A Diferença Entre as Visões Svatantrika e Prasangika

A Impropriedade de Dar Iniciações a Quem Não Tem Compreensão da Vacuidade

É errado os lamas darem iniciações a quem nem sabe o que é bodhichitta e vacuidade. Talvez eles façam isso apenas para obter fama. Os mestres Nalanda não davam iniciações publicamente, mas agora todos sabemos do costume de se fazer isso. Isso degenera os ensinamentos. Eu também sou culpado! Porém, para o Kalachakra, foco na explicação e, em seguida, passo rapidamente pelo texto do ritual. Alguns lamas nem conhecem o ritual ou o texto, então passam bem rápido por eles, dando a desculpa de que são muito tímidos para passar por tudo ou passar devagar.

Certa vez, um lama que faz rituais foi realizar um ritual na casa de um patrono. Esse patrono havia cozinhado alguns intestinos e, enquanto ele não estava olhando, o lama entrou sorrateiramente na cozinha e despejou alguns intestinos quentes em seu chapéu de ritual. Quando o patrono entrou na sala do altar, onde o lama iria realizar o ritual, este colocou o chapéu com os intestinos na cabeça e correu com o ritual, explicando que sua cabeça estava muito quente por estar usando chapéu e que também era muito tímido para fazer o ritual devagar.

De qualquer forma, as iniciações tântricas só devem ser dadas a discípulos familiarizados com a bodhichitta e a vacuidade, e devem ser dadas da maneira adequada.

Surgimento e Percepção da Existência Autoestabelecida

Se algo é bom ou ruim, benéfico ou prejudicial, depende de nossa atitude. Mas quando vamos além de apenas considerar alguma coisa de uma maneira ou de outra, desenvolvemos apego às coisas que consideramos “boas” e aversão às que consideramos “ruins”. Precisamos investigar como essas coisas parecem existir de forma autoestabelecida como verdadeiramente “boas” ou “ruins”. Em um nível, podemos apenas observar as duas coisas; em outro nível, podemos analisar se elas realmente existem como “boas” ou “ruins”, estabelecidas como tais coisas por elas mesmas. Mas depois disso, podemos simplesmente vê-las como positivas ou negativas, úteis ou prejudiciais, sem esperar que sejam verdadeiramente estabelecidas como tais.

Ver uma coisa positiva como algo que queremos obter, ou uma negativa como algo que queremos descartar, não é apegar-se a uma existência verdadeiramente estabelecida, pois precisamos dessa discriminação para saber o que adotar e o que abandonar. Podemos perceber algo e considerá-lo verdadeiramente existente; podemos perceber algo o considerando desprovido de uma existência verdadeiramente estabelecida; mas também podemos simplesmente tomar conhecimento sem considerá-lo uma coisa ou outra. Assim, podemos fazer nossas práticas sem qualificá-las como tendo existência autoestabelecida.

Mas, em que ponto a mente começa a perceber os objetos e tomar conhecimento deles como sendo verdadeiramente existentes? Na verdade, é difícil identificar o momento exato com base em nossas próprias experiências, pois há muitas maneiras de caracterizar o objeto a ser refutado – seja ele grosseiro ou sutil. Meramente ver uma pessoa como um fenômeno de imputação com base nos agregados não é um objeto de refutação, é um fato. No entanto, de acordo com a Prasangika, se percebermos essa pessoa como tendo uma existência autoestabelecida, estaremos nos agarrando a uma existência verdadeiramente estabelecida. Quando já temos experiência nisso, conseguimos diferenciar se estamos ou não nos agarrando.

O foco principal quando meditamos sobre a vacuidade é provar a ausência de uma existência autoestabelecida com base em fenômenos afetados, como os fenômenos não estáticos que consideramos “bons” ou “ruins”. Os sistemas budistas inferiores afirmam que as coisas não são estabelecidas como existentes ou não existentes, ou como “boas” ou “ruins”, apenas pelo poder de nosso pensamento. De acordo com a perspectiva deles, elas devem ser objetivamente estabelecidas como existindo dessa forma. Elas são objetivamente estabelecidas (como boas ou ruins) com base em causa e efeito. Portanto, esses sistemas afirmam a existência autoestabelecida de causa e efeito e de objetos objetivos, “autoestabelecidos”. Este é o raciocínio que esses sistemas usam para estabelecer que as coisas têm existência autoestabelecida.

A Madhyamaka não diz que as coisas carecem de uma causa ou um efeito ou uma natureza própria. Mas, se as coisas fossem estabelecidas como existentes por elas mesmas, por exemplo, pelo poder de uma natureza autoestabelecida, e não meramente pelo poder da rotulagem mental com conceitos e designação com palavras, elas deveriam ser encontradas mediante análise. Mas, como Nagarjuna disse em Guirlanda Preciosa:

(II.10) Assim como um elefante ilusório, que não vem de lugar algum e não vai a lugar algum, não permanece no estado perfeito (de vacuidade) quando dissolvido como mera confusão da mente,
(II.11) Da mesma forma, o mundo da ilusão, que não vem de lugar algum e não vai a lugar algum, não permanece no estado perfeito (de vacuidade) quando dissolvido como uma mera confusão da mente.

As coisas são como uma miragem de água no deserto. Se a miragem correspondesse à realidade, ao nos aproximarmos encontraríamos água. Mas quanto mais de perto examinamos, mais claro fica que não há água.

A Vacuidade da Causalidade

Quando uma causa dá origem a um efeito, se a causa e o efeito tivessem sua existência autoestabelecida, o efeito teria que ter surgido de nenhuma causa, ou de si mesmo, ou de algo diferente de si mesmo ou de ambas as coisas. Mas, como Nagarjuna refutou todas as quatro posições, concluiu, em Versos Raiz para a Madhyamaka:

(XXI.13) Um fenômeno funcional não é causado a surgir a partir de si mesmo, não é causado a surgir a partir de outra coisa, nem é causado a surgir a partir de si mesmo e de outra coisa. A partir de que é causado a surgir?

Quando examinamos a natureza da designação, vemos que algo designado [com uma palavra] é designado em uma base. Podemos distinguir a designação (btags), a base para a designação (gtags-gzhi) e aquilo a que a designação se refere (bdags-chos). No entanto, aquilo a que a designação se refere e a base para a designação não são a mesma coisa, nem são coisas totalmente diferentes, dissociadas – não são “nem um, nem muitos”. Podemos analisar um efeito da mesma forma. Será que ele vem de nenhuma causa, de si mesmo, de outra coisa, de uma causa, muitas causas, ou o quê? Analisando dessa forma, não encontramos o efeito.

A Distinção Svatantrika-Prasangika

Quando analisamos usando a lógica usando silogismos, precisamos aplicar várias linhas de raciocínio. Para provar que um objeto é inexistente, raciocinamos que, se ele existisse, teria que existir de uma maneira ou de outra ou de outra. Se ele não existe de nenhuma dessas maneiras possíveis, é porque não existe. Mas para fazer uma análise conceitual com lógica, precisamos de uma imagem mental daquilo que será refutado, para que possamos investigá-la.

[Essa imagem mental (rnam-pa) é o objeto pressuposto conceitualmente (zhen-yul, literalmente, “objeto a que nos agarramos”) na inferência da cognição conceitual. É um holograma mental que representa um membro da categoria de objeto (don-spyi) através da qual é conceituado. O ponto de desacordo entre a Svatantrika e a Prasangika diz respeito a esse objeto pressuposto conceitualmente. A Svatantrika afirma que o objeto conceitualizado (zhen-gzhi, literalmente, “base a qual se está agarrado”) tem existência autoestabelecida e é a “coisa de referência” (btags-don) correspondente ao objeto pressuposto conceitualmente. A Prasangika afirma que o objeto pressuposto conceitualmente representa algo que é totalmente inexistente e, portanto, não existe uma “coisa de referência” servindo como seu “suporte focal” (dmigs-rten) sustentando-o.]

Tanto a Svatantrika quanto a Prasangika aceitam o surgimento dependente em termos de rotulagem mental.

  • A Prasangika afirma que não existe uma base localizável que tenha a característica definidora (mtshan-gzhi) de um eu, uma pessoa, como base para a designação da pessoa.
  • Bhavaviveka, por outro lado, [de quem o sistema Svatantrika deriva,] em Chama da Razão (rTog-ge 'bar-ba, sânsc. Tarkajvala) [seu comentário à Essência do Coração do Madhyamaka (dBu-ma snying- po, sânsc. Madhyamakahrdaya)], afirmou que a consciência mental é designada como sendo a pessoa. Assim, ao aceitar a rotulação mental em termos de existência autoestabelecida, Bhavaviveka explicou que a característica definidora de algo designado seria encontrável em sua base de designação. [Com base nisso, a rotulagem mental seria válida.]

A Prasangika, por sua vez, afirma que uma mente que tem uma cognição válida de um objeto é válida no diz que diz respeito ao seu objeto, mas é uma mente iludida no que diz respeito à sua cognição do modo de existência (gnas-tshul) desse objeto. Tomar o objeto cognitivamente como se ele tivesse uma existência autoestabelecida verdadeira é um erro. Portanto, mesmo que algo apareça como se tivesse uma existência autoestabelecida, esse aspecto de sua aparência é o objeto a ser refutado. Quando essa aparência é investigada, não se encontra nada que possa corresponder ao objeto. Se algo pudesse ser encontrado, não faria sentido dizer que o objeto carece de existência autoestabelecida. Um objeto tem existência autoestabelecida quando algo que corresponda à sua aparência pode ser encontrado, sustentando essa aparência.

[Em outras palavras, o objeto que é conceitualizado e ao qual o objeto conceitualmente pressuposto que aparece literalmente “se agarra”, ou seja, a existência autoestabelecida, deve ser encontrado como uma “coisa de referência” e suporte focal.]

Nome-Apenas

Entretanto, as pessoas existem, caso contrário não poderíamos postular o samsara e a libertação, a felicidade e o sofrimento, e isso iria contradizer nossa experiência direta. Portanto, as pessoas existem, mas nem um traço delas é encontrado [como uma “coisa” de referência] estabelecido nos agregados que são a base sobre a qual elas são um fenômeno de imputação. E nem um traço ou característica definidora delas é encontrado nos agregados que são sua base de designação, estabelecendo sua existência. A existência de uma pessoa só pode ser estabelecida na dependência da designação. Este é o significado de uma pessoa ser “nome-apenas” (ming-tsam). A existência de uma pessoa só pode ser estabelecida na dependência de haver uma palavra para ela.

Portanto, “nome-apenas” não significa que existam apenas nomes sem significados (don). A designação é a aplicação conceitual de um nome ou palavra a um significado ou objeto. No entanto, nenhum objeto autoestabelecido com esse nome é encontrado, correspondendo e sustentando o holograma mental que aparece de um objeto autoestabelecido com esse nome. É só dessa maneira que um nome precisa de um significado ou objeto como base de designação. Este é o significado de surgimento dependente: objetos convencionais surgem de forma dependente como aquilo a que os nomes ou palavras designadas em uma base se referem.

O Termo “Surgimento Dependente”

Dependente e independente não são apenas opostos contraditórios, são mutuamente excludentes, constituem uma dicotomia; não há uma terceira alternativa. As coisas aparecem como tendo existência autoestabelecida por causa da mente equivocada que as faz parecer assim, e não por causa de alguma característica real e localizável no objeto e que esteja estabelecendo essa aparência. Esta análise é o motivo pelo qual a Prasangika usa o argumento da originação dependente para provar a ausência de uma existência autoestabelecida em todos os fenômenos.

No termo “originação dependente”, “dependente” (rten) nega “independente”. A existência de algo não pode ser estabelecida pelo seu próprio poder; o estabelecimento de sua existência depende de outra coisa. “Originação” ('byung-ba, ing. arising) implica que existe alguma coisa; não é algo totalmente inexistente.  Afinal, pode produzir efeitos. Assim, a originação dependente é a rainha de todas as linhas de raciocínio para provar a vacuidade da existência autoestabelecida.

Em termos de causa, natureza e efeito, não existe algo como uma existência autoestabelecida. O entendimento correto da vacuidade considerando-se essas três coisas é conhecido como as “três liberações” (rnam-grol gsum, três portas ou portais para a liberação). Essas três coisas podem ser caracterizadas tanto como compartilhando a mesma natureza essencial (ngo-bo gcig) quanto como tendo naturezas essenciais não compartilhadas. Quando elas são colocadas em termos de um objeto ser desprovido de existência autoestabelecida como causa ou efeito, ou por sua própria natureza, essa é a explicação para as três terem em comum uma única natureza essencial. [Quando são colocadas em termos de três objetos separados – a natureza-própria de um objeto, sua causa e seu efeito – essa é a explicação para as três terem naturezas essenciais individuais e não compartilhadas.]

A Vacuidade Como uma Negação Não-Implicativa, e Não uma Negação Implicativa

Em Versos Raiz para Madhyamaka, Nagarjuna apresenta cinco linhas de raciocínio para provar a vacuidade. Em relação ao Buda ter todas as qualidades e nenhum defeito, Nagarjuna analisou:

(XXII.1) Aquele Que Assim Se Foi não é os agregados, nem algo diferente dos agregados. Os agregados não são ele e ele também não está nos agregados. Aquele Que Assim Se Foi não é um possuidor dos agregados. Então, qual Aquele Que Assim Se Foi existe?

O mesmo acontece com a vacuidade da vacuidade, a vacuidade da liberação como a natureza da mente, e assim por diante. Na lista das 16 vacuidades, quatro se referem diretamente à vacuidade da vacuidade. Assim, o significado da vacuidade é estabelecido através da análise quando meditamos da maneira indicada por Nagarjuna:

(XXI.13) Um fenômeno funcional não é causado a surgir de si mesmo, não é causado a surgir de outra coisa, nem é causado a surgir de si mesmo e de outra coisa. O que causa o seu surgimento?

A vacuidade é uma negação não implicativa. Ela apenas nega o objeto a ser negado, não lança no rastro da negação (bkag-shul) – como uma pegada deixada pela negação – um fenômeno de afirmação, apenas um fenômeno de negação. Assim, Buddhapalita interpretou este verso como indicando que a vacuidade é uma negação não implicativa:

Quanto a “o que causa seu surgimento”, é porque a análise de um surgimento leva a “tal tópico não existe” (don med-pa-nyid).

[Como nenhum surgimento a partir de si mesmo, do outro ou de ambas as coisas é encontrado mediante análise, a única conclusão é que o tópico do verso, um surgimento autoestabelecido, não existe.]

Bhavaviveka criticou a interpretação de Buddhapalita como estando incorreta, e escreveu em Uma Lamparina para a Consciência Discriminativa:

Bem, agora, em relação a “o que causa o seu surgimento”, um autor (Buddhapalita) escreveu que o tópico da linha é “não ser causado a surgir” (skye-bar mi-'gyur-ba-nyid). Mas por isso, e como produção e cessação não existiriam, o tópico fundamental (rtsa-ba'i don) da linha de raciocínio seria algo não afirmado.

[O tópico fundamental da linha de raciocínio – o tópico sobre o qual se faz a proposição a ser provada – é o surgimento. O que deve ser estabelecido ou comprovado sobre este tópico é a propriedade de “não ser causado a surgir de outro, de si mesmo ou de ambos”. Ao provar que essa propriedade se aplica ao “surgimento”, a linha de raciocínio confirma seu tópico fundamental ao estabelecer uma propriedade dele. Bhavaviveka critica a interpretação de Buddhapalita dizendo que ela apenas estabelece a propriedade de “não ser causado a surgir de outro, do eu ou de ambos, e como não estabelece o tópico fundamental ao qual esta se aplica, o “surgimento”, leva à conclusão niilista de que surgir, e também cessar, não existem de forma alguma.]

Assim, ao contrário de Buddhapalita, que afirmou que o verso indica a negação não implicativa da originação a partir do outro, do eu ou de ambos, Bhavaviveka afirmou que ele indica a negação implicativa da originação. E, segundo ele, o verso deveria indicar uma linha de raciocínio que afirmasse seu tópico.

[Na negação não implicativa “não há surgimento que seja causado por si mesmo, pelo outro ou por ambos” as palavras da negação, depois de excluir o objeto a ser negado, não lançam em seu rastro um fenômeno de afirmação. Elas lançam em seu rastro apenas o fenômeno de negação “a ausência de um surgimento causado pelo próprio objeto, pelo outro ou por ambos”.

Na negação implicativa “o surgimento não é causado por si mesmo, o outro ou ambos” as palavras da negação lançam em seu rastro tanto um fenômeno de afirmação, “surgimentoquanto um fenômeno de negação, “não ser causado a surgir do outro, do eu ou de ambos."

Buddhapalita estava afirmando que a linha de raciocínio do verso é uma prasanga, onde meramente nega-se a tese por meio de conclusões absurdas. Bhavaviveka, por outro lado, estava afirmando que a linha de raciocínio utilizada no verso é um silogismo, onde o tópico da tese é um fenômeno autoestabelecido, a partir do qual algo mais será estabelecido ou comprovado. Ele argumentou que, uma vez que o método prasanga de raciocínio, por meio de uma negação não implicativa, não afirma nada, ele leva à posição niilista de que não há surgimento e nem cessação de nenhum fenômeno funcional, mesmo que convencionalmente falando. Esta é uma das principais distinções entre a Svatantrika e a Prasangika, embora ambas concordem que a vacuidade em si é uma negação não implicativa.]

Meditação Sobre a Vacuidade

Se, enquanto meditarmos sobre a vacuidade, pensarmos: “Agora estou meditando sobre a vacuidade”, como se a vacuidade fosse um fenômeno de afirmação, estaremos meditando sobre a vacuidade como uma negação implicativa.]. Em vez disso, durante a fase de absorção total (mnyam-bzhag, equilíbrio meditativo) de nossa meditação, apenas mantemos o foco na vacuidade como um fenômeno de negação não implicativo, assim como o espaço [a ausência de algo tangível ou obstrutivo impedindo a existência espacial de algo]. Esta fase da meditação sobre a vacuidade dura pouco tempo.

Durante a fase de realização subsequente (rjes-thob, pós-meditação), focamos em todas as aparências serem como uma ilusão. Como o apego à existência autoestabelecida surge quando há uma aparência de existência autoestabelecida durante essa fase, tentamos manter a força da fase de absorção meditativa enquanto vemos todas as aparências como uma ilusão. “Como uma ilusão” significa que, embora as coisas pareçam ter uma existência autoestabelecida, são desprovidas dessa maneira impossível de existir.

O fato de que percebemos as coisas como autoestabelecidas não precisa ser provado, pois as coisas nos parecem assim automaticamente. Mas, uma vez que confirmamos, durante a absorção total, que não existe existência autoestabelecida, quando a aparência da existência autoestabelecida surgir novamente, durante a fase de realização subsequente, precisaremos apenas lembrar que não uma existência autoestabelecida não existe, e então ver essas aparências como uma ilusão. É muito difícil reconhecer isso tudo de uma vez, ou rapidamente. Requer muito tempo e circunstâncias favoráveis.

Depois de meditar sobre a vacuidade, precisamos evitar, no dia a dia, as quatro considerações incorretas (tshul-min yid-byed) em relação à verdade convencional. São elas: tomar cognitivamente o que não é estático como sendo estático, o que é impuro como sendo puro, o que é sofrimento como sendo felicidade e o que é não-eu como sendo eu. Precisamos ver o oposto, e ver o que as coisas realmente são em termos de verdade convencional. Precisamos combinar isso com a bodhichitta e a oração, como um complemento à prática acima, para que todos alcancem o estado búdico.

Obtendo os Dois Corpos Búdicos no Anuttarayoga Tantra

Isso nos leva ao tópico da prática do caminho tântrico como um complemento à prática acima, como o método para alcançarmos os dois Corpos Búdicos Iluminadores. Os pontos exclusivos à prática do tantra são encontrados na classe mais alta do tantra, o anuttarayoga tantra. As três primeiras classes, portanto, servem como preliminares para o anuttarayoga.

Os principais procedimentos da prática do anuttarayoga visam tornarmos reais os dois Corpos Búdicos. O Dharmakaya é para nosso próprio benefício, pois não é visto pelos outros, nem pode beneficiá-los. O Rupakaya (Corpo de Forma) é o Conjunto de Corpos Iluminadores que são para o benefício dos outros, pois são visíveis para os outros e podem beneficiá-los. Um Dharmakaya inclui um Corpo de Natureza Essencial (Svabhavakaya) e um Dharmakaya de Consciência Profunda (Jnana Dharmakaya). Os Corpos de Forma incluem Sambhogakayas (um Conjunto de Corpos Iluminadores de Uso Pleno) e Nirmanakayas (um Conjunto de Corpos de Emanação). Enquanto permanecemos no Dharmakaya, manifestamos esses tipos de Corpos de Forma.

A tradição Pali não faz referência a esses dois Corpos Búdicos ou aos quatro. Porém, o Mahayana apresenta os dois Corpos Búdicos Iluminadores como sendo inseparáveis (dbyer-med), com uma única natureza essencial (ngo-bo gcig) e um único sabor (ro-gcig). No sistema Guhyasamaja tantra, este ponto é referido como a “inseparabilidade dos três fatores ocultos” (gsang-ba gsum dbyer-med, a inseparabilidade dos três fatores secretos) – corpo oculto, fala oculta e mente oculta.

O Tantra Raíz Guhyasamaja afirma que o corpo é como a mente, e a mente é como o corpo. Ou seja, corpo, fala e mente estão todos se referindo à mesma coisa. No entanto, em nosso estágio, fica claro que nosso corpo não é nossa fala ou nossa mente. A inseparabilidade dos três é do ponto de vista da mente mais sutil e do corpo mais sutil. Isso tem implicações para nosso corpo, fala e mente no nível grosseiro quando estamos acordados, sonhando ou em sono profundo.

Quando falamos do corpo, fala e mente do estado primordial (gnyug-ma), a mente de clara luz é a mente, e a energia mais sutil sobre a qual ela se sustenta é o corpo. Eles têm a mesma natureza essencial, mas funções diferentes. A mente mais sutil é a fonte da fala mais sutil e, portanto, do ponto de vista desse nível mais sutil de clara luz, corpo, fala e mente têm a mesma natureza essencial e um único gosto. Então, quando realizamos o estado búdico, os três são inseparáveis.

E temos a inseparabilidade desses três aspectos primordiais, tanto no estágio com treinamento quanto no estágio sem mais treinamento (budato). No estágio com treinamento, o corpo refere-se a um corpo de arco-íris ('ja'-lus) [no tantra mãe], um corpo ilusório puro (sgyu-lus) [no tantra pai] ou uma forma desprovida (stong-gzugs) [no Kalachakra]. Estes só podem ser manifestados com o vento mais sutil, quando conseguimos transformar a mente de clara luz em uma cognição não conceitual da vacuidade. Fazer isso requer proficiência no yoga da profundidade (vacuidade) e clareza (criação de aparência) inseparáveis (zab-gsal dbyer-med).

Sempre começamos essas meditações com a meditação sobre a vacuidade. Com “Om svabhava shuddha”, meditamos sobre a ausência de um “eu” nas pessoas. E, com “sarva dharma svabhava shuddho”, meditamos sobre a ausência de um “eu” em todos os fenômenos. Com “ham”, meditamos unifocamente em manter o orgulho dessas duas ausências de “eu”.

O estágio de geração (bskyed-rim) contém a essência do estágio de completude (rdzogs-rim), no sentido de que ele foca principalmente na verdade convencional, mas em sua fase de absorção total, tem um aspecto da verdade mais profunda. O estágio de completude dá ênfase ao aspecto da verdade mais profunda como seu foco principal.

A prática do estágio de geração é feita imaginando-se o aspecto de verdade convencional das divindades ao visualizá-las. Se visualizarmos os agregados e os elementos do nosso corpo como divindades, será um nível diferente de prática de visualização. Enquanto a mente está focada na vacuidade, imaginar que o vento-energia desta mente surge na forma de uma divindade nos leva a realmente conseguir surgir, no estágio de completude, na forma de um corpo de arco-íris e, quando iluminados, em um Conjunto de Corpos de Forma Iluminados, Rupakaya.

Depois de se imaginar surgindo como uma divindade e focar em sua vacuidade, vem a meditação no círculo das divindades da mandala. Isso gera força positiva (mérito), enquanto a meditação sobre sua vacuidade gera consciência profunda. Aqui, imaginamos que as estamos gerando, e que elas compartilham da mesma natureza essencial, mas é quando conseguimos cultivar a clara luz primordial, no estágio de completude, que realmente conseguimos cultivar método e consciência profunda (sabedoria) no caminho como tendo uma única natureza essencial.

Este é o ponto em que o mahamudra e o dzogchen se concentram, o verdadeiro objeto em que focamos nesses dois sistemas. Hoje em dia, as pessoas consideram a prática do mahamudra e do dzogchen fáceis. Eu me pergunto se alguns professores hoje em dia alegam que são fáceis simplesmente por falta de conhecimento ou maturidade.

Mas, concluindo, o Buda ensinou que somos nossos próprios mestres. Somos nós que precisamos nos ajudar a alcançar os renascimentos afortunados e a libertação. A melhor maneira de alcançá-los é com a bodhichitta, a compreensão correta da vacuidade e a prática das seis atitudes de longo alcance, as seis paramitas.

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