"Benção" ou Inspiração

Em resposta a questões de Theodore Whelan

Whelan: Parece-me que a maioria dos ocidentais que estudam Budismo Tibetano ainda continuam a usar um termo extremamente ambíguo: benção. Para mim, e provavelmente para alguns deles também, não há dúvidas de que esse termo carrega conotações teístas. Soa como se um ser todo poderoso, com poderes onipotentes, pudesse outorgar uma realização àqueles que têm fé, independentemente da rede de forças positivas ou negativas do indivíduo.
O termo inspiração, no sentido de algo “edificante” faz sentido no meu referencial budista de entendimento e não parece conjurar nenhuma conotação teísta. Entretanto, eu ainda estou tentando entender todas as possibilidades que esse termo engloba.
Durante uma conversa recente com algumas pessoas que se mantém fixadas no termo benção, elas me disseram que o termo inspiração soa como se pudesse ser aplicado somente à descrição do processo pelo qual alguém você se foca em uma pessoa que estabeleceu um exemplo positivo e encorajador. Quando você foca nessa pessoa, você se sente inspirado, no contexto de meramente sentir-se encorajado a seguir seus passos. E embora ser encorajado a seguir os passos de alguém possa resultar em obter um profundo senso de mudança de direção, o termo inspiração não parece implicar em nada a que o termo tibetano chinlab (byin-rlabs, Skt. adhishthana) pudesse se referir. De qualquer forma, o comentário dessa pessoa, junto com outras informações que eu coletei aleatoriamente desde que conheci o Dharma pela primeira vez, afetou meu entendimento da totalidade do que o termo chinlab está comunicando. As questões que estou levantando têm por objetivo o meu próprio entendimento das diferentes possibilidades a que esse termo pode se referir.

Inspiração no Contexto do Guru-Yoga

Minha primeira questão é: durante uma prática na qual imaginamos nosso professor (vamos dizer que seja Sua Santidade o Dalai Lama) na sua própria forma ou na forma de uma figura histórica e nos focamos nele com atenção fervorosa, simplesmente nos focamos nele, ou então combinamos isso com práticas de prostrações e direção segura enquanto imaginamos um vasto campo de força positiva, ou então fazemos a prática de Vajrasatva, ou a prática de guru-yoga, o que ocorre é apenas o que descrevi acima? Em outras palavras, somos encorajados a seguir seus passos construtivos apenas porque estamos nos focando nele e em suas qualidades de uma forma mais focada do que o normal? Ou será que, além desse processo de encorajamento, mesmo que nosso professor esteja a milhares de quilômetros na Índia nossa mente subliminarmente se une com a dele, de forma que a energia edificante do professor subliminarmente interage com nossa mente, e isso, por sua vez, age como uma circunstância para amadurecer forças cármicas positivas de nossas ações construtivas anteriores, que de outra forma não teriam amadurecido?

Definições e Conotações dos Termos Pertinentes na Tradução

Dr. Berzin: Para responder sua questão, vamos primeiramente olhar o significado do termo original em Sânscrito, adhishthana, e como ele é tradicionalmente traduzido para o Chinês e para o Tibetano:

  • “Adhishthana” em Sânscrito significa, literalmente e no seu uso mais geral, uma “posição perto de alguém”, normalmente um governante, e implica uma posição de poder ou autoridade. Então, nesse sentido, é uma posição de alto escalão que um governante confere a alguém. Ao receber essa posição, a pessoa fica mais próxima de ter as qualidades do governante que a confere.
  • A tradução chinesa, sheshou (摄受), transforma o termo em um substantivo verbal – a “delegação de uma posição, que alguém toma ou detém”.
  • A tradução tibetana, byin-gyis-brlabs, comumente abreviada como byin-rlabs (pronunciada “chinlab”) enfatiza o processo que ocorre com a delegação de tal posição. A primeira sílaba, byin, é algumas vezes explicada como significando um “polimento” e algumas vezes como uma “habilidade”, enquanto rlabs conota “poder” e brlabs, derivando do verbo rlob-pa, significa transformar, especificamente transformar em um estado melhor. Então, byin-gyis-rlabs, é comumente definida em tibetano como uma “transformação, por meio de um polimento, em um estado onde se possui poder e habilidade”. Ou conferir tal transformação. Embora “rlabs” também seja a palavra tibetana para “ondas”, explicações tradicionais não se referem a esse significado da palavra.
  • Portanto, em alguns casos, eu costumo traduzir o termo para o inglês como “edificante” ou “enobrecedor”. A tradução “inspiração”, que eu tenho usado com mais frequência, tem a conotação de ser a força que nos leva a tal transformação ou melhoria.

O termo sânscrito original, e as várias traduções que citei, se refere à posição de elevada habilidade e poder conferida por alguém ou por algo, e que é semelhante à própria posição da pessoa ou da coisa que a conferiu. Também estão conotados aqui os processos de transformação que levam alguém a essa posição (ou seja, a “melhoria”), a ação que gera a transformação (ou seja, o ato de conferir isso a alguém), a força que gera essa transformação (ou seja, a inspiração), e como a transformação ocorre (ou seja, por meio do polimento).

A Função da Força Positiva, dos Fatores da Natureza Búdica e das Tendências para Fatores Mentais Positivos

Sua pergunta diz respeito aos detalhes de como tal transformação edificante acontece. Essa não é uma questão muito simples de se responder, uma vez que o termo chinlab é usado em diversos contextos diferentes, para se referir a uma grande variedade de processos e coisas. Vamos olhar primeiro para a inspiração no contexto do guru-yoga, como na sua pergunta.

Você está apenas parcialmente correto quando sugere que o fortalecimento de uma boa qualidade em um discípulo acontece como resultado do amadurecimento de uma força positiva (bsod-nams, Skt. punya, “mérito”) em seu contínuo mental, que foi ativada pela inspiração proporcionada por um mestre espiritual. Mas existem muitos outros fatores causais envolvidos, que também estão no contínuo mental dos discípulos e que também são ativados pela inspiração que vem do professor.

A força positiva é um fator causal para a obtenção de um nível mais elevado de uma boa qualidade ou para a obtenção de uma realização. Mas as tendências para fatores mentais como amor e compaixão, que constituem essas boas qualidades, e as tendências para a consciência discriminativa com a qual se tem uma realização, também são ativadas e fortalecidas pela inspiração de um professor.

Devemos adicionar à essa inspiração que vem do professor, o cultivar dos vários aspectos da natureza búdica. Isso inclui a habilidade inata a todos os seres de conhecer coisas, de se comunicar e de agir, assim como a capacidade do contínuo mental de ser inspirado e levado a um estado mais elevado. Inclusive, a rede de forças positivas, presente em todos os contínuos mentais, também é um fator da natureza búdica.

Vacuidade do Processo de Inspiração

A transformação positiva surge na dependência de várias causas e condições. Então, para entender o processo de inspiração, é essencial que a vacuidade dos três círculos envolvidos fique bem clara: (1) a pessoa que confere a inspiração, (2) aquele que a recebe, (3) a inspiração em si. Nenhuma dessas coisas pode ser estabelecida como existindo por seu próprio poder, do si só, independente de todo o resto. Em outras palavras, não se pode estabelecer a existência da conferência de inspiração sem que exista alguém que a confira, alguém que possa recebê-la, e de fato a receba, e algo, no caso a inspiração, que possa ser conferido e recebido. Ou seja, a existência de cada um desses três círculos só pode ser estabelecida na dependência dos outros dois.

Mas não é apenas isso. A existência de cada um dos três círculos também só pode ser estabelecida na dependência dele ser o objeto a que as palavras e conceitos se referem. O que é inspiração? É simplesmente aquilo a que a palavra inspiração se refere, com base na existência alguém que a confere, alguém que a recebe, e alguém a quem ela é conferida; cada uma dessas três coisas só pode ser estabelecida em relação às demais, e em relação às palavras e conceitos que se referem a elas.

“Inspiração”, portanto, não é um tipo de “coisa” que é passada de uma pessoa para outra, como uma bola de futebol, e então atinge um objetivo (alguma força positiva ou uma tendência para uma boa qualidade) e, como resultado, dá a alguém um placar maior. Precisamos evitar conceber o processo de inspiração como sendo uma ligação da mente de um professor espiritual com as forças positivas, tendências positivas e fatores da natureza búdica no contínuo mental de um discípulo. Não é como se houvesse uma conexão através da qual alguma coisa é transmitida, como se as duas mentes, a conexão e a inspiração transmitida fossem coisas encontráveis por si mesmas, por seu próprio poder, como se estivessem encapsuladas em plástico. Entretanto, podemos convencionalmente descrever o processo de inspirar como um processo no qual a inspiração que vem de um professor, é recebida por um discípulo e desperta ou estimula vários fatores no seu contínuo mental. Assim, o discípulo se transforma e atinge um estado mais desenvolvido, que se parece mais com o do professor.

No caso do guru-yoga, o professor espiritual não confere conscientemente a transformação positiva. A inspiração do discípulo acontece dependendo não apenas da prática do guru-yoga em si, mas também dos seguintes fatores:

  • Da compaixão e do amor do professor para trazer felicidade a todos os seres limitados e aliviar seu sofrimento, além das orações de aspiração do professor e dedicação de força positiva para que seja possível completar seu propósito.
  • Das verdadeiras qualidades de corpo, fala e mente do professor,
  • Da firme convicção do discípulo (mos-pa) de que o professor espiritual de fato tem essas boas qualidades, e de sua apreciação (gus-pa) da bondade do professor
  • Da receptividade do discípulo para receber inspiração, que é expressada na forma de seus pedidos fervorosos
  • Da força positiva, dos fatores da natureza búdica e da tendência para os fatores mentais positivos no contínuo mental do discípulo
  • Do fator da natureza búdica que implica no contínuo mental do discípulo poder ser levado a um estado mais elevado.

Portanto, o processo de inspiração é facilitado pelo discípulo através da recitação do mantra nome do professor espiritual ou do fundador da linhagem ou de um de seus membros proeminentes. Isso ajuda o discípulo a ficar mais focado e concentrado. O processo é adicionalmente facilitado pela visualização da inspiração do discípulo na forma de luzes coloridas e néctares que saem do professor, fluem em sua direção e preenchem o seu corpo. Isso ajuda a gerar um sentimento verdadeiro de se estar obtendo a inspiração.

Mas, novamente, devemos enfatizar que nenhum item nesse processo pode ser estabelecido como se existisse por seu próprio poder, por si mesmo, encontrável como uma “coisa” à qual as palavras e os conceitos se referem. Entretanto, se todas as causas e fatores estiverem presentes, o processo de inspiração ocorrerá.

O Poder e a Capacidade de Ser Inspirado como um Aspecto Característico das Boas Qualidades de Alguém

Mais um ponto precisa ser esclarecido. Embora a existência das boas qualidades de corpo, fala e mente de um professor espiritual não possa ser estabelecida pelo pode de algo que exista nas próprias qualidades do professor ou em seu contínuo mental, convencionalmente falando, as boas qualidades possuem aspectos característicos. Porém, esses aspectos característicos não são encontráveis, nem mesmo no nível da verdade convencional das boas qualidades, e eles não estabelecem nem mesmo a existência convencional das boas qualidades. Assim como acontece com as boas qualidades em si, esses aspectos característicos são estabelecidos meramente pelas palavras e conceitos correspondentes a eles.

O tradutor tibetano do final do século VIII, Kawa Paltseg (sKa-ba dPal-brtsegs), indica esses aspectos característicos na definição que ele dá para “chinlab”, que costumamos traduzir para o inglês como “inspiração”. Ele escreveu que “Inspiração é o poder e a força que existe em todo ponto do Dharma presente nos caminhos mentais de um arya.”

Um arya é um ser altamente realizado que possui cognição não conceitual das quatro nobres verdades, e no contexto dos aryas bodhisattvas, especificamente, uma cognição não conceitual da vacuidade. “Pontos do Dharma” refere-se às realizações e aos conhecimentos que existem como aspectos dos verdadeiros caminhos mentais do contínuo mental de um arya: isso é o que significa Dharma. Em outras palavras, um dos aspectos característicos das boas qualidades de um arya é que são inspiradoras: elas têm o poder e a força de inspirar os outros.

A referência aqui é indubitavelmente à divisão em quatro tipos da inspiração (byin-gyis brabs-pa bzhi) ou em quatro tipos de inspiração arya (‘phags-pa byin-gyi rlabs-pa bzhi). Embora eu não tenha conseguido localizar a fonte do sutra e a explicação desses quatro tipos de inspiração, vou listá-las e propor explicações experimentais:

  • Inspiração da verdade (bden-pa’i byin-gyis rlabs-pa) – talvez refira-se à autenticidade e veracidade das realizações e conhecimentos dos verdadeiros caminhos mentais de um arya.
  • Inspiração da generosidade (gtong-ba’i byin-gyis rlabs-pa) – apenas uma suposição: talvez se refira à vasta generosidade que é um dos aspectos dos verdadeiros caminhos mentais de um arya bodhisattva, atingida no primeiro bhumi (nível mental de um arya).
  • Inspiração das pacificações (nye-bar-zhi-ba’i-byin-gyis rlabs-pa) – talvez se refira ao verdadeiro cessar de obscurecimentos emocionais, ou de obscurecimentos emocionais e cognitivos, pelos verdadeiros caminhos mentais.
  • A inspiração da consciência discriminativa (shes-rab-gyi byin-gyis rlabs-pa) – talvez se refira à consciência discriminativa, e não apenas da vacuidade, mas dos dezesseis aspectos das quatro nobres verdades, que é a principal característica dos verdadeiros caminhos mentais.

A Inspiração Que Surge Sem Esforço Através da Influência Iluminada

Um outro ponto a ser notado, no que diz respeito a esses tipos de inspiração arya, e que também é relevante no caso do guru-yoga, é a inspiração que ocorre através do processo de influência iluminada (‘phrin-las). A “influência iluminada” é algumas vezes traduzida como “atividade búdica”, mas não é atividade no sentido comum de “fazer algo”. A “Influência Iluminada” ocorre automaticamente, sem nenhum esforço consciente ou intencional.

Maitreya descreve o que é a atividade iluminada, em O Contínuo Mental mais Duradouro/Eterno (rGyud bla-ma, Skt. Uttaratantra), usando a analogia do brilho do sol. As boas qualidades de um Buda, ele explica, exercem uma influência iluminada nos seres, sem nenhum esforço consciente ou favoritismo, assim como o sol que brilha sem nenhum esforço consciente ou favoritismo. Entretanto, com o objetivo de receber calor do sol, seres limitados precisam chegar até a luz do sol. Similarmente, um discípulo precisa abrir-se para a inspiração que brilha, sem nenhum esforço ou favoritismo, das boas qualidades de seu professor espiritual, que exerce uma influência iluminada nos demais. No seu texto, Maitreya usa o termo “pensamento conceitual”, significando “preconcepções”, para se referir a “esforço consciente e favoritismo”.

A Inspiração que Vem de uma Figura Histórica numa Linhagem Espiritual

Se estamos subliminarmente nos unindo e interagindo com a mente do professor, será que estamos nos unindo e interagindo também com a mente da figura histórica em cuja forma imaginamos nosso professor? Será esse também o caso para qualquer outra figura que imaginamos e a qual fazemos pedidos e nos abrimos? Em outras palavras, podemos direcionar nossa mente diretamente para se unir e interagir com a mente de um Buda ou de uma figura histórica, sem usar o professor como um tipo de condutor?

O processo pelo qual a inspiração ocorre – explicado acima –  é exatamente o mesmo, independente de estarmos nos referindo à inspiração que vem de um professor espiritual, de um fundador da linhagem, de uma figura búdica, ou mesmo de uma linhagem espiritual inteira – que vem desde o Buda Shakyamuni até o nosso professor espiritual. Lembre, não existe tal coisa como uma inspiração encontrável, que passa de uma pessoa para outra, como uma bola de futebol, seja vinda diretamente do Buda, de nosso mestre ou através de uma linha de sucessivos professores desde o Buda. Por isso, a distância entre eles e nós, no espaço ou no tempo, é irrelevante. O processo de inspiração simplesmente ocorre, surgindo na dependência de todas as causas e condições relevantes. Nenhuma conexão encontrável liga nossas mentes com a de qualquer uma dessas figuras.

Conforme mencionado acima, uma das causas cruciais para o processo de inspiração ocorrer é o amor, a compaixão e as preces que a pessoa que é nossa fonte de inspiração fez, seja ela o nosso professor espiritual, um mestre da linhagem ou o Buda Shakyamuni. Essas preces foram preces para beneficiar todos os seres limitados nas dez direções e nos três tempos – passado, presente, futuro. Por causa do vasto escopo do Mahayana, aceitamos que essas preces realmente ajudaram a amadurecer as boas qualidades atingidas por essas pessoas, e devemos também aceitar que a influência iluminada dessas preces continua a possuir o poder e a habilidade de nos beneficiar, ainda hoje, na forma de inspiração.

Shantideva, em Engajando-se no Comportamento do Bodhisattva (sPyod-‘jug, Skt. Bodhisattvacharyavatara) indica esse ponto claramente:

(IX.35 Assim como uma joia que realiza desejos, e uma árvore que realiza desejos, realizam desejos, da mesma forma, através do poder dos discípulos de serem disciplinados e do poder das preces, a Forma Iluminada do Triunfante aparece.
(IX.36) Por exemplo, quando um curador garudika falece após fazer um poste de madeira curadora, o poste continua pacificando veneno e coisas do tipo, mesmo depois de um longo tempo após a sua morte.
(IX.37) Da mesma forma, quando um bodhisattva passa para o nirvana, depois de produzir o poste curador (corpo) de um Triunfante através do comportamento de bodhisattva, ele continua podendo realizar tudo que precisa ser feito.

Quais Forças Positivas São Estimuladas a Amadurecer com a Inspiração

Se subliminarmente unimos e interagimos com a mente do professor e do Buda, e isso age como circunstância para amadurecermos nossa força positiva em direção às realizações ou ao que quer que seja, a realização (ou aquilo que amadurece) acontece naturalmente numa ordem inata progressiva encontrada dentro de todas as mentes ou acontece como uma coisa bem complicada, de acordo com um zilhão de legados cármicos? Ou será que um buda tem total controle sobre o que vai amadurecer primeiro de acordo com o que será mais propício ao nosso progresso espiritual?

Primeiro precisamos diferenciar os vários tipos de força positiva. Se a força positiva advinda de ações construtivas não for dedicada à liberação ou à iluminação, ela será uma força positiva construtora do samsara. Se for dedicada à obtenção da liberação, será uma força positiva construtora da liberação, e se for dedicada à obtenção da nossa iluminação, será uma força positiva construtora da nossa iluminação. Apenas a força positiva construtora do samsara é uma força cármica. Os dois últimos tipos são os tão conhecidos “construtores puros” e não são fenômenos samsáricos cármicos.

Além disso, a força positiva amadurece de muitas formas: como nossa experiência de felicidade, nossa experiência dos cinco fatores agregados de uma situação de renascimento, nossa inclinação de agir de forma similar às nossas ações construtoras prévias que geraram essa força, nossa experiência dos outros agindo em relação a como nós agimos, nossa experiência de determinado tipo de ambiente e assim por diante. Além disso, existe a força positiva que amadurece na obtenção (thob-pa) de uma realização (rtogs-pa). Vamos deixar de lado esse último tipo de amadurecimento de força positiva por agora e considerar os outros tipos de amadurecimento primeiro.

Quando falamos da inspiração como algo que age como causa para a ativação e o fortalecimento de uma tendência a uma qualidade intermitente, como a compaixão, não acredito que algum dos três tipos de força positiva – construtora de samsara, construtora de liberação ou construtora de iluminação – esteja diretamente envolvido. Esses três tipos de força positiva estão envolvidos, entretanto, na força positiva que amadurece na forma de um sentimento de querer ajudar alguém motivado por compaixão. Podemos aplicar nossa compaixão na busca de algum objetivo samsárico, como o ato construtivo de ajudar alguém motivado principalmente pelo desejo de que essa pessoa goste de nós. Mas podemos também aplicar nossa compaixão na busca de liberação ou iluminação, quando nosso ato construtivo de ajudar alguém é motivado por renúncia ou bodhichitta.

Assim como no caso de receber inspiração, o amadurecimento da tendência para o fator mental que constitui uma boa qualidade e o amadurecimento de uma força positiva também ocorrem como fenômenos que surgem dependentemente. Em outras palavras, tanto a tendência para que uma determinada boa qualidade amadureça, quanto a força cármica para que o sentimento de querer fazer uma determinada ação amadureça, dependem de uma vasta multidão de causas e condições. Ninguém tem controle sobre esse processo: nem nós, nem nosso professor, e nem mesmo o próprio Buda Shakyamuni.

No caso da tendência para uma boa qualidade, a inspiração causa meramente uma tendência de amadurecimento intermitente para que uma das forças positivas amadureça na forma de um desenvolvimento ou melhoria dessa boa qualidade. A boa qualidade que se desenvolve ou se fortalece no nosso contínuo mental será similar à boa qualidade da pessoa que nos inspira.

Porém, existem inumeráveis tendências para fatores mentais positivos e fatores de natureza búdica em nosso contínuo mental que nos capacitam a desenvolver boas qualidades similares às dos professores espirituais e dos Budas. Existem também inumeráveis forças positivas ou potenciais para agir mais uma vez de maneira similar às ações construtivas que já tomamos antes. Além disso, cada uma dessas tendências, fatores, e potenciais pode amadurecer em uma coleção de diferentes resultados, dependendo de vários fatores que podem afetar sua força. Qual deles amadurece, quando amadurece, a força com que amadurece, a forma com que o amadurecimento acontece, quanto tempo aquilo que amadurece fica manifesto no nosso contínuo mental, como aquilo que amadurece muda de momento para momento, e assim por diante, depende de vários fatores mentais adicionais que acompanham nossa experiência em cada momento. Eles também dependem das circunstâncias externas nas quais nos encontramos em cada momento. Nenhum desses fatores pode ser estabelecido como existindo pelo poder de alguma coisa encontrável em si. O amadurecimento simplesmente ocorre na dependência da interação de todos eles, e certamente não dependendo do poder de apenas um deles, como a intenção do Buda.

No que diz respeito à força positiva que pode amadurecer na forma da obtenção de uma realização, a inspiração pode causar uma tendência de amadurecimento intermitente para que a consciência discriminativa amadureça em um alto grau desse fator mental; possibilitando, assim, a realização. A análise desse tipo de amadurecimento é a mesma que já tínhamos aplicado em relação à compaixão. A força positiva, entretanto, pode também ser amadurecida e melhorada pela inspiração, de forma a gerar a obtenção em si. De novo, a obtenção da realização, e assim por diante, surge na dependência de muitos fatores, também de forma similar à análise que fizemos acima. E de novo, o tipo de força positiva – construtora de samsara, construtora de liberação, construtora de iluminação – que é ativada, depende de fatores motivacionais que acompanham nossa meditação ou qualquer outra prática que precipite a obtenção da realização.

No caso de realizações que são simplesmente entendimentos profundos ou insights sobre vários temas, como impermanência, os defeitos do samsara e assim por diante, não existe ordem progressiva inata. As várias apresentações, como a do lam-rim, o caminho gradual para iluminação, sugerem muitas ordens progressivas benéficas, mas praticantes também podem ganhar insights em ordens que difiram dessas. No caso dos cincos caminhos mentais – construção (o caminho da acumulação), aplicação (o caminho da preparação), visão (o caminho da visão), habituação (o caminho da meditação) e não mais treinar (o caminho do não mais aprender) – existe uma ordem progressiva inata. Cada um dos cinco caminhos mentais só pode ser obtido com base na obtenção do caminho mental imediatamente anterior. O mesmo acontece com relação ao estágio da geração (bskyed-rim) e o estágio da completitude da prática do tantra anuttaryayoga.

Mais uma vez, devemos entender que não existe uma ordem progressiva estabelecida pelo poder de alguma coisa na realização em si, ou na obtenção ou no contínuo mental, que tem a habilidade de a obter. É claro, então, que precisamos entender o surgimento dependente e a vacuidade de causa e efeito a fim de começar a entender como a inspiração ajuda a fomentar o amadurecimento de forças cármicas.

Outros Usos do Termo Chinlab

Embora, no caso da inspiração vinda de um professor espiritual, de um mestre da linhagem ou de Buda, o processo ocorra sem nenhum esforço consciente da parte da fonte e beneficiário da inspiração, existem outras situações em que o termo chinlab se refere ao processo consciente de fazer uma “transformação de melhoria”. Isso ocorre dentro do contexto da prática do tantra, e lá, o processo de fazer tal transformação pode ser denominado “enobrecimento”. Alguns tradutores traduzem chinlab, nesse contexto, como “consagrar”, mas tal termo conota fazer algo sagrado, o que talvez dê um sabor enganosamente não budista ao termo.

Uma das formas como o enobrecimento acontece é através de um aprimoramento das boas qualidades. Um exemplo é na prática de Guhyasamaja, quando “enobrecemos” nosso corpo, fala e mente através de visualizações elaboradas que evocam figuras de budas, fazendo pedidos a eles e depois os dissolvendo em outras figuras búdicas visualizadas dentro de nós, como representação de nosso corpo, fala e mente.

Outra maneira de enobrecimento ocorre em quase todas as práticas do anuttarayoga tantra, quando enobrecemos nossos órgãos reprodutivos com visualizações de instrumentos ritualísticos e sílabas sementes dentro deles. Similarmente, na prática Vajrabhairava, por exemplo, enobrecemos nossos estimuladores cognitivos (os sensores dos olhos, os sensores dos ouvidos, e assim por diante) visualizando neles sílabas sementes ou figuras de budas. Nesses casos, não estamos transformando essas características de nosso corpo, que já está sendo visualizado como a figura de um buda, em algo que não era antes. Ao invés disso, conforme explicado nos ensinamentos Sakya sobre a inseparabilidade do samsara e nirvana, cada um desses aspectos de nosso corpo tem dois níveis de aparência: um comum, chamado aparência “impura” e uma aparência “pura”. Com esses procedimentos enobrecedores, estamos meramente revelando o nível de aparência pura que esteve sempre lá.

A prática do Tantra também inclui “enobrecer” itens que não são parte de nosso corpo – mais especificamente: vários tipos de oferendas e, no tantra anuttarayoga, o vajra e o sino que usamos durante os rituais. Aqui, conscientemente fazemos uma transformação de melhoria. No caso da oferenda interna (nang-mchod) feito no tantra anuttarayoga, por exemplo, a transformação de melhoria implica em quatro passos:

  • Eliminação (bsang-ba) das interferências vindas da taça de oferenda física diante de nós. Isso se faz através de visualização de figuras enérgicas afugentando dela os espíritos interferidores.
  • Purificação (sbyang-ba) da aparência impura da taça e do seu conteúdo como uma taça comum com chá, ambos tendo existência verdadeiramente existente. Isso é feito através da dissolução da aparência impura, focando-se em sua vacuidade de maneiras impossíveis de existência.
  • Geração (bskyed-pa) de uma aparência da taça e do seu conteúdo como vários tipos de carne e substâncias corpóreas, representando os agregados e elementos de nossos corpos comuns.
  • Enobrecimento (byin-gyi-rlabs) da carne e das substâncias corpóreas através de visualizações representando sua purificação, realização e resplandecimento (sbyang rtog-sbar gsum). “Purificação” é de sua cor, odor, sabor e potencial. “Realização” é a realização disso como um néctar que concede liberdade de todas as doenças, e também imortalidade, e assim implica na visualização disso se transformando em néctar. “Resplandecimento” é o aumento do néctar de forma que ele se torne inexaurível.

No caso de visualização de oferendas externas (phyi-mchod) feitas de água, flores, incenso e assim por diante, as visualizações dos quatro passos de enobrecimento são muito mais simples.

Um último exemplo de enobrecimento de um item não conectado com o corpo é com as pílulas especiais, também chamadas de “chinlab”, talvez traduzidas aqui como “pílulas de enobrecimento”. Elas são pequenas pílulas, feitas de flores e ervas secas, e outras substâncias, sobre as quais um mestre espiritual, normalmente junto com uma assembleia monástica, recita milhares de mantras enquanto foca em visualizações especiais com a consciência extasiada da vacuidade delas. Após a conclusão de um dado número de repetições do mantra, o mestre espiritual sopra nas pílulas e então as enobrece. Quando alguém com crença confiante na habilidade enobrecedora dessas pílulas engole uma delas, sente-se ele mesmo edificado e enobrecido por ela. Algumas variedades dessas pílulas enobrecedoras ajudam a eliminar obstáculos e interferências da pessoa que as engole, outras ajudam a curar a pessoa de alguma doença. De novo, precisamos frisar a importância de entender a vacuidade e a natureza de surgimento dependente de tudo envolvido aqui, com o objetivo de entender como que engolir pílulas, chinlab, beneficia alguém.

Mantras como Algo que Molda os Ventos de Energia Sutil

Existe uma outra fonte de informação sobre a qual estou extremamente confuso. Com relação a como os mantras funcionam, eu entendo a teoria de como eles moldam os ventos de energia sutil, o que resulta em determinados estados mentais. E como mantras podem também fazer com que os ventos de energia sutil entrem e se dissolvam no canal central, e assim ganhamos acesso ao vento mais sutil de energia e à mente de clara luz.
Apesar dessas teorias sobre a prática de mantras, por alguma razão extremamente peculiar esses ensinamentos raramente são dados, quer alguém receba ensinamentos na Índia, Nepal ou no Ocidente. Mesmo que alguns Geshes ou Khenpos de todas as quatro tradições tibetanas tenham recebido sua educação dentro de universidades monásticas reputadas, por alguma razão peculiar eles com frequência ensinam alguma outra teoria de como os mantras funcionam. Eles dizem que mantras funcionam por “bençãos” (ou isso é como o tradutor traduz). Eles dizem que quando recitamos o mantra, recebemos bençãos, pois o mantra é imbuído do poder da fala iluminada dos budas.
Estou profundamente confuso. Existe uma razão pela qual a teoria que fala de como os mantras moldam os ventos de energia sutil não é comumente ensinada ao invés de, ou conjuntamente com essa teoria de “bençãos”?

A explicação sobre os mantras como sendo uma forma de moldar os ventos de energia a fim de facilitar sua entrada, permanência e dissolução no canal de energia central deriva dos ensinamentos da recitação vajra (rdo-rje bzlas pa). Isso é uma prática muito avançada, feita no estágio de isolamento da fala (ngag-dben) do estágio de completitude (rdzogs-rim), no anuttarayoga tantra. Uma explicação completa da recitação vajra e do isolamento da fala é encontrado em textos como Uma Lâmpada para Iluminar “Os Cinco Estágios” (Rim-lnga gsal-sgron) – comentário de Tsongkhapa ao texto Os Cinco Estágios (Rim-lnga, Skt. Pancakrama), de Nagarjuna, com relação à prática do estágio de completitude em cinco estágios do Guhyasamaja Tantra. Já que este é um tópico extremamente avançado, não é muito estudado ou ensinado. Entretanto, uma que vez que o princípio básico por traz dessa prática pode ajudar a tornar a recitação de mantras mais compreensível para ocidentais, eu o menciono em minha explicação da teoria de mantras.

O Poder Transformativo Edificante dos Mantras

Se existe alguma verdade nessa teoria das “bençãos”, estou tentando entender como ela pode funcionar. É apenas uma hipótese, mas é assim que funciona?
Por exemplo, quando recitamos “OM MANI PADME HUM”, automaticamente, subliminarmente, unimos nossa mente com as mentes de uma linhagem inquebrável de mestres, incluindo o Buda Shakyamuni ou outro buda? Por meio disso a energia edificante de toda uma linhagem inquebrável interage com nossa mente de tal forma que age como uma circunstância que amadurece nossa força cármica positiva, resultando no surgimento de compaixão em nossa mente? E o mesmo processo continua em todos os mantras e seus resultados relevantes?
Se existe um processo pelo qual subliminarmente unimo-nos e interagimos, é suficiente apenas recitar mantras? Ou será que para receber essa energia edificante temos que adicionar outras causas à mistura causal para o processo funcionar? Por exemplo, esse processo poderia funcionar para uma pessoa que não tivesse conexão com nenhuma linhagem inquebrável e, apesar disso, encontrasse um mantra num livro de Dharma e começasse a recitá-lo? Ou o mantra tem que vir diretamente da transmissão de uma conexão válida numa corrente de linhagem inquebrável de mestres, incluindo um buda?
Se tem que vir de uma linhagem inquebrável a fim de que o processo funcione, os mestres têm que ter obtido resultados com o mantra para que sua a energia edificante continue a passar através da linhagem inquebrável? Por exemplo, se um mantra for transmitido oralmente de um professor que obteve resultados com ele para um aluno, mas se esse aluno nunca praticou o mantra, e nem sequer obteve resultados com ele, será que esse aluno poderia transmitir o mantra a outras pessoas, mantendo a linhagem de bençãos inquebrável para outras pessoas?
É apenas a energia edificante de um Buda vindo através de uma corrente inquebrável da linhagem, como se a linhagem inquebrável agisse como um condutor e cada mestre da linhagem uma seção do condutor pela qual passa a energia edificante de um Buda? Ou a energia edificante é uma mistura das energias edificantes do Buda e de todos os seres incluídos nessa linha inquebrável?

Resposta

A explicação de como a transformação de melhoria acontece através da recitação de mantras é a mesma de como ela acontece através do guru-yoga. Aqui, entretanto, precisamos adicionar algumas coisas do que eu acabei de explicar sobre os itens enobrecedores que não são parte dos nosso corpo – nesse caso, os sons dos mantras.

Mantras são exemplos de fala iluminada proferida pelo Buda, que aparece nos tantras na forma de várias figuras búdicas. Sendo uma fala iluminada, o som do mantra foi enobrecido pela compaixão, amor, bodhichitta, preces e realização da vacuidade do Buda. Assim, mantras são sons inspiradores e, como Kawa Paltseg os definiu, têm o aspecto característico de possuir um certo poder ou habilidade. Mas, conforme explicamos antes, não existe nada encontrável no som do mantra em si que, pelo seu próprio poder, estabeleça a existência desse poder e habilidade. O poder e a habilidade surgem na dependência de inumeráveis outras causas e condições.

Quando repetido por alguém com crença confiante no poder dos mantras, a recitação pode ativar e fortalecer tendências para várias boas qualidades, como compaixão e consciência discriminativa. Essa ativação e fortalecimento é muito facilitada se, precedendo e acompanhando a recitação do mantra, também praticarmos um tipo apropriado de meditação, como uma meditação de visualização, análise, e assim por diante. Além disso, dependendo da motivação que acompanha a recitação – samsárica, de renúncia, ou de bodhichitta – a força positiva correspondente para a obtenção de uma realização é realçada.

Se você me perguntar se a recitação de um mantra acompanhada por descrença no poder dos mantras pode trazer resultados positivos, eu duvido que possa. Se a recitação é acompanhada por hesitação indecisa mas com uma certa crença confiante no seu poder, ela pode gerar um resultado mais fraco do que quando acompanhada de uma crença totalmente confiante.

Todas as pessoas da linhagem de transmissão oral do mantra precisam ter obtido resultados dessa recitação? Não. A habilidade inspiradora do mantra, e também o seu poder, surge na dependência apenas do fato de que ele foi proferido originalmente pelo Buda. Claro, quaisquer realizações dos membros da linhagem de transmissão oral do mantra irão aumentar sua habilidade inspiradora e seu poder, mas tal fortalecimento não é necessário. Os membros da linhagem precisam meramente assegurar a precisão das palavras e sílabas do mantra, sem omitir ou adicionar nada.

O mesmo é verdadeiro no caso da transmissão oral das palavras de um pronunciamento escritural, tanto do Buda como de qualquer outro mestre espiritual subsequente. Afinal, nada do que o Buda proclamou foi escrito na mesma época em que ele viveu. Transcrições escritas das palavras do Buda começaram apenas séculos depois. Portanto, a única maneira de assegurar a precisão dessas palavras iluminadas era fazendo com que cada geração de discípulos as ouvisse sendo recitadas pela geração anterior, que as tinha memorizado após tê-las ouvido de alguém da geração prévia. Para isso funcionar corretamente, a cadeia de pessoas transmitindo as palavras iluminadas, tanto um mantra quanto um pronunciamento escritural, precisa ser inquebrável durante todo o caminho até a fonte das palavras, o Buda. Então, por exemplo, com a permissão de Sua Santidade o Décimo Quarto Dalai Lama, eu passei adiante a transmissão oral da linha especial de Serkong Dorjechang da Essência da Explicação Excelente dos Significados Interpretáveis e Definitivos (Drang-nges legs-bshad snying-po) de Tsongkhapa para o Segundo Serkong Rinpoche. Eu fiz isso apenas com base no fato de eu ter recebido sua transmissão oral de meu professor, o Primeiro Serkong Rinpoche. Eu nunca tinha verdadeiramente estudado o texto, muito menos ganhado qualquer realizaçãos sobre o seu significado.

E o que dizer sobre recitar um mantra sem ter recebido sua transmissão oral ou a tendo recebido de alguém que não recebeu uma transmissão oral autêntica? Eu acho que, nesse caso, pode haver algum poder que vem da inspiração, mas será mais fraco do que se recebêssemos de uma linhagem inquebrável de transmissão. Por exemplo, Shantideva escreveu em Engajando-se no Comportamento do Bodhisattva: 

(VIII.118): ...através de sua grande compaixão, o Guardião Avalokiteshvara elevou até mesmo (o poder de) seu próprio nome a fim de dissipar os medos e anseios dos seres, (como timidez) na frente de uma audiência. 

“Elevou” aqui é o termo chinlab. Mas novamente, devemos evitar pensar que o poder do mantra é estabelecido por alguma coisa encontrável dentro do som do mantra.

O que dizer de casos em que a transmissão oral do mantra ocorre utilizando-se uma pronúncia errada, ou no caso em que nós o pronunciamos incorretamente? Eu acho que não há diferença no poder e na habilidade do mantra quando a recitação não é acurada. Afinal, os tibetanos não pronunciam certas palavras dos mantras da mesma forma que os indianos o fazem. Por exemplo, tibetanos pronunciam a palavra sânscrita “vajra” como “bendza” e os mongóis a pronunciam como “ochir”. Apesar disso, não podemos dizer que os tibetanos e mongóis, que recitam os mantras falando vajra como “bendza” ou “orchir”, não tiveram nenhuma realização. E também não podemos dizer que suas realizações foram menores do que as dos indianos que pronunciam “vajra” como “vajra”. A habilidade de inspirar introduzida pelo Buda nos sons do mantra continua sendo transmitida, apesar da deformação de sua pronúncia. Isso porque ainda existe uma transmissão inquebrável do mantra. Afinal, a transmissão oral dos textos originalmente escritos em sânscrito é considerada inquebrável mesmo quando a transmissão é continuada com a recitação dos textos traduzidos, como em tibetano ou chinês. A linha de transmissão é como o contínuo mental de um indivíduo: nenhum momento é igual ou totalmente diferente do momento anterior. Cada momento surge meramente na dependência no momento anterior, como uma continuidade inquebrável dele; e não há nada encontrável que passe de um momento para o outro, de modo que seja possível estabelecer a existência da continuidade.

O que dizer se nós ou outra pessoa inventarmos um mantra e o recitarmos enquanto geramos compaixão? Será que a recitação poderia nos ajudar a manter o foco na compaixão? Porém, sabendo que o mantra não vem do Buda, certamente não obteremos a inspiração do Buda. Essa é a razão pela qual, embora possamos nos visualizar na forma de Maria, no Cristianismo, para nos ajudar a focar no amor e compaixão, é totalmente inapropriado chamar isso de uma prática tântrica budista. Além disso, é extremamente desrespeitoso com o Cristianismo, uma vez que líderes cristãos não aprovariam tal prática e provavelmente a considerariam herética. Porém, este não é o caso dos tantras budistas usando as mesmas figuras dos tantras Hindus, como a figura de Sarasvati. Isso porque o uso dessa figura nos tantras budistas vem de um buda, e o Hinduismo aceita o Buda como uma encarnação de Vishnu. Assim, os hindus não acham esse uso desrespeitoso.

E se acreditarmos que um mantra inventado por alguém realmente vem do Buda e recitarmos esse mantra inautêntico? Esse caso lembra o exemplo de um monge tibetano cuja mãe pediu que trouxesse um dente do Buda quando voltasse de uma peregrinação na Índia. O monge esqueceu o pedido da mãe, mas lembrou-se logo antes de chegar em casa. Em desespero, para não desapontar sua mãe, ele pegou um dente de cachorro que encontrou no chão, limpou, embrulhou em um lindo tecido e o presenteou a sua mãe, declarando que era um dente do Buda. A mãe acreditou que aquilo era realmente o dente do Buda e, inspirada por isso, atingiu muitas realizações espirituais.

Nesse exemplo, a mãe foi inspirada pelo Buda meramente por causa de sua crença, essa inspiração não foi transmitida através do dente do cachorro. Similarmente, creio que se acreditarmos confiantemente que um mantra vem do Buda, quando de fato não vem, essa nossa crença confiante no Buda nos trará inspiração. O mesmo poderia ser verdade se recebêssemos a transmissão oral de um mantra autêntico pensando que a transmissão foi inquebrável, quando de fato não foi.

A Interação Inconsciente do Buda com nossas Mentes

Os professores altamente realizados e os budas podem se unir e interagir com nossa mente, infiltrando-se em nossa corrente de pensamentos sem que estejamos conscientes disso? Por exemplo, quando nos engajamos formalmente numa linha de raciocínio, com o objetivo de conceitualmente reconhecer a vacuidade, eles podem interagir com nossa mente de forma a “mexer” na nossa corrente de pensamentos aqui e alí, a fim de manter nossa linha de raciocínio, tanto quanto possível, no caminho correto para que eventualmente consigamos chegar perto de reconhecer conceitualmente a vacuidade?

Os textos sempre enfatizam a importância de fazermos pedidos de inspiração aos Budas e aos nossos professores espirituais. Fazer pedidos por inspiração é uma forma muito forte de demonstrar nossa receptividade e desejo de ser inspirado. Isso implica que se não pedirmos por inspiração, não estaremos tão abertos a receber inspiração. Por essa razão, eu não acho que possamos receber inspiração de Budas ou outros seres sem estarmos conscientes disso. Mesmo quando recebemos inspiração, não é como se algo encontrável, no caso a inspiração, estivesse sendo infiltrando em nossa mente e nos protegendo de cometer erros.

A Inspiração Que Obtemos por Considerar Nosso Professor Espiritual como um Buda

Quando alguns textos afirmam que deveríamos perceber todas as aparências como o dharmakaya do guru, mesmo que o guru não seja um Buda de verdade, que seja apenas como um Buda, estamos subliminarmente nos unindo e interagindo com a energia edificante do Buda?

Sim, eu acredito que estamos. Se é possível alguém receber a inspiração do Buda, com base na crença confiante de que o dente de um cão é o dente do Buda, não seria possível recebermos muito mais inspiração do Buda quando temos a crença confiante de que nosso professor é como um buda? No caso do professor espiritual, estamos focando nas suas verdadeiras boas qualidades e reconhecendo-as como as qualidades do Buda. Ao nos focarmos nas qualidades iluminadas, recebemos inspiração de um buda. Existe um ditado tibetano que diz: “Se nos focarmos em nosso professor como sendo uma pessoa comum, obteremos uma inspiração comum. Se focarmos nele como sendo um Buda, obteremos a inspiração de um buda.”

Encontrando Rigpa, a Consciência Pura, Cara à Cara, por Meio da Inspiração de um Mestre Dzogchen

Dentro da literatura dzogchen, afirma-se que um mestre dzogchen pode apresentar diretamente o aluno à rigpa, à consciência pura. Uma maneira de se fazer isso é através de inspiração. Quando isso acontece, a mente da pessoa subliminarmente se une ou interage com a energia edificante do professor dzogchen, de forma que amadurece enormes quantidades de força positiva de uma só vez? Um mestre dzogchen precisa ter certas qualidades específicas para que esse processo ocorra? Ou será que a mente do mestre, com quem temos profunda conexão cármica, age como um condutor para a energia edificante de um buda passar, e é essa energia edificante do Buda que interage com nossa mente?

Primeiro, é importante entender o termo técnico envolvido aqui, ngo-sprod, que você citou conforme a tradução que normalmente se dá a essa palavra: “apresentar”. O termo, na verdade, significa “ conhecer cara a cara”. A inspiração de um mestre dzogchen pode agir como uma das causas para a força positiva construtora de iluminação amadurecer no nosso contínuo mental na forma da obtenção de uma realização de rigpa, ou seja, consciência profunda. Essa consciência pura, primordialmente imaculada, sempre esteve subjacente a cada momento de nossa experiência, desde sempre. A realização dessa consciência pura é o encontro com ela, cara a cara, de tal forma que essa consciência pura “conheça sua própria face”, o que significa que agora estamos completamente conscientes de sua verdadeira natureza subjacente.

Nosso encontro com rigpa cara a cara pode ser precipitado por nosso mestre dzogchen, que nos explica rigpa usando palavras – seja no contexto de uma cerimonia ritualística ou não – ou mesmo com ele ou ela fazendo um gesto sem dizer nada. Mas, uma vez que outros podem ouvir tais palavras ou ver tais gestos sem vivenciar, como resultado, um encontro cara a cara com rigpa, nosso próprio encontro com rigpa cara a cara surge na dependência de muitos fatores adicionais, incluindo a inspiração de nosso mestre dzogchen.

O fator adicional mais importante é que precisamos construir uma quantidade enorme de força positiva construtora de iluminação através de ter feito com sucesso, em vidas passadas e ou nesta, as práticas compartilhadas e não compartilhadas (ngondro), e desenvolvido pelo menos um nível avançado de concentração, ideal de bodhichitta e compreensão conceitual correta da vacuidade. Além disso, precisamos ter recebido iniciações tântricas, tomado os votos relacionados e atingido um certo grau de sucesso na prática de visualização e recitação de mantra no estágio de geração (bskyed-rim) e nas práticas envolvendo os ventos de energia e canais de energia (rtsa-rlung) do estágio de completitude. Sobre tal base de enorme força positiva construtora de iluminação e profunda consciência construtora de iluminação, bem como pelo poder da inspiração do mestre dzogchen e sem nenhum esforço adicional, podemos vir a conhecer rigpa cara a cara. Esse encontro cara a cara, entretanto, precisa proceder através dos estágios usuais da meditação dzogchen: primeiro acessar e reconhecer o alaya de hábitos (bag-chags-kyi kun-gzhi), então o rigpa fulgurante (rtsal-gyi rig-pa) e finalmente o rigpa essencial (ngo-bo’i rig-pa).

O processo com que a inspiração gera uma transformação de melhoria para ajudar a permitir-nos encontrar rigpa cara a cara é o mesmo que já explicamos em relação a outros exemplos do poder da inspiração. Nesse caso, as próprias realizações do mestre dzogchen são em si inspiradoras e, além disso, o mestre age como um condutor para que inspiração da linhagem inteira, desde o Buda, tenha um impacto em nós. Mas, claro, isso ocorre sem que haja nada encontrável, nada com existência estabelecida por si só, nada que tenha passado do Buda para um mestre, para outro e então para nós – nenhuma “inspiração” que exista de uma forma que seja encontrável e nenhuma “realização” que exista de uma forma que seja encontrável.

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