Grande Compaixão e Tonglen, Dar e Receber

Versículos 17 a 21

Hoje falaremos sobre compaixão, grande compaixão e bodhicitta. Tentarei ser breve. Temos muito material para analisar. 

Desenvolvendo Compaixão

Embora possivelmente saibamos um pouco sobre praticar, o que nos falta na vida cotidiana é realmente agir. Isso ocorre porque nos falta a renúncia - a determinação de nos livrarmos do sofrimento. Se não houver renúncia, nem que seja um pouco, nossa prática não terá muito impacto em nossa vida. Para desenvolver a renúncia, o mais importante é contemplar a impermanência. 

Não contemplar a impermanência enfraquece a nossa prática. É por isso que o Buda e outros grandes professores sempre nos incentivam a meditar sobre a impermanência, para que possamos ver com o que estamos desperdiçando nosso tempo. Com certeza, quando tivermos essa determinação de nos livrarmos do sofrimento, sentiremos vontade de dedicar mais tempo à prática do Dharma. Se praticarmos e virmos como é possível eliminar as causas do sofrimento, entenderemos como também é possível não precisarmos mais renascer no samsara. Então, buscaremos moksha, a liberação, um estado em que não há mais sofrimento. Essa é a verdadeira felicidade.

É como quando alguém ao nosso lado tem uma enxaqueca, ficamos tristes por essa pessoa, mas também nos sentimos sortudos por não termos essa dor. Temos muita sorte. É a mesma sensação. E se soubéssemos como nos livrar da enxaqueca, seria terrível de nossa parte não dizer à pessoa como fazer isso. É isso que os bodhisattvas fazem. Eles imediatamente percebem como podem ajudar qualquer ser que encontrem. Leva algum tempo para obter esse tipo de motivação, que chamamos de bodhichitta. Quando alcançarmos a liberação, vamos querer dar essa mesma liberação a todos os outros seres.

A grande compaixão vem da compaixão. Todos nós temos um pouco de compaixão em nosso interior e essa é a nossa grande esperança. Esse é um dos fatores da "natureza búdica”, que todos nós temos. O problema é que nossa compaixão é limitada e geralmente está misturada com apego. Essa compaixão não é pura e, em última análise, não traz muitos benefícios. Por exemplo, quando uma mãe vê algo acontecer com seu filho, ela fica muito preocupada. Mas quando algo acontece com outras crianças, ela pode até sentir pena, mas não vai realmente tentar ajudar. No momento, é muito difícil nos colocarmos no lugar dos outros e realmente sentirmos seu sofrimento. Um dos principais motivos é que não queremos mesmo fazer isso. Na maioria das vezes, preferimos ignorar o fato. Temos demasiado autocentramento. Para estimar os outros, temos que valorizá-los de uma maneira diferente. 

No budismo tibetano, adoramos debater. Debatemos muito sobre a diferença entre a compaixão dos arhats e dos bodhisattvas. Os arhats têm muita compaixão - muito mais do que nós - mas ela é limitada. Eles se concentram principalmente em se libertar da existência incontrolavelmente recorrente e, embora certamente tentem ajudar os outros, dizemos que se trata de uma compaixão mensurável porque é limitada. Hoje eles praticam por cem seres, amanhã por duzentos, e é só. Os bodhisattvas não são assim. Sua compaixão é totalmente incomensurável. Eles não excluem um único ser. 

É como uma mãe que vê seu filho se afogando em um rio. A compaixão de um bodhisattva é como a de uma mãe com braços - ela imediatamente pulará no rio e tentará salvar seu filho. A compaixão de um arhat é descrita como sendo a de uma mãe sem braços. A mãe vê seu filho se afogando e quer ajudar, mas sente: "Se eu pular lá dentro, estarei perdida, não poderei ajudá-los, não há muito que eu possa fazer". Ela perde a esperança porque ainda tem um pouco de autocentramento. 

Lama Tsongkhapa escreve sobre isso em seu Lam-rim chen-mo, Uma Grande Apresentação do Caminho Gradual para a Iluminação. Para desenvolver uma grande compaixão em nossa mente, precisamos primeiro ver que existe um método para sair da existência incontrolavelmente recorrente. E também precisamos de algum conhecimento sobre a verdade mais profunda - o fato de que tudo é desprovido de maneiras impossíveis de existir. Temos que reconhecer essa verdade, essa realidade da existência. Ao ver essa realidade e o fato de que há uma saída para a existência incontrolavelmente recorrente, sentiremos uma grande sensação de esperança. Entenderemos que é possível ajudar os outros de verdade. 

Quando percebemos que não há uma existência verdadeira à qual se agarrar, sentimos que tudo é como uma ilusão. Entender isso cria muito menos avidez e apego ao eu e também diminui a distância que temos dos outros.

A compreensão da vacuidade remove a cola que nos prende ao samsara. Quando conhecemos a verdade mais profunda de tudo, percebemos que não há nada a que nos agarrarmos. Então, podemos facilmente imaginar outra pessoa sentada em nossa almofada e, sem problema algum, estimá-la da mesma forma que nos estimamos. 

Um dos maiores problemas criados pelo fato de não conhecermos a verdade mais profunda é o autocentramento. Por nos sentirmos tão independentes e sólidos, valorizamos a nós mesmos e a qualquer coisa ou pessoa próxima a nós. Mesmo quando vemos que outros seres sencientes foram muito gentis conosco, é muito difícil pensar em retribuir a gentileza deles. Tudo isso é devido ao nosso autocentramento. 

Todos os Seres Foram Nossas Mães

Para nos livrarmos desse autocentramento, precisamos tentar considerar todos os seres como nossas mães. Já que no budismo acreditamos em renascimentos sem início, seguindo essa lógica, é claro que isso significa que em algum momento no tempo todos os seres foram nossas mães. Não podemos dizer que há uma grande diferença entre a bondade de nossa mãe nesta vida e a bondade de nossa mãe em outra vida. Difere apenas o fato de nos lembrarmos dela ou não. Precisamos contemplar muito isso, para que possamos compreender que os outros seres são como nossas mães e que precisamos nos lembrar de sua gentileza. A coisa mais difícil é realmente retribuir essa gentileza. Hoje em dia, parece que os filhos não têm a capacidade de cuidar de seus pais e lhes oferecer seu tempo, paciência ou até mesmo um simples sorriso. Portanto, se é difícil fazermos isso por nossos próprios pais, podemos imaginar como é difícil desenvolvermos a intenção de retribuir a gentileza de todos os seres sencientes. 

Entretanto, quando desenvolvermos uma compaixão muito forte e compreendermos a ausência de um eu cuja existência é impossível, veremos todos os fenômenos como sendo uma ilusão. Ao sentirmos que não há nada sólido na existência, automaticamente sentimos que tudo é interdependente e conectado. Vemos como tudo está conectado a todo o resto. Entendemos a necessidade de cuidarmos uns dos outros. 

A prática da bodhichitta é muito importante. Sem a bodhichitta, pararemos nesse nível de só desejar retribuir a bondade dos outros. Contudo, para começar, precisamos realmente contemplar como todos os seres foram nossas mães e pensar em sua bondade para conosco. Da próxima vez que estiverem na rua e derem alguns trocados a um mendigo, em vez de pensar apenas que ele poderá desfrutar de uma xícara de chá quente no tempo frio, tentem pensar: "Essa pessoa me beneficiou muitas vezes em minhas vidas anteriores, esta é minha chance de retribuir sua bondade".

O propósito de nossa vida é alcançar a plena iluminação. Dar alguns trocados a um mendigo é bom, mas a única maneira de beneficiarmos os outros de forma verdadeira e completa é alcançando a iluminação plena e perfeita. 

Às vezes, quando estamos ao ar livre, acontece de notarmos uma pequena formiga andando sobre nós. Antes de soprá-la para longe, pensem nela por um momento, pensem em como querem ajudar essa pobre coitada. Sempre que o grande mestre Atisha via um burro, com toda a sua atenção, ele se aproximava e dizia: "Olá, Mãe". Essa era a sua prática. E Sua Santidade o Dalai Lama, aonde quer que vá e com quem quer que se encontre, segura as mãos das pessoas. Assim é a prática da bodhichitta. Ele poderia simplesmente acenar, como o presidente Trump. Mas Sua Santidade segura as mãos das pessoas, para mostrar sua conexão com cada ser. 

Precisamos seguir, pouco a pouco, os padrões que observamos nesses grandes seres, para que também passemos a valorizar os outros seres sencientes. Então, sentiremos gradualmente que a principal razão de termos nascido neste mundo como um ser humano com um cérebro muito inteligente é beneficiar os outros. Não vamos querer desperdiçar essa oportunidade. Essa preciosa vida humana é boa, não só para mim, mas também para todos os outros. 

Quando os grandes mestres oram, quando visualizam os seres sencientes, costumam visualizar a todos, sem se importar com as diferenças entre eles. Quando falamos em desenvolver compaixão, precisamos nos concentrar nos seres sencientes - todos os seres sencientes. Com nosso coração humano e cérebro inteligente, podemos incluir todos os seres sencientes em nossas orações. Mesmo que odiemos nosso inimigo ou não gostemos de alguém, devido à nossa grande inteligência humana, com compaixão, podemos incluir todos em nossos pensamentos. Com essa habilidade, não deveríamos nos sentir como pessoas comuns. Somos extraordinários porque nossa prática de bodhichitta é excelente. Quanto mais desenvolvermos a bodhichitta, sempre que encontrarmos alguém, automaticamente sentiremos vontade de abraçar a pessoa. Naturalmente, sentiremos amor pelos outros e, naturalmente, nos sentiremos próximos de todos. Esse será o presente de nossa prática. 

O Buda fez um voto especial aos bodhisattvas, instruindo-os a não permanecerem em meditação por muito tempo, mas a saírem e beneficiarem os outros. Como eles beneficiam os outros? Com total absorção, eles reconhecem a vacuidade de todos os fenômenos. Quando saem desse estado de concentração profunda, eles têm o poder de ver todos os fenômenos como uma ilusão. Assim, sem nenhum apego, eles se tornam capazes de ajudar os seres sencientes. Essa é a maneira principal de beneficiar todos os outros. Agora estamos prontos para voltar ao texto.

Lidando com a Arrogância 

(17) A prática de um bodhisattva é: se um indivíduo de igual [classe] ou [de classe] inferior à nossa nos insultar, tomado por arrogância, recebê-lo respeitosamente na coroa da cabeça, respeitosamente como [recebemos a] um guru.

Ver um inimigo como nosso guru é algo difícil de fazer. Se nossa prática não tiver isso, não poderemos obter a iluminação completa.  

Tomando para Si o Sofrimento de Todos os Seres Sencientes

(18) A prática de um bodhisattva é: mesmo se não tiver um sustento e for constantemente insultado pelas pessoas, ou se tiver uma terrível doença ou for atormentado por espíritos, aceitar, em contrapartida, as forças negativas e o sofrimento dos seres errantes e não se desencorajar.

Aqui, estamos falando sobre a incrível prática de dar e receber, conhecida como tonglen em tibetano. Quando devemos praticá-la? Bem, devemos praticá-la sempre, mas ela é especialmente útil quando nos sentimos muito vulneráveis. Às vezes precisamos brincar com nossa própria mente. Imaginem que estamos sofrendo muito e alguém vem e diz: "Você está sofrendo, mas outra pessoa está sofrendo mais do que você". Eles comparam nosso sofrimento com o de outra pessoa. Nosso sofrimento físico não necessariamente diminuirá. Contudo, mentalmente, é como um sinal de que nosso sofrimento não é nada comparado a sofrimentos ainda maiores. Assim, automaticamente nossa dor se torna menor. 

Quando Sua Santidade o Dalai Lama teve fortes dores devido a pedras na vesícula, ele estava sendo levado ao hospital e, pela janela do carro, viu muitos mendigos indianos sem abrigo. Ele viu que eles não tinham nada, nem mesmo o que comer. Mesmo assim, eles estavam sorrindo e brincando. Sua Santidade viu que a condição deles era terrível, mas eles ainda conseguiam sorrir. Ao ver isso, a dor de Sua Santidade diminuiu automaticamente. 

Os bodhisattvas não ficam parados enquanto os seres sofrem. Eles realmente tentam abraçar o sofrimento dos outros. Eles se sentem tão tristes quando veem o sofrimento de todos os outros que o seu próprio sofrimento não parece ser nada. Então, tentam tomar para si o sofrimento dos outros e dar a eles seu prazer e felicidade. Esse é um método de visualização. Na prática, não podemos dar a nossa felicidade ou tirar o sofrimento de alguém. A felicidade que conquistamos é nossa; não é possível dá-la aos outros. 

Os ensinamentos enfocam a lei da causalidade. O Buda afirmou nos sutras que, com todas as nossas emoções negativas, precisamos estudar a vacuidade e atingir a iluminação por nós mesmos. Não podemos nos purificar tomando banho no Ganges. Com certeza, não posso colocar minhas mãos sobre você e acabar com todos os seus problemas e sofrimentos. Essa é a regra inflexível da causalidade.  

Quando trocamos nossa felicidade pelo sofrimento alheio, o fazemos para o nosso próprio bem. Por meio desse método, nos tornamos mais compassivos, abrimos mais espaço em nosso coração para os outros. É claro que algumas pessoas maldosas aparecerão e precisamos estar preparados para elas. Precisamos estar abertos para todos os seres sencientes. Quando abrimos nosso coração dessa maneira, é como se fôssemos ricos e déssemos nosso cartão de crédito a todos, permitindo que o usassem para fazer compras. Os bodhisattvas compartilham tudo o que têm. E compartilham com todos, não apenas com as pessoas gentis. Eles percebem que não há nada a que se agarrar. Tudo o que eles têm é propriedade de todos. Eles se sentem conectados a todos. 

Isso não significa que eles permitem que outros abusem deles. Eles têm a sabedoria e a confiança necessárias para lidar com todos os seres sencientes. Essa é a prática dos bodhisattvas. Com essa sabedoria e confiança, eles abrem o coração para todos e compartilham com eles todas as coisas boas, tomando para si todas as dores. Se não tivermos esse tipo de sabedoria e confiança para lidar com os outros, é melhor não nos arriscarmos. Ainda não somos bodhisattvas, mas podemos tentar. Mesmo que tenhamos limites, podemos ampliar nosso propósito aos poucos.

Doando Nossa Felicidade a Todos os Seres Sencientes

(19) A prática de um bodhisattva é: mesmo se for docemente elogiado, cumprimentado por muitos seres errantes, ou se tiver obtido [riquezas] comparáveis à fortuna de Vaishravana (O Guardião da Riqueza), nunca ser dissimulado, reconhecendo que a prosperidade mundana não tem essência.

Pode ser muito perigoso quando temos fama e dinheiro e tudo que poderíamos desejar. Na verdade, esse é o maior perigo, porque nos faz sentir orgulhosos e arrogantes. Alguém pode estudar tibetano e achar que sabe muito bem o idioma, que é melhor do que outros budistas que não falam tibetano. Pode ter um PhD em literatura e, ao ouvir os ensinamentos de grandes mestres, automaticamente julgar o inglês do professor. É muito difícil aprender com os outros quando nos sentimos melhores do que eles.

Por exemplo, Sua Santidade o Dalai Lama, que realmente fala inglês muito bem, mas obviamente não é um nativo e não fez muitos estudos de gramática. Portanto, ao ouvirmos seu inglês, talvez reconheçamos alguns erros. Mas pessoas como nós, com a motivação de realmente ouvir os ensinamentos de Sua Santidade para beneficiar a nós e aos outros, não nos importamos nem um pouco. Jamais julgaríamos seu inglês.

Acho que a maioria dos seres humanos quer se exibir. Para mim, quando compro algo, percebo que a maior parte do prazer parece estar na espera pela caixa que pedi. Assim que a abro, o prazer acaba! Mas então, vem o próximo prazer, quando estou numa festa com meus amigos e quero exibir minha nova aquisição. Eu sou assim! Bem, talvez não seja só eu que tenho esse problema, talvez todos vocês também o tenham. Com esse versículo, Togme Zangpo diz que quaisquer que sejam as riquezas que tenhamos neste mundo - mesmo que possuamos a riqueza não apenas dos humanos, mas de todos os deuses - devemos sempre permanecer humildes. 

Esse é realmente um excelente conselho. Em Dharamshala, ouvi tibetanos idosos dizerem a seus filhos e netos que eles precisam ter muito cuidado em não se exibirem. Como refugiados, os tibetanos recebem muitas doações de várias organizações internacionais e até fundos especiais do governo. Ouvi esses idosos dizerem que devemos ser muito humildes porque, se nos exibirmos, o povo indiano local não gostará. As condições de vida da população local não são boas, mas a maioria não recebe nenhuma assistência especial. Assim, se chegarmos na comunidade deles construindo hotéis e lojas sofisticados, isso pode criar problemas. A ostentação gera inimigos. Depois, gera mais concorrência. Esses tibetanos idosos estão realmente dando bons conselhos para as gerações mais jovens. 

Não estou dizendo que não devemos ter riquezas. Certamente, é bom tê-las se as usarmos para beneficiar outras pessoas e nossa família. Mas se nos sentirmos ansiosos sempre que gastarmos nem que seja um pouco e pensarmos: "Essa riqueza é só minha", isso é um sinal de forte apego. 

Isso me faz pensar no Sétimo Dalai Lama. Ele era o rei do Tibete e vivia no impressionante Palácio de Potala, mas também era um grande praticante, que disse: "Embora eu seja um rei e um monge, há apenas duas coisas que eu quero: meu manto amarelo e minha tigela de mendicância. Essas são as duas únicas coisas que possuo.  Todas as outras coisas de Potala são propriedade do povo tibetano". É maravilhoso viver assim, sem vaidade. 

Superando a Hostilidade e o Apego

(20) A prática de um bodhisattva é domar seu continuum mental com as forças armadas do amor e da compaixão, porque, se não tivermos subjugado o inimigo - que é a nossa própria hostilidade, mesmo que subjuguemos um inimigo externo, outros surgirão. 

Eu diria que, embora esse versículo mencione as forças armadas do amor e da compaixão, ele também se refere à paciência. Se não tivermos paciência, mesmo que alguém diga algo insignificante sobre nós, vamos querer revidar ou buscar por justiça. Entretanto, um grande benefício de ter paciência é que não teremos muitos inimigos. Quando praticamos a paciência, não há inimigos que possam nos prejudicar. Essa tampouco é uma prática fácil. Contudo, quando tivermos praticado bastante a paciência e o amor pelos outros, perdoá-los será fácil para nós. 

Há alguns anos, havia uma família tibetana com um bebê recém-nascido viajando de carro pelos Estados Unidos. Houve um terrível acidente de carro e a criança morreu, a mãe ficou ferida e o pai ficou inconsciente. Foi uma notícia muito divulgada. O pai fez uma declaração, dizendo que quem causou o acidente não tinha intenção de matar seu filho, que ele o perdoava e que ele não precisava se sentir culpado pelo resto da vida. Foi algo como: "Uau!" Esse é um sinal real de que a pessoa tem uma prática. Eles estavam prontos para perdoar alguém, mesmo por algo tão devastador. 

Certa vez, na Aldeia das Crianças Tibetanas, elas estavam praticando para uma comemoração de aniversário. Havia um grande muro e uma criança atirou uma lança que, por acaso, atravessou o corpo de outra criança que estava fazendo outro treino do outro lado do muro. Eles levaram a criança para o hospital, onde foi submetida a uma cirurgia difícil. Infelizmente, ela perdeu a vida. Souberam que o pai dessa criança era um Khampa muito grande e forte - os Khampas costumam ser guerreiros muito ferozes - e todos ficaram preocupados com a possibilidade de ele enlouquecer. Esse pai perguntou o que havia acontecido e ouviu atentamente. Para a surpresa de todos, com as mãos cruzadas, pediu para ver a criança que havia atirado a lança. Ele abraçou o menino e disse que ele não precisava se preocupar porque não havia tido a intenção de machucar o seu filho: "Perdi meu filho, mas agora você pode ser meu filho? Você tem que continuar estudando e nunca esquecer quem você é e a sua tradição." Isso requer prática. 

Esses pais não têm inimigos. Eles não têm sentimentos negativos em relação à pessoa que causou suas perdas. Se você derrotar o inimigo interno, não haverá inimigo externo. 

Renunciando a Objetos de Desejo 

(21) A prática de um bodhisattva é abandonar qualquer objeto que faça nosso apego aumentar, pois os objetos do desejo são como água salgada: quanto mais [os] aproveitamos, [mais] nossa sede aumenta.

Esse é um versículo muito importante. O Buda fez vários votos para os monges e monjas, incluindo os votos de celibato, para que renunciassem ao que mais lhes causava apego. O Buda deixou o palácio, sua esposa e seu filho recém-nascido para trás porque sentiu que partindo poderia fazer muito mais por eles. Eu estava conversando com alguns de meus amigos na Califórnia sobre a história da vida do Buda. Um deles parecia muito infeliz e me interrompeu. Ele disse: "Se o Buda ainda estivesse vivo, eu o processaria! Como ele ousa deixar seu bebê pequeno e sua esposa?" 

É claro que essa é uma maneira de pensar. De um certo ponto de vista, poderíamos dizer que o Buda estava sendo bastante egoísta ao abandonar a sua família. Não obstante, o Buda não estava pensando em seu próprio bem. Ele realmente queria encontrar uma saída para o sofrimento de todos os seres, inclusive de sua esposa e filho. Com certeza, não partir teria sido muito mais confortável para ele. Afinal, ele vivia no palácio real, com todas as necessidades atendidas. Em vez disso, ele decidiu sair e procurar uma maneira de parar o envelhecimento, a doença e a morte. Como sabemos, ele foi bem-sucedido em sua missão.

É muito difícil apontar para o que desperta mais apego em nós. Para a maioria das pessoas, acho que é o corpo. É óbvio que outras coisas são mais temporárias. Sabemos disso. Compramos coisas e nos livramos delas. Embora tenhamos apego a elas, não é tão difícil soltá-las. Contudo, enquanto estivermos vivos, este corpo estará sempre conosco. Quando a consciência deixa o corpo, sentimos como se estivéssemos perdendo o mundo inteiro. 

Para muitos de nós, será muito difícil quando morrermos. Nem todo mundo pode ser um Milarepa e morrer com total felicidade e alegria. Todavia, com a orientação e a inspiração de Sua Santidade o Dalai Lama e de outros grandes mestres, podemos treinar nossa mente para enfrentar a morte. Antes de enfrentar a morte, é claro, temos que treinar para diminuir o apego. Nosso apego é ilimitado! O Buda era muito inteligente e, em muitos sutras, ele fala sobre a vacuidade do Buda. A vacuidade de tudo e de todos. Portanto, não há nada a que se apegar. Namorados e namoradas, nada a que se apegar. E o mesmo acontece com os professores. Há pessoas tão apegadas a seus professores que, quando o professor fala com outro aluno, elas ficam com ciúmes!

Vou contar uma história interessante. Havia um grande rinpoche, que não está mais vivo. Ele foi convidado a ir a Taiwan por um empresário milionário, que chamaremos de Empresário A. O Empresário A tinha um amigo milionário, o Empresário B, que também era aluno desse rinpoche. O rinpoche estava hospedado na casa do Empresário A, e o Empresário B queria ter uma audiência com o Rinpoche, mas o Empresário A disse: "Você não pode entrar em minha casa, mas pode esperar do lado de fora”. O Empresário B foi muito respeitoso, mas ainda assim quis vir e se despedir antes que o Rinpoche deixasse Taiwan. Ele esperou perto do portão, segurando uma khata. O Rinpoche começou a sair e se despediu de todos. De repente, notou o empresário B esperando no portão. Ele disse que iria até lá para dar uma bênção em sua cabeça, mas o empresário A correu entre eles, segurou a mão do rinpoche e disse: "Você não pode dar uma bênção a ele porque fui eu quem o convidou e pagou por tudo!" Isso mostra o poder do apego e o que ele pode nos levar a fazer,  até mesmo com nossos professores espirituais.

Todos nós temos isso dentro de nós. É claro que o empresário A pode ter um pouco mais, mas nós também temos um pouco disso dentro de nós. Portanto, precisamos nos lembrar de que um dia teremos de deixar nosso corpo. Não há nada a que nos apegarmos. Quando bebemos água salgada, queremos beber cada vez mais. É assim que muitos de nós vivemos nossas vidas, apenas querendo mais e mais e mais. Ainda assim, no final de nossa vida, teremos que deixar para trás tudo de que desfrutamos. E não apenas isso, como também nossa sede constante por mais terá sido uma completa perda de tempo. Nada pode nos dar verdadeira satisfação. Shantideva dá o exemplo de quando nos coçamos. Quando surge uma coceira, coçamos a área afetada e nos sentimos aliviados. Ficamos felizes. Mas Shantideva disse: "Não chamo isso de felicidade". Você gosta de sentir coceira? Claro que não, é por isso que nos coçamos. Portanto, não devemos confundir coçar com felicidade!

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