Como se confiar a um professor espiritual? Como se relacionar com ele ou com ela? Isso é discutido em termos de como nos relacionamos no que diz respeito à nossa atitude e ao nosso comportamento com o professor.
Como nós nos relacionamos através de nossa forma de pensar, das nossas atitudes, é explicado por duas palavras tibetanas. Vamos examinar o significado dessas duas palavras.
Uma Convicção Firme nas Boas Qualidades de Nosso Professor
A primeira palavra tibetana é mopa (mos-pa). Temos a definição desses fatores mentais nos textos do abidharma. Há uma versão de Vasubandhu e uma versão de Asanga – duas versões seguidas pelos tibetanos. Devemos sempre olhar para as definições. Não podemos simplesmente confiar na definição de um tradutor ou de um dicionário qualquer.
- A palavra mopa foi definida por Vasubandhu como “apreender um objeto focal como se ele tivesse boas qualidades”. Apreender. O que significa isso? É muito difícil traduzir essa palavra. Apreender não é uma palavra muito boa; a maioria das pessoas não tem nem mesmo uma ideia clara do que isso significa em inglês. Apreender algo significa reconhecer com precisão e de forma decisiva. E aqui estamos nos referindo às boas qualidades do professor. Quais são exatamente as boas qualidades do professor? Não aquelas que projetamos ou imaginamos, mais quais são elas realmente? Quais são as boas qualidades desse professor? Temos que reconhecê-las de forma decisiva. Não devemos dizer: “Bem, talvez ele tenha essas qualidades, talvez não tenha”, mas temos que estar convencidos de que ele as tem, baseados em nossa experiência e em um exame minucioso.
- Asanga define isso como uma “convicção firme”. Ele enfatiza a parte da convicção. Não necessariamente no que se refere às boas qualidades em geral, mas aqui, de acordo com Vasubandhu, estamos falando das boas qualidades do professor, ok?
Então, quais são as boas qualidades dele? Estudamos uma lista das qualificações de um professor espiritual. Trata-se de uma pessoa ética? Ele diminuiu grande parte de suas próprias emoções perturbadoras? Ele está genuinamente preocupado com o bem-estar dos seus alunos, é muito gentil e compassivo? Há uma lista extensa de qualidades. Devemos examinar se ele tem ou não tem essas qualidades.
Como podemos saber? Agora podemos examinar a explicação de Chandrakirti dos três critérios necessários para que um reconhecimento seja válido. Quando estudamos o dharma, sempre juntamos diferentes peças de um quebra-cabeças.
(1) Primeiro, examinamos se há uma convenção no que diz respeito a essa boa qualidade. Ela é convencionalmente aceita como sendo uma boa qualidade? Portanto, devemos examiná-la. Sim, há uma convenção que atesta que se trata de uma verdadeira qualificação. Uma boa qualidade de um professor é um forte senso ético, por exemplo. E ela se encaixa na convenção, de acordo com o texto. Certo? Alguém é sincero conosco. O fato de que podemos confiar em uma pessoa sincera é uma convenção. Não confiamos em alguém que não seja sincero. É uma convenção comum dos seres humanos. É o primeiro critério.
Só por eles serem famosos ou por terem um grande nome... Sua Santidade sempre diz que os tulkus, os lamas reencarnados, não deveriam se apoiar apenas no renome de seus predecessores; eles têm que demonstrar suas qualificações nesta vida. Não é uma convenção apropriada que alguém seja considerado um grande professor só por ter um título de Rinpoche. De fato, na grande conferência de tulkus em 1988, Sua Santidade disse que se fosse possível, ele se livraria do sistema dos tulkus, pois nele há muitas possibilidades de abuso. Certo? E ele repreendeu todos os tulkus, por serem preguiçosos, e se apoiarem apenas no próprio renome.
Este é o primeiro critério. Tem que estar de acordo com uma convenção que é aprovada, de modo geral, do que significa ser um bom professor, um professor qualificado.
(2) O segundo critério é que não deve haver contradição com uma mente que de fato conhece a verdade convencional. Há muitas palavras técnicas aqui. O conhecimento convencional, a verdade convencional, significa: Observamos as ações do professor, perguntamos a outras pessoas qual a sua experiência em relação a esse professor. Será que elas contradizem suas boas qualidades ou não? Será que contradizem a verdade convencional sobre o que é um bom professor? A verdade convencional sobre um bom professor, um professor respeitável – uma pessoa ética, etc. Por exemplo, vemos essa pessoa agindo de forma totalmente antiética. Outras pessoas estão vendo também, veem que é terrível a forma como o professor está agindo. Ver o professor agindo de uma forma horrível contradiz o fato de que ele seja um professor adequado, de que tenha boas qualidades. Não queremos ter esse tipo de contradição.
(3) O terceiro critério é que não deve haver contradição com uma mente que de fato conhece a verdade mais profunda. Quando de fato conhecemos a verdade mais profunda, conhecemos a vacuidade (vazio). A vacuidade – as qualidades do professor não são autoestabelecidas, inerentes à pessoa, e assim por diante; elas se manifestaram a partir de muitas causas, condições e fatores. Quando pensamos que o professor é uma espécie de deus, uma espécie de ser transcendental e elevado, e gostamos intensamente dessa característica dele, e não há nenhuma forma de nos aproximarmos do ideal e chegarmos a ser como ele, isso é obviamente falso. Isso entra em contradição com uma mente que entende a vacuidade e a originação dependente. Todos nós temos a capacidade de desenvolver boas qualidades, mas elas apenas podem ser desenvolvidas com uma grande quantidade de trabalho e esforço. Foi assim que o professor conquistou suas qualidades. Foi assim que o Buda se tornou um buda. É muito importante não pensar: “Ah, isso é impossível” no que se refere a essas boas qualidades. Temos que ter uma atitude realista em relação a como podemos desenvolver boas qualidades. Certo?
Esse estado mental, essa primeira forma de nos relacionarmos com o professor, como nos relacionamos com ele, é com confiança firme nas boas qualidades dele. Certo? Confiamos nele porque temos essa convicção. É uma parte muito importante. Confiamos no que eles dizem. Confiamos que eles não nos decepcionarão. Isso é bem complexo, não é mesmo, pois esses professores não têm tempo para nós – eles são muito ocupados, viajam o mundo inteiro, têm milhares de alunos ou seguidores (se são discípulos verdadeiros é outra coisa) – mas confiamos que eles tenham boas qualidades, e somos inspirados por eles. Pode ser que precisemos de um professor menos qualificado que nos dê as instruções para o dia a dia. O que é outro nível de confiança.
Ver o Professor como um Buda
Agora chegamos a um tema bem complexo (para o qual não temos muito tempo dessa vez, mas quero pelo menos começar), que é ver o professor como um buda. Primeiro, isso é traduzido muitas vezes com a palavra “reconhecer”. “Reconhecer” não passa muito bem a mensagem. Trata-se do fator mental de distinguir, fazer a distinção (‘du-shes). O que significa distinguir? Tem a ver com diferenciar características definidoras de algo como sendo isso e não aquilo. Temos isso o tempo todo. É um dos cinco agregados.
O exemplo mais simples é: em nosso campo de visão, somos capazes de distinguir a forma colorida de nossa cabeça da forma colorida da parede atrás de nós. Se não fôssemos capazes de distinguir isso, não conseguiríamos lidar com a vida. Entendem do que estamos falando quando falamos de distinguir? Há certas características específicas dessa coleção de formas coloridas que fazem com que isso seja uma cabeça e não uma parede.
Desculpem se esse tema for um pouco complexo, mas amo tudo isso. Vou tentar deixar mais claro para vocês. Falemos do exemplo dos fantasmas, que veem um líquido como pus, dos humanos, que o veem como água; e dos deuses, que o veem como néctar. Não se trata de um líquido que de fato existe e que pode ser visto de diferentes formas, de acordo com o rótulo mental. Os fantasmas o rotulam como pus, os humanos como água e os deuses como néctar e, por causa do carma, isso funciona dessa forma para eles. Não é assim. Se fosse assim poderíamos projetar qualquer coisa no objeto. Certo?
Creio que foi no comentário de Tsongkhapa ou Kedrub Je – não me lembro bem qual foi, mas o comentário explica que as características de um objeto realmente existem, só que não podem ser encontradas no objeto em si. Então, o que significa isso? Convencionalmente, todos os fenômenos são chamados de “dharmas”, e dharma é definido como algo que mantêm suas características definidoras. Portanto, objetos possuem características definidoras, mas elas não têm por si só o poder, durante o ato de rotular, de definir o objeto. É claro que é incrivelmente difícil de entender isso. Muito obrigado pela definição, mas o que será que isso significa?
Há um exemplo que eu pensei que talvez possa ajudar, no que diz respeito ao exemplo do pus, da água e do néctar, e às características definidoras desses três. Pensem em doze ovos. Doze ovos podem ser divididos em quatro grupos de três, três grupos de quatro, dois grupos de seis, seis grupos de dois. Há alguma característica dos doze ovos que faz com que possam ser divididos dessa forma? Onde? Ainda assim, eles podem ser divididos assim, não é, dependendo do que a pessoa quiser fazer com eles, uma omelete de dois ou três ovos, por exemplo. Mas seria preciso dizer que os doze ovos têm as características que permitem que eles sejam divididos dessa forma. Pensem nisso. É bastante profundo. Qualquer uma das formas de rotular os ovos, em quatro grupos de três ou dois grupos de seis, é válida. Rotular algo como pus, água ou néctar também é válido para os tipos de mentes em questão.
Agora apliquemos isso ao exemplo do professor como sendo um buda. O que é um buda? Um buda tem todas as boas qualidades. O professor tem várias boas qualidades. Estamos convencidos disso. É assim. Pode ser que ele também tenha qualidades negativas, imperfeições. Não podemos achar nada disso dentro dele, mas baseados em seu comportamento, podemos dizer que ele tem boas qualidades e imperfeições. Depois, olhamos para nosso estado mental. Seremos como o fantasma que foca apenas nas imperfeições, nas qualidades negativas? Essa pessoa é horrível, porque não tem tempo para mim, e por isso nós reclamamos, e ficamos com um estado mental bem negativo? Ou estamos focando nas características definidoras das boas qualidades, no estado mental que consegue ver o buda?
O quinto Dalai Lama disse de forma bem clara (Tsongkhapa indica isso e o Quinto Dalai Lama desenvolve isso no lam-rim) que não negamos as imperfeições do professor, não somos ingênuos em relação a elas, mas entendemos que focar apenas nas qualidades negativas não traz benefícios, leva a mais reclamações. Portanto, se focarmos nas qualidades positivas, podemos ganhar grande inspiração.
No que se refere às qualidades positivas: quando pensamos na natureza búdica, todos nós temos essas tendências. Podemos nos basear na discussão sobre o carma. Há um aspecto, ou faceta, como eu chamo isso – por ser uma palavra ligeiramente diferente em tibetano – uma certa faceta dessa tendência que é o resultado que ainda-não-está-ocorrendo. Certo? Não é que ele esteja sentado dentro da gente e esperando para sair, pois será afetado por várias circunstâncias, mas há um aspecto nisso, uma faceta disso, que é capaz de dar um resultado. Portanto, trata-se de um resultado que ainda-não-está-ocorrendo. O resultado ainda não está ocorrendo agora.
No caso do professor, suas boas qualidades e tendências que vem disso – o desenvolvimento pleno delas que ainda-não-está-ocorrendo é que é um buda. Portanto, não somos ingênuos, não pensamos: “Ah, ele é um ser onisciente, sabe tudo” – sempre faço piadas sobre isso – “ele sabe os números de telefone de todo mundo, consegue atravessar paredes e se multiplicar em infinitas formas e falar todas as línguas” e assim por diante. Não temos essa ingenuidade de pensar que nosso professor é assim. O buda que ainda-não-está-ocorrendo pode ser imputado de forma válida nas boas qualidades que o professor tem.
Assim, vemos o buda nele. Percebemos o professor em termos desse aspecto búdico, da natureza búdica, como os deuses que percebem e sentem o líquido como néctar. Ver o professor como um buda – não é exatamente ver, é mais distinguir – estamos distinguindo essas características das imperfeições. Estamos focando no buda que ainda-não-está-ocorrendo. Geralmente, “ainda não está ocorrendo não é mencionado, apenas buda.
Por favor, lembrem-se do significado disso, especialmente no tantra. Quando somos capazes de fazer isso com o professor, também conseguimos fazê-lo com nós mesmos. Trata-se exatamente do mesmo processo. No tantra, usamos inicialmente a nossa imaginação, nos visualizamos e imaginamos como um buda, ainda que saibamos que isso ainda não está ocorrendo. De acordo com isso, rotulamos essa visualização de “eu”, o “eu” convencional. Isso é chamado de manter o orgulho da divindade. Dentro do continuum mental, baseados nessas boas qualidades e tendências que temos agora, podemos rotular o resultado que ainda-não-está-ocorrendo, o buda que ainda-não-está-ocorrendo, e bem mais para frente um buda se manifestará. Portanto, podemos falar de “mim” durante todo o processo. Como eu disse, a capacidade de fazer isso com o professor é o início, é o que ajuda a superar a minha autopreocupação. Quando ajudei meu professor, isso me abriu para ser capaz de ajudar os outros. Da mesma forma, ao ver o professor como um buda, isso nos abre para fazermos isso com nós mesmos na prática do tantra. No tantra, isso é ver o guru como um buda.
Está escrito no texto: “Quando o professor parece ter falhas, essa aparência não é confiável.” E assim por diante. É preciso entender isso no contexto daquilo que acabei de explicar. Ao invés de sermos como os deuses que veem o néctar, nós nos tornamos como os fantasmas que veem o pus, rotulamos de “professor horrível”, e assim por diante, essa aparência estranha, com suas imperfeições. É semelhante ao fantasma que percebe o pus. O que não é confiável é que estamos projetando nisso uma existência verdadeiramente estabelecida. “Esse professor é realmente horrível e comete erros horríveis. É terrível. É péssimo.” Portanto, isso não é confiável. E o que significa quando algo não é confiável? Não devemos confiar nisso, não devemos confiar nessa fixação nas imperfeições, pois tudo isso nos deprimirá e fará com que tenhamos um estado mental cheio de reclamações. Não confiemos nisso. Isso não nos leva a lugar algum. Mas sem negar as imperfeições, focamos em ver o professor como um buda. Sem sermos ingênuos nem pensarmos que já se trata de um buda que está-ocorrendo-agora, onisciente, e que fala todas as línguas do universo.
Em todas as listas das qualificações de um guru, não há nenhuma menção de que o professor seja um ser iluminado. Nenhuma. Portanto, não tomem esse ensinamento literalmente, vendo o professor como um buda; entendam isso dentro do contexto mais amplo que eu acabei de explicar. Assim, podemos receber uma grande inspiração do professor e isso nos ajudará muito, no caminho e na prática tântrica, quando trabalharmos imaginando a nós mesmos com a forma dessas várias figuras búdicas.
Em geral, no tantra, é claro que gostaríamos de distinguir todos como budas e tudo como uma terra pura, e assim por diante. Nesse contexto, é claro que a pessoa que nos ensinou a ler e a pessoa que simplesmente nos deu informações sobre o budismo seriam pessoas que poderíamos ver como budas – da mesma forma que poderíamos ver um cachorro como um buda – pois, como expliquei ontem, estamos focando nas qualidades da natureza búdica de todos os seres, e estamos vendo que todos têm a capacidade de serem budas. Estamos focando no buda que ainda-não-está-ocorrendo em cada ser, ainda não está acontecendo agora. Mas como insisti em dizer, é claro que isso não quer dizer que eles já são budas, nem nós somos budas quando estamos nos visualizando como um buda e rotulando nosso “eu” dessa forma.
Mas nos primeiros estágios, quando não estamos envolvidos com o tantra, está explicado que há diferentes níveis do que chamamos de nos relacionar com professores como se fossem budas. Do ponto de vista do hinayana, o assim chamado ponto de vista hinayana, os professores são representantes dos budas. Os budas não existem para nos ensinar a ler e escrever e nos ensinar os princípios básicos do budismo, portanto os professores são representantes e nos ensinam. É claro que nesse contexto, no que se refere à nossa atitude, confiaremos nas boas qualidades deles, quaisquer que sejam elas – que eles têm um bom conhecimento do budismo, ou que sabem ler e sabem nos ensinar a ler, o que for. O mesmo princípio está presente.
Apreciação da Gentileza de Nosso Professor
O segundo aspecto dessa atitude saudável em relação ao nosso professor espiritual é a apreciação da gentileza dele (gus-pa). Às vezes esse termo é traduzido como respeito, mas se olharmos para a definição e a maneira como está sendo usado nos textos, embora em outros contextos possa significar respeito, o termo se refere realmente à apreciação da gentileza do professor. É claro que, quando apreciamos a gentileza do professor que nos ensina, e sua paciência conosco, e assim por diante, isso significa que também o respeitamos por causa de sua gentileza. Também podemos apreciar a gentileza dos professores na escola, que nos ensinam e ler e escrever e que, como professores do budismo, nos dão informações, e não importam suas razões para fazer isso. Não importam as razões – eles fazem isso porque é seu trabalho, para ganhar dinheiro, ou algo assim; não importa. O nosso comportamento em relação a eles – e falaremos apenas rapidamente disso agora (pois aprofundaremos esse tema mais tarde) – é de tentar apoiar o trabalho deles, ajudá-los, agir com respeito (não agimos de forma terrível na escola, não jogamos coisas uns nos outros e não deixamos de prestar atenção) e fazemos o que eles ensinam, o que inclui fazer o dever de casa.
Esses seriam os princípios gerais aplicáveis com qualquer professor – não devemos pensar que é apenas “aaaah, o tantra”, algo assim – são as diretrizes gerais que nos mostram como é incrível o fato de que nascemos como um verme ou algo assim (eles sempre usam esse exemplo), sem esperança e indefesos, e tudo aquilo que nos ensinaram nos permite funcionar da forma que funcionamos agora, graças a uma gentileza incrível de todos aqueles que nos ensinaram. Como teria sido se tivéssemos crescido totalmente isolados e ninguém nos ensinasse a falar? Não saberíamos falar, não é mesmo? Portanto, trata-se de diretrizes bem práticas.
Como eu disse, no nível hinayana entendemos os professores como representantes; eles exercem os atos e a função de um buda, ou seja, eles nos ensinam e nos ajudam. Do ponto de vista do mahayana – o mahayana sempre diz que os budas têm vários tipos de emanações, e assim por diante; podemos ver o professor como uma emanação de um buda ou como sendo semelhante a um buda em sua maneira de nos ajudar, ao invés de ser apenas um representante. Do ponto de vista tântrico, como expliquei ontem, isso está dentro do contexto de ver todos e tudo como budas, ou como campos búdicos, ou algo assim, o que tem como base a natureza búdica, algumas características que todos têm e fazem com que seja possível que as pessoas se tornem budas.
Portanto, temos que entender as afirmações que dizem que, de acordo com o tantra, não é como se eles fossem como um buda, nem é um dispositivo que usamos e que nos ajuda a vê-los como budas, mas que eles são budas – temos que entender o que isso significa, essa afirmação de que eles são budas. Não quer dizer literalmente que eles são budas plenamente funcionais e estabelecidos. Bastaria examinar com atenção para ver que obviamente eles não são oniscientes, não falam todas as línguas do universo, e não podem ter infinitas emanações. Mas é como com a analogia que usei ontem: para os fantasmas, o líquido é pus; para os humanos é água; para os deuses é néctar. As três versões são verdadeiras. Na sakya, eles chamam isso da inseparabilidade de samsara e nirvana. Há muitos níveis e todos esses níveis são válidos.
Assim sendo, como eu expliquei antes, é válido rotular nosso professor como um buda. E aí podemos deduzir o resto a partir disso, que ele funciona como um buda para nós, etc. Mas não se trata de um simples dispositivo, ou um método, ou um jogo que estamos jogando, um pequeno truque que estamos usando para nos beneficiarmos do contato com o professor. Quando está escrito “Ele é um buda” ou “ela é um buda”, não pensem: “Bem, eles não são realmente budas”. É uma afirmação válida. Quando nos convencemos, baseados na realidade, nas qualidades do professor, que ele de fato está interessado em nosso bem-estar e que essa é a única motivação por detrás de sua interação conosco, podemos concluir que qualquer coisa que ele faz é um ensinamento: “O que posso aprender com isso?”
Uma história clássica que fala disso foi relatada nos “Jatakas”, as histórias das vidas passadas do Buda. Nessa história, um professor diz a todos os seus discípulos para saírem e roubarem para ele. O Buda era um de seus discípulos. Todos os outros discípulos saíram para roubar, e o Buda não foi. Então o professor disse: “Você não quer me agradar? Por que não sai e vai roubar?” “Como é que roubar pode agradar a alguém?” E o professor disse: “Aha! Você foi o único que entendeu a lição.”
Ou o exemplo que dei de Serkong Rinpoche, quando ele ensinou algo totalmente incorreto sobre vacuidade e depois, na próxima aula, disse: “Ora essa! O que eu disse era totalmente incorreto. Vocês não usam a inteligência para discriminar? Por que não fazem perguntas?”
Como um bom discípulo, não respondemos a uma explicação incorreta dizendo: “Ah, o professor é burro. Ele não sabe do que está falando.” Essa não é a resposta adequada. A resposta adequada é: “O que ele está tentando nos ensinar quando nos explica de uma forma incorreta?”
Lembro-me de um exemplo muito bom, quando reclamei sobre os textos de Nagarjuna, dizendo que eram escritos com um estilo tão vago, com tantas abstrações, que não fica claro ao que se referem. Mencionei isso a Serkong Rinpoche. Como já contei antes, ele quase sempre me repreendia, e também o fez daquela vez: “Não seja tão arrogante. Você acha que Nagarjuna era incapaz de escrever um texto claro? Ele escreveu assim de propósito. Você é muito arrogante.” Ele disse que estava escrito assim para que os alunos preenchessem as lacunas da clareza com seu próprio entendimento do significado do ensinamento. Portanto, era uma forma de ensinar.
Outra vez, lembro-me que Rinpoche estava me explicando matemática, um estilo tibetano astrológico de matemática. A forma como os tibetanos fazem aritmética é bem diferente da nossa – adição, subtração, multiplicação, etc. A observação que fiz para Rinpoche foi: “Isso é muito estranho.” Novamente, ele gritou comigo: “Você é muito arrogante”. Como eu disse antes, essa era a minha maior emoção perturbadora, a arrogância. Ele disse: “Você é muito arrogante. É diferente. Não é estranho; é simplesmente diferente.”
Quando olhamos para os exemplos clássicos da relação entre o professor e o aluno – a forma como Marpa tratava Milarepa, e assim por diante – muitas vezes o professor bate no aluno ou o repreende. Eu fui muito afortunado por ter tido esse tipo de relacionamento com Serkong Rinpoche. Mas temos que ser muito, muito fortes para podermos aguentar esse tipo de relacionamento. De certa maneira, esse é o “contrato” da relação com o professor espiritual (com o pleno entendimento de que ele não está abusando de nós nem o fará no futuro). Tirando o Kalachakra, Serkong Rinpoche nunca aceitou me ensinar nada que eu não estivesse traduzindo para outra pessoa. Ele não me dava ensinamentos privados. Eu tinha que estudar um tema para poder beneficiar outras pessoas, não para beneficiar somente a mim mesmo. Isso era incrível.
Em geral, não creio que esse seja um bom método para ocidentais, pois a maioria deles sofre de baixa autoestima. O meu problema erra arrogância, não baixa autoestima. Quando olhamos para os indianos, tibetanos, chineses, eles não sofrem de baixa autoestima; esse parece ser um fenômeno bastante ocidental. A maioria dos ocidentais precisa de encorajamento, de alguém que lhes diga que estão indo bem. Como eu contei antes, meus professores, Serkong Rinpoche e Geshe Ngawang Dhargyey, costumavam usar a imagem de que não deveríamos ser como um cachorro esperando por um afago na cabeça: “Ah, muito bem!” para depois sairmos abanando o rabo.
Os Três Tipo de Convicção
Recapitulando, vimos que o primeiro aspecto é a convicção firme nas boas qualidades do professor. Há três tipos de convicção. Temos o termo geral [depa (dad-pa)] traduzido algumas vezes como fé. Considero como uma tradução enganosa, pois a palavra fé geralmente sugere uma fé cega. Ao invés disso, o termo significa “acreditar que um fato seja verdadeiro”. Certo? Portanto, estamos falando de um fato, não de acreditar no Papai Noel ou acreditar que o mercado de ações vai subir, nada disso. Tem que ser um fato verdadeiro. Certo? E acreditamos que seja verdadeiro. Portanto, estamos falando das qualidades do professor. Elas têm que ser verdadeiras – têm que ser precisas, não é mesmo? – e decisivas. Há três tipos de formas de acreditar nesse fato:
- A primeira é uma convicção confiante (yid-ches-kyi dad-pa) baseada em provas adquiridas através da lógica ou da observação.
- O segundo tipo é uma convicção clara (dang-ba’i dad-pa). É a convicção em um fato que – não consigo pensar em nenhuma forma melhor de traduzir isso – clarifica nossa cabeça das emoções perturbadoras. Portanto, acredito que meu professor tenhas boas qualidades, e isso clarifica minha cabeça de dúvidas, de ciúme, de arrogância (“sou tão melhor”) ou de raiva pelo professor (“Ah, você não tem tempo suficiente para mim”, e assim por diante) ou do apego pelo professor (“Quero você para mim, só para mim, e para mais ninguém”, uma atitude de muita cobiça e possessividade em relação ao professor). Quando você realmente entende e está plenamente convencido das boas qualidades do professor, sabe que isso é absurdo. O professor está aqui para beneficiar a todos, não só a mim.
- O terceiro tipo de convicção em fatos é a convicção com uma aspiração (mngon-’dod-kyi dad-pa), o que significa que estou plenamente convencido de que você tenha essas boas qualidades, portanto, atitudes como o respeito acompanham essa convicção, e tenho a aspiração de ser como você. Certo? Estamos falando sobre as boas qualidades do professor. É isso que aspiramos emular. Não estamos falando apenas sobre a comida favorita do professor e assim por diante. Isso é irrelevante.
De fato, há uma questão mais relevante aqui. A questão relevante é que, muitas vezes, quando temos um professor, isso ocorre dentro de um centro de dharma. Como eu disse, isso não significa que aqueles que frequentam o centro sentem que o fundador do centro tem que ser seu mentor espiritual, o professor que os inspira mais. Portanto “aspirar por ter as boas qualidades do professor” não significa que temos que fazer todas as práticas que o professor fez. O fato do professor ter esse ou aquele yidam, ou ter feito essa e aquela prática, não significa que também seja a melhor para nós. Pode ser que seja boa, pode ser que não seja boa para nós. Cada pessoa tem um carma completamente diferente, é claro. Há renascimentos sem início, o que significa que estudamos com muitos professores diferentes, em muitas tradições diferentes. Temos instintos para muitas coisas diferentes, não só para aquelas que esse professor praticou.
Por outro lado, é claro que o tipo geral de ensinamentos e práticas que o professor fez naturalmente poderia ser uma ajuda para nós, mas não necessariamente cada pequeno detalhe. Darei um exemplo. Serkong Rinpoche não era apenas um mestre tântrico incrível e, como Sua Santidade, um mestre de todas as quatro classes de tantra, mas ele era o parceiro e mestre de debates de Sua Santidade, o que significa que ele era o melhor debatedor de seu monastério. Mas meu conhecimento era todo baseado em Harvard. Eu era absurdamente lógico e racional e muito agressivo intelectualmente. Eu sabia, e meus professores sabiam, que se eu estudasse debate, eu me tornaria aquilo que costumo chamar de “monstro do debate”. Um monstro do debate é alguém que nunca sabe quando deve parar de debater – não diferencia quando é ou não adequado continuar debatendo – não importa o que dizem os outros, se for ilógico a pessoa pula em cima e ataca, como se faz em um debate. Esse é o monstro do debate. Embora Serkong Rinpoche fosse um mestre de debates, ele nunca me encorajou a estudar debates, ele nunca me ensinou a debater, e eu sempre evitei fazê-lo – embora eu consiga ler os textos de debate (essa não é a questão). Certo? Não seria uma ajuda para a minha personalidade. Não era isso de que eu precisava. Eu precisava, sem nenhuma piedade, que me mostrassem constantemente quando eu agia como um idiota.
Esses são os diferentes tipos de convicção firme.
Estimar Nosso Professor Espiritual
Também temos o segundo aspecto da atitude, que é a apreciação pela gentileza do professor. Há muitas descrições da gentileza do professor. “O Buda não virá nos ensinar. O professor nos ensina. Como ele é gentil!” De certa maneira, isso quer dizer que o professor é mais gentil do que os budas.
Uma das qualidades maravilhosas de um professor realmente qualificado é que ele leva todo mundo a sério. Quando temos real interesse em aprender, mesmo se tivermos um nível bem básico, ele leva isso a sério e nos ensina de acordo com nosso nível. Um exemplo: certa vez, um hippie drogado foi ver Serkong Rinpoche e disse: “Por favor, me ensine as seis yogas de Naropa”. Rinpoche não o repreendeu por estar drogado nem o mandou embora, nada disso. Ele levou seu pedido a sério – e é claro que o efeito disso é que a pessoa começa a levar seu pedido a sério – e ele disse: “Muito bem. Se quiser fazer isso, tem que começar assim.” Ele explicou por onde o rapaz tinha que começar para ser capaz de um dia estudar as seis yogas de Naropa. Esse é um exemplo do que significa levar a sério o que uma pessoa diz. Não seria gentil ensinar as seis yogas de Naropa a alguém que é totalmente despreparado. Isso não seria gentil.
Kachen Yeshe Gyaltsen, um grande mestre tibetano, elaborou o que é o senso de apreciação pela gentileza do professor. Ele disse que é quando estimamos e valorizamos o professor e a sua gentileza. Estimar quer dizer que temos grande respeito por ele. Ele adiciona essa conotação do respeito à palavra. Estou falando disso porque essa palavra que ele usa, valorizar (gcer-zhing pham-pa’i byams-pa, valorizar, ter um cuidado amoroso), traz consigo a seguinte questão: “É apropriado amar nosso professor? Realmente amamos nosso professor? E o que significa isso, que tipo de amor é esse?”
Já vimos que temos o tipo de convicção que clarifica nossa cabeça de emoções perturbadoras. Quando dizemos que “tudo bem, você valoriza o professor, você ama o professor” isso com certeza não quer dizer que você o deseja e anseia por ele e quer tê-lo como parceiro sexual, ou que é um amor possessivo, que deseja que ele seja seu professor e de mais ninguém. Com certeza não é isso. A definição de amor no budismo é “o desejo de que os outros sejam felizes e tenham as causas da felicidade”. Você deseja que o professor seja feliz? “Bem, sim. Quero dizer, claro que sim.”
Há uma discussão sobre o comportamento do professor, no que se refere a fazer oferendas. Fazemos oferendas para agradar o professor. A nossa prática é o que mais o agrada. Será que isso se encaixa no contexto de querer a felicidade do professor? Isso é um pouco delicado, pois como está escrito, queremos agradar o professor, mas, de qualquer forma, os budas são equânimes. Portanto, não queremos agradar de forma infantil, somente para obtermos a aprovação dele. Sempre uso o exemplo do desejo de que o professor afague a nossa cabeça, dizendo: “Bom menino! Boa menina!”, e nós abanamos o rabo. Mas nosso amor pelo professor nos faz desejar que ele coma bem, que tenha certo conforto, que o sono dele não seja perturbado, e assim por diante - temos consideração por ele. É um aspecto do amor, não é mesmo? Não se trata de: “Ah, eu quero tanto abraçar e beijar você!”
Kachen Yeshe Gyaltsen usa a palavra que eu geralmente (e muitas pessoas, a maioria delas) traduzo como “estimar”. Onde mais achamos essa palavra? Nos ensinamentos da bodhichitta, no processo de causa e efeito em sete partes para desenvolver bodhichitta:
- Começa com o passo zero (que não conta como parte dos outros sete) em termos de equanimidade, no qual não temos atração, repulsa, ou indiferença em relação a ninguém. É um ponto de equilíbrio.
- Depois distinguimos que todas as pessoas em algum momento foram nossas mães.
- Depois nos lembramos da gentileza do amor materno. A gentileza que recebemos – lembrem-se que estamos apreciando a gentileza que recebemos do guru. Portanto, todos nos ensinaram. Todos foram nossos gurus.
- Depois vem o que geralmente é traduzido como retribuir a gentileza (drin-gso).
É preciso ter muito cuidado com esse termo. Queremos evitar algo como: “Recebi tanto e dei tão pouco, portanto estou me sentindo culpado e tenho que quitar essa dívida.” Não estamos falando desse tipo de atitude, é mais como um desejo de trazer equilíbrio para a situação.
Quando olhamos para o resultado disso, está escrito que o que resulta é que temos automaticamente um amor reconfortante – reconfortante (yid-’ong byams-pa) é um termo difícil de expressar, literalmente está escrito que “ele surge em nossa mente de uma forma muito simples e maravilhosa” – e (eis a nossa palavra) nós estimamos a outra pessoa: é um grande prazer encontrar essa pessoa, nós a estimamos muito, e quando algo ruim acontece com ela, nós nos sentimos muito mal. Esse resultado é automático, sem que seja necessário nenhum outro passo na meditação, além do passo anterior, que não faz muito sentido quando o traduzimos como “retribuir a gentileza”. Quando me sinto culpado e sinto que tenho uma dívida, que preciso retribuir a gentileza de alguma forma, por que eu sentiria tanto prazer ao ver a pessoa, por que a estimaria e me sentiria mal se algo lhe acontecesse? Portanto, essa tradução não traduz o sentido pleno ou adequado desse passo inicial.
Assim sendo, aprofundemos um pouco a nossa análise. Qual é o estado mental por detrás dessa afirmação: “Eu quero retribuir sua gentileza sendo gentil com você?” É uma forma de gratidão. Nós apreciamos a gentileza e nos sentimos muito gratos por ela. “Eu me sinto tão grato pela grande ajuda que você me deu que o simples fato de ver você já me alegra. É um imenso prazer ver você. Tenho-lhe grande estima, quero que você seja feliz. Seria terrível se algo de ruim acontecesse com você. Sinto tudo isso por causa da gratidão, da apreciação que sinto, por causa da sua grande gentileza para comigo.”
Também temos esse termo no contexto de equalizar e trocar a atitude em relação a nós e aos outros. Temos essa atitude em relação a nós mesmos: “ah, sou tão maravilhoso, e me preocupo somente comigo mesmo.” Ao invés disso, trocamos a atitude e nos preocupamos com os outros. É o mesmo termo.
Quando falamos do que significa exatamente amar o professor – bem, é esse termo “estimar”. É o que achamos nos textos. Não é acompanhado por emoções perturbadoras. Quando estamos com o professor, ou mesmo quando estamos simplesmente pensando no professor, isso nos preenche de alegria, nos traz grande satisfação.
Na prática Vajrayogini, temos a parte que diz: “O guru entra na sua cabeça e se dissolve em você.” O que existe em quase todas as práticas, aliás. O que é importante nessa prática é chegar a sentir uma intensa alegria e um grande prazer quando nos fundimos com o professor, o que não tem a ver com uma fusão sexual; trata-se de fundir as nossas próprias qualidades com as boas qualidades do corpo, da fala e da mente do professor (esse é o objetivo principal da guru-yoga). A partir daí surge esse sentimento incrível de prazer e alegria, sentimos que ele se expande e fica tão grande quanto o universo. Então, primeiro, você entende a vacuidade dessa alegria, depois a mente se torna mais e mais sutil.
Portanto, quando falamos de estimar o professor, trata-se desse sentimento incrível de prazer e alegria quando vemos o professor, pensamos nele, e ainda mais quando fazemos esse tipo de guru-yoga. O corolário disso é obviamente que queremos cuidar do professor e que nos sentiremos muito mal se algo de ruim acontecer com ele (por exemplo, se ele não tiver recursos para poder ajudar os outros, se ficar doente, etc).
É claro que isso não é fácil, não é mesmo? Não é fácil sentir essa alegria, especialmente se isso faz parte da nossa prática diária, em uma sadhana, digamos. Se tivermos de fato uma relação com um professor espiritual, como fazemos para desenvolvê-la? Fazemos isso apreciando a gentileza dos outros, exatamente como o fazemos na meditação da bodhichitta – pensamos na grande generosidade do professor, geramos esse intenso sentimento de gratidão, e isso automaticamente leva a um estado mental de muita alegria.
Inspiração do Professor
O que vem de tudo isso? O que resulta de tudo isso é a prática padrão com o professor espiritual chamada de “fazer pedidos”. Achamos isso em todos tipos de práticas, fazer pedidos – solwa deb (gsol ba ’debs) em tibetano. O que estamos pedindo? Obviamente não estamos pedindo por um mercedes ou algo assim. O que muitas vezes está escrito nos textos traduzidos é: “Abençoa-me para que eu faça isso ou aquilo.” Puxa vida, o que será que isso significa? São palavras usadas em outras tradições religiosas. Mas como eu expliquei no início deste seminário, o termo que é traduzido como “abençoar” tem a conotação de “inspirar, elevar a minha mente, dar força” [chingyilab (byin-gyis rlabs)]. Estamos pedindo por inspiração. Inspira-me para que eu seja mais compassivo, mais compreensivo com meus pais ou filhos – qualquer que seja necessidade de inspiração. Nós a aplicamos ao cotidiano.
Não pensem que a inspiração seja algo como uma bola que seu professor joga para você e, depois que ele a joga, você tem inspiração. (Escrevi um longo artigo que pode ser lido no meu site sobre o que significa tudo isso no que se refere à inspiração e à transmissão oral. Transmissão oral também não é uma bola sendo jogada para nós.) Pensando na primeira parte dessa atitude, na convicção firme nas boas qualidades do professor, lembrar-se das boas qualidades dele – e é claro que o professor tem que ter essas qualidades para você poder fazer isso – lembrar-se da paciência dele, de como ele é compreensivo com todos, nos inspira a seguir o exemplo dele e tentar ser como ele.
Quando o professor morre, acho que isso se torna ainda mais forte. Muitas pessoas acham isso. Serkong Rinpoche morreu em 1983. Quando o professor está vivo, muitas vezes ele está em outro lugar e sentimos que ele está bem distante – não necessariamente, mas muitas vezes sentimos isso. Quando ele morre, fica bem mais internalizado: “O professor está comigo”. Os valores do professor estão comigo. O que fazemos então quando enfrentamos uma situação difícil? O que eu faço? “Como Serkong Rinpoche lidaria com essa situação?” É a pergunta que eu me faço. “O que ele faria?” Certo? “Como Sua Santidade o Dalai Lama lidaria com essa situação?” Assim nos inspiramos para tentar agir da mesma forma. É uma grande ajuda. Mas é claro que precisamos saber como eles lidaram ou lidam com diferentes situações. Muitas vezes não temos a oportunidade de presenciar a forma deles de agir em diferentes situações, mas quando temos, é fantástico.
Em muitos textos, está escrito que é muito importante fazer pedidos. Portanto, é importante entender o que significa isso, o que estamos pedindo e por que. Lembrem-se que a inspiração do guru é a raiz do caminho – é o que nos dá energia, nos aterra, nos traz estabilidade – pois sabemos que outros conseguiram antes de nós; e não estamos sozinhos.
Transmissões Orais
Você pode explicar um pouco sobre o tema da transmissão oral em geral? Mais especificamente: todas as transmissões orais vêm desde os tempos do Buda Shakyamuni. Quando recebemos uma transmissão oral específica de um professor, devemos aspirar por transmissões orais das mesmas práticas de outros professores também?
O costume da transmissão oral surgiu dentro do contexto da Índia antiga, onde os ensinamentos não eram escritos, e a única forma de aprender era escutá-los enquanto alguém os recitava. Isso demandava memorização – alguém tinha que memorizá-los, depois a pessoa escutava de novo e de novo para poder memorizar também. Entre os tibetanos, até mesmo hoje em dia, todos memorizam os textos antes de estudá-los, e memorizam as pujas – memorizam tudo.
Há três tipos de consciência discriminativa: da escuta, do pensamento e da meditação. Para isso, a primeira consciência discriminativa tem que ser bem decisiva – temos que saber que a escuta foi precisa, que essas são de fato as palavras do ensinamento, que entendemos de forma correta, e é isso mesmo. Depois, podemos começar a pensar sobre elas e tentar entendê-las. Por causa disso, precisamos obter a transmissão oral de alguém que memorizou os ensinamentos – é necessário que seja correta, que nós a escutemos, que prestemos atenção, não adormeçamos, etc – para podermos eventualmente memorizar o ensinamento e transmiti-lo para as próximas gerações. É o contexto no qual surgiu esse costume.
Eu costumava pensar que a pessoa que dava a transmissão oral realmente havia entendido o texto e que isso servia de inspiração para aquele que a recebia: “Bem, alguém entende realmente o ensinamento, então eu também sou capaz de entender.” Mas descobri que não era assim.
O pai do antigo Serkong Rinpoche, o primeiro Serkong Dorjechang, foi um dos grandes iogues do início do século passado, e ele fazia parte da linhagem Kalachakra. Embora haja uma linhagem de um texto específico – Drang-nges legs-bshad snying-po, que significa “Essência da Boa Explicação dos Significados Interpretáveis e Definitivos” (é um dos textos mais difíceis de Tsongkhapa) – e embora seja uma transmissão de Tsongkhapa, Serkong Dorjechang teve uma visão de Tsongkhapa durante um retiro na qual Tsongkhapa lhe deu outra transmissão especial do texto.
O antigo Serkong Rinpoche recebeu aquela transmissão do seu pai, e embora seja um texto de 250 páginas, o Rinpoche a memorizou e recitou todos os dias como parte de sua prática diária (além de todas as recitações do tantra e das coisas que ele fazia). E o Rinpoche nunca deu aquela transmissão oral para Sua Santidade o Dalai Lama, embora fosse um de seus professores, porque segundo ele, precisava ter um entendimento muito especial para ser capaz de explicá-la a Sua Santidade. Portanto, ele nunca deu a transmissão.
O antigo Serkong Rinpoche morreu. A reencarnação, o jovem tulku, tem vinte e sete anos agora, mas alguns anos atrás ele disse que realmente queria receber essa transmissão (sou muito próximo a ele, como fui do antigo). Então procuramos por alguém que pudesse dar a transmissão ao jovem Serkong Rinpoche. Descobrimos que eu era o único que havia recebido a transmissão oral do Rinpoche. Ele havia dado a transmissão a um grupo muito pequeno, de três pessoas, e eu fui uma delas. O mais incrível foi que ele deu a transmissão oral que ele havia memorizado, da forma clássica, sem ler o texto. Embora eu tivesse recebido a transmissão oral, eu nunca havia de fato estudado o texto. Portanto, perguntei a sua Santidade: “Posso dar a transmissão oral? O que devo fazer?” Sua Santidade disse: “Não importa se estudou o texto ou entendeu alguma coisa dele. Você deveria dar a transmissão oral para o jovem Serkong Rinpoche.” Então, pratiquei a recitação do texto em voz alta – não o memorizei – eu o li em voz alta até conseguir ler suficientemente rápido para que não fosse uma tortura para quem estivesse escutando. Fui ver o Rinpoche na Índia, fiz uma viagem especialmente para isso, e lhe dei a transmissão oral. Foi muito bom saber que, alguns meses atrás, em Bodhgaya, pela primeira vez Rinpoche deu a transmissão oral. Ele deu para um grupo de tibetanos, incluindo Lama Zopa e Dagri Rinpoche. Portanto, é muito bom que o texto continue sendo transmitido.
Vocês podem se perguntar se eu também transmiti as bênçãos do texto. Não posso dizer isso. Há alguma inspiração? Bem, certamente não é uma inspiração que vem de minha própria realização – eu nunca estudei o texto – mas suponho que haja algum tipo de inspiração do fato de que há continuidade. Certamente, há um benefício nisso. Sempre dizem que quando recebemos a transmissão oral, isso age como circunstância para ajudar a entender melhor o texto; e por causa disso, receber a transmissão oral várias vezes sempre é uma ajuda.
[Veja: "Benção" ou Inspiração]