattva é: mesmo não tendo cometido o mínimo deslize, se alguém tentar cortar nossa cabeça, tomar para si as consequências negativas desse ato, através do poder da compaixão.
Com certeza, eu não deixaria as pessoas cortarem minha cabeça! Eu não fiz nada de errado com elas, então vou processá-las! Essa é a maneira como agimos agora. Mas os bodhisattvas são diferentes.
Os bodhisattvas pensam a longo prazo, não apenas nesta vida. Eles praticarão até atingirem a plena iluminação. Qual é o trabalho deles até a iluminação? Beneficiar os outros. Cortar a minha cabeça é uma coisa muito pequena. Esse pensamento nos deixa chocados e com raiva. Mas os bodhisattvas pensam: “Se isso lhes der prazer, deixarei que cortem minha cabeça”.
Há uma linda história das vidas passadas do Buda sobre um rei chamado Sanjaya e seu filho, o príncipe Vishvantara. Esse príncipe é a vida anterior do Buda Shakyamuni, que era um grande praticante. O rei Sanjaya deu toda a sua riqueza para seu filho e até lhe deu o reino. O próprio príncipe Vishvantara era um grande praticante da generosidade. Sempre que alguém precisava de alguma coisa, ele dava com prazer. Mas havia uma riqueza importante, que era uma pedra preciosa muito valiosa. Essa pedra preciosa trazia boas colheitas, boas chuvas e estabilidade para o reino. Portanto, o rei Sanjaya não deu essa pedra preciosa a seu filho porque sabia que a natureza compassiva de seu filho o faria doá-la.
No entanto, certa vez, o país vizinho de Kalinga estava enfrentando uma seca e pensou em obter essa pedra preciosa de alguma forma. O rei e os ministros de Kalinga elaboraram um plano para tirar vantagem do príncipe compassivo. Eles enviaram um mendigo muito pobre ao príncipe e ele gritou: “Preciso de riqueza, abrigo e roupas”. O príncipe deu a esse mendigo dinheiro, uma casa e belas roupas. Mas o mendigo ficou e disse: “Não é suficiente!” O príncipe lhe perguntou o que ele queria. O mendigo respondeu que precisava da pedra preciosa. O príncipe disse ao mendigo que não tinha autoridade para dar essa pedra preciosa. O mendigo chorou muito para manipular o príncipe.
A compaixão do príncipe por esse mendigo ficou ainda mais forte, e ele pensou: “De que serve essa pedra preciosa se eu ficar com ela? Essa pessoa realmente precisa dela. Sua vida é mais importante do que essa riqueza. Posso dá-la a esse mendigo mesmo que meu pai me castigue”. Ele sentiu tanta compaixão por esse mendigo que roubou a pedra preciosa do pai para dar ao mendigo. Ele realmente tinha uma boa motivação, pensando na felicidade de todos os seres sencientes. “Com essa oferenda, que eu possa completar a prática da generosidade e alcançar a plena iluminação”, ele orou. Assim, ele deu a pedra preciosa. Logo depois, seu pai descobriu que ele havia dado a pedra para o reino vizinho. Todos os ministros exigiram que o trono fosse tirado do príncipe e que ele fosse banido do reino junto com sua esposa e filhos.
O príncipe prontamente devolveu o reino a seu pai e, antes de partir, também doou toda a sua riqueza. Como punição, eles queriam arrancar seus olhos. E nesse estágio da prática, Vishvantara não hesitou nem se arrependeu ao arrancar seus próprios olhos. A história continua e, no fim, pai e filho se reencontram quando o rei percebe que a riqueza é apenas riqueza. Na verdade, o rei se sentiu muito tocado pela prática do filho, dizendo: “Você não é uma pessoa comum. Por favor, faça seus olhos voltarem novamente, isso me traria a maior felicidade”. Dessa forma, os olhos do príncipe voltaram a crescer. É difícil de acreditar, mas a moral da história é que, quando damos, devemos dar sem nenhuma expectativa.
Não há necessidade de se surpreender. Quando amamos muito uma pessoa, somos capazes de dar nossa vida por ela. Já vimos histórias assim nos noticiários. Os franceses estavam prontos para dar suas vidas por sua nação durante a revolução. Os bodhisattvas estão dispostos a dar a vida até mesmo por pessoas que os prejudicaram e torturaram. Esse é um sinal do quanto os bodhisattvas amam os seres sencientes. O seu pensamento é: “Mesmo que cortem minha cabeça, eu amarei a todos da mesma forma e retribuirei toda a bondade que recebi deles em vidas passadas”.
Lidando com Fofoca e Ódio
(14) A prática de um bodhisattva é: se alguém proclamar, em milhares, milhões ou bilhões de mundos, todo tipo de coisas desagradáveis a seu respeito, retribuir falando das boas qualidades dessa pessoa, com uma atitude amorosa.
Essa é uma boa prática se as pessoas fizerem fofocas sobre nós e ficarmos chateados. Quando as pessoas dizem coisas ruins a nosso respeito, geralmente nos sentimos mal. Nesse tipo de situação, os bodhisattvas retribuem só com amor. Eles só têm elogios para a pessoa que fala mal deles. Isso requer muita paciência, mas muda tudo.
Vamos falar sobre Devadatta, o primo do Buda. Devadatta estava sempre lutando contra o Buda. Ele até tentou matar o Buda em várias ocasiões. Na verdade, ele era muito inteligente. Os sutras falam frequentemente sobre suas qualidades. Devadatta conseguia memorizar tudo e se distinguia em muitas coisas. O Buda também, o que levava Devadatta a sempre tentar competir com ele. Mas o Buda sempre ganhava.
Certa vez, o Buda estava tomando alguns remédios. Ao saber disso, Devadatta pensou: “Posso tomar ainda mais remédios do que o Buda!” Ele tomou os remédios, mas ficou muito doente e quase morreu. Devadatta pediu ao Buda que o curasse. O Buda olhou para Devadatta, essa pessoa que havia tentado tantas vezes prejudicá-lo, com muita compaixão. Ele colocou a mão na testa de Devadatta e disse: “Meu amor e compaixão por Rahula [o filho do Buda] e meu amor e compaixão por Devadatta são iguais. Por essa verdade, que você se recupere”. Ele disse isso e Devadatta se recuperou.
Não importa o que os outros fazem conosco, podemos sempre nos concentrar em lhes dar amor e compaixão. Os tibetanos não têm liberdade, mas vejam o que Sua Santidade conseguiu dar ao resto do mundo. Podemos dizer que isso aconteceu graças ao fato de os chineses terem invadido o Tibete. É uma coisa ou outra, ou os tibetanos têm sua própria terra ou Sua Santidade conquista o coração das pessoas em todo o mundo. Há muitos chineses que são alunos de Sua Santidade e querem que ele vá à China. Portanto, mesmo que a China tenha invadido o Tibete, quem foi que saiu ganhando? Mao Zedong ou Sua Santidade o Dalai Lama? É preciso tempo para entender, mas, com certeza, no final, é o bodhisattva que vence.
Essa não deveria ser uma prática restrita aos bodhisattvas, é uma prática para todos os seres humanos. Com certeza, criamos mais inimigos através de nossa fala. Não com ações do corpo. O nosso corpo não diz muita coisa. O que está dentro da mente, ninguém consegue entender bem. É quando falamos que as coisas realmente acontecem. Das dez ações destrutivas, há quatro relacionadas à fala. Atisha e os grandes mestres Kadampa dizem que, quando você estiver em meio a uma multidão, tenha consciência do que sai de sua boca. E quando estiver sozinho, tenha consciência de sua mente. Portanto, devemos ter cuidado com as palavras e como as usamos.
Vendo Nossos Inimigos Como Professores
(15) A prática de um bodhisattva é: se alguém expuser seus defeitos ou falar mal [de você] no meio de um grupo de muitos seres errantes, cumprimentá-lo respeitosamente e identificá-lo como sendo seu professor espiritual.
Este versículo fala de paciência. Deixem que as pessoas digam coisas más a vocês ou sobre vocês. Deixem. Quando falamos em desenvolver a paciência, é disto que precisamos. Não podemos praticar a paciência com pessoas que são sempre maravilhosas e simpáticas conosco. Só podemos ter paciência com as pessoas que nos enlouquecem. Por isso, temos de estar gratos pela fonte da nossa paciência. Qual é a fonte? Os nossos inimigos. Há duas maneiras de pensar quando alguém faz algo de que não gostamos. Ou lutamos contra a pessoa ou lutamos contra a ação dela. Normalmente, gostamos de lutar contra a pessoa. Os bodhisattvas amam a pessoa mas lutam contra a ação. Quando são magoados, os bodhisattvas sentem-se muito gratos pela lição que contempla a prática, a prática da paciência.
É meio que engraçado chamar nosso inimigo de guru. Quando Atisha veio da Índia para o Tibete, trouxe consigo um estudante que estava sempre debatendo com ele. Era uma pessoa bastante ignorante. Mas Atisha o levava sempre para todo os lugares e o respeitava muito. Os tibetanos se perguntavam: “Ele é seu aluno? É tão ignorante, está sempre discutindo e não tem respeito algum por você! Você poderia ter trazido alunos muito melhores. Você tem milhares de estudantes em Nalanda, porque é que o trouxe?” Com as mãos cruzadas, Atisha disse: “Não diga isso. Ele é muito gentil comigo. Sem ele, a minha prática diminui. Com ele, a minha prática aumenta”.
Todos os dias, encontramos pessoas. Se nos fecharmos em casa, não será divertido. Precisamos sair, fazer coisas e conviver com pessoas o tempo todo. Temos que aprender e desenvolver uma prática forte dentro de nós, de modo que estejamos prontos para enfrentar com paciência o que quer que aconteça.
Vendo Todos os Seres como Nosso Filho Único
(16) A prática de um bodhisattva é: se uma pessoa a quem cuidamos e estimamos como nosso próprio filho considerar-nos um inimigo, ter uma afeição especial por ele, como a de uma mãe por um filho acometido por uma doença.
Quando os bodhisattvas enfrentam problemas, eles o fazem com equanimidade. Já se alguém nos acusa de fazer algo errado, isso nos provoca uma grande dor. E ainda mais quando só fomos gentis para com essa pessoa. Os pais dão muito amor e atenção a seus filhos, preocupando-se constantemente se estão seguros ou não. Então a criança cresce e diz: “Você não fez isso direito, agora eu tenho esse problema e a culpa é toda sua”. Já ouvi falar de crianças que processaram seus pais. Isso deve ser muito triste.
Um dos piores sentimentos é: “Como eles podem fazer isso comigo?” Esse sentimento surge automaticamente. Mas não para o bodhisattva. Não importa o que a pessoa fizer com ele, o bodhisattva a amará. Se alguém tentar prejudicar um bodhisattva, ele tratará essa pessoa como se fosse seu próprio filho doente.
Se tivermos um filho doente ou com problemas mentais, faremos o possível para entendê-lo. Se ele gritar, berrar e nos insultar, não levaremos para o lado pessoal. Aceitaremos, pois saberemos que ele está doente. Da mesma forma, os seres sencientes que nos atacam são influenciados por sua mente ignorante. Eles estão iludidos.
Os pais dão muito amor a seus filhos, sem nenhuma expectativa. Bem, na verdade, eles têm muitas expectativas e os filhos também as têm. Hoje em dia, os filhos esperam muito dos pais. Na Índia, se a criança tira notas baixas na escola, os pais a repreendem muito. Muitas crianças até acabam tirando a própria vida porque não conseguiram ter notas boas. Na China também. A pressão é a expectativa.
No Ocidente, pela minha experiência, as pessoas meio que seguem seu próprio talento. Se você se sente bem e gosta do que faz, vai em frente. Mas na Índia, a pressão para tirar notas boas existe. Não porque os indianos gostam muito dos filhos, mas porque gostam muito da própria reputação. Com menos expectativas, não há tantos problemas. Porém, quando não temos nenhuma expectativa, automaticamente sentimos como se estivéssemos cortando o vínculo. Como se não nos importássemos mais com o outro. Mas os bodhisattvas não cortam o vínculo. A conexão existe porque a verdadeira compaixão está presente. A fonte da bodhichitta é a compaixão.
Dedicação
Vamos dedicar todo o potencial positivo que criamos juntos agora.
Sempre que tiverem um problema, lembrem-se de que está ao seu alcance usar esse problema para desenvolver muitas qualidades incríveis. Se pensarmos assim, veremos que treinar dessa maneira vale a pena. Quando você vai a uma loja e começa a pechinchar, se pergunta por que está pechinchando e por que a outra pessoa também quer receber tanto dinheiro de você, é realmente bem divertido. Analisar as situações em que nos encontramos é divertido. E na Índia é possível praticar muita paciência. Há muitas oportunidades aqui para praticar a paciência. Começando pelo motorista de táxi quando você chega no aeroporto! No Ocidente, vocês são muito educados.
Um dos meus amigos disse que, nos Estados Unidos, ele foi a uma área de floresta selvagem e havia um banheiro com muitas pessoas na fila do lado de fora. Ele também fez fila. Talvez dez pessoas estivessem esperando. Ele perguntou por que estavam esperando. Elas disseram que havia uma pessoa dentro do banheiro que ainda não havia saído. Então começaram a se irritar. Havia uma placa dizendo: “Espere sua vez”. A porta estava trancada, mas não tinha ninguém lá dentro! Eles estavam cegos por causa das regras. Portanto, faça o melhor que puder para praticar no seu dia a dia e sempre que encontrar problemas.