O Lugar Fundamental do Treinamento Ético no Budismo
Ao transmitir o budismo de uma sociedade para outra, precisamos identificar os ensinamentos fundamentais e dissociá-los de seu envelope cultural. Em seu leito de morte, o Buda mostrou o critério para fazermos isso, conforme registrado no Mahaparinirvana Sutra (mDo mya-ngan-las 'das chen-po). Ele disse a seus discípulos que deixassem que os ensinamentos (o Dharma) e as regras de disciplina (o Vinaya) lhes guiassem. E quando questionado sobre como saber quais de seus ensinamentos transmitiam os pontos mais importantes, Shakyamuni alertou para que não deixassem isso ser decidido pela opinião dos professores ou pelo consenso da comunidade monástica. Isso deve ser determinado, disse ele, adquirindo-se confiança sobre o que é fundamental, observando aquilo que aparece repetidamente nos ensinamentos e textos. As quatro nobres verdades, os dois fenômenos verdadeiros, o amor, a compaixão, o caminho óctuplo e os três treinamentos superiores são pontos notavelmente enfatizados nos ensinamentos. Segundo a própria orientação do Buda, não há como duvidar de que esses pontos são fundamentais. Portanto, seria inadequado eliminar ou modificar seu papel central, independentemente da cultura. No entanto, o Buda também disse para não acreditarmos em nada do que ele disse apenas por fé, mas para analisarmos e testarmos como se testa o ouro. Em outras palavras, nossa aceitação do que o Buda ensinou deve ser baseada na análise e na lógica, não na mera fé.
Uma vez que a auto-disciplina ética (tshul-khrims, Sct. śīla) – um dos três treinamentos superiores: disciplina, concentração e consciência discriminativa (shes-rab, Sct. prajñā, sabedoria) – é um aspecto indispensável no budismo, é importante entender o que exatamente significa a autodisciplina ética, que papel ela desempenha no caminho espiritual e por que ela é importante. A autodisciplina ética é explicada como sendo um fator mental, ou estado mental, com o qual protegemos nosso corpo, nossas palavras e nossa mente, mantendo-os sob controle, geralmente por meio da observância de votos e preceitos (diretrizes de comportamento). Todas as formas de budismo enfatizam repetidamente a proteção de nosso corpo, fala e mente, evitando ações físicas, verbais e mentais destrutivas. Com o objetivo de nos libertar, procuramos evitar qualquer ato que possa nos criar problemas e sofrimento.
Adicionalmente, as escolas Mahayana de budismo enfatizam a importância de abster-se de ações que sejam destrutivas, no sentido de serem diretamente prejudiciais aos outros ou indiretamente prejudiciais a nós, impedindo-nos de ajudar os outros plenamente. Ações que ferem outras pessoas também têm consequências negativas para nós. Por isso, as formas não-Mahayana de Budismo também nos ensinam a evitar causar danos aos outros. (Mas, nesse caso,) embora parte da motivação seja amor e compaixão, a ênfase está no desejo de evitar repercussões negativas para nós. Outros aspectos da autodisciplina ética no Mahayana são: vigiar nossas atividades para garantir que elas sejam construtivas - construtiva no sentido de ajudar diretamente aos outros ou indiretamente a nós, contribuir para a nossa capacidade de beneficiar totalmente os demais. Vamos focar nossa discussão no primeiro tipo de autodisciplina ética, que é comum a todas as tradições do budismo: abster-se do comportamento destrutivo.
O exercício do autocontrole para não agir destrutivamente se baseia, no contexto budista geral, no estado mental de rejeitar não apenas causar danos com nossas ações, como também, em um nível mais profundo, causar danos com nossa falta de consciência (ma-rigs-pa, sânsc. avidyā, ignorância) e emoções e atitudes perturbadoras (nyon-mongs, sânsc. kleśa aflições mentais), que são o que nos leva a agir de uma forma prejudicial. No começo, precisamos de força de vontade e autocontrole para minimizar a influência desses estados mentais debilitantes. Mas, depois, à medida que progredimos no treinamento em autodisciplina ética superior, nossa base vai ficando mais forte para os outros dois treinamentos superiores, em concentração e consciência discriminativa, que podem eliminar completamente as causas do problema. Esta base é cimentada com presença mental (dran-pa, sânsc. smṛti, atenção plena) e vigilância (shes-bzhin, sânsc. saṃprajanya, instrospecção), dois fatores mentais que nós desenvolvemos permanecendo sempre conscientes do que estamos fazendo, dizendo e pensando, sempre distinguindo entre o que ajuda e o que prejudica.
Em um nível mais profundo, ao identificar os comportamentos negativos e se abster deles, nos treinamos e nos fortalecemos para conseguir perceber e impedir que nossa mente ceda à excitação, ao embotamento ou a outros desvios sutis e prejudiciais no caminho para se atingir a concentração absorvida (ting-nge-’dzin, sânsc. samādhi). Com concentração perfeita e compreensão correta das quatro nobres verdades e dos dois fenômenos verdadeiros – as aparências são como uma ilusão e vacuidade (stong-pa-nyid, sânsc. śūnyatā) - podemos permanecer focados na ausência de identidade verdadeira ou de “almas” impossíveis (bdag-med, sânsc. nairātmya; vacuidade do eu) e, assim, eliminar a causa mais profunda de nosso sofrimento e obter a liberação. Portanto, sob vários pontos de vista, a formação ética desempenha um papel central no caminho budista.
Pedidos de Modernização da Ética Budista
Muitas pessoas hoje em dia estão pedindo uma modernização da ética budista, o que implicaria na eliminação de determinados votos e preceitos por serem considerados irrelevantes, e na interpretação de outros de forma a alterar completamente seu objetivo e, em última instância, deixá-los sem sentido. Alguns até questionam a necessidade da ética em um treinamento espiritual que é basicamente orientado para a meditação e a psicologia, ou que é não dualista. Ao buscar a libertação sem saber o que ela realmente significa, as pessoas querem ser livres em tudo, até mesmo no que diz respeito às questões morais.
O protesto dessas pessoas é compreensível. Se sua religião original faz pesadas restrições ao seu comportamento, especialmente ao comportamento sexual, e você rejeita essa religião e vai para o budismo, é muito provável que carregue consigo a rebeldia frente às autoridades e instituições e a transfira para a crença que adotou. Essas pessoas não querem mais regras. Se precisarem pagar pelos ensinamentos, vão querer um “bom negócio”, vão querer obter apenas as diretrizes permissivas de que gostam. Elas estão inconscientemente abordando a ética budista com a mentalidade consumista ocidental.
Às vezes, esses opositores à necessidade de autodisciplina ética apontam para a conduta de grandes mestres tântricos como um exemplo de como eles deveriam agir. A comparação, no entanto, pode não ser adequada. O autocontrole ético nos ajuda a diminuir o controle que as emoções perturbadoras e o comportamento compulsivo destrutivo têm sobre nós, e desenvolver consciência discriminativa do estado não dual da realidade. Quando os praticantes atingem um nível de realização e autodesenvolvimento em que não estão mais sob o controle de emoções perturbadoras e comportamentos compulsivos, e têm consciência discriminativa direta e não conceitual de como as coisas são (de-nyid, sânsc. tathatā, assimidade), o treinamento em autodisciplina ética alcançou seu propósito. O que quer que façam neste ponto será motivado exclusivamente por compaixão e bodhichitta, o desejo de atingir a iluminação o mais rápido possível para ajudar os outros plenamente, acompanhado de sabedoria. Portanto, mesmo que o comportamento de uma pessoa de tão alta realização possa parecer não convencional, não é de forma alguma irresponsável ou antiético. Ele nunca causa danos a longo prazo, apenas benefícios, especialmente aos outros. Afinal, o tantra é uma prática Mahayana, motivada por grande compaixão.
Tentar imitar a conduta dos grandes mestres antes de atingir seus níveis de realização, não só é presunçoso como também perigoso. Aqueles que ainda são movidos por ganância, apego, raiva e orgulho podem ferir seriamente a si próprios e aos outros se menosprezarem a necessidade de autocontrole e esquivarem-se da responsabilidade de se treinar em autodisciplina ética. Esses casos têm causado muitos danos recentemente às comunidades budistas ocidentais, o que deixa ainda mais óbvia a importância do treinamento ético para todos os budistas, tanto os professores quanto os alunos.
Quando analisamos com mais profundidade, podemos ver que a busca pela liberdade pessoal a todo custo é baseada na busca por um “eu” (bdag-‘dzin, sânsc. ātmagrāha) que existe de forma independente, uma entidade autoestabelecida, substancialmente conhecível, que tem o direito de sempre fazer o que quer. Não existe esse “eu”, esse “eu” que existe em um vácuo, totalmente livre de responsabilidade e de sofrer as consequências de suas ações.
Isso não significa que não existimos; nós existimos e sofremos as consequências de nossas ações. Mas precisamos entender o que significa a busca pela liberdade no contexto budista. Significa trabalhar para se libertar de todos os problemas e sofrimentos que criamos para nós, que entendemos virem de nosso comportamento compulsivo e serem impulsionados por nossas emoções perturbadoras e pela falta de compreensão a respeito de causa e efeito e de como nós, os outros e tudo mais existe. Não significa buscar liberdade para fazer o que quiser, incluindo expressar emoções perturbadoras como se nosso comportamento não tivesse efeito sobre nós ou os outros.
Diferenças Entre a Visão Ocidental e Budista da Ética
Embora seja indiscutível a importância da autodisciplina ética no budismo, permanece a questão de se dever ou não modificar a ética budista no processo de sua transmissão às sociedades modernas, e se for para modificar, de que maneira. Existem dois pontos em que devemos focar ao analisar a questão da adaptação cultural: a maneira de abordar a ética e a forma da disciplina. Vamos examinar o primeiro ponto, a maneira de abordar a ética nas sociedades fundamentadas nos valores abraâmicos e gregos antigos, e tentar determinar se a adaptação cultural traria benefícios. Embora apenas alguns membros dessas sociedades concordem conscientemente com a visão abaixo, a maioria das pessoas é, pelo menos, subliminarmente influenciada por ela.
Nas culturas influenciadas pelo pensamento do Antigo Testamento, o modelo para os códigos de ética é os dez mandamentos. A ética é baseada em um conjunto de leis fornecidas por uma autoridade superior. Certas ações são consideradas “corretas” e outras “incorretas”. A orientação vem com um julgamento. Aqueles que agem incorretamente e desobedecem às leis são pessoas “más” e condenadas à punição, enquanto aqueles que defendem as leis de Deus são justos e “bons” e serão justamente recompensados.
No pensamento grego antigo, baseado nos princípios da democracia, a ética é fundamentada em um conjunto de leis feitas pelo homem e promulgadas com o objetivo de que a sociedade possa ser sistematicamente governada. Sistemas de controle são necessários para garantir o funcionamento adequado do estado e o bem-estar da população. Ao cumprir as leis, nos definimos como "bons cidadãos". Ao desobedecê-las, recebemos uma punição considerada legítima e necessária para defender o bem maior da sociedade.
Nas culturas budistas, por outro lado, a ética é fundamentada em diretrizes que diferenciam as ações que resultam em felicidade daquelas que resultam em sofrimento. Essas diretrizes não são estabelecidas por um criador onipotente, da sociedade e de suas regras, que tem o poder de recompensar ou punir. E também não são criadas por legisladores eleitos que desejam criar um estado melhor. As diretrizes são ensinadas por um buda onisciente que percebe todos os aspectos das leis naturais de causa e efeito. E os budas não são os aplicadores dessas leis, elas operam como parte da ordem não-criada do universo.
Se desejamos evitar problemas e infelicidade, evitamos cometer as ações destrutivas que fazem com que essas coisas aconteçam e, num nível mais profundo, evitamos agir com base nas emoções perturbadoras que nos levam a ação destrutiva. Essa decisão de evitar agir assim é um ato totalmente voluntário, baseado na consciência discriminativa. Não é uma obrigação. Nós exercemos o autocontrole, mas não porque achamos que devemos ou temos que nos abster de certas ações pois assim nos foi ordenado, nem porque é a lei do país e regras são necessárias para que haja ordem na sociedade. Restringimos nosso comportamento porque compreendemos a ordem natural do universo, que se baseia em causa e efeito, e desejamos evitar a infelicidade. Seguir a ética budista, portanto, é como honrar as leis físicas do universo, como não colocar a mão no fogo para não se queimar. Não há nenhum julgamento moral ou civil envolvido.
Em uma estrutura budista, aqueles que cometem ações negativas o fazem por (1) não saberem que esses atos são destrutivos ou (2) estarem sob a influência de uma emoção ou atitude perturbadora, como raiva, desejo ardente, apego, ganância ou ingenuidade, além de não terem senso de valores ou escrúpulos. As pessoas não agem negativamente por serem desobedientes às leis divinas ou civis e, portanto, serem “más”, mas por estarem desatentas ou perturbadas. Sua falta de consciência não as define como pagãos ou infiéis - ou, na melhor das hipóteses, objetos a serem desprezados com piedade - que talvez possamos converter e salvar. Sua atuação destrutiva não provoca indignação e ultraje moral, como se nós próprios fôssemos Deus, nem engendra um sentimento de dever moral de puni-los em nome de um criador onipotente. Nem mesmo nos faz querer prendê-los e puni-los como maus cidadãos e criminosos, a fim proteger o bem-estar da sociedade. Em vez disso, a confusão dessas pessoas as torna objetos de compaixão; desejamos que se livrem do sofrimento e das causas da tristeza.
Além disso, a ética budista não envolve culpa. De acordo com o pensamento budista, aqueles que agem destrutivamente estão se comportando equivocadamente e precisam ser responsabilizados pelas consequências de suas ações, inclusive nos termos da lei civil. Eles podem até se arrepender de seus erros, mas se foram criados com uma visão ética budista tradicional não sentirão culpa. A culpa, com sua convicção subjacente de que somos pessoas más, e seu apego mórbido a esse senso de “eu” como uma identidade verdadeira e permanente, é um sentimento culturalmente específico, que surge devido à influência abraâmica na sociedade. A culpa não é uma emoção universal. Nem todos acham que, conforme formulado na Cartilha da Nova Inglaterra do século XVII EC: "Na queda de Adão, todos pecamos." É exatamente o oposto: os ensinamentos budistas sobre a natureza búdica postulam que a natureza de nossas mentes é pura, e todos nós somos capazes de remover as nuvens de ilusão que nos levam a agir destrutivamente.
A razão para termos ética em uma sociedade judaico-cristã é basicamente ser uma boa pessoa e agradar a Deus. Além disso, nos países que compartilham a herança de democracia da Grécia antiga, uma outra razão é ser um bom cidadão e defender "o bem". Ter um desses objetivos, ou os dois, nos faz correr o risco de presunçosamente nos apegar à identidade sólida de ter que ser bom. Por outro lado, nas culturas budistas, a razão para defender a ética é principalmente obter a libertação do sofrimento. Os votos éticos budistas básicos são chamados de “pratimoksha” em sânscrito, que literalmente quer dizer “votos para atingir a liberação individual” (so-sor thar-pa).
Estudantes do dharma criados em uma sociedade influenciada pela Bíblia frequentemente abordam a ética budista com uma lealdade inconsciente e mal colocada a um aspecto inadequado de suas origens, a saber, um desejo asioso de aprender o que é certo e errado. Entretanto, adaptar a ética budista às culturas judaico-cristãs, fornecendo aos praticantes uma versão budista dos dez mandamentos, pode não ser uma atitude muito sábia. Isso não apenas contradiz a abordagem budista do treinamento ético, como também pode minar seus objetivos.
O budismo não ensina, como base para a ética, uma lista de mandamentos e diz às pessoas para obedecê-los. A lista tradicional das dez ações destrutivas não é uma lista de “não farás”. Ao contrário das ordens cristãs, a obediência cega nunca é mencionada, nem mesmo como voto monástico. Em vez disso, o budismo ensina as leis de causa e efeito comportamentais e depois convida as pessoas a examinar suas experiências e suas mentes e tentar reconhecer os problemas que surgiram de suas ações e hábitos compulsivos. Elas precisam identificar suas emoções e atitudes perturbadoras, além de sua falta de consciência e sua confusão a respeito da realidade e do mecanismo de causa e efeito, pois isso é que impulsiona seu comportamento destrutivo compulsivo. Elas também precisam analisar e obter a convicção de que essas causas habituais podem ser removidas para sempre com o entendimento correto e que essa é a maneira de se livrar do sofrimento de modo que ele nunca mais volte.
Quando, como resultado desta introspecção e autoexame, as pessoas desenvolvem o forte desejo de emergir de forma definitiva de seus problemas incontrolavelmente recorrentes, elas desenvolvem o que se costuma traduzir como “renúncia”, a determinação de ser livre de sofrimento (nges-byung, Skt. niḥsaraṇa). Nesse ponto, estarão motivadas a iniciar o processo de obter a liberação através da modificação de seus padrões de comportamento, abstendo-se de agir com base nas emoções perturbadoras, que são a causa de seu comportamento compulsivo e dos problemas que dele derivam. Em outras palavras, ao renunciar não apenas ao sofrimento, mas também às causas do sofrimento, elas trabalharão para se livrar dos comportamentos negativos.
A tradição indo-tibetana do “lam-rim” (caminho gradual) discute como as pessoas podem tomar a decisão se livrar de três níveis de sofrimento por conta de três níveis correspondentes de motivação espiritual. Elas podem querer evitar os sofrimentos grosseiros inerentes ao renascimento em uma situação pior, que é resultado de seu comportamento destrutivo; esse é o objetivo do nível inicial de determinação de ser livre. Além disso, elas podem desejar se livrar não apenas do sofrimento grosseiro, mas de todas as formas de sofrimento de todos os renascimentos, incluindo aqueles provocados por um comportamento construtivo compulsivo, como limpar obsessivamente a casa. Esse é o objetivo do nível intermediário de determinação de ser livre. Adicionalmente, elas também podem querer eliminar todos os níveis de sofrimento de todos os seres, através da superação de todos os obstáculos que podem impedi-las de ajudar da melhor maneira possível. Esse é o nível avançado.
No entanto, o ponto de vista compartilhado pelos praticantes, e não apenas pelos praticantes dos três âmbitos de motivação, mas de todas as tradições budistas, o principal motivo para restringir o comportamento destrutivo compulsivo é se livrar do sofrimento e dos problemas que derivam desse tipo de comportamento.
A abordagem budista à ética, portanto, engendra a renúncia ao sofrimento que vem do comportamento destrutivo e inconsciente, e não a renúncia a ações que uma autoridade escritural considera pecaminosa ou que os códigos civis e tribunais consideram ilegais. A abordagem budista nos leva a analisar as quatro nobres verdades: os verdadeiros problemas, suas verdadeiras causas, seu verdadeiro fim e os verdadeiros caminhos mentais e práticas que realmente levam ao fim do sofrimento. Portanto, ao mudar essa abordagem, com uma adaptação cultural ao ocidente, arrisca-se um possível abandono de características essenciais do budismo. Vamos examinar esse problema em mais detalhes.
O Papel dos Professores Espirituais como Conselheiros em Questões de Ética
Quando as pessoas das religiões judaico-cristãs enfrentam um dilema moral, elas podem recorrer a seu padre, pastor ou rabino para obter conselhos pastorais. Conselhos sobre como reagir ao desejo de seu filho de se casar fora de sua religião, por exemplo. Elas querem saber o que é certo ou errado. Quando confrontadas com uma questão ética puramente civil, como declarar ou não determinado rendimento no imposto de renda, elas podem recorrer a um advogado para saber sobre as questões legais e possíveis brechas na lei a fim de evitar pagamentos pesados.
Os budistas tradicionais da Ásia não procurariam um professor espiritual, um monge ou uma monja, para obter esse tipo de orientação. Na tradição tibetana, eles podem ir a um lama para uma adivinhação, para obter ajuda em uma decisão difícil que não pode ser facilmente decidida pela lógica. Mas essas decisões normalmente não envolvem questões morais. É mais provável que tratem de negócios ou questões médicas, como onde vender suéteres ou em que médico confiar. Da mesma forma, os budistas chineses buscam adivinhações nos templos para ajudá-los a decidir sobre uma ampla gama de assuntos puramente mundanos, enquanto os budistas tailandeses que enfrentam problemas mundanos pedem amuletos aos monges para afastarem o mal. Embora muitos ocidentais hoje em dia busquem os “cordões de proteção” vermelhos dos lamas tibetanos para usar no pescoço, a maioria não acredita nessas coisas.
Além disso, muitos ocidentais sentem-se desanimados com as atitudes fundamentalistas das alas conservadoras de suas religiões originais em relação, por exemplo, a relacionamentos homoafetivos ou aborto. Às vezes, eles procuram um professor budista em busca de aprovação moral e justificativa para suas decisões. Eles querem que lhes digam que o que escolheram fazer é certo, que não é errado. Eles querem a garantia de que não são pessoas más.
Diante dessas pessoas, os professores budistas, especialmente os ocidentais, que talvez possam ter mais empatia por elas, desejam ter compaixão. Eles sabem que, se ecoarem a resposta firme e conservadora de algumas religiões ocidentais, citando as escrituras budistas, elas podem nunca mais voltar a um curso ou palestra do Dharma. Portanto, para poder responder confortavelmente a questões morais sobre o que é certo ou errado, de uma maneira mais liberal e tolerante para os novos budistas, vindos de uma sociedade influenciada pela Bíblia, eles fazem adaptações culturais da ética budista.
Precisamos ter muito cuidado ao fazer essas adaptações. Vários ocidentais chegam ao budismo com a esperança, ou até mesmo a convicção, de que ele vá reafirmar suas já estabelecidas visões políticas, sociais e sexuais “progressistas”, e simplesmente ignoram os aspectos do budismo que não estão de acordo com elas. Ou, como um advogado, consideram a ética budista um código de leis e procuram encontrar brechas ou negociar emendas. Os professores precisam ter cuidado. Acolher tais atitudes, em si mesmo e nos outros, pode mascarar uma forma sutil de abandonar o Dharma e criar um Dharma de imitação, dois extremos que Buda alertou que se deveria evitar. Mas a questão é como encontrar um caminho do meio entre o conservadorismo fundamentalista e a indulgência moral?
Existem questões ainda mais difíceis que precisam ser abordadas primeiro quando contemplamos as adaptações culturais da ética budista. Por exemplo, será que dizer a alguém o que é certo ou errado é a melhor maneira de ajudar essa pessoa a progredir espiritualmente? Será que as questões éticas são sempre preto no branco? É o papel de um professor de Dharma resolver todas as questões morais, especialmente em um mundo de relativismo moral? Vamos examinar alguns desses pontos.
Método de ensino do Buda
Certa vez, uma mãe enlutada foi ao encontro do Buda carregando o cadáver de seu bebê. Dominada pela tristeza, implorou que ele restaurasse a vida de seu filho. Shakyamuni pediu que ela primeiro trouxesse um grão de mostarda de uma casa em que a morte nunca havia visitado e então ele veria o que poderia fazer. A mãe foi de casa em casa na aldeia. Quando se deu conta de que nenhuma família jamais escapou da morte, entendeu o ensinamento do Buda sobre a impermanência. Consolada, conseguiu colocar o corpo de seu filho para descansar.
Este episódio indica claramente o método de ensino do Buda. Ele não disse para a mulher em tom professoral, “Sinto muito, mas todos os fenômenos condicionados são impermanentes, e todos devem morrer.” Ele não a repreendeu com indignação: “Seu pedido não está certo! Deus, em sua infinita sabedoria, levou seu filho e você deve ter fé em Deus.” Ele não se emocionou nem tentou confortá-la com palavras doces como: "Não se preocupe, querida mãe, seu filho está agora no céu ou renasceu em um maravilhoso campo búdico." Em vez disso, com seu equilíbrio característico de compaixão e desapego, ele criou as circunstâncias para que ela obtivesse a compreensão que lhe permitiria, sozinha, resolver sua dor.
O método de ensino do Buda, não é fornecer respostas diretas às pessoas, mas ajudá-las a enxergar a realidade. Shakyamuni fazia com que seus discípulos respondessem aos seus próprios dilemas. Em vez de dizer-lhes o que fazer, ele frequentemente os ensinava por meio de situações de vida ou parábolas e histórias, e os fazia pensar por si mesmos. Ele os fazia relatar seus insights para evitar que se desviassem do caminho, mas nunca entregou o Dharma de mão beijada. Mesmo quando Buda ensinava vários princípios e leis, como o mecanismo de causa e efeito comportamental, ele deixava que cada um de seus discípulos os combinasse, que trabalhasse todas as implicações e aplicasse à sua situação individual. Assim, ele conduzia as pessoas pelo caminho do desenvolvimento espiritual mesmo em momentos de dúvida e crise moral.
Entretanto, pessoas criadas nas culturas abraâmicas, querem saber o que fazer. Elas querem um “sim” ou “não” como resposta – e isso não diminuiu em tempos de digitalização, onde “zero” e “um” são o código fundamental de toda a computação. Nossa maneira moderna de resolver dúvidas é buscando uma autoridade, seja um livro, um site, um profissional especialista ou uma pessoa sábia. Até mesmo a educação laica nos treina para fazer isso. Se em resposta a nossa indagação ética sobre um determinado comportamento - por exemplo, sexo casual sem compromisso com muitos parceiros - o nosso professor espiritual disser que isso é errado e que iremos para o inferno, a questão está decidida. E agora vamos nos controlar e reprimir nosso desejo por sexo casual, mas talvez continuar com ele, ou continuar com essa atividade, mas com um forte sentimento de culpa. Ou podemos ignorar esse pronunciamento moral e buscar outra autoridade. O comportamento ocidental moderno é quase como procurar um advogado espiritual melhor até encontrar alguém que nos mostre uma brecha na lei moral e nos dê a resposta que desejamos. Mas os professores espirituais não são advogados espirituais!
A maneira budista de dirimir dúvidas, particularmente em relação às questões éticas, é muito diferente. A dúvida, ou hesitação (the-tshom, Skt. vicikitsā), é considerada uma atitude perturbadora. Seu antídoto é a determinação que vem da consciência discriminativa com a qual conseguimos distinguir corretamente entre o que é apropriado e o que não é, e entre o que ajuda e o que prejudica. A dúvida não é a “obra do diabo”, algo a ser exorcizado através do poder da fé absoluta em uma autoridade moral cujas liminares devemos aceitar. Nem é uma questão de interesse público a ser decidida por um júri e um julgamento. A dúvida é um estado mental perturbador que produz sofrimento e ansiedade, e deve ser erradicada e abandonada por meio da sabedoria introspectiva.
Shakyamuni explicou que não tinha como eliminar o sofrimento dos seres como quem remove uma farpa do pé. Tudo o que ele podia fazer era mostrar os métodos para que eles erradicassem seu próprio sofrimento. O Buda deu orientações e ensinamentos éticos, mas é dos seus discípulos a responsabilidade de compreendê-los e aplicá-los, e assim resolver seus próprios dilemas. Esta é a abordagem tradicional asiática para a criatividade: modificar as soluções padrão para se adequar às novas condições. Do ponto de vista ocidental, criatividade geralmente significa encontrar uma solução exclusiva e pessoal, como uma nova brecha para escapar de algum dilema. No entanto, esse tipo de abordagem não parece apropriado no que diz respeito à adaptação da ética budista às culturas ocidentais modernas.
Em suma, encorajar os discípulos, em um curso de autoindagação e de investigação das intenções e implicações dos ensinamentos éticos do Buda, pode ajudá-los a progredir muito mais em direção à liberação do sofrimento do que dar-lhes uma resposta do tipo "sim" ou "não" sobre sua conduta estar certa ou errada. Uma abordagem ética sem julgamentos dá aos budistas um espaço mental e emocional para trazer à consciência sua própria sabedoria discriminativa, e desenvolvê-la. Ao explorar a raiz de seus problemas, as pessoas podem ser gradualmente conduzidas a métodos cada vez mais profundos para eliminar, e não apenas reprimir, tudo o que lhes está causando sofrimento.
Adaptação Cultural dos Padrões Éticos Budistas
Como talvez não seja apropriado, como parte de uma adaptação cultural, mudar a forma como o budismo aborda a ética, vamos considerar alterações na forma da disciplina. Quão aberto está o budismo para mudanças nos padrões éticos?
Embora não tenhamos “mandamentos”, a ética budista também não é completamente relativa. Não cabe apenas aos indivíduos decidir o que é benéfico ou prejudicial para eles; suas decisões ou preferências não têm esse poder. Existem princípios específicos do carma, do mecanismo de causa e efeito comportamental, que não podem ser ignorados ao analisarmos os resultados de nossas escolhas morais. Mas as ações, por si mesmas, não são inerentemente destrutivas ou construtivas. Em termos ocidentais, elas não são inerentemente boas ou más, ou legais ou ilegais, com seu status estabelecido por seu próprio poder. O que confere às nossas ações seu status ético e, portanto, rege os resultados que vivenciamos, é a motivação que nos impulsiona a agir.
Se focada apenas em querer que o budismo legalize determinadas formas de comportamento, especialmente no que diz respeito ao comportamento sexual, a preocupação dos budistas ocidentais em modificar culturalmente o que é um comportamento destrutivo e o que é um comportamento construtivo, demonstra uma incompreensão da ética budista. A maneira de analisar a ética budista de forma consistente com os princípios budistas não deve ser legalista. A nobre verdade da verdadeira causa do sofrimento nos ensina que qualquer tipo de comportamento sexual, quando conduzido por uma emoção perturbadora, tal como a luxúria ou apego, é destrutivo e irá resultar, no longo prazo, em infelicidade e sofrimento, mesmo nos trazendo algum prazer no curto prazo, um prazer que não dura.
É verdade que, se nossa atividade sexual for motivada pelo desejo amoroso de dar prazer ao parceiro, e não pela luxúria, essa atividade será construtiva, mas será construtiva apenas no contexto do samsara. Mesmo que nós e nosso parceiro reconheçamos que esse prazer é apenas temporário, ainda assim essa atividade nos trará sofrimento, o sofrimento da mudança. Por exemplo, se nos identificarmos com nosso desempenho sexual, seremos atormentados pela preocupação de não ser bom o suficiente. Essas preocupações são de fato sofrimento.
Se, como não monásticos, nos engajamos em atividade sexual, não importa a forma que essa atividade assume, precisamos ter uma atitude realista a respeito dela. Embora o sexo desempenhe um papel importante em uma vida saudável e mundana, não é a coisa mais importante da vida e certamente não é um caminho para a felicidade eterna. Como seguidores do budismo, nunca devemos perder de vista as quatro nobres verdades.
Isso não significa que os valores culturais e costumes sociais não influenciam os resultados que vivenciamos de nosso comportamento. Eles devem ser levados em consideração. Isto porque, causa e efeito são fenômenos que surgem de forma dependente: um grande número de fatores causais, incluindo as leis civis, geram um grande número de efeitos. Assim, um comportamento considerado inaceitável na antiga sociedade laica da Índia, como o sexo antes do casamento, talvez não seja reprovado pela sociedade ocidental moderna, e vice-versa; o que era aceitável na antiga sociedade indiana, como o casamento de crianças, pode ser ilegal de acordo com as leis civis ocidentais modernas.
Quando o budismo se espalhou por áreas culturais em que o incesto predominava, mestres budistas adicionaram comportamentos como esse à lista das condutas sexuais inadequadas. Pode-se argumentar que esta foi uma modificação cultural. Mas, ao fazer isso, esses mestres estavam apenas ajudando os praticantes a avançar em seus caminhos espirituais, apontando mais e mais facetas da conduta pessoal para serem analisadas segundo as nobres verdades do sofrimento e de suas causas. Não importa a sociedade ou a época em que um determinado tipo de comportamento ocorre, se ele for motivado por uma emoção perturbadora e pelo desconhecimento do mecanismo de causa e efeito comportamental, ele irá resultar em infelicidade e sofrimento. Este ponto não está aberto a modificações culturais.
Resumo
Resumindo, o que precisamos é nos livrar da falta de consciência e das emoções perturbadoras que impulsionam nossas ações compulsivas, isso é o mais importante. Se perdermos de vista esse ponto principal e focarmos nas ações que devem ser incluídas ou excluídas da lista budista de ações destrutivas, será difícil considerar essas adaptações uma forma de budismo baseada em tomar a direção segura (refúgio) do Buda Shakyamuni, considerando-o uma autoridade válida.