A Visão Prasangika da Causalidade e da Vacuidade é a Visão Mais Efetiva

O Mecanismo em Que Causas Cármicas Dão Origem a Resultados Cármicos

Se entendermos corretamente que não há existência autoestabelecida (rang-bzhin-gyis grub-pa, existência inerente), entenderemos que a existência convencional é estabelecida em termos de originação dependente. Mas como os fenômenos surgem de forma dependente, em termos de causa e efeito comportamental – ou seja, carma?

[De acordo com Nagarjuna, e conforme elaborado por Vasubandhu no contexto do sistema Vaibhashika, existem sete tipos de carma (las). Nagarjuna os listou em Versos Raiz para Madhyamaka:

(XXVII.4) A fala, o movimento e as (formas) que se distinguem como as (formas) não reveladoras de não termos desistido (de cometer um conjunto de ações destrutivas), assim como as outras (formas) não reveladoras registradas, de termos desistido (de cometer uma conjunto de ações destrutivas),
(XXVII.5) Da mesma forma, os (impulsos cármicos) meritórios associados a (outros) fazerem uso (de algo que alguém deu ou fez) e, semelhantemente, os (impulsos cármicos) não meritórios e também o impulso cármico mental – esses sete fenômenos são registrados como sendo aquilo que é designado como impulsos cármicos.

No que diz respeito à mente, (1) o carma se refere aos impulsos mentais (sems-pa) que dirigem nosso corpo, fala e mente para os caminhos cármicos dos impulsos (las-lam), ou seja, para as ações. Em termos de corpo e fala, o carma – (2) construtivo ou (3) destrutivo – refere-se aos movimentos compulsivos do corpo ou à emissão compulsiva de sons das palavras com as quais as ações são implementadas. Essas são as formas reveladoras (rnam-par rig-byed-kyi gzugs) das ações físicas e verbais – formas óbvias, que revelam a estrutura motivacional das ações. Além disso, o carma inclui as (4) formas construtivas ou (5) destrutivas não reveladoras (rnam-par rig-byed ma-yin-pa'i gzugs) das ações físicas e verbais - formas obscuras, como votos, que começam e continuam com o contínuo mental após a implementação das ações ter cessado, continuando a influenciar e moldar nosso comportamento. Por fim, o carma inclui as (6) formas construtivas e (7) destrutivas “intermediárias” (bar-ma) e não reveladoras das ações físicas e verbais de fazer e fornecer aos outros algo que eles possam usar. Elas continuam com o contínuo mental, continuam a servir de condição para que outros façam uso do que fizemos.

Após a cessação de qualquer um desses impulsos cármicos associados a uma ação compulsiva – chamados genericamente de “causas cármicas” – surgem vários tipos de repercussões cármicas. As repercussões cármicas incluem potenciais cármicos positivos (bsod-nams, mérito), potenciais cármicos negativos (sdig-pa), tendências cármicas (sa-bon) e hábitos cármicos constantes (bag-chags). Todos os quatro tipos de repercussões cármicas podem ser chamados genericamente de “hábitos cármicos”, ou os três primeiros de “tendências cármicas”. É como resultado da ativação de suas repercussões cármicas que as causas cármicas dão origem, como seus “efeitos cármicos”, à nossa experiência de várias situações e objetos com felicidade ou infelicidade no momento.]

Os efeitos cármicos surgem a partir das tendências cármicas. As tendências cármicas são variáveis afetantes não congruentes (ldan-min 'du-byed). Em geral, a consciência mental é tida como sendo a base sobre a qual as tendências cármicas existem como fenômenos de imputação. A escola Chittamatra postula uma consciência fundamental alaya (kun-gzhi rnam-shes, sânsc. alayavijnana) como base. Chandrakirti afirma que a base provisória (gnas-skabs-kyi kun-gzhi) é a consciência mental, mas a base última (mthar-thug-gi rnam-shes ) é o mero “eu” (nga-tsam ), o “eu” convencionalmente existente, que é em si um fenômeno imputado com base na consciência mental e, de uma maneira mais genérica, com base nos cinco agregados.

[Uma tendência cármica que tem em sua base, como um fenômeno de imputação, a “capacidade de dar origem a um efeito quando as causas e condições para o surgimento do efeito estão completas” ('bras-bu 'char-ba'i nus-pa ), surge como um fenômeno de imputação que tem como base o mero “eu”, e surge simultaneamente ao “perecimento” ('jig-pa) de sua causa cármica. O “perecimento da causa cármica” é um fenômeno de imputação que tem como base a consciência mental. Simultaneamente ao “perecimento da causa cármica” surge também, e também como fenômeno de imputação que tem como base a consciência mental, uma “ausência” (med-pa) da causa cármica. Com a cessação do “perecimento da causa cármica”, surge, tendo a “ausência da causa cármica” como base, um fenômeno de imputação conhecido como causa cármica “que pereceu” (zhig-pa). A “causa cármica que pereceu” é equivalente à “causa cármica que-não-está-mais-acontecendo ('das-pa)”.

Embora a “tendência da causa cármica” seja um fenômeno de afirmação (sgrub-pa) e a “causa cármica que pereceu” seja um fenômeno de negação (dgag-pa) – e, portanto, não há um denominador comum (gzhi-mthun) que seja as duas coisas– a tendência cármica serve como a “base que tem a característica definidora” (mtshan-gzhi) do estado de “causa cármica que pereceu”. Embora a existência da “causa cármica que pereceu” não seja estabelecida pelo poder de sua característica definidora (rang-mtshan ma-grub-pa), a tendência cármica, sendo a base que tem a característica definidora, indica que essa causa cármica pereceu.

Com a conclusão da tendência cármica da causa cármica que deu origem a todos os efeitos cármicos, não existe mais a “capacidade de dar origem a um efeito” como um fenômeno de imputação com base na tendência cármica. Tsongkhapa afirmou que, ainda assim, a “presença (yod-pa) da tendência cármica” – agora sem essa capacidade – continua, mas agora como um fenômeno de imputação com base no mero “eu”, agora ela se tornou o que chamamos de “semente queimada”. Da mesma forma, a “causa cármica que pereceu” também continua como um fenômeno de imputação com base na “ausência da causa cármica”, e esta última continua e é um fenômeno de imputação com base na consciência mental.]

Tsongkhapa afirmou que algo “que pereceu” é um fenômeno afetado ('dus-byas-kyi chos, fenômeno condicionado), um fenômeno não estático afetado por causas e condições. Quando Chandrakirti explicou que tanto os fenômenos afetados quanto os não afetados ('dus ma-byas-kyi chos) são fenômenos afetados, ele estava se referindo tanto ao “perecimento” de algo quanto ao “ter perecido” de algo. Ele não quis dizer “não afetado” no sentido do “ter perecido” de algo ser um fenômeno estático.

[Isso significa que esse “ter perecido” permanece (gnas-pa) no mesmo estado, sem degenerar (nyams), à medida que, momento a momento, se distancia progressivamente no tempo do “perecimento da causa cármica.” Sua permanência no mesmo estado não é afetada por nada.]

Isso se contrapõe ao que afirmam os sistemas Svatantrika, Chittamatra, Sautrantika e os abaixo dele, que o “ter perecido” de algo é um fenômeno não afetado, no sentido de ser estático.

[Esses sistemas inferiores consideram o “ter perecido” de algo como um fenômeno de negação estático e não implicativo (med-dgag) – apenas uma ausência estática – como o “não-acontecimento” de algo. A Prasangika, por outro lado, afirma que o “ter perecido” de algo é um fenômeno de negação implicativo e não estático (ma-yin dgag). Seu “objeto de negação” (dgag-bya) é o “presente acontecimento” (da-lta-ba) do perecimento de algo. Quando os sons das palavras de negação negam o objeto, eles lançam em seu rastro (bkag-shul) – ou seja, deixam como sua pegada – não apenas o fenômeno de negação, o “não-mais-acontecimento do perecer da causa cármica”, mas também o fenômeno de afirmação “um surgimento do perecimento da causa cármica”. Um fenômeno de negação não implicativo lança em seu rastro apenas um fenômeno de negação, nenhum fenômeno de afirmação.]

A Prasangika concorda com esses sistemas inferiores no que diz respeito ao “perecer” de algo ser um fenômeno afetado. O processo de “perecimento” de uma coisa acontece porque ela é afetada por causas e condições que se reunem. Mas esses sistemas inferiores dizem que uma vez que o “perecer” de uma coisa ocorreu, o “ter perecido” dela não é afetado por nada e, portanto, é estático, nunca muda. Mas a Prasangika retruca que, assim como o processo de “perecimento” ocorre por ser causado por vários fatores, esses mesmos fatores são as causas que geram o “ter perecido” e a permanência contínua do fenômeno de imputação “perecido” [com base em sua ausência.] O “perecendo”, uma vez que surge de causas e circunstâncias, dá origem ao “ter perecido” como resultado.

Além disso, nem o “perecimento” nem o “ter perecido” podem ser encontrados em uma análise, seja de maneira absoluta ou convencional – eles são iguais nisso. Ambos são desprovidos de serem estabelecidos por uma natureza autoestabelecida (rang-bzhin); ambos são desprovidos de existência autoestabelecida.

Assim, Chandrakirti afirmou em Um Suplemento para (“Versos Raíz Sobre) o Caminho do Meio” (de Nagarjuna)

(VI.39) Como a cessação de um impulso cármico não é (estabelecida) por meio de uma natureza autoestabelecida, saiba que mesmo muito tempo após sua cessação, em algum momento, por causa de sua capacidade (de dar origem a um efeito), há o surgimento de um efeito, mesmo sem uma (consciência) fundamental alaya.

Assim, se você não aceita a existência de uma consciência fundamental alaya, você tem que aceitar que momentos posteriores do “ter perecido” da causa cármica estão entre as condições necessárias para o surgimento de um efeito a partir da “capacidade de dar origem a um efeito quando as causas e condições para o surgimento estiverem completas”. Essa capacidade é um fenômeno de imputação com base na tendência cármica que surgiu como consequência cármica de um impulso cármico. Então, assim como o processo de dar origem a um efeito tem que depender de causas e condições para que ocorra, o “ter dado origem a um efeito” a partir da “capacidade de dar origem a um efeito” da tendência cármica também deve depender de fatores causais.

[Assim, se “ter dado origem a um efeito” é um fenômeno afetado com permanência contínua em sua base de imputação (a tendência cármica), Tsongkhapa raciocinou que a tendência cármica, que é sua base, também deve permanecer na consciência mental, mas agora como uma “semente queimada”. Sua permanência só cessa com a obtenção de uma verdadeira cessação.]

Se você considera que o “ter perecido” da causa cármica é um fenômeno não afetado [um fenômeno estático que não pode afetar ou ser afetado por nada ] e, portanto, algo que não tem causa, você teria que aceitar a conclusão absurda de que o “ter causado um efeito” da “capacidade da tendência cármica de dar origem a um efeito quando as causas e condições para o surgimento estiverem completas” também é um fenômeno não afetado e não tem causa. Portanto, tanto o “ter perecido” da causa cármica quanto o “ter dado origem a um efeito” da “capacidade de dar origem a um efeito” da tendência cármica surgem na dependência de causas e condições e produzem efeitos [ou seja, momentos posteriores nos contínuos onde se encontram contínuos permanentes.]

A Efetividade da Consciência Discriminativa da Vacuidade Que Vem Com a Meditação

A consciência discriminativa que vem de pensar (bsam-byung shes-rab) dessa maneira sobre o surgimento dependente de causa e efeito, e sua vacuidade de ocorrer baseada numa existência autoestabelecida, nos dá confiança de que a explicação Prasangika está correta. A consciência discriminativa que vem da meditação com concentração absorvida [união de shamata e vipassana] nos dá uma forte experiência de que isso está correto. Simplesmente acreditar que a vacuidade é real não nos dá um sentimento tão forte quanto este. O resultado dessa consciência discriminativa que vem da meditação é que mesmo quando apenas ouvimos a palavra “eu”, automaticamente sentimos que esse “eu” é desprovido de existência autoestabelecida. Esse é o resultado de ter obtido muita familiaridade.

Em termos da ordem em que estabelecemos essa familiaridade, Jetsun Sherab Senge disse para primeiro ganharmos familiaridade com os níveis grosseiros de altruísmo e depois com os mais sutis. Kedrub Je explicou que podemos ganhar familiaridade com o nível mais sutil primeiro; aqueles com uma inteligência mais afiada podem começar por aí. O método de Sherab Senge é para aqueles com faculdades mentais menos desenvolvidas.

Mas qual visão é a mais eficaz? Aryadeva escreveu em O Tratado de Quatrocentos Versos:

(XII.19) (Os seguidores destes) três – os Shakya (Sábios), os nus (Jains) e os brâmanes – sustentam os ensinamentos de seu dharma com suas mentes, seus olhos e seus ouvidos (respectivamente). Por isso, a tradição dos textos clássicos do Sábio Capaz (Buda) é a mais sutil.

Algumas práticas religiosas podem nos ensinar a obter a liberação trocando ou removendo nossas roupas e fazendo práticas ascéticas, algumas podem nos ensinar a mudar a fala e recitar os Vedas, mas o budismo ensina a mudar a mente, que é a mudança mais sutil e eficaz de todas. A melhor maneira de mudar a mente é desenvolvendo bodhichitta e a compreensão correta da vacuidade. No entanto, meditar sobre a vacuidade não afeta tanto as nossas emoções – emoções como coragem e paciência para suportar o sofrimento ao ajudar os outros –, quanto a meditação sobre bodhichitta.

Então a questão é: qual visão da vacuidade é a mais profunda? Em Seis Trabalhos Compilados sobre o Raciocínio (Rigs-tshogs drug), Nagarjuna refutou as posições Vaibhashika, Sautrantika e Chittamatra em relação à vacuidade. Mas podemos nos perguntar como isso é possível, já que Asanga, o principal proponente da visão Chittamatra, veio depois de Nagarjuna. No entanto, o Buda já havia ensinado a visão Chittamatra em Descida ao Lanka Sutra (Lan-kar gshegs-pa'i mdo, sânsc. Lankavatara Sutra). Assim, ainda na época do Buda, a visão Chittamatra, bem como a visão Madhyamaka dos Sutras sobre a Consciência Discriminativa de Longo Alcance (Shes-phyin mdo , sânsc. Prajnaparamita Sutra), já foram propostas.

Apesar da refutação da Chittamatra por Nagarjuna, ainda havia algumas pessoas que aderiam à visão Chittamatra como sendo a mais adequada para elas. Por isso, Asanga assumiu a tarefa de difundir a visão Chittamatra e, em Estágios do Bodhisattva, refutou a posição Madhyamaka. Porém, mais tarde, Chandrakirti refutou ainda mais a Chittamatra. Todos esses grandes mestres estavam simplesmente tornando esses sistemas mais claros.

Qual Visão Budista é a Mais Forte?

O apego e a raiva podem arruinar uma pessoa. A maioria das escolas indianas não-budistas concorda com esse ponto, mas talvez não a escola hedonista e materialista Charvaka. O apego aos objetos do plano dos objetos sensoriais do desejo (o reino do desejo) é danoso. Portanto, precisamos encontrar a causa do apego a esses objetos.

Aqueles que defendem apenas a não existência de um “eu” pessoal explicam que, se tivermos apego a um “eu” impossível de existir, com base nisso, desenvolveremos apego e raiva. Por exemplo, vemos que há uma diferença na maneira como consideramos um objeto antes de comprá-lo e depois de possuí-lo como “meu”. Ou, quando algo indesejado nos acontece, automaticamente sentimos que alguém “me” prejudicou ou alguém prejudicou algo que “me” pertencia – “minha” posse. Aqueles que sustentam essa visão afirmam que tais equívocos vêm do apego a um “eu” que existiria independentemente dos agregados como uma entidade autosuficientemente conhecível e substancialmente existente (rang-rkya-thub-pa'i rdzas-yod).

A meditação sobre a total ausência, a vacuidade, de um “eu” autosuficientemente conhecível e substancialmente existente nos ajuda a superar o apego. Afinal, normalmente, quando pensamos simplesmente “eu”, é algo neutro, mas quando pensamos “eu” como uma entidade substancial existente e conhecível independentemente dos agregados, desenvolvemos um estado mental perturbador.

Os sistemas filosóficos budistas que afirmam, além disso, a ausência de um “eu” em todos os fenômenos, concordam que a refutação desse falso “eu” pode nos ajudar. No entanto, mesmo com essa refutação, ainda podemos ter um apego e uma raiva mais sutis e focados em um objeto não conectado ou associado ao eu. Portanto, precisamos meditar mais sobre a vacuidade de todos os fenômenos.

Quando pensamos em “todos os fenômenos”, pensamos principalmente nos objetos sensoriais externos, pelos quais desenvolvemos apego e raiva. Portanto, precisamos meditar sobre a vacuidade desses fenômenos. Com a meditação Chittamatra, vemos que a existência dos fenômenos externos só pode ser estabelecida em termos da consciência sensorial que os percebe. Vemos também que sua existência não pode ser estabelecida, por exemplo, como atraente, independentemente da consciência mental conceitual que projeta sua atratividade. Isso nos ajuda a diminuir o apego a esses objetos sensoriais externos. Assim, a Chittamatra refuta a existência externamente estabelecida dos objetos sensoriais.

A escola Madhyamaka concorda que esse nível de refutação funciona bem para objetos sensoriais externos no plano dos objetos sensoriais do desejo, porém, com essa visão, ainda consideramos que a mente tem uma existência verdadeira e não estabelecida por imputação. Todos os sentimentos de felicidade ou infelicidade, como são fatores mentais, só podem ser estabelecidos em termos da consciência que os acompanha. Por isso, se ainda nos agarrarmos à existência verdadeira e não estabelecida por imputação (bden-par grub-pa) da consciência, ainda podemos desenvolver os fatores mentais de atração e repulsão em relação a esses sentimentos [à medida que meditamos para alcançar os níveis dhyana de constância mental, que estão além do plano dos objetos sensoriais do desejo.] Portanto, para evitar esse problema, precisamos meditar na vacuidade de todos os fenômenos.

Além disso, a visão Chittamatra também considera que a vacuidade tem existência verdadeira e não estabelecida por imputação. Mas se considerássemos que a vacuidade tem existência verdadeira, não estabelecida por imputação, como isso nos ajudaria? [Existindo dessa maneira impossível, ela não poderia ser tomada como um objeto cognitivo.] Portanto, precisamos perceber que todos os fenômenos são desprovidos de existência verdadeira, não estabelecida por imputação. Essa visão é muito mais forte do que as anteriores.

A Vacuidade da Existência Autoestabelecida e a Compreensão do Surgimento Dependente em Termos de Rotulagem Mental

A visão Prasangika é que todos os fenômenos, sejam externos ou internos, parecem ter uma existência autoestabelecida (existência inerente), estabelecida por si só (rang-gi ngo-bor-nas grub-pa). Mesmo afirmando que a verdade mais profunda (absoluta) dos fenômenos é que sua existência é estabelecida em termos de rotulagem mental, ainda assim parece que sua existência imputada tem como base a rotulagem mental de algo que tem uma existência autoestabelecida em termos de sua verdade convencional. 

[A definição de existência autoestabelecida é uma existência estabelecida ou comprovada pelo fato de que quando buscamos a coisa a que estamos nos referindo (btags-don) – a “coisa” em si, a qual nos referimos através de um nome ou conceito, e que correspondente aos nomes ou conceitos – essa coisa a que estamos nos referindo pode ser encontrada no objeto, como um suporte focal (dmigs-rten) para a rotulagem mental. A existência dessa coisa de referência seria estabelecida por sua natureza autoestabelecida (rang-bzhin).]

É isso que precisa ser refutado.

Isso é o que a Svatrantika afirma – ou seja, para que o apego à existência autoestabelecida reconheça validamente os objetos convencionais como tendo existência autoestabelecida, os fenômenos tem que ter sua existência convencional estabelecida por uma natureza autoestabelecida. A Prasangika refuta esse argumento dizendo que embora os fenômenos pareçam ter sua existência estabelecida dessa maneira, essa é a maneira que eles aparecem para uma consciência equivocada. Precisamos diferenciar a cognição válida da verdade superficial, convencional e da verdade mais profunda (absoluta). Se afirmarmos que os fenômenos têm uma base autoestabelecida em termos de sua verdade convencional, podemos desenvolver apego a eles.

Quando descobrimos que as coisas não têm sua existência autoestabelecida, estabelecida por si só, mesmo em termos da verdade superficial, há o perigo de cairmos em uma posição niilista. Mas, então, como as coisas funcionam como causas e dão origem a efeitos? Devido apenas à sua existência ser estabelecida meramente pelo poder de rotular mentalmente com conceitos e designar com palavras e nomes.

Se obtivermos alguma compreensão disso, com base em reflexão e análise, podemos verificar em nosso cotidiano como as coisas parecem ter existência autoestabelecida. Precisamos identificar corretamente como esse modo de existência a ser refutado aparece e investigar o que o leva a aparecer.

Se as coisas realmente tivessem sua existência convencional já estabelecida por uma natureza essencial autoestabelecida (ngo-bo) e encontrada nelas [e responsável por sua aparência superficial e convencional], que sentido haveria em dizer que sua existência, na verdade mais profunda, é estabelecida em termos de rotulagem mental nessa base? Buddhapalita afirmou isso em referência a um buda, em seu comentário sobre os Versos Raiz de Nagarjuna para Madhyamaka (XXII.1)

Se um buda é algo que se rotula mentalmente com base nos agregados, e se isso significasse que um buda não é algo que carece (de uma existência estabelecida) a partir de uma natureza essencial (ngo-bo), qual a utilidade de ele ser mentalmente rotulado em algo que tem (sua existência já estabelecida) a partir de uma natureza essencial?

Assim, Chandrakirti afirmou em “Um Suplemento aos (Versos Raíz para) Madhyamaka”, (de Nagarjuna):

(VI.35) Se o raciocínio que considera impossível um surgimento a partir de si mesmo ou então de outro no contexto da talidade (vacuidade) fosse o (mesmo) raciocínio que também considera isso impossível no contexto da verdade convencional, por que meios o surgimento poderia ocorrer?

Quando buscamos a existência de um objeto com sendo estabelecida em algum dos sete modos [com sua existência estabelecida como diferente das partes, como idêntica às partes, como possuindo as partes, como estando nas partes, como tendo as partes existindo nele, como o mero conjunto das partes, ou como a forma das partes], (vemos que ela) não é encontrável de forma convencional ou absoluta. A existência convencional das coisas, portanto, é postulada em termos de quando elas não estão sendo analisadas em relação às partes.

Não pode haver vacuidade separada de alguma base para essa vacuidade. Nagarjuna afirmou isso em Versos Raiz para Madhyamaka:

(XXIV.10) Sem a (verdade) convencional, a verdade mais profunda não pode ser mostrada. Sem acessar a verdade mais profunda, o nirvana não pode ser alcançado.

Assim, sem verdade convencional, não pode haver verdade mais profunda, pois a verdade mais profunda é a verdade mais profunda da verdade convencional.

Nagarjuna também escreveu:

(XXII.15) Todos aqueles que projetam fabricações mentais sobre o Buda, que está além das fabricações mentais e não perece não veem o Que Assim Se Foi, são privadas disso por sua fabricação mental.

Existem diferentes interpretações do significado de “além das fabricações mentais”. Isso pode significar que um buda não tem fabricações mentais (spros-pa, sânsc. prapañca) no sentido de não criar aparências dualistas (gnyis-snang) ou não criar nenhuma aparência (snang-ba) de verdade convencional. Mas ainda assim, não há como acessar a verdade mais profunda sem a verdade convencional.

O Buda ensinou que a realidade convencional nos traz tanto o sofrimento como a felicidade, mas em termos da verdade mais profunda, sofrimento ou felicidade não são encontrados. No entanto, sua verdade superficial, relativa, existe.

Portanto, como Chandrakirti escreveu em Um Suplemento para (“Versos Raíz Sobre) o Caminho do Meio” (de Nagarjuna):

(VI.34) Uma vez que, quando esses fenômenos (convencionais) são analisados, nada além natureza da talidade (vacuidade) se encontra, por isso mesmo a verdade convencional do mundo cotidiano não deve ser submetida à análise.

Em outras palavras, quando objetos convencionais não podem ser encontrados por meio de algo que estabeleça sua existência, seja em termos de sua verdade mais profunda ou de sua verdade convencional, isso significa que sua existência pode ser estabelecida apenas em termos de seus rótulos mentais. Fora do contexto da análise minuciosa, devemos nos contentar, portanto, com sua mera convencionalidade. Desta forma, entramos em uma compreensão da verdade mais profunda.

[Assim, Tsongkhapa diferencia entre a verdade superficial (kun-rdzob bden-pa) dos fenômenos convencionais, que é a aparência enganosa deles como tendo existência autoestabelecida, e sua “mera convencionalidade” (tha-snyad-pa-tsam) ou “mera superficialidade” (kun-rdzob-pa tsam).]

Quanto a onde aprender mais sobre rotulagem mental, Chandrakirti aconselhou em Palavras Esclarecidas:

Uma vez que a apresentação da rotulagem mental em termos de originação dependente é indicada extensivamente no texto de Nagarjuna entitulado Um Suplemento para (“Versos Raíz Sobre) o Caminho do Meio”, é apenas lá que ela deve ser buscada.

Se quisermos estudar os Versos Raiz de Nagarjuna para Madhyamaka, devemos ler o comentário de Buddhapalita. Para mais detalhes, precisamos consultar o comentário de Chandrakirti sobre o texto de Nagarjuna, Palavras Esclarecidas. Bhavaviveka, em seu comentário sobre o texto de Nagarjuna entitulado Lamparina para a Consciência Discriminativa (Shes-rab sgron-me, sânsc. Prajnapradipa), tinha levantado algumas dúvidas sobre a interpretação de Buddhapalita, que Chandrakirti então refutou em Palavras Esclarecidas.

Precisamos estudar esses textos, não adiar isso com desculpas. Certa vez, o mestre Gungtangpa foi convidado por um discípulo a relatar sua autobiografia iluminadora. Este grande mestre respondeu: “Meus primeiros vinte anos se passaram sem que eu sequer me atentasse a fazer alguma prática. Os vinte (anos seguintes) passaram em um estado em que eu pensava, ‘Uma hora eu farei isso, eu farei isso.' E agora, mais de dez anos passei gemendo de arrependimento por não ter feito nada (antes). Esta é a minha história de como eu passei por uma existência humana vazia.”

Portanto, precisamos estudar muito. Há muito o que aprender. Nagarjuna listou vinte vacuidades em Um Compêndio de Fenômenos (Chos-bsdud, sânsc. Dharmasamgraha).

Ao estudar a vacuidade segundo os diversos sistemas, precisamos evitar ter uma visão sectária em relação a esses sistemas. Chandrakirti explicou em Um Suplemento para (“Versos Raíz Sobre) o Caminho do Meio” (de Nagarjuna):

(VI.118) Qualquer apego ao nosso próprio ponto de vista e hostilidade em relação ao ponto de vista dos outros é o preconceito da conceitualidade. Portanto, limpe (sua mente) do apego e da raiva; a análise o levará rapidamente a libertação.

Portanto, essas argumentações sobre as visões dos vários sistemas filosóficos não são para promover discussões, mas para nos ajudar a nos libertar do sofrimento. A visão Prasangika é a mais sutil e, se tentarmos ser mais sutis, sem dúvida cairemos no extremo do niilismo. Mas, também vai depender de nossa disposição e nível de inteligência; por isso não devemos nos forçar a adotar a visão Prasangika. Se conseguirmos refutar a existência verdadeira e não estabelecida por imputação através da visão Svatantrika ou com a visão Chittamatra, se conseguirmos refutar a existência externamente estabelecida, isso pode ser muito benéfico. O ponto principal é treinar em uma visão que seja apropriada à nossa mente.

A compreensão da vacuidade é uma arma, mas se ela destruirá os obscurecimentos que impedem a liberação e também os que impedem a iluminação, isso vai depender de a empunharmos tendo bodhichitta como motivação. Mesmo que tenhamos uma compreensão fraca da vacuidade, podemos rezar para que ela se torne um antídoto para ambos os (tipos de) obscurecimentos.

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