As Cinco Outras Perfeições Além da Generosidade

Versículos 26 a 31

Vamos continuar falando sobre as seis perfeições ou as seis atitudes de amplo alcance. Você deve ter notado que elas seguem a ordem de generosidade, autodisciplina ética e paciência. Isso se deve ao fato de que o foco de nossa prática também deve estar nessa ordem. Antes, falei sobre a generosidade. Como bodhisattvas, devemos doar nossas riquezas. Além disso, se tivermos renome e fama, por que não abrir mão deles e oferecê-los aos outros ou usá-los para beneficiar os outros? Foi isso que Shantideva disse.

A pergunta que muitas pessoas fazem é: se fizermos isso, podemos levar o mérito ou o potencial positivo para a próxima vida ou não? O budismo dirá que, sim, podemos levar o mérito para a próxima vida. As impressões permanecem em nossa mente. As diferentes escolas filosóficas debatem sobre onde a impressão fica. A escola Chittamatra diz que as impressões ficam na mente, na consciência. Outras escolas, como a Prasangika, dizem que as impressões permanecem apenas na imputação "eu". Há um grande debate sobre isso. De qualquer forma, todas as escolas budistas acreditam que as coisas construtivas ou destrutivas que fazemos se transformam em impressões. Essas marcas são deixadas na consciência ou no "eu". Elas continuam em nossas vidas futuras. O fato de as ações construtivas criarem marcas que levamos para as vidas futuras é realmente um motivo de grande esperança. Temos de manter nossas impressões muito seguras. Para protegê-las, precisamos praticar a autodisciplina ética. O versículo 26 fala mais sobre isso. 

A Prática da Autodisciplina Ética

(26) A prática de um bodhisattva é guardar autodisciplina sem fins mundanos, pois se sem disciplina não conseguimos nem alcançar nossos próprios propósitos; querer cuidar dos propósitos alheios é uma piada. 

Sem autodisciplina, até mesmo as pequenas coisas fracassarão. Mesmo quando planejamos algo muito bem, se não tivermos a autodisciplina para seguir até o fim, tudo o que planejamos fracassará e não teremos sucesso em nada. A autodisciplina pode não ser muito divertida, mas nós a praticamos porque ela traz muitos benefícios. Imagine que alguém esteja acima do peso e queira entrar em forma e ser saudável. Isso exige autodisciplina. Mesmo que a pessoa goste de alimentos não saudáveis, ela os evitará e começará a frequentar a academia. Quando vir seus amigos se exercitando e perceber os benefícios, ela fará o mesmo, ainda que tenha de abrir mão da deliciosa comida industrializada! 

Esse é apenas um pequeno exemplo de autodisciplina comum. O que precisamos é de autodisciplina ética, por meio da qual garantimos que as ações de nosso corpo, fala e mente não causem danos a nós ou aos outros. Se não tivermos autodisciplina ética, toda a ideia de beneficiar os outros será apenas conversa e nenhuma ação. Sem autodisciplina ética, não garantiremos o bem-estar para nós ou para os outros. Qualquer desejo de trazer benefícios para os outros será invalidado. 

Há seis atitudes de amplo alcance. E quando praticamos uma delas, ela deve conter todas as outras dentro de si. Assim, por exemplo, quando praticamos a generosidade, devemos fazê-lo puramente, sem qualquer expectativa de receber algo em troca. O ato de dar de forma pura é quando damos simplesmente por dar. Isso é generosidade. Mas precisamos ter autodisciplina ética, paciência e as outras atitudes em relação a essa generosidade. Portanto, quando falamos sobre a disciplina ética da generosidade, devemos pensar: "Estou dando isso, mas não é para que os outros fiquem impressionados ou pensem que sou ótimo. Estou concentrado apenas no que estou fazendo". Essa é a generosidade ética. Trata-se de dar com pureza e de coração. 

Assim, aceitaremos se a pessoa que estiver recebendo não quiser nossa oferenda e a jogar de volta para nós, pois não temos nenhuma expectativa. Geralmente, quando isso acontece, surgem fortes emoções e pensamos: "Investi tanto tempo e amor e, em troca, recebo isso!" No fundo, mesmo que sintamos que estamos praticando a generosidade pura, há algum tipo de expectativa envolvida. Quando estamos praticando a generosidade e alguém retribui nos tratando mal, temos de ser fortes. Precisamos praticar a atitude da paciência com a generosidade, o que significa pensar: "Não me arrependo de nada. Pratiquei a generosidade porque senti que isso ajudaria e não tenho nenhuma expectativa de receber algo em troca. A pessoa pode dizer ou fazer o que quiser, mas sei que fiz a coisa certa".

Logo, ao praticarmos a generosidade, também precisamos da atitude da perseverança, ou do esforço alegre. Damos uma vez, duas vezes, talvez uma terceira vez, e se acabou. Desistimos. Sentimos que somos incapazes de dar mais, seja tempo ou dinheiro. Afinal, se só temos 100 dólares, quanto estamos realmente dispostos a dar? E o que dizer do tempo? Todos nós temos amigos ou outras pessoas que nos incomodam e só queremos ir embora rapidamente. Para ajudar os outros, precisamos ser capazes de nos colocar no lugar deles e sentir o que eles sentem. É preciso muito esforço para ouvir os problemas de nossos amigos e perseverança para continuar ouvindo. Realmente precisamos de perseverança! Contudo, esse é apenas um exemplo do esforço alegre e da perseverança da generosidade. Se pensarmos nos benefícios e nas qualidades da prática da generosidade, será algo de que realmente gostaremos e desejaremos praticar. Praticar a generosidade, juntamente com outras atitudes de amplo alcance, é também a melhor maneira de fazer amigos. É a melhor maneira de estabelecer uma conexão com outras pessoas. 

Na Índia, quando um hóspede chega à nossa casa, nós lhe oferecemos água. Quando uma pessoa caminha muito para encontrar você, ela se sente cansada e você lhe oferece água. Sempre que vamos a uma festa, precisamos levar presentes para deixar o anfitrião feliz. Na vida samsárica, não é permitido ir de mãos vazias! Sentimos um pouco de vergonha se não levarmos algo. No Lam-rim Chen-mo, Lama Tsongkhapa diz que isso é muito importante. Deixamos a outra pessoa muito feliz ao fazer algo tão simples. É algo que deveríamos desejar fazer mais vezes. Com isso, conseguimos nos conectar com as pessoas e transmitir qualquer mensagem. Quer se trate de bodhichitta, vacuidade ou impermanência, podemos falar com os outros quando criamos uma boa conexão com eles. 

Depois, temos a prática da concentração paralela à da generosidade. Pensamos e nos concentramos nessas práticas que estamos fazendo. Passamos um tempo meditando sobre a generosidade. 

Podemos dar algo com amor e compaixão, mas se virmos esse objeto como verdadeiramente existente, ele será só mais uma coisa samsárica. Portanto, no final das contas, também precisamos de consciência discriminativa e de sabedoria. Quando damos com uma mente pura e uma compreensão da realidade, nossa e da pessoa a quem estamos dando, essa generosidade transcende o samsara. Essa grande generosidade gera um forte potencial positivo que é uma semente direta do estado de Buda. Na verdade, há um grande debate questionando se a realização de prostrações cria as sementes para que tenhamos as qualidades de um buda no futuro. Entretanto, não há absolutamente nenhum debate sobre a generosidade. Ela definitivamente cria as sementes que nos ajudam a nos tornarmos um buda. Por favor, tenham isso em mente. 

A Prática da Paciência

(27) A prática de um bodhisattva é criar o hábito de ser paciente, de não ter hostilidade ou repulsa a quem quer que seja, pois para um bodhisattva que deseja ser rico em força positiva, todos os que o prejudicam são como tesouros de pedras preciosas.

Eu não tenho filhos, mas as pessoas que têm com certeza sabem como é essa sensação. Quando uma criança está gritando, berrando, chorando, é claro que pode ser muito irritante, mas ainda assim os filhos mantêm um lugar especial no coração dos pais, como se fossem muito preciosos. Para os pais é natural não sentirem raiva, pois os filhos são inocentes e não estão realmente cientes de suas ações. Quando a criança acorda às 2hs da manhã chorando, os pais a atendem sem raiva ou hesitação. Eles sentem uma vontade muito forte de ajudar o filho. Isso não quer dizer que os pais nunca ficam irritados com os filhos, mas acho que é muito raro sentirem ódio ou raiva deles. É assim porque os pais acham que seus filhos são muito preciosos. 

Da mesma forma, os bodhisattvas consideram todos os seres como se fossem seus filhos. Por causa disso, não há perigo de os bodhisattvas ficarem com raiva das pessoas ou chegarem a odiá-las. Para um bodhisattva, não existe inimigo. A raiva vem principalmente do sentimento de se ter um inimigo, de algum ser externo que nos causa problemas. Para os bodhisattvas, não há perigo de sentir raiva de qualquer ser, porque eles entendem que qualquer coisa que possa prejudicá-los é um tesouro inestimável. 

Isso é o oposto de como as pessoas normais pensam. Normalmente, se alguém tenta nos prejudicar, queremos destruir essa pessoa, queremos nos vingar. Mas os bodhisattvas vêem esses seres como um tesouro inestimável. Por quê? Porque eles entendem que o resultado de fazer isso é a plena iluminação. Agir assim não beneficia apenas os outros, mas também a nós mesmos. Quando alcançamos a plena iluminação, é o estado mais elevado possível. É a meta suprema. É por isso que os outros seres são um tesouro precioso para os bodhisattvas. 

Nós, pessoas comuns, dizemos: "Eu, você". O "eu" vem em primeiro lugar. Mas para os bodhisattvas, os outros sempre vêm em primeiro lugar. Quando percebemos que nossa própria iluminação depende de cada um dos outros seres sencientes, não há dúvida de que os consideraremos todos como preciosos e incomparáveis. Se deixarmos de lado um único ser, não poderemos nos iluminar. É dessa forma que temos que praticar. 

Eu estava conversando com um amigo próximo e ele contou uma experiência que teve com um de seus amigos. Palavras fortes e duras haviam sido trocadas entre eles e desde então não estavam mais se falando. Ele me disse que quando recitava suas práticas diárias, automaticamente incluía nelas seu antigo-amigo-agora-inimigo, com todos os outros seres sencientes. Ele não pensava: "Bem, esse cara não é mais meu amigo, então não vou incluí-lo em minhas orações". Ele estava fazendo o melhor que podia ao praticar. 

Muitas pessoas deixam seus inimigos de fora e oram apenas por sua família e amigos. Os bodhisattvas não fazem isso porque veem a bondade de todos os seres sencientes da mesma forma e entendem que para atingir o objetivo final da budeidade, a plena iluminação, eles precisam de todos os seres sencientes. É quase como uma regra que diz que a coisa não funcionará se deixarmos de fora nem que seja um único ser senciente. Ninguém pode ser deixado de fora. Portanto, a paciência é muito importante. Precisamos ver os seres sencientes como muito preciosos, especialmente aqueles que atualmente consideramos nossos inimigos.

A Prática da Perseverança 

(28) A prática de um bodhisattva é exercer perseverança, a fonte das boas qualidades, para servir ao propósito de todos os seres errantes, pois vemos que mesmo os shravakas e os pratyekabuddhas, que buscam atingir apenas o seu próprio propósito, têm tamanha perseverança que ignorariam um fogo que tivesse começado em suas próprias mãos.

Com esse verso, Gyalse Togme Zangpo apresenta a perseverança, a quarta perfeição ou atitude de amplo alcance. A perseverança vem no meio da lista e há uma razão para isso. Sem perseverança, não há como melhorar e desenvolver nossa generosidade, disciplina ética e paciência. É por isso que ela está no meio. A concentração e a consciência discriminativa, as perfeições seguintes, também se baseiam na perseverança. 

Temos um ditado no Tibete que diz que mesmo que tenhamos sabedoria, sem perseverança somos como um cadáver - não realizamos nada. Quando falamos de perseverança de amplo alcance, devemos estar cientes de que nem toda perseverança é assim. Por exemplo, há muitas pessoas que dedicam grande perseverança e esforço para ganhar dinheiro. Elas podem ganhar muito dinheiro para si e ser muito habilidosas nisso, mas não chamamos isso de perseverança de amplo alcance. A perseverança de amplo alcance está em algo que seja construtivo para nós e para os outros. 

O verso também menciona os shravakas e os pratekyabuddhas. Os shravakas também são conhecidos como ouvintes e os pratyekabuddhas como auto-realizadores. Os shravakas são chamados de ouvintes porque ouvem o Buda e depois praticam o que ouviram. Sua motivação é limitada, pois só querem alcançar a liberação como um arhat, para seu próprio benefício. Eles praticam o que ouviram do Buda, mas não fazem tudo o que o Buda lhes pede para fazer, como desenvolver grande compaixão e bodhichitta. Contudo, conseguem transmitir a mensagem para os outros. O Buda ensinou como atingir a plena iluminação e os ouvintes transmitem a mensagem, mas não buscam a plena iluminação. Seu objetivo é apenas a liberação. 

Os pratekyabuddhas ou auto-realizadores são mais teimosos. Pode parecer um pouco duro dizer isso dessa forma. Em tibetano, eles traduziram o termo sânscrito como rinoceronte, porque os rinocerontes gostam de viver como criaturas solitárias. Eles não vivem em manadas como os elefantes. Eles gostam de permanecer em meditação por longos períodos e são influenciados por terem ouvido os ensinamentos de Buda em vidas anteriores. Dizem que eles têm um pouco de medo dos budas, pois temem que estes os levem a se afastar da meditação e a praticar bodhichitta e alcançar a iluminação plena. Eles rezam para não estarem presentes quando um buda chegar a algum mundo! É por isso que, quando ouviram que o Buda nasceu, muitos auto-realizadores que viviam em Varanasi naquela época decidiram desaparecer. Alguns voaram para longe com seus poderes milagrosos e outros até queimaram seus corpos. A diferença entre os ouvintes e os auto-realizadores é que os auto-realizadores desenvolvem mais potencial positivo. Portanto, são capazes de ensinar os outros de uma forma única, sem falar, com meios e gestos milagrosos. 

Há uma enorme diferença entre o esforço e a perseverança dos praticantes que sempre se concentram em si mesmos e aqueles que assumiram o compromisso de ajudar os outros. Com certeza, o esforço e a perseverança daqueles que querem beneficiar os outros são mais fortes e mais positivos. Shravakas e pratekyabuddhas veem a existência incontrolavelmente recorrente como se suas cabeças estivessem pegando fogo. Eles desenvolvem uma renúncia profunda e o desejo de se libertar do fogo da existência o mais rápido possível, mas apenas para si mesmos. Eles desejam  desesperadamente extinguir o fogo em suas próprias cabeças. Lembre-se de que não estou falando de um fogo real aqui, é apenas uma metáfora para a existência incontrolavelmente recorrente. Eles vêem o sofrimento do samsara como fogo e sentem que não podem ficar no samsara nem mais um segundo. Eles se apressam em praticar para se tornarem arhat. 

Por outro lado, ainda que os bodhisattvas vejam o fogo em suas cabeças, também veem que a cabeça de todos os outros igualmente está em chamas. Eles pensam em como tirar todos do sofrimento, o que os leva a ter mais responsabilidade. Quando a pessoa tem mais responsabilidade, automaticamente se esforça mais e persevera no trabalho. Só a preguiça pode levá-la a procrastinar. 

Não sei como é no Ocidente, mas no Tibete a geração mais velha acha que a geração atual não leva a vida suficientemente a sério. Os pais aconselham seus filhos a se casarem e terem seus próprios filhos. Esperam que o sentimento de responsabilidade cresça dentro deles de alguma forma. Costuma dar certo, mas é claro que às vezes falha. Ainda assim, o sentimento de responsabilidade aumenta para a maioria das pessoas que se casam e têm seu próprio lar, de modo que se esforçam e perseveram em ajudar pelo menos a própria família. 

Para os praticantes budistas, como Sua Santidade o Dalai Lama, assumimos diariamente a responsabilidade universal de ajudar a todos quando fazemos os votos de bodhichitta. Esse é um bom exemplo a ser seguido. Podemos fazer esses votos enquanto visualizamos nosso guru. Assumir esse tipo de compromisso nos dá força e um sentimento de responsabilidade.

A Prática da Estabilidade Mental, Concentração

(29) A prática de um bodhisattva é transformar em hábito a estabilidade mental que supera com pureza as quatro [absorções] sem forma, através da percepção de que um estado mental excepcionalmente perceptivo, totalmente imbuído de um estado tranquilo e assentado, pode derrotar completamente as emoções e atitudes perturbadoras.

Para combater as emoções negativas, há muitos métodos diferentes que podemos experimentar. Por exemplo, digamos que queremos lidar com o forte apego por alguém bonito. Na tradição Theravada, falamos em ver a feiura do corpo e como ele é um saco de pele cheio de ossos, sangue e pus. Pensamos assim sobre as desvantagens do corpo para que ele aprenda o que é o apego. Às vezes, pode ajudar. Com certeza, reduz nosso apego, mas não dura muito tempo. O apego e a atração voltam rapidamente! 

Acho que a maioria de nós pode fazer o teste e ver como o apego diminui temporariamente, mas volta a aumentar rapidamente. Pensem nos cirurgiões, que abrem corpos todos os dias, olham lá dentro, veem todo o sangue e os órgãos. Quando vemos isso, achamos que é muito feio e queremos desviar o olhar. Contudo, mesmo que vejam o interior dos corpos todos os dias, os cirurgiões ainda dizem: "Esta é minha linda namorada ou namorado". Fazer isso não diminui sua atração pelo corpo por muito tempo. E já vi muitos cirurgiões traindo suas esposas ou maridos, tendo casos amorosos. Eles têm o mesmo problema de apego que nós. Portanto, pensar apenas nas qualidades repugnantes do corpo humano também não funcionará para nós a longo prazo. 

Uma maneira mais eficaz de combater as emoções perturbadoras é não enxergar apenas as más qualidades das coisas. Basicamente, quando sofremos, temos que abraçar o sofrimento para depois poder enfrentá-lo. Pode ser que a situação perturbadora que causou o sofrimento já tenha passado e não seja possível enfrentá-la diretamente. Entretanto, podemos examinar a situação que nos fez sofrer e investigar como e por que sentimos dor e frustração. Temos que investigar e entender a causa do sofrimento. Se olharmos cuidadosamente, veremos que vem de nosso autocentramento. 

Por isso, a meditação analítica é muito importante, para podermos examinar as situações em que estamos enredados e enxergar de onde vêm a nossa infelicidade e o nosso sofrimento. Através da meditação analítica veremos claramente a conexão entre nosso sofrimento e nossa mente ignorante ou inconsciente. Ignorante nesse contexto não significa estúpido - refere-se ao fato de que nossa mente é inconsciente da realidade, da maneira como as coisas de fato existem. Precisamos da meditação analítica para que a nossa mente possa lentamente se acostumar a ver os acontecimentos e as pessoas de uma maneira mais próxima de como eles realmente existem.

Quando começarmos a fazer perguntas como: “De onde vem meu sofrimento?”, as respostas virão. Perceberemos que nosso principal inimigo, aquele que realmente nos influencia, é nossa mente que não entende. Se pudermos eliminar essa inconsciência que causa nosso sofrimento, poderemos eliminar o próprio sofrimento. O antídoto para todos os nossos problemas é a inexistência de um eu sólido e concreto e a vacuidade. Nossas aflições são muito potentes e complicadas. Portanto, o antídoto deve ser igualmente potente. 

Para que os antídotos sejam realmente potentes, precisamos de shamata, que é um estado mental calmo e estável. Também precisamos de vipassana, ou um estado mental excepcionalmente perceptivo. Sem a união desses dois, será impossível que os antídotos funcionem em todo o seu potencial.

Quando desenvolvemos shamata, podemos estar em meditação por períodos bastante longos, permanecendo calmos e em paz. No entanto, seria errado pensar: “Tenho tantos problemas, agora vou descansar em shamata, não pensar em nada e ignorar todos os meus problemas”. Esse é o caminho errado. Quando enfrentamos problemas, temos que examiná-los e pensar em quanto tempo eles podem durar, como os problemas poderiam ser ainda piores do que são e também como poderiam ser muito melhores se tivéssemos uma solução. Qual é a solução? As grandes armas da inexistência de um eu sólido e concreto, e da vacuidade. Essas armas funcionam com concentração. 

Todos nós temos algum nível de concentração. Acho que não existe nenhum ser senciente que não tenha algum nível de concentração. Até os animais o têm. Concentração é quando nossa mente consegue manter o foco. É concentração até mesmo quando o foco dura apenas um segundo. Shamata é um nível muito profundo de estabilidade mental e concentração, no qual podemos nos concentrar em um objeto de nossa escolha por horas e horas. Além disso, com shamata, nosso corpo não sofre. Ao contrário, ele fica muito flexível. Nossa mente se sente feliz. Os livros didáticos afirmam que o estado de shamata é um pouco como um algodão fino, muito leve e muito calmo. É incrível conseguirmos ficar assim, mesmo que por apenas uma hora.

Além do nosso reino humano, há o plano dos seres sem forma, o chamado reino sem forma, onde os seres têm apenas corpos sutis. Na maior parte do tempo, estão absorvidos em meditação muito profunda ou na infinidade do espaço, ou na infinidade da consciência, ou no nada, ou então na não-distinção mas também na não-não-distinção. De toda a existência samsárica, dizemos que esses são os reinos culminantes. Os seres que nascem lá basicamente sentem que não há mais sofrimento. Eles estão em meditação tão profunda que só experimentam felicidade. 

Na verdade, podemos alcançar esses estados mentais nesta vida. Não precisamos ir para algum reino celestial para experimentá-los. O problema é que o renascimento neste reino ainda está no samsara, de modo que os seres estão sujeitos a renascimentos incontrolavelmente recorrentes. Suas vidas podem durar milhões ou bilhões de anos. A desvantagem de renascer após esse tipo de experiência é que, na próxima vida, a mente dos seres fica muito entorpecida. Suas mentes não estiveram trabalhando com bodhichitta ou vacuidade e, em vez disso, eles apenas desfrutaram da felicidade meditativa. Quando esses seres voltam a nascer como humanos, seu estado mental diminui e volta ao normal. Para eles, é difícil se engajarem em ações construtivas porque mantiveram distância dos outros por muito tempo, concentrando-se em “nada” na meditação. Há um grande perigo nisso. 

A Prática da Consciência Discriminativa, Sabedoria

(30) A prática de um bodhisattva é fazer um hábito da consciência discriminativa, que acompanha os métodos e que não formula conceitos sobre os três círculos. Pois sem a consciência discriminativa, as cinco atitudes de amplo alcance não geram a iluminação completa

Esse é um ótimo ensinamento. O grande Chandrakirti disse que, sem a consciência discriminativa, as outras cinco atitudes de amplo alcance são míopes. É muito bom praticar a generosidade, mas também precisamos da consciência discriminativa para saber o que é certo dar e quando devemos dar. Quando temos consciência discriminativa, podemos praticar e usar todas as atitudes de amplo alcance para alcançar a liberação. 

Nagarjuna disse que em tudo que o Buda faz, ele está ensinando a vacuidade. Em todos os ensinamentos que o Buda dá, ele está sempre ensinando a vacuidade. Não há um único momento em que ele não esteja ensinando a vacuidade. Mesmo quando está sorrindo, ele está ensinando a vacuidade. Quando está dormindo, também está ensinando a vacuidade. Quando está falando, direta ou indiretamente, está ensinando a vacuidade. Porquê? Porque compreender a vacuidade é a única maneira de todos saírem do sofrimento. 

A melhor razão para ouvir o Dharma não é apenas a curiosidade em relação ao que é o budismo, mas porque sentimos uma forte necessidade de sair do sofrimento. Portanto, precisamos de métodos para fazer isso. Talvez você tenha vindo até aqui pensando que essa pessoa chamada Serkong Rinpoche - eu - tem alguma informação útil para ajudar você a sair do sofrimento! 

O que realmente precisamos é de renúncia, a determinação de nos livrarmos do sofrimento. No Lam-rim Chen-mo, há um bom exemplo de como é a renúncia. Ele diz para imaginarmos que acabamos de comer uma grande refeição, que agora está sendo digerida em nosso estômago. De repente, alguém nos diz que o que comemos é veneno. Com certeza, nós nos levantaremos imediatamente com um forte desejo de encontrar algum tipo de solução, faríamos praticamente qualquer coisa para para sair desse problema. Não importa o que estejamos fazendo, mesmo que consigamos dormir, estaremos pensando em como resolver nosso problema. Ainda que estejamos conversando com amigos, nossa mente estará principalmente ocupada em encontrar um antídoto para o veneno. Se essa for nossa maneira de pensar em renascimentos incontrolavelmente recorrentes, significará que temos renúncia. Se não tivermos muito conhecimento sobre impermanência e vacuidade, será muito difícil ter renúncia. Podemos dizer: “Minha vida é péssima”, mas no dia seguinte voltamos a seguir os mesmos hábitos e continuamos a sofrer, chorar e reclamar. Não entendemos nem sentimos que o veneno está dentro de nós. Essa é a nossa vida. 

O versículo 30 ensina sobre a importância da sabedoria e da inexistência de um eu sólido e concreto, e como essa é a única maneira de todas as nossas práticas se transformarem em uma arma com a qual podemos combater nossas emoções negativas e a fonte de nossas emoções negativas. De uma vez por todas, podemos vencer a batalha. Isso nos dá um grande sentimento de força e confiança. 

A Prática Diária de um Bodhisattva

(31) A prática de um bodhisattva é examinar continuamente o autoengano e livrar-se dele, pois se não examinarmos nosso autoengano, é possível que cometamos alguma ação não dhármica usando uma fachada dhármica

Isso acontece muito e tenho certeza de que todos nós poderíamos dar uma grande variedade de exemplos. Basicamente, estamos sempre fazendo julgamentos. Na maioria das vezes, julgamos apenas os outros, quase nunca nos julgamos. Na verdade, é muito difícil parar de julgar os outros. As pessoas estão sempre fazendo isso ou aquilo e imediatamente reagimos em nossas mentes: “Ah, essa pessoa é ruim porque fez isso”. Na verdade, não sabemos se a pessoa fez de propósito, se aconteceu por acidente ou se houve alguma circunstância especial. Também não podemos saber qual é a motivação dela. Portanto, é errado julgar. Se realmente quisermos julgar, precisamos julgar a nós mesmos. 

A maioria de nós aqui já assistiu aos ensinamentos de Sua Santidade muitas vezes. Admiramos suas palavras e assumimos o compromisso de ser bons seres humanos, como ele nos aconselha a ser. Muitos de nós também temos os votos de bodhisattva e os votos tântricos. O grande mestre Atisha sempre dizia, com relação à manutenção dos votos pratimoksha, que achava que estava indo muito bem em mantê-los. Depois dizia que, no que se refere aos votos de bodhisattva, ele pensava que às vezes cometia alguns erros. Mas quando se tratava dos votos tântricos, ele disse que cometia muitos erros. Se até Atisha disse isso, que esperança há para nós? 

É claro que há esperança. A razão pela qual Atisha disse isso abertamente foi para mostrar que, em um nível relativo, ele também enfrentava os mesmos problemas que nós. A diferença é que tentamos constantemente esconder essas coisas. Não estou dizendo que temos que divulgar todas as coisas ruins que fazemos em público, isso não seria sábio. Mas devemos aprender com nossos erros. Temos de saber o que estamos praticando, o que não deveríamos estar fazendo e o que está faltando em nossa prática. 

Se não vemos os benefícios de seguir uma determinada regra ou voto, então não estamos tão interessados em investigar. Simplesmente pensamos: “Por que diabos meu guru está dizendo que eu não devo fazer isso? Eu não critico muito os outros!” Mas se observarmos nosso comportamento com cuidado, provavelmente veremos com mais clareza o que fazemos. Sei que quando vou a uma festa, às vezes contribuo para as fofocas. Não faço intencionalmente, mas acontece de algumas fofocas acabarem surgindo devido às circunstâncias. O problema é quando não aprendemos com as coisas destrutivas que fazemos. 

Se faço algo ruim, converso com meus amigos próximos. Fico me sentindo mal e reclamo de mim mesmo. Isso pode ser muito útil. Às vezes, falo com meus professores e digo que tenho certas emoções negativas ou apegos, mas não consigo combatê-los. Quais são os métodos? Eu pergunto a eles. Acontece de eu fazer perguntas bastante estúpidas aos meus professores! Pergunto sem nenhuma hesitação. Temos que saber como é o comportamento de nosso professor. Alguns professores ficam muito felizes em responder a essas perguntas. Outros podem achar que é um pouco desrespeitoso fazer certas perguntas. Temos que ver como funciona a mente de nosso professor. 

Também é muito importante aceitar os erros que cometemos. Às vezes, ainda que façamos muitas coisas destrutivas, achamos que estamos indo muito bem. Por que digo isso? Na verdade, é porque nos supervalorizamos e nunca nos julgamos com a mesma severidade que julgamos os outros. 

Eu tenho um exemplo. Adoro desenhar. Sinto que sou um artista. Mostro alguns de meus desenhos aos meus amigos e eles dizem: “Não, não é muito bom!”. Mas quando olho para eles, acho que são obras-primas! Assim vemos quanto apego temos por nós mesmos. É por isso que temos que procurar nossos professores, pois eles podem nos dar dicas. Eles são capazes de nos mostrar nossas falhas. Devemos estar sempre prontos para aceitar nossos erros. Isso é muito difícil. O ego é muito forte. Portanto, precisamos relaxar nosso ego, nos preparar para aceitar nossos erros e pedir desculpas caso necessário. Essa é uma ótima prática, não apenas para bodhisattvas, mas também para pessoas como nós. 

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