Perfeição da Concentração

27:21

(1) Aumentando assim meu entusiasmo, deixarei a mente em concentração absorta; já que a pessoa com a mente distraída é presa fácil das emoções perturbadoras.

(2) Ao me dissociar tanto do corpo quanto da mente, não me distrairei mais; deixarei de lado as preocupações mundanas e interromperei os pensamentos errantes.

(3) As preocupações mundanas não são descartadas por causa do apego pegajoso e da sede de ganhos materiais; para desistir dessas coisas, alguém com conhecimento discerniria da seguinte forma:

(4) "Um estado mental excepcionalmente perceptivo, unido a um estado quieto e assentado, destrói completamente as emoções perturbadoras." Com essa compreensão, buscarei primeiro uma mente quieta e assentada, que se alcança através alegria do desapego das preocupações mundanas.

(5) (Afinal,) todas as pessoas impermanentes com apego pegajoso a seres impermanentes não verão seus entes queridos por milhares de vidas (após a morte).

(6) Se eu não os vir, ficarei triste e minha mente não se estabelecerá em concentração absorta; e se os vir, nunca ficarei satisfeito; e como sempre, serei atormentado pela saudade.

(7) Por estar apegado aos seres limitados, não consigo (ver) as coisas como elas são; também perco qualquer senso de desilusão; e, no final, serei atormentado pela dor.

(8) Por pensar apenas neles, esta vida passará sem nenhum significado e, por causa dos amigos e parentes não eternos, perderei o Dharma eterno.

(9) Como eu agia igual aos infantis, certamente irei para um renascimento pior; se vou para uma situação que não é (nem mesmo) igual, o que terei ganho por ter me apoiado nesses infantis?

(10) Em um momento, eles são amigos; e no instante seguinte, inimigos. Quando é para estarem alegres, eles se enfurecem: seres comuns são difíceis de agradar.

(11) Quando lhes dizem o que é benéfico, ficam furiosos, e me desviam do que é benéfico também. Mas, se o que dizem não é ouvido, ficam com raiva; então, vão para um renascimento pior.

(12) Eles têm inveja dos superiores, competem com os iguais, são arrogantes com os inferiores, presunçosos quando elogiados e odiosos quando ouvem o que não querem: que benefício podem me trazer os seres infantis?

(13) Se eu me associar aos infantis, os comportamentos destrutivos inevitavelmente surgirão, como o autoelogio, o menosprezo pelos outros e o tagarelar sobre os prazeres do samsara.

(14) Por confiar-me assim aos outros, não terei nada além de perdas, pois eles, de fato, não me farão bem e eu, de fato, não farei bem a eles.

(15) Portanto, deixe-me fugir para bem longe dos infantis; mas se acaso encontrá-los, vou tratá-los com gentileza e, sem me tornar excessivamente íntimo, me comportarei, como faria uma pessoa comum.

(16) Tirando apenas o que é útil para o Dharma, como uma abelha faz com a flor, viverei sem lhes dar intimidade, como se nunca os tivesse visto antes.

(17) "Mas obtenho muitos ganhos materiais e reconhecimento, e muitas pessoas gostam de mim." Se eu continuar vaidoso assim, coisas horríveis me acontecerão após a morte.

(18) Não importa a que minha mente confusa se apegue; junto, milhares de problemas surgem e permanecem comigo.

(19) Por isso, o sábio não tem apegos, (pois) dos apegos surgem coisas terríveis. Como todos esses (objetos) serão naturalmente descartados (com a morte), seja firme e reflita sobre o seguinte:

(20) Muitas pessoas já adquiriram riqueza material, e muitas outras, fama e uma boa reputação. Mas nunca se soube de alguma que tenha morrido e ido para algum lugar onde sua fama e fortuna fossem junto.

(21) Se há quem me menospreze, qual o prazer de ser elogiado? E se há quem me elogie, qual o desprazer de ser menosprezado?

(22) Se nem o Triunfante conseguia agradar todos seres limitados com suas variadas disposições (mentais), o que dizer de pobres como eu? Portanto, que eu desista de me preocupar com as pessoas mundanas.

(23) Elas menosprezam os seres limitados que não têm riqueza material, e falam mal daqueles que têm; que prazer se pode tirar da companhia daqueles que por natureza são tão difíceis (de conviver)?

(24) Disse O Que Assim se Foi (Buda): "Uma pessoa infantil não é amiga de ninguém"; a amabilidade de uma pessoa infantil não surge a menos que seja por interesse próprio. 

(A amabilidade que surge do interesse próprio é a amabilidade que serve apenas aos objetivos do “eu”; assim como o sofrimento de quebrar um bem material vem, na verdade, da perda do próprio prazer.)

(25) Nas florestas, por outro lado, as criaturas selvagens, os pássaros e as árvores nunca falam mal de você e ficam felizes quando têm sua amizade. Quando irei morar com eles?

(26) Quando irei me desapegar, viver em cavernas, santuários vazios ou ao pé de uma árvore, e nunca olhar para trás?

(27) Quando irei viver na natureza, em vastas regiões sem dono, indo para onde quiser ou ficando (onde quiser), sem nenhum apego?

(28) Quando viverei sem medos, tendo (apenas) poucas coisas; uma tigela (de barro) para mendigar, roupas que ninguém gosta de usar, ou até mesmo sem abrigar esse corpo? 

(29) E quando eu for aos cemitérios, vou comparar meu corpo com as pilhas de ossos dos outros, vendo que também têm a natureza de apodrecer.

(30) Este meu corpo também apodrecerá, e por causa de seu fedor, nem mesmo os chacais se aproximarão.

(31) Embora este corpo tenha nascido como um único objeto, a carne e os ossos que surgiram com ele vão se separar e seguir seus próprios caminhos. O que dizer então dos meus amigos, que já são separados (dele)?

(32) O homem nasce sozinho, e também morre sozinho. E se ninguém pode tomar para si sequer uma parte de sua dor, de que servem esses amigos que me sobrecarregam?

(33) Assim como os viajantes que estão na estrada buscam um lugar para se alojar, os viajantes na estrada da existência buscam um renascimento para se alojar.

(34) Portanto, vou retirar-me para a floresta até que quatro carregadores retirem meu corpo de lá, em meio ao lamento de meus (amigos) mundanos.

(35) Que este corpo fique lá isolado, sozinho, sem fazer amigos íntimos nem criar conflitos. Se eu já for tido como morto, não haverá enlutados quando eu realmente morrer.

(36) Como não haverá atendentes (circulando) por perto, se lamentando e perturbando, não haverá ninguém para distrair este (ermitão) e tirar sua atenção do Buda.

(37) Portanto, deixe-me viver em solitude em lindas e encantadoras florestas, feliz e com poucos problemas, aquietando todas as distrações.

(38) Tendo desistido das outras aspirações, e com atenção unifocada, me esforçarei para estabelecer minha mente em concentração absorta, e domá-la;

(39) (Pois) desejos lascivos geram desastres neste mundo, assim como nos próximos. Neste, causam assassinatos, prisão e esfaqueamentos e, no próximo, reinos sem alegria e coisas do gênero.

(40) Aqueles (corpos) pelos quais repetidamente implorou a intermediários masculinos e femininos, e pelos quais não se esquivou de comportamentos negativos ou danos à sua reputação,

(41) (Pelos quais) até se colocou em perigo e gastou todos os seus recursos, e com os quais experimentou o maior dos prazeres (o da satisfação sexual) -

(42) Eles não eram nada além de esqueletos, independentes, e nunca seus! Por que não seguir, (em vez disso) para a satisfação do nirvana, e se entregar totalmente, para a alegria do seu coração?

(43) Aquele rosto tímido, olhando para baixo, que você levantou com um certo esforço (em seu casamento), tendo já visto ou não, estava coberto por um véu,

(44) Aquele rosto, que tanto te perturbava emocionalmente, agora foi descoberto pelos urubus e pode ser olhado diretamente. Por que você foge agora?

(45) Aquele (rosto) que você protegia dos olhares maliciosos, por que não o protege agora, seu avarento (ciumento), enquanto está sendo devorado?

(46) Vendo essa pilha de carne sendo devorada por abutres, (diga-me), será que se deve oferecer guirlandas de flores, joias e perfume de sândalo à comida dos outros?

(47) Se você (agora) tem medo até de olhar para um esqueleto, embora ele sequer se mova, por que não tinha medo quando ele se movia (por influência de uma intenção), como um zumbi?

 (48) Se você o cobiçava quando estava coberto, por que não o cobiça (agora), quando está descoberto (de sua pele)? Se não tem utilidade para esse corpo (agora), por que copulava com ele quando estava coberto?

(49) Seus excrementos e saliva vinham do mesmo alimento; então, por que, se deliciava com a saliva e não tinha prazer com os excrementos?

(50) Sem conseguir encontrar prazer em travesseiros de algodão, macios ao toque, e que não exalam um cheiro ruim, pessoas luxuriosas desejam (corpos repletos de) excrementos.

(51) Pessoas luxuriosas, grosseiras, aturdidas, (que pensam) "É impossível fazer amor com o algodão, (apesar de ser) macio ao toque", ficam furiosas com ele.

(52) Se você não gosta do que é sujo, por que copula com outro (corpo): uma jaula de ossos, amarrada com tendões e coberta com uma lama de carne?

(53) Você mesmo contém muitos excrementos, então lide com isso sozinho e constantemente. Você é sedento por excrementos? Quer mais um saco?

(54) (Pensando) "Mas é a carne que me agrada", você quer tocá-la e olhá-la. Então, por que não deseja a carne em seu estado natural, desprovida de uma mente?

(55) A mente que você deseja não pode ser tocada ou olhada. O que pode ser tocado, não tem consciência. Então de nada serve! Por que você copula (com um corpo)?

(56) Embora não seja uma surpresa você não entender que o corpo de outra pessoa, por natureza, é (cheio de) excrementos, não entender que o seu próprio corpo é, por natureza, (cheio de) excrementos – isso é realmente chocante!

(57) Por que a mente, obcecada por sujeira, rejeita o tenro lótus (nascido da lama e) aberto pelos raios do sol, mas encontra prazer em uma gaiola (de ossos, cheia) de excrementos?

(58) Se não deseja tocar o solo e lugares sujos de excrementos, por que deseja tocar o corpo do qual eles saíram?

(59) Se não tem apego por sujeira, por que copula com um corpo cuja semente veio de um campo de excrementos e por ele foi alimentada?

(60) É por ele ser pequeno que você não deseja um verme asqueroso nascido dos excrementos? Afinal, você deseja um corpo, que também nasce de excrementos, e é por natureza cheio de excrementos!

(61) Além de minimizar a imundice do próprio corpo, como é obcecado por sujeira, anseia por outros sacos de excrementos!

(62) Embora seja refrescante mastigar cânfora ou arroz cozido com caril de vegetais, uma vez colocado na boca, se cuspido ou vomitado, até o solo fica sujo e fétido.

(63) Embora seja óbvio, se você ainda duvida da imundice do corpo, olhe para os corpos imundos de outras pessoas, jogados no cemitério.

(64) Quando a pele é rasgada, um grande horror surge. Agora que sabe disso, como pode ter prazer com essa coisa?

(65) E o cheiro aspergido no corpo vem do sândalo e outras coisas, não vem da pessoa. Como se sente atraído por uma pessoa por causa de um cheiro que vem de outra coisa?

(66) Se, por causa de seu fedor natural, não sentir atração por ele, isso não seria uma sorte? Por que as pessoas neste mundo, que apreciam o que é inútil, aspergem seus corpos com cheiros doces?

(67) Se o cheiro doce é do sândalo, o que vem do corpo neste caso? Por que se sentir atraído por uma pessoa por causa de um cheiro que não vem dela?

(68) Se o estado natural do corpo é absolutamente horrível - nu, coberto de sujeira, cabelos e unhas longos, dentes amarelos e manchados -

(69) Por que ter (tanto) trabalho em enfeitá-lo e arrumá-lo, se é como uma arma de autoflagelação? Este mundo está mesmo cheio de loucos trabalhando muito para se iludir!

(70) Você, que só de ver alguns esqueletos no cemitério, ficou tão desanimado, encontra prazer sexual em cidades cemitério, repletas de esqueletos semoventes?

(71) E um (saco) cheio de excrementos como esse, não vem sem um preço: a exaustão de ter que ganhar (dinheiro) por causa dele, e o tormento (depois) nos reinos sem alegria.

(72) Se não é possível acumular riqueza quando se é criança, com o que se vai ter prazer quando se é adolescente? Se passar a vida adulta acumulando riquezas, o que fará quando idoso, com seus desejos sexuais?

(73) Há pessoas que, (embora) tenham desejos grosseiros, se exaurem o dia todo no trabalho e, ao voltar para casa, com o corpo exausto, adormecem como mortos.

(74) Alguns precisam ir para o exterior (em expedições do exército) e, com emoções perturbadoras, passar pelo sofrimento de estar longe. Ansiando por seus filhos e esposas, passam anos sem poder vê-los.

(75) Confusos pelo desejo por algo que lhes beneficie, até se vendem para obter algo que nunca obterão, (labutam) inutilmente, movidos pelos ventos dos caprichos cármicos dos outros.

(76) E as esposas daqueles que vendem seus próprios corpos e precisam seguir as ordens de outros, impotentes, dão à luz aos pés das árvores ou em lugares desolados.

(77) (Algumas) pessoas tolas, enganadas por seus desejos, e querendo ganhar a vida, pensam: "Vou ganhar a vida", e entram na guerra, arriscando suas vidas, ou tornam-se servos do lucro.

(78) Alguns gananciosos são até mutilados e outros empalados em estacas. Alguns são esfaqueados com adagas e outros até queimados vivos.

(79) Com todo o tormento (envolvido) em acumular, proteger e perder (bens), saiba que a vantagem material é uma desvantagem sem fim: pois os distraídos com a obsessão pela riqueza não têm tempo de se libertar dos sofrimentos da existência compulsiva.

(80) (Assim,) para pessoas com muitos desejos, desvantagens como essas são abundantes, e os prazeres insignificantes, como os punhados de grama que um boi consegue comer enquanto puxa uma carroça.

(81) Por causa do gosto insignificante do prazer, que não é difícil de encontrar nem para um boi, essa maravilha tão difícil de encontrar, das folgas e oportunidades, é destruída por aqueles que desperdiçam seu (bom) carma.

(82) (Pense) no sofrimento que é ter que se exaurir (para satisfazer) os desejos insignificantes (de um corpo) que certamente perecerá, e em cair em reinos sem alegria ou pior,

(83) Com um milionésimo desse sofrimento, se poderia obter o estado de Buda; os que têm muitos desejos sofrem mais do que os engajados no comportamento do bodhisattva e, ainda assim, não obtêm a iluminação.

(84) Nem armas, nem veneno, nem o fogo ou os precipícios, nem os inimigos se comparam ao desejo quando consideramos as torturas dos reinos sem alegria.

(85) Afastando-me assim dos desejos, aumentarei meu prazer na solidão. Em florestas pacíficas, sem conflitos ou distúrbios emocionais,

(86) Entre (belas) pedras, enormes como palácios, resfriadas pelos raios de sândalo da lua, perambulam alegremente os afortunados, refrescados pelas brisas silenciosas e suaves da floresta, refletindo sobre o ideal de beneficiar os demais.

(87) Eles ficam em qualquer lugar, pelo tempo que quiserem - em um abrigo vazio, ao pé de uma árvore ou em cavernas. Os que se livram da tensão de ter que proteger seus bens vivem relaxados, sem qualquer preocupação,

(88) Agem de acordo com sua vontade, sem apego ou vínculo com ninguém, desfrutando de alegria e contentamento, que são tão difíceis de encontrar, até para governantes poderosos.

(89) Tendo refletido sobre aspectos como esses, sobre os benefícios de me isolar e aquietar completamente os pensamentos aleatórios, meditarei na bodhichitta.

(90) Meditarei primeiro sobre a igualdade entre mim e os outros: como somos todos semelhantes, sentimos felicidade e dor, cuidarei deles como cuido de mim mesmo.

(91) Apesar do corpo ter muitas partes, como mãos e assim por diante, deve ser cuidado como um todo; apesar dos seres errantes serem muito diferentes, no que diz respeito à felicidade e à dor, são todos iguais a mim, desejam ser felizes; (portanto, formam) um todo.

(92) Embora minha dor não cause sofrimento ao corpo dos outros, uma vez que é a dor do "eu", ela é insuportável, devido ao meu apego ao "eu".

(93) Da mesma forma, embora a dor dos outros não recaia sobre mim, ainda é a dor de um "eu", e como tal, (também) é difícil de suportar, devido ao apego que se tem ao "eu".

(94) Portanto, a dor dos outros é algo a ser eliminado, pois tem a (natureza da) dor, a dor de um "eu"; e os outros são seres aos quais devo ajudar, por causa de sua (natureza como) seres limitados, o corpo de um "eu".

(95) Sendo a felicidade igualmente apreciada por mim e pelos outros, o que há de tão especial comigo para eu buscar apenas a minha felicidade?

(96) E uma vez que o sofrimento é igualmente desagradável para mim e para os outros, o que há de tão especial comigo para eu cuidar de mim e não cuidar dos outros?

(97) É porque o sofrimento deles não me afeta, por isso que não os protejo; então, por que me protejo contra o sofrimento (de vidas) futuras, se ele também não me afeta (agora)?

(98) É distorcida a noção: "Mas sou eu que terei que passar por isso", pois será outra pessoa que morrerá e outra ainda que nascerá.

(99) Se quem deve cuidar do sofrimento é quem está sofrendo, e o sofrimento do pé não pertence à mão, por que a mão deveria cuidar do pé?

(100) Se é porque não faria sentido (ignorá-lo), pois estamos considerando o todo; bem, também não faz sentido ignorar (o todo formado por) mim e os outros.

(101) O que se chama de "um contínuo" ou "um grupo", como um rosário, um exército, e assim por diante, não é, na verdade, (um todo localizável). Uma vez que não existe um possuidor (um “eu”) para o sofrimento, de quem é a responsabilidade?

(102) O fato de não ter um dono faz com que todo sofrimento seja igual: o sofrimento deve ser evitado (simplesmente) porque é sofrimento. Por que fazer distinções?

(103) "Mas, por que querer acabar com o sofrimento de todos os seres? Bem, isto é indiscutível: se é para acabar com o sofrimento de um, é para acabar com o sofrimento de todos; e se não é, isso se aplica a mim também, e a todos os seres limitados.

(104) "Mas se com a compaixão vem tanto sofrimento, por que me esforçar para desenvolvê-la?" Bem, se você refletiu sobre o sofrimento dos seres, como pode considerar demasiado o sofrimento da compaixão?

(105) Se através do sofrimento de um, se acabasse com o sofrimento de muitos, aquele com compaixão amorosa tomaria esse sofrimento para si, por si próprio e pelos outros.

(106) Assim fez Supushpa-Chandra. Embora soubesse que seria punido pelo rei, não evitou seu sofrimento, pois queria dissipar o sofrimento dos outros.

(107) Aqueles com contínuos mentais assim acostumados, e cuja felicidade é aliviar o sofrimento alheio, são capazes de entrar em (um reino triste de) dor implacável como um cisne entra em um lago de lótus.

(108) Então, conforme os seres limitados vão sendo liberados, eles obtêm oceanos de alegria: esses são (os que obtiveram a verdadeira satisfação). Isso não seria suficiente? Por que desejar a libertação (insípida)?

(109) Assim, mesmo trabalhando para o benefício dos outros, não existe presunção; não existe auto-enaltecimento; não se espera recompensa quando o apetite é apenas por beneficiar os outros.

(110) Portanto, assim como me protejo de coisas desagradáveis, por menores que sejam, agirei da mesma forma com os outros, com uma mente protetora e uma mente de compaixão.

(111) Se, por conta da familiaridade, se tem um senso de "eu" em relação às gotas de sêmen e sangue pertencentes a outras pessoas, apesar de (esse “eu”) não existir como uma “coisa”.

(112) Por que eu não poderia considerar "eu" o corpo de outra pessoa? (Afinal) não é difícil viver com a alteridade do meu próprio corpo.

(113) Compreendendo as desvantagens de (apreciar) a mim mesmo e os oceanos de vantagens de (apreciar) os outros, meditarei em abandonar a maneira como considero o “eu”, e a estenderei aos outros.

(114) Assim como a mão e assim por diante são queridos por serem membros do corpo, por que os seres que têm um corpo não podem ser queridos por serem membros da vida errante?

(115) Assim como surgiu, por familiaridade, uma atitude de "eu" em relação a este corpo, apesar de não haver nele um "eu", por que não poderia surgir, também por familiaridade, uma atitude de "eu" em relação aos outros seres limitados?

(116) Dessa forma, mesmo trabalhando em benefício dos outros, não surgirá um sentimento de auto importância ou presunção, assim como não surge uma esperança de ser recompensado quando dou de comer a mim mesmo.  

(117) Portanto, assim como me protejo de ser rebaixado, mesmo que minimamente, criarei o hábito de ter uma mente protetora e uma mente compassiva em relação a todos os seres errantes.

(118) É por isso que, por grande compaixão, o Guardião Avalokiteshvara elevou até (o poder de) seu próprio nome para dissipar os medos dos seres errantes, (como a timidez) ao falar em público.

(119) Portanto, não vou me esquivar do que é difícil de fazer, pois, pela força da familiaridade, mesmo uma pessoa de quem eu tinha medo até de ouvir o nome (pode tornar-se) alguém sem quem não consigo ter alegria.

(120) Assim, quem deseja dar uma direção rápida e segura para si mesmo e para os outros precisa praticar o segredo mais sagrado: trocar de lugar com os outros.

(121) Por causa do apego pegajoso a este corpo como sendo "eu", até em pequenas situações surge medo. Então, quem não rejeitaria, como um temido inimigo, ter esse corpo (como “eu”)?

(122) (Esse) corpo, que para remediar aflições como fome, sede e outras, mata aves, peixes e veados e se esconde na estrada em emboscadas,

(123) E que, para obter lucro e respeito, mataria até pai e mãe; e que por roubar o que é de propriedade da Joia Tripla, pode queimar em (um reino triste de) dor implacável -

(124) Que homem sábio desejaria protegê-lo e venerá-lo (como sendo "eu")? Quem não o veria como um inimigo e não o desprezaria?

(125) "Mas se eu doar (isso), com o que ficarei?" Pensar nos próprios interesses é o que faz os fantasmas famintos. "Se eu ficar com isso, o que terei para dar (aos outros)?”  Esse tipo de pensamento, direcionado aos interesses dos outros, é uma qualidade do divino.

(126) Se eu causar sofrimento aos outros por causa de meus objetivos, serei atormentado em reinos sem alegria; mas, se sofrer pelos objetivos dos outros, obterei todo tipo de glória.

(127) Do desejo de que só eu progrida, vêm os piores estados de renascimento, além de status inferior e estupidez; mas transferir esse mesmo (desejo) para os outros traz melhores estados de renascimento, honra (e inteligência).

(128) Dar ordens aos outros para alcançar meus objetivos, me levará a ser um servo ou ainda pior; mas dar ordens a mim mesmo para alcançar os objetivos dos outros, me levará a ser um senhor ou ainda melhor.

(129) Todo aquele que é feliz, é por desejar felicidade aos outros; e todo aquele que é infeliz é por desejar felicidade para si mesmo.

(130) E precisa dizer mais? Basta olhar para a diferença entre esses dois: a pessoa infantil age em benefício próprio e o Sábio (Buda) age em benefício alheio.

(131) Para os que não trocarem a sua felicidade pelo sofrimento dos outros, será impossível obter o estado de buda, e não terão felicidade nem no samsara.

(132) Esqueça as vidas futuras; para um servo que não faz seu trabalho ou um senhor que não paga seu salário, nem os objetivos desta vida são alcançados.

(133) Ao invés de gerar felicidade - um festival de gloriosa felicidade, nesta e nas próximas vidas –, por causarem sofrimento aos outros, essas pessoas desnorteadas se agarram ao sofrimento.

(134) Toda a violência deste mundo, e todo o medo e sofrimento que há, tudo surge do apego a um “eu”. De que me serve esse terrível demônio?

(135) Se não abandonar totalmente esse “eu”, não conseguirei abandonar meu sofrimento; assim como se não abandonar totalmente o fogo, não conseguirei abandonar ser queimado.

(136) Portanto, para acabar com o meu próprio sofrimento e o sofrimento dos outros, a eles me entregarei, e vou tomá-los como sendo “eu”.

(137) Ó mente, decida de uma vez: "Estou a serviço dos outros." De agora em diante não almejará nada além do bem-estar dos seres.

(138) É inapropriado buscar meus objetivos quando meus olhos, e o resto do corpo estão a serviço dos outros; também é inapropriado perder tempo com as (mãos), olhos e assim por diante (que foram dados) aos outros. 

(139) Considerando, através dessa (visão), os seres limitados como sendo meus chefes, o que quer que você veja neste meu corpo, pode roubar e usar para beneficiar os outros.

(140) Criando nos seres inferiores, e todos os outros, (um senso de) "eu" e criando em si mesmo (um senso de) outro, medite (assim) sobre a inveja, a rivalidade e a arrogância, com a mente livre de pensamentos preconceituosos:

(141) "Demonstram respeito a ele, mas não a mim; ele é rico, eu não. Ele é admirado, mas eu sou menosprezado; ele tem felicidade, mas eu tenho sofrimento;

(142) "Eu tenho que trabalhar, enquanto ele vive tranquilamente. Ele é reconhecido em todo mundo como sendo superior; já eu, como inferior, sem nenhuma qualidade.

(143) “Mas como pode alguém sem qualidades fazer (qualquer trabalho)? Todos temos qualidades! Há aqueles a quem sou inferior, e também há aqueles a quem sou, de fato, superior.

(144) "O declínio da disciplina ética, e de minha compreensão, se deve às emoções perturbadoras, e não a elas estarem sob meu controle. Preciso ser curado da melhor forma; aceito até a dor.

(145) “Mas ele não só não me trata como alguém a ser curado, como também me menospreza”. De que me servem suas boas qualidades quando ele é o “eu” tendo boas qualidades?

(146) "Ele não tem compaixão pelos seres errantes presos nas garras da besta carnívora dos piores renascimentos, e é arrogante com todos os outros por causa de suas boas qualidades; ele quer ser melhor até que os mestres qualificados!"

(147) "Ele tem a percepção de que estou no mesmo nível dele, e (luta para) ter tanta riqueza e respeito quanto eu, mesmo que por meios contenciosos, só para se sobressair.”

(148) "Se minhas qualidades ficassem claras para todo o mundo, ninguém ouviria falar das dele.”

(149) "E se minhas deficiências fossem escondidas, seria eu que ganharia oferendas, e não ele. Eu acumularia riqueza material e as honras viriam para mim, não para ele.”

(150) "E assistiríamos com deleite ele finalmente ser rebaixado, como incompetente, objeto de chacota de todos os seres errantes e insultado por todos."

(151) "(Além disso), descobriríamos que este ser iludido (e infeliz) está (invejosamente) competindo comigo. Mas como sua cultura, inteligência, aparência, classe ou riqueza poderia ser igual à minha?”

(152) "Assim sendo, ao ouvir minhas próprias qualidades serem proclamadas em todos os lugares, vou me deliciar com um banquete de alegria, tão contente que os pelos de meu corpo ficarão de pé. 

(153) "Mesmo que ele possa ter algum ganho material, se estiver trabalhando para nós, receberá apenas o suficiente para sobreviver e o resto tomaremos para nós.

(154) "Ele deve ser tirado de seu estado (ocioso) de tranquilidade e sempre conectado às coisas ruins que vivenciamos. Por centenas de vezes, ele nos prejudicou no samsara."

(155) Ó mente, incontáveis eras você passou buscando obcessivamente os seus objetivos; mas com essa enorme exaustão, tudo o que conseguiu foi apenas sofrimento.

(156) Por favor, definitivamente se engaje (agora mesmo) nos objetivos dos outros; então verá os benefícios disso no futuro, uma vez que as palavras do Sábio nunca estão erradas.

(157) Se, no passado lhe houvesse ocorrido agir assim, esta situação não lhe teria ocorrido: livrar-se (justamente) da bem-aventurança de um Buda. 

(158) Portanto, assim como colocou um senso de "eu" nas gotas de sêmen e sangue de outros, crie o hábito (de colocá-lo) nas gotas de outros mais.

(159) Torne-se, assim, um ladrão para os outros, roube tudo o que vê neste corpo, e use para o benefício deles.

(160) "Esse 'eu' é feliz, os outros são infelizes; esse 'eu' é sublime, os outros são comuns; esse 'eu' trabalha em benefício (próprio), os outros não", pensando (assim), por que não teria inveja de si mesmo?

(161) Portanto, prive-se de sua felicidade e tome para si o sofrimento dos outros. Investigue quais são as falhas desse "eu", perguntando: "Quando ele faz alguma coisa (pelos outros)?"

(162) Qualquer erro que outros cometam, transforme-o, (vendo-o) como uma falha deste "eu"; mas qualquer erro, por menor que seja, que este "eu" cometa, admita-o abertamente para muitas pessoas.

(163) Declare que a reputação dos outros é superior, e deixe-a ofuscar a reputação deste "eu"; e como se ele fosse o mais inferior dos servos, ordene que ele faça o que é benéfico a todos.

(164) Não elogie este “eu”, que naturalmente age segundo suas imperfeições, por alguma (pequena) qualidade temporária; aja de forma que ninguém nunca saiba das qualidades desse “eu”. 

(165) Em suma, qualquer ação danosa que tenha cometido em prol dos seus próprios objetivos, deixe que os danos recaiam sobre você, para o bem dos seres limitados.

(166) Nunca dê força a esse “eu”, para que ele não se torne agressivo; faça-o se comportar como uma noiva recém-casada, tímida, recatada e contida.

(167) "Faça isso! Fique assim! Jamais aja dessa maneira!"  Assim ele deve ser controlado, e derrubado, caso passe dos limites.

(168) Mas se apesar de ter sido orientada, ó mente, você não agir dessa maneira, como todos os problemas vêm de você, será você que terei que derrubar.

(169) Aquela época em que me prejudicava, ficou para trás. Agora eu a vejo; para onde poderá fugir? Acabarei com sua arrogância.

(170) Jogue fora, agora, toda e qualquer esperança de "Tenho meus próprios interesses." Eu a vendi ao outros, então nem pense em cansaço; ofereci sua energia (a eles).

(171) Se, por não me importar (com os demais), eu não lhe entregar aos seres limitados, certamente você me entregará aos guardas dos reinos sem alegria.

(172) Muitas vezes você me entregou assim, e muito tempo eu passei atormentado; mas agora, lembrando dessas mágoas, vou esmagá-la, criatura egoísta.

(173) Se deseja ser feliz, não trabalhe pela própria felicidade; se quer se proteger, proteja sempre os outros.

(174) No grau que este corpo for mimado, nesse mesmo grau ele irá degenerar para um estado cada vez mais delicado.

(175) E estando degenerado assim, nem toda esta (rica) terra conseguirá atender seus anseios; então quem conseguirá?

(176) Para quem deseja o impossível, surgem emoções perturbadoras e esperanças frustradas; mas para quem não espera nada, as realizações nunca têm fim.

(177) Portanto, não deixe a porta aberta para o desejo pelo corpo aumentar. As melhores coisas são aquelas que não são tidas como desejáveis.

(178) No final, (o corpo) vira cinzas e, (mesmo enquanto vivo,) é inerte, precisa ser movido por alguma outra coisa - esta forma imunda é (realmente) medonha. Por que considerá-la "minha"?

(179) Vivo ou morto, de que me serve este equipamento? Qual a diferença entre ele e um pedaço de barro ou coisa do gênero? Mas não, você não deixa de lado o seu orgulho (de se identificar com ele)!

(180) O sofrimento se acumula inutilmente quando se é parcial em relação ao corpo; então, de que adianta ficar bajulando ou zangado com essa coisa que parece um bloco de madeira?

(181) Se alimentado por mim ou devorado por abutres e outros animais ele não tem apego ou raiva, então por que eu tenho apego a ele?

(182) Se ele não fica com raiva quando é menosprezado, ou contente quando é elogiado - se não sabe fazer nada disso, por quem estou me exaurindo?

(183) "Mas aqueles que desejam esse corpo, eles são meus amigos.” Bem, se todos desejam o próprio corpo, por que não sou amigo deles também? 

(184) Portanto, imparcialmente, estou doando este corpo para o benefício dos seres errantes. E embora ele tenha muitos defeitos, preciso mantê-lo como ferramenta de trabalho.

(185) Chega de me comportar como uma criança, estou seguindo os passos dos sábios! Relembrando os ensinamentos sobre cuidar, abandonarei a sonolência e o torpor mental. 

(186) Assim como os filhos compassivos do Triunfante, suportarei os rigores de fazer o que deve ser feito; pois se não me esforçar constantemente, dia e noite, quando meu sofrimento chegará ao fim?

(187) Portanto, desviando minha mente de caminhos infrutíferos, constantemente irei colocá-la em concentração absorta, no objeto perfeito, para que todos os seus obscurecimentos desapareçam.

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