Revisão
Em nossa conversa sobre o Treinamento da Mente em Sete Pontos, discutimos o primeiro desses pontos, o treinamento nas preliminares, que nos prepara para seguir o treinamento Mahayana, e também o segundo ponto, o treinamento em bodhichitta. Discutimos o treinamento em bodhichitta mais profunda − a compreensão da vacuidade − e começamos a discutir a bodhichitta relativa. Vimos, de muitas maneiras, como é importante a compreensão da vacuidade, − pelo menos algum nível dela, − e não apenas para o tonglen, mas também para as etapas anteriores a ele.
Ao desenvolver bodhichitta, estamos tentando desenvolver nosso coração e mente a fim de desejarmos sinceramente beneficiar a todos os seres e assumir a responsabilidade por isso, almejando a iluminação para o fazer da maneira mais completa possível. E para sermos bem-sucedidos, precisamos estar convictos de que é possível atingir a iluminação e ter alguma compreensão, baseada na razão, de por que é possível se identificar e se relacionar com todos os seres. Vimos que a compreensão da vacuidade nos ajuda muito nisso.
Dois Tipos de Amor e Compaixão
Sua Santidade o Dalai Lama explica que existem dois tipos diferentes de amor e compaixão. Existem o amor e a compaixão que se baseiam na inconsciência em relação à realidade e, por causa dessa inconsciência, baseiam-se em outros tipos perturbadores de emoções, como o apego. Esse amor e compaixão podem, em muitos casos, surgir automaticamente, com base no apego que sentimos e assim por diante. Esse é um tipo emotivo de amor e compaixão, que é muito perturbador, instável e não é confiável, pois há muito ego envolvido. A dramaticidade faz parte dele. Assim como o pavão, que exibe as penas da cauda, para se mostrar, fazemos uma demonstração emocional de “Oh, eu te amo!”
Tenho certeza de que muitos de nós já vivenciamos isso. Quando estamos apaixonados por alguém, nos sentimos compelidos a expressar nosso amor e dizer repetidamente: “Eu te amo”. É realmente muito interessante quando analisamos. Por que temos que expressar nosso amor em palavras? Por que temos que contar para a outra pessoa? Claro, às vezes é bom dizer ao outro, se ele estiver inseguro e precisar de autoafirmação ou tiver baixa autoestima. Mas, muitas vezes, é algo compulsivo, que não fazemos pela necessidade da outra pessoa, mas por uma necessidade dentro de nós. É quase como se isso tornasse nosso amor mais real.
Tenho certeza que a maioria vai se reconhecer nisso. A vacuidade, claro, nos ajuda a perceber que falar não torna nosso amor mais real. E não só não o torna real, como também não nos torna reais. Assim como a declaração de Descartes, “Penso, logo existo”, é quase como “Amo, logo existo”. Achamos que dizer isso de alguma forma afirma nossa verdadeira existência e se amamos alguém, somos reais. Isso realmente vai longe quando começamos a analisar, pois quando não estamos em um relacionamento amoroso, sentimos que realmente não existimos. Só nos sentimos realizados, em termos de ser um ser existente, quando amamos alguém e, é claro, quando somos amados também, e essa pessoa expressa seu amor. É bastante sutil. É muito bom quando começamos a perceber isso.
Às vezes gosto de inventar novos koans zen, e é claro, no ocidente temos o koan zen “Penso, logo existo”. Outro koan zen, o koan da vacuidade, seria: “Penso, logo não existo”. Da mesma forma, “amo, logo não existo”. Este é o mesmo princípio de estarmos envoltos em um plástico sólido, não conseguiríamos nos mover. Se houvesse paredes ao nosso redor, não conseguiríamos atravessá-las, mas como não há paredes, podemos caminhar livremente. É exatamente o mesmo em termos de “amo, logo não existo”. “Penso, logo não existo.”
Se tentarmos desenvolver amor e compaixão estáveis com base na inconsciência a respeito da realidade, não vai funcionar. Vamos conseguir um pouco, mas não será estável se for baseado em “eu te amo, logo existo”. “Vou ajudá-lo para estabelecer e provar minha própria existência, meu valor.” “Vou ajudá-lo para provar que tenho valor.” Isso é Sautrantika, onde o que estabelece que algo é verdadeiramente existente é o fato de que funciona.
Sua Santidade explica que esse tipo de amor e compaixão é instável. E isso ocorre porque estão conectados com as oito coisas transitórias da vida, os oito dharmas mundanos. Quando conseguimos ajudar alguém, ficamos todos empolgados e nos sentimos maravilhosos, e quando não, ou quando o outro não diz “obrigado”, ou critica o que estamos tentando fazer, nos deprimimos. Nossas emoções têm altos e baixos, e assim nosso samsara tem altos e baixos. Isso é especialmente verdadeiro quando nosso desejo por um “eu” sólido é reforçado por uma cultura que enfatiza a culpa. Por exemplo, quando tentamos ajudar alguém e não conseguimos, ou a pessoa continua mal, nos sentimos culpados, o que é novamente uma viagem egocêntrica muito pesada.
Nesta purificação de nossas atitudes, uma das razões pelas quais o ensinamento sobre a bodhichitta mais profunda vem tão cedo no texto é para desenvolver nossos corações emocionalmente. Para o fazermos de maneira estável, precisamos purificar nossas atitudes e nos livrar de crenças inconscientes como “amo, logo existo” e “ajudo, logo existo”.
Sua Santidade sempre enfatiza que o segundo tipo de amor e compaixão, baseado na razão, é muito mais estável. Quando entendemos, através da razão, que ninguém é especial, especialmente nós – que somos todos iguais no sentido de que todos querem ser felizes e não querem sofrer, e que o ego e a gratificação do ego se baseiam em uma total inconsciência e em projeções que não correspondem à realidade – quando nosso amor e compaixão são baseados nesse tipo de compreensão, eles se desenvolvem e crescem de maneira muito estável. Não podemos ser preconceituosos e pensar que o amor e a compaixão baseados na razão são secos e intelectuais, que na verdade não sentimos nada, não sentimos nenhuma emoção. Isso é uma falsa preconcepção.
Acho que podemos ter um vislumbre da diferença por analogia, embora possa não ser exatamente a mesma coisa: a diferença entre quando nos apaixonamos por alguém e temos uma atração sexual muito forte por essa pessoa e nos casamos ou juntamos, e quando esse amor desaparece. Esse tipo de amor apaixonado é muito excitante, mas não é muito estável e, como geralmente se baseia em não aceitar a realidade da outra pessoa – que ela não é o ser mais fantástico e bonito do mundo, o Príncipe ou Princesa Encantada, descobrimos que ele ronca, ou o que quer que seja – eventualmente seremos atingidos pela realidade das qualidades positivas e negativas da pessoa. Depois desse período inicial, aquilo que chamamos de "romance" no Ocidente, desaparece − interessante, não há absolutamente nenhuma palavra em tibetano para isso. Se as pessoas forem maduras - nem sempre é o caso – o amor fica muito mais estável e duradouro, baseado na compreensão da realidade da outra pessoa: suas falhas, nossas falhas e assim por diante. É emotivo, mas é um tipo diferente de emoção; é um tipo estável de emoção. E embora não seja tão excitante, é muito mais satisfatório.
Quando temos essa fantasia de Príncipe ou Princesa Encantada e a projetamos na outra pessoa, embora seja excitante e nos faça sentir bem, precisamos reconhecer que é um estado mental muito perturbador, e que pode nos causar dores terríveis. Ninguém é capaz de nos machucar e nos causar mais dor do que alguém que amamos e, por exemplo, nos ignora ou faz algo que não gostamos, nos critica e assim por diante. Nossa mente fica distraída; não conseguimos nos concentrar e fazer outras coisas, estamos sempre pensando na outra pessoa. Embora pensemos que isso é a “Verdadeira felicidade; estou apaixonado” e o rotulemos assim, precisamos ser um pouco mais objetivos.
Se analisarmos esse estado, o que descobrimos é que a razão pela qual nos sentimos tão mal e dói tanto quando a pessoa nos ignora, não liga para a gente ou não nos beija ao acordar, é porque somos inseguros. Novamente, esse é um exemplo muito forte de “amo, logo existo”. Você me ama e mostra seu amor por mim, logo existo.” Esse é o extremo eternalista.
O outro extremo, o extremo niilista, é quando você não me mostrar que “eu te amo”, e se eu não estiver apaixonado, eu não existo. Isso realmente nos assusta, isso realmente nos perturba, esse extremo niilista de não existir. É muito importante analisar esse estado mental de estar apaixonado, que nos atrai tanto e nos esforçamos tanto para ter. É como as pessoas que têm uma crise de meia-idade quando sentem: “Se eu não fizer isso de novo, é minha última chance”, o que é mais uma manifestação de insegurança e “amo, logo existo”. Aqueles entre nós que são mais velhos reconhecem isso, tenho certeza. Sentimos que ninguém mais nos amará porque seremos gordos, feios e velhos.
No entanto, quando nosso amor é mais estável, quando não é para gratificar o ego, quando é baseado na compreensão da realidade, nossa mente não fica perturbada; podemos nos sentir mais seguros, e isso nos dá uma base para sermos mais produtivos, mais criativos, realmente fazer coisas construtivas na vida. Caso contrário, estaremos tão distraídos que não conseguiremos fazer nada.
Os Pontos Principais na Prática de Meditação de Bodhichitta de Onze Rodadas
Valorizando os Outros
Embora eu realmente tenha avançado um pouco aqui, o que estou discutindo são alguns dos pontos posteriores da meditação de bodhichitta em onze rodadas – as desvantagens da autoimportância e as vantagens de apreciar os outros. “Apreciar os outros” significa amá-los com base na razão, não na gratificação do ego. “Cherish” (ing. apreciar e cuidar) significa sentir-se muito próximo de alguém. Consideramos os outros muito preciosos, e por isso queremos beneficiá-los e ajudá-los. Esse ser que apreciamos e queremos ajudar pode ser nós mesmos, ou outros seres. Essa é a conotação da palavra “apreciar”.
Ter esse apreço pelos outros, com base em um amor estável, em compaixão, na razão e assim por diante, significa que os benefícios serão maiores, e não apenas para a outra pessoa – por não a assustarmos e não a sobrecarregarmos ou fazermos exigências, pedindo algo em troca –mas também para nós. Os benefícios de um tipo tão maduro de amor e compaixão, que valoriza o outro é que o amamos apenas pela sua realidade, sem projeções. Ficamos muito mais estáveis, não ficamos perturbados com o relacionamento, conseguimos ajudar muito outros seres e assim por diante, e não focamos apenas em uma pessoa, caindo em depressão quando ela não nos agradece.
Ao tentar ajudar os outros – eu apresentei esta imagem ontem −, não seja como uma enorme mãe aranha, horrível e assustadora, “Raargh! Eu vou te ajudar! Me ame de volta." Essas coisas. É muito útil trazer essa imagem à mente quando nos pegamos começando a agir assim, e então agir diferente. Shantideva traz uma imagem muito bonita para isso em Engajando-se no Comportamento do Bodhisattva (O Caminho do Bodisatva), Bodhicaryavatara. Ele diz: “Ao ajudar os outros, seja como uma abelha”. Uma abelha voa para belas flores o tempo todo, tem uma relação amorosa e muito próxima com cada uma delas, mas não se apega, vai para a próxima flor bonita. Essa é uma imagem muito útil.
Vamos voltar um pouco aqui para a meditação em onze rodadas, uma por uma. Não quero entrar em detalhes sobre isso, pois você pode estudar em outro lugar. No entanto, o que eu queria enfatizar é como desenvolver amor e compaixão de maneira estável, não com base em uma emoção perturbadora ou para gratificar o ego. Esse não é o caminho do bodhisattva.
[1] Equanimidade
Começamos com a equanimidade em que não somos atraídos, repelidos ou indiferentes a ninguém, a nenhum ser senciente. Um ser senciente é um ser que experimenta as consequências de suas ações compulsivas, e isso significa todo mundo, inclusive os insetos. Ações compulsivas são ações baseadas em impulsos irresistíveis que derivam de emoções e atitudes perturbadoras. São eles que geram os potenciais e tendências cármicas, e os seres sencientes são os seres que cometem tais ações e experimentam seus resultados cármicos.
Em vez de “ser senciente”, prefiro o termo ser “limitado”, porque um Buda não é um ser senciente. Um ser limitado é alguém com uma mente limitada e um corpo limitado, mas não no sentido de ser deficiente ou aleijado por ter uma doença. Os seres sencientes são limitados no que conseguem entender – eles não são oniscientes – e limitados no que conseguem fazer – eles não conseguem se multiplicar em milhões de formas, por exemplo. Eles são limitados por suas próprias experiências das consequências cármicas, suas próprias emoções perturbadoras e assim por diante. Isso é um ser senciente.
Como seres limitados, que estão sob a influência de impulsos cármicos e emoções perturbadoras, às vezes eles são amigáveis, às vezes hostis e às vezes indiferentes. Mas isso está sempre mudando, e nos ajuda a desenvolver equanimidade em relação a eles, pois seu relacionamento conosco está sempre mudando. Vimos também a importância de compreender a vacuidade para eliminar a atração, a repulsa e a indiferença pelas pessoas. Com essas emoções perturbadoras contidas, ficamos abertos a todos. Isso nivela o terreno para que possamos gerar emoções positivas em relação a todos, igualmente.
Não devemos banalizar esta etapa, de forma alguma. Ela é muito difícil pois, obviamente, temos atração com base em desejo e apego, e temos repulsa com base em raiva, e indiferença com base em ignorância. Ainda não somos arhats; ainda não nos livramos de tudo isso. Para termos uma equanimidade perfeita, temos que ser seres liberados, arhats. Mas, o que podemos fazer em nosso estágio agora é não agir de acordo com essas emoções perturbadoras, não sermos incontrolavelmente compelidos por elas, não sermos tendenciosos em relação a um ou outro ser. Este primeiro passo da meditação de bodhichitta já é extremamente avançado.
A maneira padrão de desenvolver esse tipo de equanimidade é pensando em vidas passadas, que a posição de todo mundo mudou. Como o tempo é infinito e sem começo, todo mundo já foi nosso amigo, nosso inimigo ou um estranho. Contemplamos que todos os amigos que já tivemos começaram como estranhos e, assim, obtemos equanimidade.
Claro, há muitas maneiras de lidar com essas três emoções venenosas e perturbadoras com o Dharma. Encontraremos uma aqui na prática do tonglen, onde tomamos para nós as emoções perturbadoras dos outros e lhes damos os antídotos. Acho que é mais apropriado tentarmos aplicar todos os métodos do Dharma que conhecemos para lidar com essa questão da equanimidade, e não seguir apenas a meditação padrão. Claro, podemos praticar a meditação padrão, mas é muito melhor, muito mais eficaz, tentar aplicar o máximo de oponentes que conseguirmos para lidar com essas questões, seja olhar para a feiúra do que está dentro do corpo de alguém que achamos atraente ou ver o tipo subjacente de consciência profunda em que reconhecemos que estamos atraídos por alguém, e é apenas a consciência individualizadora que especifica uma pessoa. É como se tivéssemos HIV, não iríamos tomar apenas um medicamento, precisaríamos de uma combinação, um coquetel de muitos medicamentos. Tudo o que podemos aprender com o Dharma, precisamos aplicar em todas as situações difíceis e todas as etapas do desenvolvimento.
Em um nível prático, no entanto, quem realmente conseguimos ajudar, especialmente quando somos limitados? Não temos capacidade para ajudar a todos simultaneamente. Claro, escolhemos aqueles com quem sentimos algum tipo de conexão e que sentem alguma conexão conosco, que sejam abertos e receptivos a nós. Quero dizer, claro que começamos por aí, pois é onde conseguimos ser mais eficazes. No entanto, temos que ter cuidado para não nos apegar a eles e ser indiferente aos outros. Precisamos estar atentos aos perigos das emoções perturbadoras.
É verdade que quando alguém é realmente agressivo e hostil conosco, é muito difícil ele estar aberto a qualquer coisa que possamos tentar fazer para ajudá-lo. Nesses casos, podemos desejar: “Espero poder ajudá-lo no futuro; Não sinto repulsa por você, mas meu tempo e minha capacidade são limitados.” Podemos praticar tonglen focados em tirar deles a atitude agressiva e a mente fechada em relação a nós.
Precisamos estar sempre abertos a mais e mais pessoas, como estar aberto a mais pessoas que vêm se juntar à nossa aula. Não importa quantos anos temos, o quanto estamos envolvidos com nossa família e assim por diante, é muito importante ter o coração aberto para novas pessoas entrarem em nossas vidas, mas sem ignorar os que estão mais próximos. Além disso, temos que ser práticos em termos da quantidade de tempo que temos e do número de coisas que conseguimos fazer. Mesmo que a outra pessoa, ou as novas pessoas, nos faça exigências tremendas e impossíveis de cumprir, se estivermos livres dessas emoções perturbadoras − ou pelo menos não compulsivamente sob sua influência − podemos estabelecer limites, de tal maneira que a pessoa não se sinta rejeitada. Essa é a única maneira de estabelecer limites. Dê um pouco do seu tempo, mas deixe claro que não pode dar tudo o que ela quer.
Além disso, quando estamos do outro lado desse tipo de relacionamento, também temos que trabalhar muito para aceitar as limitações da outra pessoa, em termos de tempo, disponibilidade, maturidade emocional, e não fazer exigências além do que é realista. Isso também requer uma tremenda quantidade de maturidade emocional. Isso é necessário não apenas quando estamos recebendo ajuda, mas também em termos de como a outra pessoa reage a nós. Não espere nada em troca; isso é dito aqui no treinamento.
Uma imagem que talvez seja útil, no que diz respeito a ajudar aqueles que são receptivos e estão próximos, embora tenhamos o desejo de ajudar a todos e ter equanimidade, é a imagem do comedouro de pássaros no jardim. Bem, seria muito bom poder alimentar todos os pássaros deste planeta, mas não temos essa capacidade agora. Então, colocamos o que podemos para os pássaros que estão próximos, mas não importa quais pássaros virão. Não é apenas para os nossos pássaros favoritos; estamos abertos a qualquer pássaro que vier. Essa é uma imagem muito interessante. Não esperamos nada em retorno dos pássaros. Quero dizer, a menos, é claro, que estejamos apegados a tê-los por perto para que possamos observá-los. Estou falando sobre fazer isso com o motivo puro de dar.
Acho que um exemplo muito bom é o exemplo do Buda. Nem todo mundo estava aberto e receptivo ao Buda quando ele estava aqui na Terra. Além disso, os Budas não aparecem o tempo todo; eles só aparecem quando os seres estão abertos e receptivos. Não é que eles não queiram ajudar os seres durante a chamada “idade das trevas”, quando ninguém está aberto ou receptivo; é apenas que, de muitas maneiras, é uma perda de tempo vir quando ninguém quer sua ajuda. Esse é um bom exemplo. Uma frase que eu sempre me lembro porque é muito útil, é: “Nem todo mundo gostava do Buda, por que esperar que todos gostem de mim?” Isso é muito útil quando alguém não gosta de nós, nos rejeita, nos critica ou qualquer outra coisa; por favor, tente se lembrar disso.
[2] Distinguindo todos como tendo sido nossas mães
Com base na equanimidade, falamos então sobre distinguir todos os seres como tendo sido nossas mães. Atisha destacou que este é um dos pontos mais difíceis possíveis de sinceramente sentir em relação a absolutamente todo mundo. Não é de forma alguma algo a ser banalizado. É algo que se baseia na crença confiante em vidas sem princípio e só pode ser dirigido a todos com base na equanimidade – não se sentir atraído por alguns, repelido por outros ou indiferente a outros.
Para este ponto sobre todo mundo já ter sido nossa mãe, vimos que se conseguirmos provar através da razão que é impossível que alguém não tenha sido nossa mãe, isso nos dará uma razão um pouco mais estável para tentar desenvolver essa atitude. Caso contrário, será baseada apenas em uma ficção. Se for baseada em uma ficção, como poderemos ser realmente sinceros? Lembre-se da frase: “Se um ser foi minha mãe nesta vida, e todos são iguais, então todos foram minha mãe, pois se tem alguém que nunca foi minha mãe, e todos são iguais, então ninguém nunca foi minha mãe, e eu não teria uma mãe nesta vida.” Eu não vi essa linha de raciocínio em textos budistas, mas a desenvolvemos. Parece fazer sentido.
Com essa convicção, podemos distinguir todos como tendo sido nossas mães. O que significa “distinguir”? É um dos cinco agregados; significa especificar um traço característico convencional de algo. Uma das características convencionais de todos − mas não que seja um gancho neles − é que foram nossa mãe em um ou outro momento. Quando os encontramos, é nessa característica distintiva que queremos focar.
[3] Lembrando da bondade do amor materno
O terceiro passo é lembrar da bondade do amor materno: o quanto nossa mãe nos ajudou. Mesmo que nesta vida ela seja um pouco perturbada, em alguma vida anterior ela também pode ter sido nossa mãe e não ter sido tão perturbada. Além disso, ela não nos abortou – isso, pelo menos, foi algo bondoso que fez por nós.
Se fizermos essa meditação de bodhichitta sem ter uma forte identificação egocêntrica com o “eu” nessa vida em particular, e com esta mãe em particular, acho que não teremos muitos problemas com a meditação na bondade do amor materno. Isto porque não colocamos o amor materno apenas em termos de “O que minha mãe me deu quando eu era criança? Ela era uma mãe terrível.”
Muita gente tem problemas com esse ponto, e em alguns textos também podemos pensar na gentileza do nosso pai, do nosso melhor amigo e assim por diante. No entanto, acho que se tivermos problemas com nossa mãe, esta mãe, desta vida, precisaremos trabalhar nisso. Como vamos ajudar a todos os seres, todas as nossas mães, se não conseguimos lidar com esta mãe? Isso não significa que nesta vida nossa mãe seja receptiva e aberta a nós e fácil de lidar, mas podemos pelo menos tentar ter uma atitude de equanimidade em relação a ela, sem ressentimentos e repulsa.
Os textos budistas clássicos não falam sobre situações em que temos dificuldade com nossa mãe desta vida. Eu estava presente com Sua Santidade quando isso foi discutido, e ele ficou muito surpreso com as pessoas terem dificuldade com suas mães ou elas, às vezes, terem abusado ou abandonado seus filhos. Nas famílias asiáticas tradicionais, talvez você tenha alguma dificuldade com seu pai, mas a estabilidade de uma mãe é seu amor, carinho e aceitação. Talvez, se houver abuso, ninguém fale sobre isso. Eu não sei.
Se temos uma mãe super protetora, que está constantemente preocupada e nos sufoca, precisamos tentar aplicar alguns dos métodos do Dharma. Um que acho mais eficaz é tentar desconstruir o que está por trás do comportamento dessa mãe. Subjacente a esse comportamento está a consciência individualizadora que está focada em nós, realmente se preocupando conosco e com nosso bem-estar. Agora, é claro, além disso, há uma tremenda insegurança, apego ao ego e tudo isso, mas tente ver o componente positivo da emoção que a mãe está sentindo e o reconheça. Isso não é algo que queremos rejeitar. Ela não é indiferente; não é que ela não se importe conosco.
O que foi acrescentado aqui nas onze rodadas é que outros seres foram bondosos conosco, e não apenas quando eram nossa mãe; eles foram bondosos mesmo quando não eram. Para isso, observamos como tudo o que temos na vida depende do trabalho dos outros: a comida, as estradas por onde se transporta a comida, os animais que fornecem o nosso leite e assim por diante. Nossas vidas são sustentadas por uma incrível rede de esforço e trabalho de muitos outros seres. Realmente estendemos nosso escopo a absolutamente todos os seres. Uma maneira de trabalhar com isso é olhando para cada item em nossa casa, ou em nosso quarto, e pensando: “De onde veio isso?”
Se os outros tiveram ou não a intenção de serem bondosos ou nos ajudarem, isso não importa. Se não fosse pelo que eles fizeram, não conseguiríamos sobreviver, não conseguiríamos viver. Isso abre nossas mentes e corações ainda mais para a bondade dos outros e nossa interdependência com todos eles.
[4] Desejando retribuir essa bondade
Lembrando do amor materno e da bondade que nos foi dirigida, mesmo quando os outros não eram nossas mães, desenvolvemos um sentimento de gratidão e, com base nesse sentimento de gratidão e conexão com todos, desejamos retribuir esse amor maternal. Esse é o quarto passo desta meditação em onze rodadas.
Agora, é bastante óbvio que precisamos de uma compreensão clara da vacuidade aqui. Caso contrário, fica muito fácil este passo se traduzir em culpa: “Todo mundo foi bondoso comigo, e eu fui uma pessoa terrível; eu não fiz nada para ajudá-los. Eu sou culpado, não sou uma boa pessoa, então é melhor eu fazer alguma coisa.” Isso é agir por culpa, mantendo uma forte identidade de “eu fui um filho ou filha terrível”. Isso nós realmente temos que esclarecer, pois este passo não pode ser baseado em culpa. Isso é fundamental.
É realmente muito interessante quando este passo é descrito nos ensinamentos. Tudo o que é dito é que ele surgirá naturalmente. Acho que é porque, embora os textos não mencionem explicitamente, ele é baseado no apreço e na gratidão por toda a bondade que nos foi direcionada. Quando pensamos em quanta bondade recebemos, nos sentimos gratos, e naturalmente queremos de ser bondosos em retribuição.
Se tivermos um bloqueio emocional para esta etapa, precisaremos examinar a origem desse bloqueio. Acho que um dos aspectos do problema ou bloqueio é a culpa. Mesmo reconhecendo a bondade que recebemos, podemos sentir que não a merecemos. Mas se tivermos desenvolvido esses primeiros passos de forma estável, sem ego, se não nos sentirmos inseguros, e se já tivermos algum nível de maturidade emocional, acho que esse bloqueio não surgirá.
É muito interessante quando olhamos para crianças pequenas. Muitas vezes, elas querem ajudar em casa e muitas gostam de cuidar de bonecas. De onde vem isso? Isso está meio que naturalmente lá. Mas se for constantemente colocado de lado, “Você vai quebrar!” ou “Deixa que eu faço isso!” – esse tipo de pai ou mãe controlador, que não deixa a criança fazer nada – que reforça uma baixa autoestima, que depois pode se transformar em um grande bloqueio para essa etapa, sentiremos: “Não posso fazer nada para retribuir essa bondade; não sou bom. Qualquer coisa que eu faça não será bom o suficiente”, e assim por diante. Acho que isso tem que ser tratado antes de chegarmos a essa etapa de querer retribuir a bondade que recebemos.
Isso não é uma ideia minha. Na verdade, é muitas vezes recomendado por psicólogos e psiquiatras que uma das melhores maneiras de ajudar alguém que tem baixa autoestima é deixá-lo ser generoso e fazer algo por nós. Muitas vezes é o caso dos adolescentes muito difíceis. Deixe-os fazer algo por você, e não importa quão mal eles façam; realmente não importa. Se eles conseguirem se doar, de uma forma ou de outra, isso os ajudará a construir sua autoestima e inconscientemente a retribuir parte da bondade que receberam, sem um sentimento de “nunca consigo fazer nada que seja bom o suficiente.” Se realmente conseguirem se doar e retribuir, terão um sentimento – mesmo que seja uma coisa baseada no ego – de “Eu tenho valor; eu consigo fazer alguma coisa.”
É muito importante deixar que outras pessoas nos ajudem, pois muitas vezes temos essa mentalidade controladora de “Não toque no meu computador; você vai quebrá-lo.” Não deixamos as pessoas fazerem coisas por nós quando elas se oferecem. Isso é realmente ser muito cruel com o outro, e vai contra o conselho padrão do Dharma, de deixar a pessoa gerar mérito, gerar força positiva ao ser generosa. Em um nível psicológico, é muito importante ajudar o outro deixando que ele nos ajude.
É bastante interessante. Se analisarmos e pensarmos nessas coisas, perceberemos que talvez uma das razões pelas quais esse desejo de retribuir a bondade alheia surge naturalmente nas famílias indianas ou tibetanas, ou nas famílias asiáticas em geral – e provavelmente surgia na época medieval no Ocidente – é que, para fins de sobrevivência, as crianças tiveram que ajudar. Elas ajudavam a cuidar dos animais ou da fazenda ou da loja. Por exemplo, crianças de quatro anos na Índia já ajudam na loja dos pais. Com isso, elas desenvolvem um sentimento de autoconfiança, de que são capazes de fazer as coisas. Sempre achamos o trabalho infantil uma coisa horrível, mas, na verdade, do ponto de vista psicológico, acho que pode ser muito bom. Obviamente, não queremos explorar uma criança, mas precisamos nutrir seu desejo natural de se doar. O que essas famílias asiáticas tradicionais fazem na forma como criam os filhos, que as famílias ocidentais não fazem, que faz com que os asiáticos tradicionais não tenham um bloqueio nesta etapa? Se olharmos para essas famílias, uma menina de seis anos cuida de um irmão ou irmã de dois anos.
Amor que aquece o coração
Na prática de causa e efeito em sete partes para desenvolver a bodhichitta, o que mencionamos como o primeiro passo, a equanimidade, não conta como uma das sete partes. É como um passo zero. E o que também não conta, e vem depois do desejo de retribuir a bondade alheia, é o tipo de amor que chamo de “amor que aquece o coração”. Esse é o passo da prática de sete partes que vem antes de desenvolvermos o amor com o qual desejamos que todos sejam felizes e tenham as causas da felicidade.
O amor que aquece o coração é o tipo de amor com o qual nos sentimos próximos a todos os seres e os valorizamos igualmente, e ficaríamos muito chateados se algo de ruim lhes acontecesse. É como aquele sentimento que temos – se conseguirmos subtrair o aspecto de gratificação do ego – quando nosso amigo mais próximo entra na sala. “Ahhhh”, nosso coração fica mais quente, se ilumina, se abre e nos sentimos felizes em ver essa pessoa. Quero dizer, não o bebê que voltou para a mãe aranha. Mas, é isso que queremos cultivar como resultado de toda essa prática, sentir isso quando encontramos alguém.
Se olharmos para Sua Santidade o Dalai Lama, é incrível. Não importa quem ele encontre, ele fica muito feliz em encontrar alguém, qualquer um. Seus olhos brilham com absolutamente todos que encontra. Para alguns, especialmente esses políticos muito sérios ou líderes de outras religiões, é chocante. Sua Santidade pega na mão deles e, do ponto de vista ocidental, isso é ultrajante, mas deixa as pessoas à vontade, porque é sincero.
Sua Santidade é um exemplo vivo disso, o que é raro. Obviamente, há outros, mas é muito forte esse afeto que ele sente por absolutamente todo mundo. E quando ele dá uma palestra pública... Por exemplo, no ano passado, em Berlim, foram 22.000 pessoas. Ele subiu ao palco, acenou para o público e todos o adoraram instantaneamente. É extraordinário. Como isso acontece? Qual é o segredo? É esse amor afetuoso por todos, que todos o sentem irradiando. Para ser como ele, quantas vezes os textos têm que dizer: “Desenvolva bodhichitta”.
[5] Igualando nossa atitude em relação a todos
É neste ponto das onze rodadas que vem os estágios do outro método, o segundo método para desenvolver bodhichitta, a equalização e troca do eu com os outros. Todos os pontos até aqui nos dão a base para equalizar e trocar o eu com os outros. E eles têm como base o amor afetuoso. Normalmente, com este segundo método, começamos com o passo número zero – equanimidade sem apego, repulsa ou indiferença – e então saltamos para este primeiro passo de equalizar nossa atitude em relação a todos. No entanto, fica muito mais estável quando esses outros estágios, do método de sete partes, são adicionados.
A equanimidade discutida no passo zero, ou no passo um das onze rodadas, é um método comum ao Hinayana e ao Mahayana, pois se concentra em não termos emoções perturbadoras em relação aos outros. Ter uma atitude igual para com todos os seres é o tipo especial de atitude do Mahayana. É uma atitude de igual proximidade, um amor que aquece o coração, igualmente direcionado a todos. As razões pelas quais todos são iguais são, por exemplo, que todos querem ser felizes e ninguém quer ser infeliz; portanto, se temos comida para as pessoas, não é certo dar apenas para quem gostamos, pois todos estão igualmente famintos. Há muitas razões para reforçar essa visão de que todos são iguais. Ela também tem esse componente emocional de amor afetuoso, um sentimento de proximidade com todos e afetuosidade.
Agora, na apresentação clássica, quando falamos em ver a igualdade entre o eu e os outros, isso se baseia em todos terem os mesmos desejos que nós. Todo mundo quer ser feliz e não ser infeliz, assim como nós. Mais uma vez, o que é bastante interessante é que a apresentação clássica não fala em direcionar esse amor afetuoso para nós mesmos, ela fala apenas em termos de todos serem iguais. Isso não significa, porém, “eu amo todo mundo, mas me odeio, pois sou um pecador, não sou bom o suficiente, não mereço ser feliz”, esse tipo de coisa. Mais uma vez, eu estava lá quando Sua Santidade foi confrontado pela primeira vez com a baixa autoestima ocidental, como as pessoas se odeiam, e Sua Santidade ficou chocado. Foi em uma reunião com cientistas, e ele percorreu a sala perguntando a cada um de nós individualmente: “Você realmente se odeia? Quero dizer, você realmente não gosta de si mesmo? Todos tiveram que admitir: “Sim”. Sua Santidade ficou chocado com isso.
No entanto, acho que está dentro do espírito dos ensinamentos estendermos essa afetuosidade e felicidade a nós também, igualmente, para que nos sintamos confortáveis em ficar sozinhos e não sintamos: “Oh, meu Deus, agora estou sozinho. Eu não quero ficar sozinho! Eu não posso ficar sozinho!” Você sabe, pessoas que constantemente precisam ter o rádio ou a TV ligados, desde o momento em que acordam até o momento em que vão dormir, para não se sentirem sozinhos. Ou deixam o som ligado constantemente. E Deus os livre de ficarem sozinhos com seus pensamentos.
[6] As desvantagens da atitude de autoapreço e [7] os benefícios de valorizar os outros
Já falamos sobre isso, então não vou repetir.
[8] Compaixão e [9] Amor com a Prática de Tonglen
É neste ponto que temos o tonglen, combinado agora com os próximos dois passos que encontramos na primeira tradição, da causa e efeito em sete partes. Embora na causa e efeito em sete partes, o amor venha primeiro − desejar que todos sejam felizes e tenham as causas da felicidade − e a compaixão depois − desejar que eles se libertem de seu sofrimento e das causas de seu sofrimento − aqui, a ordem é invertida. Aqui, primeiro nos imaginamos assumindo o sofrimento dos outros – tirando-os, assim, dos outros – para então dar-lhes felicidade. Com compaixão, assumimos o sofrimento e, com amor, lhes damos felicidade.
É como um balde cheio de água suja, não só não há espaço para colocar água limpa como, mesmo se conseguíssemos colocar água limpa, ela ficaria suja. Não conseguiríamos enchê-lo com água limpa. Esse não é um exemplo preciso, pois não temos como esvaziar todo o sofrimento de todos os outros seres apenas pelo nosso próprio poder, mas pelo menos podemos imaginar que sim, para que eles relaxem o suficiente e não tenham uma dor tão intensa, para que possam se beneficiar mais da felicidade que lhes damos. Se alguém é atropelado por um carro e está com uma dor terrível, não lhe damos primeiro um beijo e uma refeição. Obviamente, se estão com uma dor intensa, temos que cuidar dela primeiro.
É muito importante aplicar isso em nossa interação com os outros. Se alguém vem nos visitar e está muito cansado ou chateado com alguma coisa, precisamos resolver isso primeiro. Se alguém fez uma longa viagem, podemos querer que sente imediatamente à mesa para comer uma grande refeição, depois de ter comido todo tipo de porcaria por horas e horas no avião, mas não é isso que a pessoa precisa no momento. Ela precisa de um pouco de descanso, de se deitar por um tempo.
E temos a prática de tonglen. Não vou entrar em detalhes agora, mas o que é bastante interessante aqui é que esse passo do amor e compaixão já inclui assumirmos um nível de responsabilidade em ajudar os outros e, então, realmente ajudá-los. Sua Santidade sempre diz que a compaixão tem um elemento de não ficar apenas em “gostaria que alguém lhe ajudasse”, mas também ter um senso de responsabilidade, de ajudar o máximo que conseguirmos nessa situação de sofrimento específica.
[10] Determinação Excepcional
O próximo passo é desenvolver a determinação excepcional, que é assumir a responsabilidade, − às vezes, Sua Santidade diz “responsabilidade universal” − de realmente remover o sofrimento de todos os seres e ajudá-los, o que já está incluído na grande compaixão que tivemos na homenagem. Estamos firmemente decididos a ajudar a conduzi-los até a iluminação, o que também poderia, é claro, ser incluído na prática do tonglen, mas aqui está em um passo separado, pois é algo realmente extraordinário. A resolução extraordinária é: “Vou assumir a responsabilidade de não apenas alimentar a todos, mas também levá-los à liberação e à iluminação”.
[11] Bodhichita
Finalmente, chegamos ao desenvolvimento da bodhichitta. Quando examinamos para ver: “Bem, será que consigo levar todos os seres à iluminação? Obviamente não, então a única maneira de eu fazer isso é alcançando a iluminação.” As emoções que temos com a bodhichitta são baseadas em todos esses passos anteriores: a conexão afetuosa com todos, o amor e a compaixão, e a responsabilidade de ajudá-los a alcançar a iluminação. Conforme costumo enfatizar, a bodhichitta deve ser baseada na convicção de que é possível alcançarmos a iluminação e de que é possível que todos os outros seres também a alcancem.
Essa convicção tem como base a compreensão de que nossa ainda-não-acontecendo iluminação individual é um fenômeno de imputação válido, com base em nosso continuum mental e nos fatores da natureza búdica presentes nele. Com a bodhichitta, focamos nessa ainda-não-acontecendo iluminação com a intenção de alcançá-la e com isso beneficiar todos os seres. Na verdade, porém, podemos formular ao contrário: pretendemos beneficiar todos os seres, e por isso pretendemos alcançar a iluminação, para conseguir beneficiar. Isso é bodhichita. Não é apenas “Eu amo todo mundo!”
Eu só quero mencionar mais um ponto, porque sei que alguns de vocês estão estudando aqui sobre os fenômenos de negação. Quando o budismo fala sobre futuro, está falando sobre um fenômeno de negação – o ainda-não-acontecimento de alguma coisa; aqui, o ainda-não-acontecimento de nossa iluminação individual. Embora seja algo que não está acontecendo, assim como o amanhã, e não está acontecendo em outro lugar, é algo que existe e pode ser um objeto de cognição válida, embora para nós, apenas conceitualmente. Para meditar sobre isso, precisamos ter alguma ideia do estado que ainda não alcançamos, para que saibamos no que estamos focando com bodhichitta. Qual é o objeto de foco? É o fenômeno de negação, o ainda-não-acontecimento de nossa iluminação individual.
Mas como focar nisso? Essa não é uma pergunta simples, e a maioria de nós, acho eu, não tem ideia do que fazer. Nós nos sentamos e simplesmente meditamos em amar a todos, mas isso não é bodhichitta. É preciso que surja alguma aparência representando nossa o ainda-não-acontecendo iluminação individual, para servir como objeto de foco. Pode ser a imagem visualizada de um buda ou, no tantra, nós mesmos como uma figura búdica. Reconhecemos isso conceitualmente através da categoria de nossa iluminação que-ainda- não-aconteceu, que ela representa.
Se estivermos focando em um buda à nossa frente, e pensarmos nas grandes qualidades de um buda, do Buda Shakyamuni, e confiarmos em seguir na direção segura que o Buda indica − isso é refúgio, não é bodhichitta. A bodhichitta não é focada na iluminação de outra pessoa. Ela é focada em nossa própria iluminação, que ainda não aconteceu. Não podemos alcançar a iluminação do Buda; só podemos alcançar nossa própria iluminação. É individual. Também não estamos focando na categoria geral “iluminação”. É um item individual, uma iluminação individual – a nossa – que ainda não aconteceu. Também não estamos falando da iluminação de uma alma impossível, do “eu” impossível, mas da iluminação que-ainda-não-aconteceu do “eu” convencional. É por isso que essa distinção sobre quem é o “eu” que ainda não é um Buda tem que estar bem clara; caso contrário, trabalhar pela iluminação para ser um Buda se torna uma grande viagem do ego.
Quando, ao tomar o refúgio resultante, focamos em nossa própria realização, que-ainda-não-aconteceu, do Buda, Dharma e Sangha, confiamos em ir na direção segura indicada por eles. Embora este seja o refúgio especial exclusivo do Mahayana, isso ainda não é o mesmo que bodhichitta. Não tem por trás toda a força dos passos que discutimos neste desenvolvimento de onze rodadas da bodhichitta, nem tem os compromissos e treinamentos que se seguem.
Resumo
O desenvolvimento adequado da bodhichitta não é algo que se possa simplificar e banalizar. É um passo avançado e muito sofisticado. Como Shantideva, Tsongkhapa e todos dizem, é incrível; bodhichitta é a mais incrível joia realizadora de desejos. Ela pode satisfazer os desejos de todos os seres, se conseguirem desenvolvê-la adequadamente e realmente forem sinceros. Como alguns textos recomendam, se formos pedir aos grandes mestres que façam orações por nós, não peçamos coisas como: que eu tenha sucesso mundano, que meu negócio dê certo, que minha filha encontre um bom marido, essas coisas. A oração mais maravilhosa que podemos pedir a um lama é: “Que eu consiga desenvolver uma bodhichitta autêntica”.
Obviamente, não avançamos muito no texto neste seminário. Nem chegamos a discutir o tonglen, mas acho que já está bom. Praticar o tonglen corretamente é algo muito avançado, mas se tivermos alguma ideia do que trabalhar para nos prepararmos, ele pode ser eficaz. Praticar o tonglen de forma adequada e sincera, com todas as visualizações horríveis que o acompanham, não é um jogo ou algo a ser realizado de ânimo leve, porque pode realmente nos assustar. Não devemos nos forçar a fazer essa prática antes de estarmos emocionalmente prontos.
Esses dias fui a um quiropata, para tentar relaxar alguma coisa na parte inferior das costas. Eu sou muito rígido, e ele não pode forçar muito, porque se forçar pra estalar os ossos e fazer os músculos se moverem, pode causar muitos danos. Ele tem que ser muito gentil e trabalhar gradualmente para que eu tenha essa flexibilidade. É a mesma coisa com a prática do tonglen. Nossas mentes e corações estão incrivelmente rígidos; não podemos simplesmente forçar: “Pare de ser egoísta e pense em todo mundo!” caso contrário, isso pode nos causar algum dano emocional. O Tonglen precisa de uma preparação adequada.
Perguntas
Falamos sobre a mente não ter começo e também sobre a ignorância não ter começo. Então, por que a natureza da mente é pura e clara desde tempos sem princípio?
A atividade mental, − a mente − e a inconsciência, nenhuma delas tem começo, é verdade, mas a inconsciência é uma mácula fugaz; não é a natureza da mente, no sentido de que não é uma parte essencial da mente ou a natureza da mente, pois pode ser removida. Por quê? Porque a inconsciência é totalmente o oposto da consciência. Não podemos ter inconsciência e consciência simultaneamente; elas são mutuamente contraditórias. Se entendermos um pouco, mas ainda não soubermos realmente, esse entendimento não será o entendimento correto. Teremos uma inconsciência um pouco menos confusa, mas ainda é inconsciência. Quando temos uma compreensão absolutamente correta e decisiva, não podemos ter inconsciência ou ignorância simultaneamente.
Por isso, e pelo fato de que embora agora o hábito da inconsciência seja mais forte do que o hábito da compreensão correta, não há “sustentação” por trás do hábito da inconsciência. Esta é a palavra usada em tibetano – não há sustentação por trás da inconsciência, que a torne válida. Porém, há muitas evidências sustentando uma compreensão válida. Por isso, um entendimento válido pode – se pensarmos na palavra tibetana “sustentar” – manter sua posição. Não desmorona quando a inconsciência começa a voltar; ela não destrói nosso entendimento válido, embora possamos não nos lembrar dele por um tempo. Se conseguirmos alcançar o estágio em que essa inconsciência é totalmente substituída pela consciência, ela não aparecerá novamente, portanto, pode ser removida.
Agora, o que é realmente importante aqui é que todas as emoções e atitudes perturbadoras também são passageiras e também podem ser removidas para sempre, pois todas dependem da inconsciência. Ao passo que todas as boas qualidades – amor, compaixão e assim por diante – não podem ser removidas, pois o que está subjacente, validando-as e sustentando-as, é a compreensão correta e válida da realidade. Embora as qualidades negativas possam ser removidas para sempre, as qualidades positivas não podem ser removidas. Quanto mais entendimento temos, mais ele é reforçado. É muito importante entender isso.
A inconsciência e as emoções perturbadoras são os obscurecimentos que impedem a liberação. Assim como podemos removê-los, também podemos nos livrar dos obscurecimentos que impedem a onisciência. Quais são eles? São a aparência de uma existência verdadeiramente estabelecida, devido aos hábitos de nos apegarmos à existência verdadeiramente estabelecida. Por causa desses hábitos, a mente cria hologramas mentais nos quais parece que tudo tem uma linha ao seu redor. Podemos não acreditar que isso corresponda à realidade, sabemos que é apenas lixo, entretanto, é assim que parece ser. Isso nos impede de conseguir estar consciente de tudo: ter consciência de todas as inter-relações de causa e efeito. É como se tivéssemos uma visão periscópica; vemos apenas um pedacinho. Nossas mentes são limitadas porque tudo parece ter essas linhas sólidas ao seu redor, isolando as coisas umas das outras.
Essa criação de aparências pode ser removida. Quando temos a cognição não-conceitual da vacuidade, até mesmo como um arya, naquele momento, não há criação de aparência de existência verdadeiramente estabelecida. Se conseguirmos sustentar isso para sempre, sem qualquer interrupção, e simultaneamente perceber a verdade convencional, sem que ela pareça ser autoestabelecida, o que apenas um Buda pode fazer, essa visão periscópica nunca mais irá retornar. Teremos consciência de tudo; não teremos limitações para ver a interconexão entre todas as coisas, que é a onisciência. Isso é parte da prova de que é possível realmente alcançar a onisciência. Novamente, isso reforça nosso ideal de bodhichitta, que é possível alcançar a iluminação.
Um último ponto: quando a inconsciência, os hábitos de inconsciência, são removidos para sempre do continuum mental, a atividade mental nesse continuum mantém sua natureza essencial de atividade mental. Em outras palavras, a ignorância, a inconsciência e as aparências enganosas não são características definidoras da atividade mental. Elas podem ser removidas. Já a natureza essencial − a característica definidora da atividade mental de um continuum mental, que é, simplificadamente, mera clareza e consciência, o mero surgimento de aparências e seu conhecimento – isso não pode ser removido. Se isso fosse removível, a atividade mental em um continuum mental não mais manteria sua natureza essencial como atividade mental. Precisamos pensar nisso. É por isso que, um continuum mental nunca acaba. Não há nada que possamos fazer para acabar com ele.
Vou colocar de uma maneira muito simples, e então vamos terminar. Se houvesse um estado mutuamente exclusivo de mero surgimento e conhecimento – criar aparências e conhecê-las – se houvesse um estado mutuamente exclusivo disso, de não criar hologramas mentais e não os conhecer, como poderíamos saber? Com esse koan para pensar, vamos terminar com uma dedicação:
Pensamos que toda compreensão e toda força positiva que veio de tudo isso, que ela se aprofunde cada vez mais e atue como uma causa para alcançarmos a iluminação para o benefício de todos.
Leia e ouça o texto original “Treinamento da Mente em Sete Pontos” de Geshe Chekawa.