A Vacuidade nos Quatro Sistemas Filosóficos Budistas

A vacuidade, também chamada de vazio, é obviamente algo muito difícil de entender. Para entender a vacuidade é preciso muita força positiva, concentração, preparação e uma forte motivação de realmente querer entender, por ver que é absolutamente essencial. No começo, podemos ter apenas uma ideia geral, talvez não entender muito, mas tudo bem, é assim que todo mundo começa. Porém, devagar, ao longo do tempo, e trabalhando muito, isso vai ficando cada vez mais claro. A maneira como a vacuidade é estudada entre os tibetanos é através de níveis graduais de compreensão.

As Diferentes Tradições Budistas Têm Diferentes Interpretações

Estamos passando pelo que chamamos de sistemas de princípios filosóficos budistas indianos, ou sistemas filosóficos baseados nos ensinamentos budistas, que o Buda ensinou para ajudar pessoas diferentes, com diferentes disposições e diferentes estágios de desenvolvimento. E como Atisha colocou muito bem, tudo o que Buda ensinou é destinado ao nosso desenvolvimento gradual, por etapas - não é só para aquelas pessoas idiotas lá e eu não preciso disso. Vimos que - como Shantideva, o grande mestre indiano, mostrou - se pudermos trabalhar com alguns temas comuns, encontrados em todos os sistemas, e se conseguirmos compreendê-los dentro de um sistema mais simples, podemos usar essa mesma analogia para obter uma compreensão mais profunda. E vimos que o exemplo que Shantideva usou, que é o exemplo mais comum e provavelmente o mais importante, é o exemplo de que tudo é como uma ilusão e, no entanto, funciona.

E vimos que o exemplo mais básico disso é o fato de que, a partir de um determinado ponto de vista, as coisas são sólidas, concretas - corpo, cadeira e assim por diante -, mas isso é apenas a aparência superficial delas, pois quando olhamos mais de perto, vemos que tudo é feito de minúsculos átomos. Portanto, a solidez do nosso corpo e da cadeira é como uma ilusão, porém não caímos através da cadeira, apesar dela ser constituída de átomos com muito espaço no meio. E não devemos deixar isso apenas no nível de: “Bem, é um milagre que eu não caia através da cadeira!” Precisamos tentar entender o que queremos dizer aqui com “realidade”, e com as coisas serem “como uma ilusão”.  Não devemos menosprezar ou trivializar esse nível inicial, porque digerir isso emocionalmente e lidar com nossas vidas com essa compreensão já é muito, muito avançado.

Existem quatro sistemas de princípios filosóficos dentro da filosofia budista indiana. Dois são da escola Hinayana e dois são da Mahayana. Vaibhashika e Sautrantika são as duas escolas Hinayana; são de um tipo diferente do Hinayana, não são do Teravada, então não confunda com os ensinamentos que se obtêm com o Teravada no Sudeste Asiático, é um tipo diferente de Hinayana. Existiam dezoito escolas de Hinayana, e a Teravada era apenas uma delas. Esses [dois sistemas de que estamos falando] são subdivisões da Sarvastivada, que ficava principalmente no norte da Índia. E os dois sistemas Mahayana são o Chittamatra, que significa "mente apenas", e o Madhyamaka, que significa "caminho do meio". Dentro do Madhyamaka existem duas subdivisões: Svatantrika e Prasangika.

E, para tornar as coisas ainda mais deliciosamente complicadas, cada tradição do budismo tibetano tem uma interpretação diferente de tudo isso. Então, esta noite, vamos falar apenas sobre o Gelugpa. Dentro do Gelugpa, infelizmente ou felizmente, para que seja mais útil para o desenvolvimento da mente, existem diferentes livros usados nos diferentes mosteiros, e eles têm interpretações ligeiramente diferentes de diversos pontos. Eu vou seguir apenas um deles, o da maioria dos meus professores - a tradição de livro chamada Jetsunpa. E é isso que os Geshes no monastério de Sera Je e no mosteiro de Ganden Jangtse usam.

Estou dizendo isso porque você realmente precisa saber. Geshe Sopa vem de Sera Je, da mesma tradição de livros. O mesmo acontece com Serkong Rinpoche, meu professor. Em Loseling, na Cidade do México, o Geshe usa um sistema de livros diferente, o Panchen. Portanto, às vezes você pode ouvir diferentes explicações dos Geshes de diferentes mosteiros. Você não deve ficar confuso com isso; tente manter tudo em seu devido lugar. É um pouco diferente, não muito diferente, mas um pouco diferente em certos pontos. Na verdade, existem quatro tradições diferentes de livros Gelugpa. Os livros de Jeffrey Hopkins seguem ainda uma outra, a Kunkhyen, e Michael Roach segue ainda outra, a Tendarma. Portanto, esteja ciente de que existem diferenças. Como costumo dizer, isso é muito útil, porque se houvesse apenas uma explicação, seria um dogma, e você não aprenderia realmente, você não seria desafiado tentando descobrir: “Bem, por que eles disseram o que eles disseram? Por que há essas diferenças?” E assim por diante.

Vacuidade é a Ausência de Maneiras Impossíveis de Existir

Na discussão sobre nossa falta de consciência, ou ignorância, o que acontece é que estamos sempre fazendo hologramas mentais das coisas; é assim que as conhecemos (tomamos cognitivamente). E entre esses hologramas mentais, muitas vezes há a aparência de algo que é impossível. E nossa falta de consciência é: "Eu não sabia que era impossível" ou "Eu achava que era possível", como a diferença entre: "Eu não sabia que não havia maçãs na mesa" e "Eu achei que havia maçãs na mesa.” Portanto, a coisa mais profunda de que temos que nos livrar é pensar que existem maçãs na mesa, quando na verdade não existem, pensar que a aparência de algo impossível se refere a algo real. É disso que realmente precisamos nos livrar.

A vacuidade diz que não existe tal coisa; é disso que trata a vacuidade – de uma ausência absoluta. Não existe algo real a que essa aparência de uma coisa impossível se refira. Então estamos falando - se colocarmos isso em termos ocidentais - de projeções de fantasias. Elas não se referem a nada que seja real. Em um tipo diferente de terminologia, o que é impossível é uma "alma" impossível. Haveria uma "alma" impossível nas pessoas e uma "alma" impossível em todos os fenômenos. E cada escola afirma progressivamente o que é impossível. A “alma” impossível é ligeiramente diferente nas diferentes escolas; vai ficando mais e mais profundo. Temos que perceber que, embora apareça, é impossível - não se refere a algo real. Temos que negar com a compreensão da vacuidade - não existe tal coisa, embora ela apareça.

As escolas Hinayana só falam de “alma” impossível em pessoas: nós e todas as demais pessoas. E as escolas Mahayana falam de “alma” impossível em todos os fenômenos. As escolas Hinayana dizem que, para alcançar a liberação, ou a iluminação, tudo o que você precisa fazer é se livrar dessa crença em uma “alma” impossível nas pessoas. A única diferença com o Buda é que, para se iluminar, você precisa conhecer todos os fenômenos, mas não se fala em se livrar de alguma “alma” impossível ou coisas impossíveis sobre os fenômenos. No Hinayana eles dizem que um Buda tem que se livrar de todas as ideias erradas que tenha, mas isso não é apresentado da mesma maneira que no Mahayana, em termos de vacuidade.

As escolas Mahayana dizem que, para alcançar a liberação, você tem que se livrar do apego a uma "alma" impossível nas pessoas, mas para alcançar a iluminação você precisa se livrar também do apego a uma "alma" impossível em todos os fenômenos. Mas Prasangika diz que para alcançar a liberação, você precisa se livrar desse apego a uma "alma" impossível tanto nas pessoas quanto nos fenômenos, e aquilo que é impossível, em ambos, é exatamente a mesma coisa - mas as outras escolas Mahayana dizem que é diferente. As outras escolas Mahayana dizem que o que é impossível nas pessoas e o que é impossível em todos fenômenos são coisas diferentes. Mas, obviamente, as pessoas fazem parte de todos os fenômenos. Portanto, eventualmente você terá que entender isso no que diz respeito às pessoas também. Porém, para alcançar a liberação, o que você precisa entender que é impossível sobre as pessoas é menos profundo. Então, para atingir a iluminação, de acordo com o Prasangika, aquilo de que você tem que se livrar são os hábitos de inconsciência que criam essas aparências impossíveis - e isso você faz depois de ter se livrado desse apego. As outras escolas Mahayana dizem que você pode se livrar dos dois juntos, gradualmente.

A “Alma” Impossível Grosseira das Pessoas

Vamos falar sobre a "alma" impossível das pessoas primeiro. Uma "pessoa" (gang-zag, Skt. pudgala) é o que poderíamos chamar de um contínuo mental individual. Esse contínuo mental será conectado a elementos físicos de uma determinada forma de vida. Não há nada inerente em um contínuo mental que o faça sempre um humano ou um animal, ou macho ou fêmea, ou algo assim. Também chamaríamos um inseto de "pessoa". Ele não é inerentemente um inseto - é um contínuo mental que nesta vida em particular tem os agregados de um inseto. Agora, isso é muito profundo, se você pensar em termos de renascimento. Não é Alex, o humano, que agora renasce como Fifi, o poodle. Mas neste contínuo mental há uma vida como Alex, um humano, e depois outra vida como Fifi, o poodle. Isso faz uma grande diferença em termos de como você vê o renascimento.

Agora, há dois níveis de “alma” impossível de pessoas: grosseiro e sutil. E no Prasangika ainda há um terceiro. O primeiro nível, o nível grosseiro do que chamamos de “apegar-se a uma 'alma' impossível” é o apego a uma “alma” impossível baseado na doutrina. Isso é muito, muito específico. Isto tem como base aprender, aceitar e acreditar nas doutrinas ensinadas por sistemas filosóficos não-budistas indianos. Agora, das oito escolas não-budistas indianas, sete delas - assim como o budismo - aceitam o carma e o renascimento. O renascimento contínuo com base no carma. Isso é assumido. Há apenas uma escola, os hedonistas, que não aceitam o carma e o renascimento, e eles são chamados de niilistas - "vamos nos divertir porque quando a vida acabar, acabou".

Portanto, a questão realmente é: o que passa de vida em vida por força do carma? Ou, o que afinal está acontecendo nesta vida? Essas outras escolas defendem a existência uma “alma” impossível, e é ela que faz isso, mas o budismo diz que não, que não existe uma “alma” impossível. Se você ouvisse falar de uma dessas teorias, e aprendesse, aceitasse e acreditasse no que dizem sobre uma “alma impossível” - é disso que eles estão falando, esse tipo de apego a uma “alma” impossível.

Quais são as características dessa “alma” impossível? Todas essas escolas indianas aceitam e dizem que existem três características. Tirando essas três características, elas diferem entre si, mas todas elas dizem que a “alma” impossível tem três características. Uma delas diz que é só nesta vida. Em primeiro lugar, a alma é estática, não muda; não é afetada por nada. Segundo, ela é uma mônada, não é constituída de partes. Portanto, ou ela é una com o universo, sem partes, “atman é Brahman” - esse tipo de crença bramânica, pré-hindu, ou ela é uma pequena mônada, como uma centelha de luz ou algo parecido. Isso geralmente é traduzido como "permanente e uma".

A terceira característica é que ela é algo separado do corpo, da mente e das emoções (dos agregados). Assim, esse tipo de alma ou possui o corpo, a mente e as emoções, ou os controla, é a chefe, como de uma máquina, ou os habita - ou, obviamente, poderia ser uma combinação dessas três coisas. "Agora eu estou neste corpo, sou esta alma, e possuo este corpo e mente, e vou usá-lo e controlá-lo, e vivo na minha cabeça." E então este "eu" separado de tudo mais, esta "alma separada", voa para fora deste corpo e mente e vai habitar outro, que ela possuirá como sendo seu e usará e controlará – ela vai ser quem aperta os botões da máquina.

Agora, algumas dessas coisas nós podemos pensar automaticamente, podemos sentir automaticamente. Mas o pacote todo- que é sobre o que eles estão falando aqui – esse pacote todo, é algo que você não pensa automaticamente. Um animal certamente não pensaria automaticamente nisso. Você tem que ser ensinado por alguns sistemas doutrinários. É por isso que se diz que é "com base na doutrina". E é disso que você precisa se livrar primeiro. E esse tipo de alma, de acordo com as sete escolas, mas não com os hedonistas, é aquilo que pode ser liberado do renascimento. Ela é liberada da ilusão de que está separada, e passa a ser, de acordo com as visões hindu e bramânica, una com o universo. E, com base nessa crença, obtemos o que é chamado de “emoções perturbadoras baseadas na doutrina e nas atitudes perturbadoras”. Ficamos muito apegados à nossa opinião, nossa religião, e ficamos muito na defensiva, ficamos irritados com qualquer um que discorde disso ou nos desafie - talvez até entremos em guerra contra eles - e podemos ser muito arrogantes, e termos muitas atitudes perturbadoras baseadas nessa crença – nos agarramos ao corpo como se ele fosse "meu", ou a algo em nosso corpo ou nossa mente como sendo "eu". Este é o "meu" carro - essas coisas. Essa “alma” impossível. Essa é a “minha” religião, a “minha” igreja; isso é "meu". E há também uma atitude perturbadora de achar que tal alma é eterna, ou a atitude perturbadora de querer fazer práticas ascéticas como caminho para a libertação - como se torturar, se chicotear, ficar de pé em um só pé durante todo um ano – como se isso fosse levar à liberação.

Embora possamos não ter a versão indiana completa, se você olhar para algumas religiões e crenças ocidentais, há muitas coisas em comum, não há?  Portanto, ou somos totalmente hedonistas - viva para esta vida, se divirta o quanto puder, ganhe todo o dinheiro que conseguir – ou, embora não acreditemos no renascimento repetidas vezes, há o renascimento no céu ou no inferno - e isso, de acordo com versões ligeiramente diferentes sobre o carma, é recompensa e punição com base em ações. E há uma "alma" eterna que é separada do corpo e da mente, e que vai voar até isso (o céu ou o inferno). E, talvez, se nos torturarmos e nos chicotearmos, isso nos ajudará a chegar mais rapidamente à libertação no céu. Nós certamente temos emoções perturbadoras baseadas em tais crenças - que nossa crença é a melhor, que é superior, e entramos em guerra com grande ódio e raiva contra qualquer um que discorde. Antes, tínhamos os hedonistas - "Vou viver para sempre, e sou separado desse corpo porque nunca envelheço e me divirto o máximo possível."

Quando percebemos que isso é impossível, que não existe esse tipo de alma – que isso não é o que eu sou; que eu não sou apenas essa “alma” grosseira e impossível – o que sabemos? Isso é muito importante para a compreensão da vacuidade. Você sempre tem que ver o que sabe depois que algo foi negado? É uma pessoa, é um "eu", é o "eu" que realmente existe em nossas pessoas, contínuos mentais individuais. Então há uma pessoa, "eu" - o nome que você der - e todo mundo usa esse tipo de ideia, independentemente de você ter uma palavra para isso ou não. Então “eu”: o que é o "eu"? Eu sou algo que é imputado nos agregados - o corpo, a mente e as emoções. Os cinco agregados, resumindo, o corpo e a mente. Então, isso é imputado, é rotulado - explicarei melhor em um minuto. Se a base - o que chamamos de "eu" - for não-estática (vimos que todos os agregados estão mudando o tempo todo), o que é imputado tem que ser não-estático - não pode ser estático. E como a base tem partes, o que é imputado nela ("eu") não pode ser uma mônada, não ter partes - também precisa ter partes. E por ser imputado, isso significa que não é independente de um corpo e de uma mente. Escolas não-budistas diriam que é independente, que pode ser separado.

Rotulamento Mental

Temos de compreender – e isso é muito importante – o que se quer dizer com imputação ou rotulamento mental. Há três coisas envolvidas aqui. A primeira é a base para a imputação - que seria o corpo, a mente, as emoções (os cinco agregados). A segunda é o rótulo mental – que é a palavra, ou a categoria, ou o conceito "eu". Agora, o rótulo mental não é “eu”; o rótulo é uma palavra ou conceito. A terceira coisa é o objeto designado pelo rótulo. É a isso que se refere a palavra ou conceito "eu"; o objeto designado pelo rótulo sou eu.

Isso é obviamente algo em que você vai ter que trabalhar, por isso vou deixar de lado agora. Vou dar um exemplo simples: Esse conjunto de trezentos e sessenta e cinco dias e mais um quarto de dia é uma base para rotularmos, para imputarmos. O rótulo mental com o qual agrupamos e organizamos isso, para que possamos falar sobre isso, é o rótulo mental "ano". Mas [a palavra] "ano" é apenas uma categoria, é apenas uma palavra. E um ano não é uma categoria ou uma palavra, um ano é uma coisa, não é? Então o que o rótulo "ano" está designando? O que ele está designando é um ano de verdade. [O rótulo] é equivalente a, é como você chama, os trezentos e sessenta e cinco dias e mais um quarto de dia, para lidar com isso. Mas não é apenas a palavra - é o que a palavra significa, o que ela significa. Então aqui você tem a base, e aqui você tem a palavra (o rótulo mental), e aquilo a que o rótulo mental se refere - eu. Bem, isso é como uma ilusão. Parece ser estático, sem partes, independente, e assim por diante - mas isso é como uma ilusão. Isso é uma ilusão totalmente falsa. Mesmo sendo mentalmente rotulado e sendo apenas o que é designado por uma palavra - é como uma ilusão, não é? Mas ainda assim funciona - eu vejo, eu ouço, eu sei, eu ando, eu faço coisas - funciona.

Vamos dizer de outra forma, a maneira como coloquei não ficou muito clara. O "eu" impossível, o "eu" grosseiro impossível, a "alma" grosseira – [esse “eu”] é uma ilusão; [esse “eu”] simplesmente não funciona. [Esse “eu”] é uma ilusão, é o "eu" impossível. O verdadeiro eu, que é designado pelo rótulo "eu" com base no corpo e na mente, este sim é como uma ilusão. Então aqui temos que trabalhar com outro nível – [o nível] das coisas sendo como uma ilusão. Sou como uma ilusão e ainda assim funciono; faço coisas. Portanto, tenha cuidado aqui. O falso "eu", o "eu" impossível - esse é uma ilusão. O verdadeiro eu - esse é como uma ilusão, mas ainda assim funciona. E outro ponto muito importante a saber sobre o rotulamento mental é que ele não cria o objeto designado pelo rótulo. Não importa se você o chama de "eu" ou não, existe um eu verdadeiro. Você não precisa rotulá-lo. O rótulo não o cria. O rótulo não cria um ano. Antes de haver a palavra ou conceito "ano", havia anos? Sim. A palavra "ano" não criou os anos. A terra já girava em torno do sol. E você poderia chamar isso de "ano". "Ano" é aplicável a isso, mas não cria o ano.

A “Alma” Impossível Sutil de Pessoas

Agora vamos ao "eu" sutil impossível. Esse “eu” é o que surge automaticamente. Você não precisa ser ensinado sobre ele; os animais também o têm. Não importa se sabemos ou não que o eu é imputado nos agregados. Se achamos que existe essa "alma" impossível ou se sabemos que não existe tal coisa, isso não importa, porque é mais sutil. Assim, sem que tenham que nos ensinar, nos parece que uma pessoa pode ser autossuficientemente conhecida. Isso significa que ela pode ser conhecida sem o corpo, a mente ou as emoções, ou algo que apareça simultaneamente a ela.

Vamos colocar isso no tipo de imagem e linguagem de um holograma mental. Ele aparece automaticamente, o holograma mental desse "eu" - ou, pelo menos, achamos que aparece. Parece que há um holograma que é apenas o "eu", que não é o holograma de um corpo, mente, emoções, ou algo assim, que também aparece, e que o “eu” é aquilo que é imputado nele. Isto é o que parece ser, isso é no que acreditamos. Deixe-me dar exemplos: "Não me conheço muito bem" ou "Ah, agora me conheço bem." - como se o "eu" fosse algo que eu pudesse conhecer independentemente do meu conhecimento do meu corpo, da minha mente ou das minhas emoções, e de me conhecer em termos disso. Isso é muito sutil, mas muito profundo.

"Você conhece a Maria?" "Sim, eu conheço a Maria.” - como se a Maria fosse algo que você pudesse conhecer. Nós não dizemos "Eu conheço o corpo de Maria", a menos que tenhamos tido relações, você sabe o que quero dizer. Quando pensamos: "Eu conheço alguém", pensamos que conhecemos essa pessoa. O que é que nós conhecemos? É como se pudéssemos conhecer a Maria de forma autossuficiente, sem ao mesmo tempo ter pelo menos um holograma mental de seu nome. Não há como pensar na Maria. Como você pensa na Maria? Você tem um holograma mental de sua aparência, do som da sua voz, o seu nome - alguma coisa. Você não pode simplesmente pensar Maria ou apenas ver Maria, conhecê-la de forma autossuficiente, sem que uma base apareça.

Ainda que saibamos que eu sou imputado nos agregados, automaticamente eu apareço como se eu pudesse me conhecer de forma autossuficiente. Eu posso conhecer a “mim mesmo”. Eu posso ver a "mim mesmo" no espelho. Você se vê no espelho? Claro, eu me vejo no espelho. Esse é o meu corpo. Agora eu me vejo no espelho, mas eu me vejo no espelho com base no corpo que aparece no espelho – eu sinto que sou “eu”, que não é apenas um corpo.

Temos muitas expressões que revelam essa forma automática de pensar. "Não estou me sentindo eu mesmo hoje", "Estou desconectada de mim mesma", "Estou procurando meu verdadeiro eu", "Seja você mesmo". Isso é automaticamente como pensamos e como nos sentimos. E, claro, é por acreditar que a aparência de uma "alma" sutil e impossível corresponde à realidade que automaticamente surgem emoções perturbadoras: apego (a nós mesmos e aos outros), raiva, e assim por diante. Este é o tipo de “eu” que surge automaticamente. Os animais também têm isso.

Esse eu é como uma ilusão. Não é apenas imputado, é imputavelmente conhecível; não é autossuficientemente conhecível, é imputavelmente conhecível. É imputado, mas mais do que isso, é imputavelmente conhecível. A base onde é imputado são os agregados (o corpo e a mente). E além disso, só é imputavelmente conhecível. Alguma coisa, alguma base tem que aparecer. Não é como o corpo - além do fato de haver uma relação entre o todo e as partes, que é toda uma outra discussão. Não é como o corpo, que você pode simplesmente ver. Então é como uma ilusão; no entanto, funciona. E nós nos vemos no espelho; e não é que estejamos olhando para outra pessoa ou mesmo para um corpo morto.

Agora, isso é mais sutil – é como uma ilusão, mas funciona. E de acordo com todas as escolas não-Prasangika, se você entender apenas isso - que isso é impossível, que não há tal coisa - e você entender de forma não-conceitual, e você realmente se familiarizar com isso, de modo que isso esteja presente em todos os momento de sua existência, você obterá a liberação. Você não obtém a liberação tendo [essa compreensão] não-conceitual por apenas cinco minutos ou quatro horas. Isso não é suficiente. Você tem que tê-la sempre. Quando você a tem sempre, você está liberado.

O Que Estabelece que Algo Existe?

Isso, obviamente, já é difícil o suficiente de entender. Agora a questão é: bem, com base nessa compreensão, que tipo de “eu” nós temos? Quem é o "eu"? O que é o "eu"? Então agora entramos na questão de – conforme se costuma dizer – como as coisas existem. Mas essa é uma tradução enganosa. Essa não é realmente a questão. A questão é muito mais sutil. A questão aqui é o que estabelece, ou prova, que algo existe: como você sabe que algo existe? Não estamos falando sobre o que o faz existir. Estamos falando do que afirma, o que prova, o que estabelece que existe? - é a palavra "estabelecer" (sgrub) - o que prova que existe - é a mesma palavra que "provar" e a mesma palavra que "afirmação", o fenômeno da afirmação. "Existir" significa que é validamente conhecido. O que estabelece que é validamente conhecível – que não é apenas bobagem, uma ilusão.

É disso que o Mahayana está falando [quando fala de] vacuidade. Está dizendo que, bem, há certas coisas que você pode achar que estabelecem ou provam a existência de algo, mas isso é impossível, não provam. Vacuidade é a ausência total de - em termos de fenômenos - é a ausência total de isto sendo o que prova que algo existe. Isso não é só no Prasangika, isso é em todo o Mahayana. Mas fica cada vez mais sutil, o que (as escolas/tradições) estão refutando. A maneira de estabelecer que algo existe fica cada vez mais sutil - quero dizer, a maneira impossível (de existir) que refutam. Isso você terá que digerir por um tempo. Mas é disso que trata a vacuidade, se você quiser ser preciso. É disso que estão realmente falando, senão fica muito vago: (só falar sobre) "a maneira de existir" - isso não é preciso.

Agora vamos voltar para o Hinayana. O Vaibhashika e o Sautrantika falam sobre o que estabelece que várias coisas existem. Todos, exceto o Prasangika, dizem que o que estabelece que algo é validamente conhecível é que há algo nesse objeto que o torna um objeto validamente conhecível. Isto é o que descrevo há anos como sendo uma linha sólida em torno do objeto, que o torna algo específico – e não outra coisa - que o torna um objeto específico, validamente conhecível. Isso seria equivalente a uma linha em torno dele. Esta mesa não se funde com tudo mais, como se fosse parte de uma grande sopa. O que prova que ela existe é que, bem, sim, de sua parte há uma linha em torno dela que a distingue de todo o resto. Isso é geral - tudo tem isso, tudo o que podemos conhecer validamente. Há apenas uma característica, a característica mais básica, a característica distinta das coisas: apenas ser um objeto distinto conhecível. Não se fundir com todo o resto. Isso inclui o "eu" - que tem uma linha em torno dele. E, além disso, o objeto de referência para o rótulo, para a palavra que usamos, pode ser encontrado. Aí está a mesa! Há uma linha em torno dela. Ali está a mesa. "Eu”. Há uma linha em volta de “mim” - não estou fundido à parede ou tornando-me você. Portanto, aquilo à que a palavra "eu" se refere pode ser encontrado, por parte do objeto. Então isso, em geral, todos aceitam isso para (descrever) tudo, exceto (a escola) Prasangika.

Vaibhashika

Agora, o Vaibhashika diz: "Vamos ser mais específicos." Isso, claro, estabelece que algo existe, prova que existe. Mas o que realmente prova que as coisas existem é que elas funcionam, desempenham uma função, fazem alguma coisa. E aquilo de mais básico que todas as coisas fazem, incluindo os fenômenos estáticos, é servir como um objeto para ser validamente conhecido. E assim, por funcionar, isso prova que existe. (O meu "invasor da quinta dimensão" não funciona, não existe.) Se funciona, eu posso conhecer validamente. Isso prova que existe.

Faz sentido - todas essas posições fazem sentido. Até mesmo o "eu" é assim. Há uma linha em torno dele, que o separa de tudo mais; e faz dele um objeto conhecível; e ele funciona. Isso prova que eu existo. Eu faço coisas, eu vejo coisas, eu vejo você - isso prova que eu existo. E esse "eu" pode ser encontrado. Onde? Nos agregados, em algum lugar nos agregados, o conjunto de todos os agregados - bem, isso é "eu". Embora essa seja a base, de qualquer forma, você pode encontrá-la. A base serve como exemplo para isso; é para ela que se pode apontar.

Sautrantika

Agora, o Sautrantika diz que, bem, temos de diferenciar entre fenômenos objetivos (rang-mtshan) e fenômenos metafísicos (spyi-mtshan). O que entendemos com o Vaibhashika é que analisam apenas a realidade objetiva - o que funciona, o que nós diríamos que é "real". Corpo, mente, pessoas - isso é real. Essa é a realidade objetiva. E, bem, fenômenos metafísicos - o que são eles? São as categorias, as categorias estáticas das quais estávamos falando. Essas categorias, diz o Sautrantika, claro, têm uma linha em torno delas. A categoria "mesa" não é a categoria "cadeira". E aqui eles começam a se aproximar do Prasangika, mas logo depois se afastam. Mas, dizem que você não consegue encontrar o objeto de referência para a categoria "mesas". Então o que estabelece que a categoria "mesas" existe? O que prova que ela existe é que ela é aplicável, pode ser aplicada mentalmente; pode ser rotulada mentalmente em mesas individuais. "Eus" individuais são objetivamente reais. O "eu", de acordo com o Sautrantika - é real, funciona. Eu funciono, eu faço coisas - isso prova que eu existo, mesmo que seja como uma ilusão; mesmo o "eu" sendo imputado aos agregados e mesmo não sendo autossuficientemente conhecível. Mas quando falamos da categoria "eu", da categoria "pessoas", bem, é uma categoria. E o que prova que ela existe é que ela pode ser aplicada a muitas, muitas pessoas diferentes, muitos "eu" diferentes; todos se autodenominam "eu". Se alguém os rotula ou não, não importa.

Agora vamos para as escolas Mahayana. Agora começamos a falar sobre formas impossíveis de provar que algo existe. Isso é impossível, embora possa parecer que é assim. Agora estamos entrando na "alma" impossível de uma pessoa.

Eu deixei uma coisa de fora, e tenho que voltar atrás: o Sautrantika diz que você não pode falar sobre o conjunto de agregados como sendo o que você encontra, a base para rotular, para o "eu" – aquilo para o qual você pode apontar. Você pode dizer, bem, é a consciência mental, porque a consciência mental é realmente o que vai de uma vida para outra. O problema é que você tem que encontrar algo que esteja sempre disponível, para ser a base para o rótulo. E o que está sempre disponível é a consciência mental, então é onde você pode encontrar o "eu". É para onde você pode apontar, o objeto de referência da palavra "eu".

Chittamatra

Agora chegamos ao Chittamatra e ao Mahayana. O Chittamatra diz, "Bem, sim, nós concordamos no que diz respeito àquilo de que você tem que se livrar – as “almas” impossíveis grosseiras e sutis, a maneira como isso é definido no Hinayana. Se você se livrar desse tipo de apego, você estará liberado. Mas para obter a iluminação, você tem que entender a vacuidade de todos os fenômenos". O Chittamatra diz, "Bem, há dois níveis aqui. Qual é a forma impossível de provar que existem fenômenos validamente conhecíveis? O que é impossível é que quando tomamos conhecimento de algo - quando há um holograma mental de algo, quando a mente produz um holograma mental - o objeto que aparece estaria vindo de sua própria fonte externa e independente.

O que prova que algo existe? O Hinayana diria: "Bem, a coisa existe objetivamente lá fora sem que eu a veja, antes que eu a veja". Então a fonte desse holograma mental está vindo da coisa, que já estava lá, e do meu carma. Agora a pergunta é: "Como você sabe disso? Como você sabe que ela já existia objetivamente lá fora antes de você tomar conhecimento dela? Isso é impossível. Como você sabe que, em um quarto onde não há absolutamente ninguém, há móveis, há uma cama lá dentro? O que prova que ela está ali? A única coisa que prova que ela está lá é você abrir a porta e olhar. E só quando você realmente tem um holograma mental, ou outra pessoa entra na sala, que se prova que ela existe. Você não pode provar que ela existe dizendo, "Bem, ela estava objetivamente lá antes de qualquer um tomar conhecimento dela".  Portanto, não há realidade objetiva.

Por exemplo, há um burro no meio da sala e estamos sentados num círculo à sua volta, e todo mundo tira uma fotografia com uma câmara Polaroid. Cada fotografia é diferente. Bem, como é o burro de verdade? Não é algo objetivo. Ele não é algo separado daqueles que olham para ele.  Isso é impossível. Tudo o que você pode dizer é que as fontes da aparência das coisas vêm de tendências cármicas. Então essa é a fonte do objeto que aparece na mente - essa é a fonte do holograma, basicamente. E o conhecimento do holograma vem de uma tendência cármica. E isso é tudo o que você pode dizer sobre a origem dele. E, é claro, nós compartilhamos carma, carma coletivo. Então estamos todos na mesma sala, mas o que estamos vendo não é a mesma coisa; ninguém está vendo a mesma coisa. Mas poderíamos dizer - isto é como uma ilusão – poderíamos dizer que estamos todos na mesma sala; coletivamente estamos todos na mesma sala, mas o que estamos experimentando, o que estamos vendo, o que estamos ouvindo, são todos hologramas mentais muito individuais.

Agora estamos ficando muito mais sutis aqui. Todo mundo me vê, mas todos estão vendo algo diferente. O que aparece está vindo por parte de cada um, por parte da mente. Mas você não pode dizer que eu existo apenas na mente de cada pessoa. O que aparece vem da sua mente. Se eu existisse apenas em suas cabeças, então haveria tantos Alex quanto há pessoas na sala - isso é absurdo. Então é como uma ilusão que vocês todos estejam vendo a mesma pessoa sentada aqui. E, no entanto, todos vocês podem me ver. Estou falando com vocês - todo mundo ouve algo diferente e se lembra de algo diferente. É como uma ilusão.

Mas ainda assim dizem que há uma linha sólida à minha volta e você pode me encontrar. O que você encontra como sendo a pessoa ou você, eles dizem que é alayavijnana, a consciência armazém, a consciência básica. Não vou entrar no que é isso, porque é uma longa discussão, mas isso é mais sutil do que a consciência mental. É o que carrega as tendências cármicas, e é por isso que é muito importante. Isso é o que está especificado aqui.

Agora, o Chittamatra tem mais uma coisa, que também vai um pouco na direção do Prasangika. Temos o segundo tipo, o tipo mais sutil de "alma" impossível de todos os fenômenos. Os hinayanas dizem que o que estabelece a existência de um objeto é a marca característica que faz dele algo conhecível, como uma linha em torno dele, por parte dele. A imagem que uso e que me parece útil é a dos ganchos, que há ganchos, marcas características por parte do objeto, para qualquer nome que você possa aplicar validamente a ele. Então, é como se houvesse um gancho em algum lugar dentro de mim; um gancho para a palavra ou o rótulo "Alex" ou para "Alexander" (que é outro gancho), e outro gancho para "Alejandro", e outro gancho para "Berzin", e outro gancho para "Fifi o cão", e outro gancho para "pessoa", e outro gancho para "boa pessoa", e outro gancho para uma cor - um gancho para cada característica e cada nome em cada idioma que estabelece que sou Alex ou que sou Alejandro, ou que sou uma pessoa simpática ou apenas uma pessoa, que estabelece isso. E o Chittamatra diz: "De maneira alguma! As coisas seriam lotadas de ganchos. Não, não há ganchos por parte do objeto. Os nomes e características e assim por diante são apenas aplicáveis. Não é que haja um gancho que faz com que você possa pendurar o nome nele".

Isso não é tão absurdo assim, o ponto de vista Hinayana. Quero dizer, como se pode dar tantos nomes diferentes para as coisas, e em tantas línguas diferentes? Isto é uma "mesa", isto é uma "table", isto é "lixo", isto é uma "antiguidade", isto é "bonito", isto é "feio". Como você pode aplicar todas essas palavras ao objeto e todas serem válidas? Não é arbitrário. Isto é um "cão" - não, não é um cão. Tem que haver ganchos apropriados no objeto. Você pode fazer julgamentos relativos: é "lixo" ou uma "bela antiguidade" - ambos podem ser aplicados, mas não "cão". Então o que é isso? Isto é uma mesa ou uma table? Essa é uma pergunta interessante. E quem determina se é uma mesa ou uma table - é o objeto ou é a mente que o rotula? O que prova que é uma mesa? O que prova que é uma table? Então você percebe que para entender o que o Budismo quer dizer com vacuidade, você realmente tem que entender esse conceito do que prova que o objeto existe como alguma coisa. O que prova que ele existe? O Chittamatra diz, claro, por parte do objeto há uma linha em torno dele que o torna conhecível; mas o que o estabelece como sendo uma mesa ou uma table, bem, isso é uma questão de rotulação mental. Mas não é apenas um rótulo mental, porque funciona. Não é que estejamos mentalmente rotulando-a, tornando-a um objeto conhecível - não é apenas rotulação mental, de acordo com o Chittamatra. É algo por parte do objeto que estabelece isso; não é apenas que ele pode ser rotulado mentalmente como um objeto conhecível. É um objeto conhecível – e isso vem dele – mesmo que ele esteja aparecendo por conta do carma.

Então vamos resumir isso. Temos aqui as tendências cármicas, muitas vezes chamadas de "sementes". As tendências cármicas produzem um holograma mental. E por parte daquele objeto que foi produzido, há a aparência dele - estamos falando da aparência - a aparência vem da mente. Agora o que apareceu tem uma linha sólida à sua volta. Mas o nome que dou ao objeto, é outra coisa. Isso está vem de... - não há nada por parte do objeto que permita que você pendure as palavras neles. Independentemente de você tomar consciência dele ou não, ele sempre vem com uma linha à sua volta. E ele funciona. Isso também estabelece que é real - não é como uma categoria - se eu colocar o papel em cima, a mesa o segura.

Ok, está demorando um pouco, mas acho que vamos completar isto, assim você terá a ideia completa para trabalhar. Na verdade, o Chittamatra é extremamente profundo. E qual é a real importância disso, em termos de nossa progressão aqui, é que agora, com o Chittamatra, entendemos que as aparências das coisas estão vindo apenas da mente. Por isso, é como uma ilusão que vem lá de fora. Se conseguirmos entender isso, estaremos preparados para o Prasangika, que diz: "Ei, isso não está certo! O Chittamatra diz que a aparência não é provada ou estabelecida por parte do objeto; ela só é estabelecida por parte da mente. Se conseguirmos entender isso, e trabalhar com isso, estaremos preparados para conseguir entender que o que prova que algo existe não vem de maneira alguma do objeto – vem totalmente da mente. Portanto, nos prepara. Fica mais fácil de entender.

Svatantrika Madhyamaka

Agora vamos ao Svatantrika Madhyamaka. Todas as outras escolas dizem: "Bem, apenas algumas coisas são imputadas." Mas aí vem o Madhyamaka, e ambas as divisões do Madhyamaka dizem: "Não, o que estabelece que as coisas existem é o fato de serem imputadas, de ser imputáveis, de poderem ser rotuladas". Tudo pode ser imputado. O que é impossível é ter uma existência não-imputada. O que é impossível é a existência objetiva de algo: funciona, e isso prova que existe, e independente disso pode ser mentalmente rotulado. As duas divisões do Madhyamaka dizem, "Não, não, não, tudo é imputado em partes. Tudo - uma mesa é imputada nas partes e (em suas) causas, essas coisas.”

Então agora a imputação é algo muito maior. Não se trata apenas de imputar nomes e categorias, trata-se de imputar tudo. Porque, lembrem-se, os outros sistemas estavam dizendo que a linha em torno do objeto não era imputada. O Chittamatra dizia: "Ora, só os nomes são imputados, só as categorias; a linha em torno dos objetos está lá, vem do próprio objeto".

Agora, o Madhyamaka diz que o que prova que as coisas existem é que elas podem ser rotuladas, podem receber um nome. Um objeto conhecível. Os não-Madhyamaka dizem que dar ou não um nome a alguma coisa, ou algo assim, não estabelece que ela existe. Ela existe, são apenas as categorias que são imputáveis. A mesa em si não é imputável, esta mesa. A categoria "mesa", bem, isso é imputável. Como eu sei que existe uma mesa? Bem, não é só porque eu posso rotulá-la "mesa". Existe uma mesa, ela funciona. As categorias são exceção - categorias, bem, elas não funcionam, é só que elas podem ser aplicadas. Voltando ao Madhyamaka, ele diz que você não pode estabelecer que algo existe independentemente de um nome ou conceito. Eu sei que existem mesas porque eu posso rotular mesas; a mesa é aquilo a que o conceito se refere, a que o nome se refere.

Agora, o Svatantrika diz que o que estabelece que as coisas existem é que você pode dar-lhes nomes, mas ainda há uma linha em torno das coisas, e há até mesmo ganchos nas coisas. As coisas não existem independentemente... - como você pode estabelecer que as mesas existem independentemente do conceito de "mesa"? Você não pode. As escolas anteriores dizem que você pode estabelecer que as mesas existem independentemente do conceito "mesa" - bem, isso é impossível. Do que você estaria falando? O que você estaria estabelecendo? Algo só pode ser estabelecido em termos de palavras. Como sei que essas mesas existem? Bem, porque há a palavra "mesa". O que são mesas? É isso a que a palavra se refere. Se não houvesse a palavra "mesa", como eu saberia que mesas existem? É como uma ilusão que ela existe de forma independente – que aquilo que a estabelece é independente de um rótulo.

O Svatantrika diz que não pode ser apenas por isso (o rótulo); tem que haver algo por parte do objeto também. Uma linha em torno dele, um gancho para "mesa", e assim por diante. Então são os dois trabalhando juntos, de forma interdependente: há a palavra "mesa" e há algo por parte do objeto que o torna uma mesa. Há algo de minha parte que me faz "eu" e não "você". Algo de minha parte. Há algo por parte dessa pessoa dirigindo o carro, buzinando e tentando me ultrapassar na estrada, que faz dela um idiota. É claro que ela é um idiota, considerando-se o conceito "idiota", mas há algo absolutamente por parte dessa pessoa, algo errado com ela, que faz dela um idiota – assim eu posso realmente chamá-la de "idiota", porque ela está dirigindo como um idiota.

Algo especial - que tipo de coisa especial me torna único? O Madhyamaka diz: “Ah, é apenas conceitualmente que se pode dizer que ele é um 'idiota'". O Svatantrika diz que tem que haver algo também por parte do objeto. E no que diz respeito ao "eu", há como você realmente encontrar esse “eu”. O que me torna especificamente eu? E aqui eles voltam para a consciência mental, essa é a base - você sempre pode encontrá-la, você sempre pode apontar para ela - isso sou eu. O objeto de referência para o nome pode ser encontrado, você pode apontar para ele. Vem do objeto. Você pode apontar para a consciência mental como a base encontrável que tem a característica de um "eu".

Prasangika Madhyamaka

Agora, é só quando você chega nesse nível de entendimento, quando você chega gradualmente a esse ponto, que você pode ir para o Prasangika. Você já entendeu que o "eu" é imputado e não pode ser conhecido por si só. Você sabe sobre as aparências. Você sabe sobre as categorias. Você tem um conhecimento geral sobre rotulação mental. E você sabe sobre os ganchos, e assim por diante. O Prasangika diz que mesmo dentro do contexto da rotulação mental, não há nada por parte do objeto que o estabeleça, que prove que ele existe. O que estabelece que há uma mesa? Bem, o fato de que existe o conceito de "mesa", o fato de que existe a palavra "mesa" e que ela é aplicável. Não é por parte do objeto que sabemos que ele é validamente aplicável - é apenas por parte da mente que você sabe se há uma implicação válida ou não. Então, se é correto ou não, se é válido ou não, isso é estabelecido por - quero dizer, não vamos entrar nisso, mas critérios diferentes por parte da mente.

Quando entendemos isso corretamente, sabemos que o rótulo "eu" não me cria. E eu posso me conhecer - é claro, temos que conhecer o corpo, e essas coisas, para nos conhecer. E é possível conhecermos as coisas sem ter que dar nomes a elas; você pode conhecer coisas sem conceitos. Mas o que estabelece, o que prova que as coisas existem é que, bem, há nomes e conceitos para elas – elas são aquilo a que esses nomes e conceitos se referem. No entanto, aquilo a que o nome ou conceito se refere - esse objeto a que eles se referem – isso não é possível de ser encontrado. Todos os outros [sistemas] disseram que você pode encontrar o objeto a partir da base, você pode encontrá-lo como sendo a consciência mental, ou algo, o conjunto das partes - você pode encontrá-lo. "Não, não, não - você não pode encontrar o objeto de referência. É só com nomes e conceitos. Não é possível encontrá-lo por parte do objeto.”

Isto está ficando muito sutil. É uma ilusão o objeto poder ser encontrado. É uma ilusão - quero dizer, ele aparece assim - mas é uma ilusão achar que o que é designado pelo rótulo é algo para o qual se pode realmente apontar e encontrar como a base. Porque a base é rotulada em suas partes, e elas são rotulado em suas partes, e continua assim para sempre, mas tudo funciona - como uma ilusão.

Não espero, e por isso você também não precisa esperar entender tudo o que falamos aqui. O que tentei fazer foi proporcionar um bom material, talvez uma forma um pouco mais precisa de explicar, para que você tenha muita comida a digerir. E a partir disso também podemos apreciar a profundidade do Prasangika. Não é essa coisa banalizada, "Bem, você pode encontrar o 'eu' no nariz ou na axila?" - a sutileza do que eles estão falando.

Então vamos terminar com uma dedicação. Pensamos que qualquer compreensão que tenhamos adquirido, se aprofunde e cresça cada vez mais, e aja como causa para alcançarmos a iluminação, para o benefício de todos.

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