O Conceito Budista de Realidade

No budismo, a questão sobre o que é a realidade é central à maneira como abordamos a vida. Existe uma grande diferença entre o mundo das aparências, que nossas mentes criam, e o mundo da realidade, que as leis de causa e efeito originam. Quando confundimos o primeiro com o último, e acreditamos que a forma como as coisas nos parecem corresponde à realidade, criamos problemas e sofrimento para nós e para os outros. Mas ninguém quer ser infeliz e sofrer; todo mundo quer ser feliz. Esse é o objetivo de todos os seres vivos e, nisso, somos todos iguais – humanos e animais. Toda os seres vivos buscam o bem-estar e a felicidade; e todas as religiões, tanto as que afirmam a existência de um Deus criador quanto as que, como o budismo e o jainismo, não afirmam, e todos os sistemas laicos, compartilham esse objetivo e, portanto, proveem diversos métodos para atingirmos esse objetivo comum.

A Ênfase Budista na Análise Lógica

A abordagem budista para atingirmos esse objetivo comum, especialmente nas tradições Indo-Tibetanas, concentra-se em analisar como as coisas aparecem para nós e, usando a lógica e a razão, desconstruir as falsas aparências que nossas mentes projetam. Então, com base em ver e aceitar a realidade, a ênfase vai para o emprego de métodos racionais e realistas para atingirmos a meta de felicidade e bem-estar.

Na era atual, chamada de “pós-verdade”, quando abundam teorias da conspiração e a desinformação, esse tipo de abordagem é crucial, independentemente de nossa religião ou sistema de crenças. Isso é essencial, mesmo que você não siga nenhuma religião. Assim, no budismo, a questão da existência de Deus não surge como uma preocupação central; a preocupação central é trazer a libertação do sofrimento incontrolavelmente recorrente a todos os seres. Visto que tanto o mundo das falsas aparências quanto o mundo da realidade surgem na dependência de causa e efeito, ambos são afetados causalmente pelas atitudes e comportamentos daqueles que os vivenciam. A superação do sofrimento causado por acreditarmos no mundo das aparências e a obtenção da felicidade causada por acreditarmos no mundo da realidade só podem surgir na dependência de nossos próprios esforços causais. Esta é a crença budista central.

Em termos de realidade, todos vivemos no que poderíamos dizer que é a “realidade verdadeira”, verificável pelo método científico, com o qual o budismo concorda. Afinal, o Buda nos disse para não aceitar o que ele ensinou apenas por fé, mas examinar como examinamos o ouro ao comprá-lo. Portanto, no budismo, exame e análise são os métodos supremos para descobrir e verificar a realidade. Os problemas surgem quando as pessoas criam uma realidade alternativa, falsa, e a confundem com o que é realmente verdade. Podemos ver isso acontecendo na esfera política, mas o budismo vê esse fenômeno em um nível mais amplo e universal.

A Falsa Realidade de Que Somos Especiais

Uma falsa realidade que muitas pessoas criam é a de que são de alguma forma especiais. Isso nos leva a ter uma atitude egocêntrica com a qual pensamos que tudo o que acontece conosco, especialmente as coisas ruins, acontece apenas conosco. Sentimos, por exemplo, que somos os únicos que adoecem, perdem o emprego, perdem um ente querido ou enfrentam a morte. Como o Buda ajudou alguém assim a ver a realidade? Vejamos um exemplo que pode nos ajudar a entender a abordagem budista.

Certa vez, uma mãe levou seu bebê morto ao Buda e pediu que ele o trouxesse de volta à vida. O Buda concordou, mas pediu que ela primeiro lhe trouxesse um grão de arroz de uma casa onde a morte nunca houvesse visitado. A mulher percorreu toda a aldeia buscando essa casa, mas logo descobriu que em todas as famílias já havia morrido alguém, fosse jovem ou velho. Percebendo que não estava sozinha ao perder um ente querido, ela finalmente entendeu e aceitou a realidade de que a morte chega para todos. Assim, ela conseguiu se desapegar e deixar seu filho ser cremado.

Quando as pessoas estão enfrentando uma situação difícil - seja um vício, um câncer, ter um filho com síndrome de Down e assim por diante - elas muitas vezes se sentem sozinhas. Acham que são as únicas com esse problema. Acreditar nessa falsa realidade faz com que nos isolemos emocionalmente dos outros e tenhamos muita turbulência mental. A verdadeira realidade é que existem muitos outros seres enfrentando uma situação semelhante. E uma maneira de perceber esta realidade é participando de grupos de apoio com outras pessoas que compartilham o mesmo tipo de situação. Foi cientificamente demonstrando que a participação nesses grupos é extremamente benéfica para nos ajudar a lidar com essas situações. Este é claramente o caso, não importa qual seja a nossa dificuldade.

Nós não precisamos nem participar de um grupo de apoio para perceber que não somos os únicos que temos que lidar com a dificuldade que estamos enfrentando. Perceber essa realidade nos ajuda a ampliar nossa perspectiva e incluir nela os outros, percebendo que, assim como nós queremos acabar com a nossa dificuldade e ser feliz, os outros também. Assim como nós não queremos sofrer, as outras pessoas também não querem. Isso nos ajuda a desenvolver compaixão.

Compaixão

Compaixão é o desejo de que todos estejam livres do sofrimento e da infelicidade, incluindo nós mesmos. Quando pensamos estritamente em nós, nossa mente se contrai e, assim, comprimimos nossas energias emocionais. Sentimos essa contração como uma ansiedade, uma angústia ou uma insegurança. Abrir o coração aos outros interrompe essa síndrome. A compaixão, somada à constatação de que não estamos sós, nos acalma. Permite-nos enxergar com mais clareza a realidade da nossa situação e as medidas realistas que podemos tomar para diminuir os problemas envolvidos. A compaixão nos dá a autoconfiança que precisamos para lidar com os desafios.

Afinal, como seres humanos, somos animais sociais. Essa é a realidade. Nosso bem-estar depende de outras pessoas, tanto na infância quanto ao longo de nossas vidas. Cada uma das coisas que usamos ou consumimos vem do trabalho de outras pessoas, sem elas não sobreviveríamos. Além disso, a vida de cada um de nós está interligada com a dos demais. O que afeta pessoas em uma parte do mundo afeta todas as pessoas. Questões globais, como a mudança climática e a falta de atenção ao que Sua Santidade o Dalai Lama chama de “higiene emocional”, afetam a todos neste planeta. Isso é realidade. Portanto, uma abordagem holística para resolver problemas, com base na preocupação compassiva com o bem-estar de todos, é a única maneira realista de conseguir gerar a felicidade e o bem-estar que todos desejam. Esses pontos e essa abordagem não são exclusivamente budistas, mas, como enfatiza Sua Santidade o Dalai Lama, baseiam-se no bom senso e em valores universais.  

Desconstruindo Aparências Falsas

Mas vamos nos voltar agora para a abordagem distintamente budista de desconstruir as aparências enganosas da falsa realidade, que, quando acreditadas, causam problemas e sofrimento a nós e aos outros.

Na verdade, a questão das falsas aparências e das falsas realidades tem muitos níveis e é bastante complexa. O budismo analisa essa questão classificando primeiro os vários tipos de aparências falsas que podemos incorretamente acreditar que correspondem à realidade. O princípio por trás dessa abordagem é que não é possível resolver nenhum problema sem primeiro identificá-lo e compreendê-lo.

De uma maneira geral, algumas realidades falsas se baseiam em aparências distorcidas ou enganosas do que existe, enquanto outras são projeções puramente fantasiosas. Algumas aparências falsas são sensoriais e, portanto, percebidas de forma não-conceitual, enquanto outras são puramente conceituais. Algumas surgem com base na doutrinação de fontes enganadoras de desinformação, enquanto outras surgem automaticamente, como as distorções provenientes da raiva habitual. Vamos ver algumas dessas distorções.

Desconstruindo as Aparências Sensoriais de uma Realidade Falsa

Aparências sensoriais falsas podem surgir a partir de quatro fontes diferentes: aquilo de que dependem, seu objeto, a situação em que ocorrem e a condição imediata da mente que as projeta:

  1. Aquilo de que uma aparência sensorial falsa depende é do equipamento cognitivo por meio do qual ela surge e é percebida. A aparência sensorial falsa pode ser uma distorção do que existe. Por exemplo, por causa do astigmatismo, podemos ver aparências borradas, e por causa da audição defeituosa, podemos ouvir sons indistintos de pessoas falando. Essas aparências sensoriais falsas também podem ser de algo que não existe. Por exemplo, depois de uma amputação, podemos sentir a sensação de um membro fantasma ou alguma sensação em uma prótese.
  2. Entre as falsas aparências que derivam do objeto estão as ilusões de ótica que envolvem padrões de cor e luz que confundem o cérebro, bem como coisas como uma tocha girando rapidamente e parecendo um círculo de luz.
  3. Aparências falsas que decorrem das situações têm a ver com as circunstâncias externas, como neblina ou escuro, ou as circunstâncias do observador, como estar em um trem em movimento vendo os objetos lá fora que parecem estar se movendo para trás.
  4. Aparências falsas devidas à condição imediata da mente podem ser alucinações por causa de febre, drogas ou medo.   

O método budista para provar que essas falsas aparências sensoriais não correspondem à realidade é confiar no fato de que são contraditas pela cognição sensorial válida daqueles que não estão sujeitos a tais causas de engano. Quando colocamos os óculos, não vemos mais borrões. Quando o trem para, não vemos mais objetos se movendo para trás. Além disso, assim como no método científico, a percepção correta da realidade precisa ser corroborada e verificada pela repetida observação de muitas pessoas, não apenas nós e não apenas uma vez.

Vacuidade

O budismo fala muito sobre vacuidade, muitas vezes traduzida como "vazio". Vacuidade refere-se à total ausência de alguma coisa, ou seja, à ausência total de qualquer coisa que corresponda a essas falsas aparências que nossas mentes criam. As coisas existem, mas elas não existem em nenhuma das maneiras falsas que nossas mentes fazem-nas parecer existir.

Por exemplo, uma árvore fora do trem em movimento existe, mas uma árvore que parece estar se movendo para trás não corresponde a nada que seja real. Não existem árvores que se movem para trás; mas isso não significa que árvores não existem. Portanto, a vacuidade não é uma visão do niilismo; ela não nega tudo. Ela não nega nem mesmo o fato de que essas falsas aparências surgem na mente das pessoas e que as pessoas têm a experiência de percebê-las, e respondem com base no que experimentam. A vacuidade apenas refuta o que é impossível - ou seja, uma realidade verdadeira que corresponde às aparências falsas e enganosas que nossas mentes criam.

Desconstruindo as Aparências Conceituais de uma Falsa Realidade 

Para desconstruir e corrigir as aparências conceituais de uma falsa realidade, o budismo emprega uma metodologia semelhante à que usa para desconstruir as aparências sensoriais não conceituais falsas. Se essas aparências corresponderem a algo que é contradito por uma cognição válida por meio da observação ou da lógica, as aparências são de uma falsa realidade. Essas aparências falsas variam de grosseiras a extremamente sutis e precisam ser desconstruídas camada por camada; é como descascar uma cebola. Mas, primeiro, precisamos entender o que é uma cognição conceitual.

O Exemplo de um Amigo

A cognição conceitual é exclusivamente mental e ocorre por meio de uma categoria. Por exemplo, temos a categoria conceitual “amigo”, com a definição de amigo do dicionário ou talvez nossa própria definição. Em termos ocidentais, diríamos que temos uma “ideia” do que é um amigo e, na verdade, uma “ideia fixa”.  Se nos pedissem para pensar em um amigo, poderíamos representar essa categoria com uma imagem mental, um holograma mental, de alguém que se encaixa nessa descrição - o bom amigo ideal. O holograma mental pode não ser a imagem mental de um amigo específico que temos, e pode nem mesmo ser uma imagem clara, mas algo como um sentimento, ou mesmo apenas a representação mental do som da palavra “amigo”.

Vamos ver como a cognição ocorre por meio do conceito que temos de amigo. Quando encontramos alguém que consideramos um amigo e o vemos fazendo ou dizendo algo indesejável, como não fazer o que pedimos, por exemplo, vivenciamos isso com infelicidade e talvez até nos irritamos com ele. Impulsionados por essa raiva, podemos dizer algumas palavras duras a ele. Se analisarmos de onde vem essa reação, ela vem de conhecermos nosso amigo conceitualmente por meio da nossa categoria “amigo” e do (nosso conceito do) que é um bom amigo e o que ele deve fazer. Como a pessoa não se enquadra nessa categoria no momento e, portanto, não atende às nossas expectativas, reagimos com tristeza e aborrecimento. E então, os maus hábitos assumem o controle e impulsivamente dizemos coisas das quais podemos nos arrepender mais tarde.

Para não responder compulsivamente, precisamos perceber que, embora essa pessoa seja um amigo, a nossa imagem mental do amigo ideal - alguém que sempre atende às nossas expectativas, e que, por sinal, se baseia na nossa definição de “amigo” - não corresponde a ninguém que seja real. Com essa percepção em mente, podemos desconstruir a situação em muitos níveis e, assim, evitar ficar com raiva ou até mesmo se desapontar com nosso amigo; ou pelo menos podemos controlar e superar rapidamente nossa raiva, se ela já tiver surgido. Para isso, precisamos analisar as falsas aparências que nossa mente construiu, e descobrir a realidade do que aconteceu.

Primeiro, no nível mais básico, precisamos investigar se nossas informações estão corretas. Será que ele realmente não fez o que pedimos que fizesse, ou será que ele simplesmente não nos contou que fez, ou nós simplesmente não percebemos que ele fez? Para corrigir um mal-entendido ou falsa acusação, precisamos examinar as provas. Esta é a mesma metodologia que se usa em processos judiciais para evitar falsas acusações.

Se, de fato, ele não fez o que lhe pedimos, precisamos analisar suas razões. A aparência conceitual que nossa mente criou foi a de que ele não é um bom amigo, pois em nossa imaginação, um bom amigo parece ser estabelecido por uma característica definidora de “bom amigo” encontrada na pessoa. Aqui, uma das características definidoras de um bom amigo que inventamos é: ser alguém que está sempre ao nosso lado e sempre faz o que pedimos. Mas será que essa é uma característica definidora razoável?

Quando analisamos, percebemos que o comportamento das pessoas surge na dependência de causas e condições. Ele não é regido por uma característica definidora encontrada nelas, que determina seu comportamento, independentemente das circunstâncias. Isso é impossível; caso contrário, todos nós seríamos sempre consistentes em nosso comportamento, independentemente das circunstâncias. Por exemplo, sempre chegaríamos a tempo, mesmo quando ficássemos presos em um engarrafamento devido a um acidente na estrada. As evidências, mesmo considerando apenas a nossa experiência pessoal, contradizem claramente a expectativa de que o comportamento de uma pessoa será sempre o mesmo e não será afetado por causas e condições.

Para chegar à realidade da situação e desconstruir a realidade falsa que nossa mente criou – como a de que nosso amigo não fez o que pedimos porque não gosta de nós e, portanto, não é mais nosso amigo – poderíamos simplesmente perguntar à pessoa o motivo pelo qual não fez o que pedimos. Uma grande variedade de circunstâncias pode ter feito com que ele não atendesse o nosso desejo. Ele pode explicar que estava muito ocupado ou muito estressado ou que surgiram outras coisas mais urgentes ou estava chateado com alguma coisa ou doente ou simplesmente esqueceu ou, por preguiça, ficou adiando. Pode até ser que ele tenha achado, com ou sem razão, que o que pedimos não era razoável e, por estar chateado conosco, simplesmente ignorou nosso pedido. Analisando com mais profundidade, descobrimos que cada uma dessas razões surgiu de muitas causas e circunstâncias. Por exemplo, ele estava muito ocupado e estressado porque apareceu um monte de coisas para fazer com urgência em seu trabalho e ele tinha prazos a cumprir.

A realidade do que aconteceu, portanto, o fato de ele não terem feito o que pedimos, é o que o budismo chama de "um evento surgido de forma dependente". Ele surgiu na dependência de muitas causas e condições, não foi por causa de alguma característica definidora encontrada na pessoa que, por seu próprio poder, a tornou um "mau amigo". Além disso, não foi porque ele era inerentemente um “mau amigo”, autoestabelecido como um “mau amigo” que não se encaixou em nosso conceito e ideia de como um bom amigo deve ser. Foi porque o nosso conceito de um bom amigo estava baseado em uma característica definidora irracional e, por isso, ninguém se encaixa nessa categoria. A imagem mental que temos de um bom amigo não corresponde a ninguém que seja real.

Essa ausência de alguém que corresponda a essa falsa aparência é a vacuidade da aparência. Quando focamos nessa vacuidade - nesse fato de não haver tal coisa – a falsa aparência não surge mais. Quando vemos nosso amigo novamente, apesar da vacuidade não aparecer mais, nós precisamos estar conscientes dela e olhar para ele com a compreensão da natureza dependente de seu comportamento. Dessa forma, não ficamos mais com raiva e lidamos com a situação com calma e de uma maneira racional e compassiva.

Se nosso amigo não puder fazer o que pedimos por causa de alguma situação urgente ou estressante em seu trabalho ou vida pessoal, respondemos com empatia e compaixão, com o desejo de que ele se livre dessa dificuldade. Se ele estava apenas sob o controle da preguiça, também sentimos compaixão, desejando que ele supere a preguiça, e oferecemos conselhos para que ele consiga fazer isso. Se ele achou nosso pedido absurdo, examinamos o motivo. Se o nosso pedido era realmente absurdo ou pareceu ser uma exigência, pedimos desculpas e começamos trabalhar para parar de fazer pedidos ou exigências descabidas. Se ele o considerou descabido por causa de sua própria definição do que é razoável esperar de um amigo, respeitamos seu ponto de vista e conversamos com ele para talvez encontrar um definição comum aos dois. Todos esses métodos também são usados por mediadores para resolução de conflitos em geral.

O Exemplo de Ser Alguém com Câncer

A análise acima das aparências conceituais falsas nos ajuda a entender o exemplo de imaginar e acreditar que somos os únicos passando por uma dificuldade na vida, tendo que enfrentar, por exemplo, um câncer. Neste exemplo, temos o conceito de alguém com câncer e, no começo, não queremos nem sequer reconhecer que nos encaixamos nesta categoria. Estamos em negação. Mas quando temos um câncer, essa realidade de ser alguém que não se encaixa na categoria de alguém com câncer é claramente falsa.

Mas suponha que finalmente reconheçamos que nos encaixamos nessa categoria. Se criarmos a falsa realidade de que somos o único exemplo de alguém nessa categoria, mesmo sabendo intelectualmente que essa realidade é falsa, ainda assim podemos aceitá-la emocionalmente e, assim, sentir-nos isolados e ficarmos chafurdando em autopiedade e depressão. Mas quando expandimos nossa consciência e incluímos todos os demais seres que se encaixam nessa categoria, seja através de um grupo de apoio ou apenas através de nossa própria análise, conseguimos descartar essa falsa realidade que criamos. Se continuarmos a desenvolver compaixão por todos os outros pacientes com câncer, também conseguiremos dissipar a autopiedade e depressão.

Criamos outra realidade falsa quando adicionamos à categoria “alguém com câncer” a característica definidora “alguém que está inevitavelmente condenado a morrer da doença”. Acreditar que nós e todas as outras pessoas com câncer nos enquadramos nesta categoria adiciona um elemento emocional de medo à nossa experiência da doença. Podemos negar essa característica definidora inadequada examinando as estatísticas relativas aos sobreviventes de câncer. A evidência verificável contradiz nossa crença equivocada.  

Dois Aspectos das Aparências e Dois Aspectos da Verdadeira Realidade 

O budismo vai ainda mais fundo em sua análise da realidade falsa e da realidade verdadeira. No que diz respeito a isso, o budismo afirma dois aspectos para cada uma dessas realidades. Temos a aparência do que uma coisa é e a realidade verdadeira do que ela é. E temos o aparecimento de como a existência de uma coisa é estabelecida - tanto como o que é quanto como um objeto validamente conhecível em geral - e a realidade verdadeira de como isso é estabelecido. Estes dois aspectos de cada uma das duas realidades são inseparáveis; eles sempre aparecem juntos.

Além disso, ambos os aspectos do mundo das aparências podem estar corretos e, nesse caso, eles correspondem aos dois aspectos inseparáveis da realidade verdadeira; ou podem estar incorretos, caso em que eles não correspondem. Por exemplo, se tivermos uma doença, pode estar correto que seja câncer e incorreto que seja simplesmente uma infecção. A forma como sua existência, como um câncer ou uma infecção, foi estabelecida, está correta se tiver sido estabelecida e corroborada como tendo surgido na dependência de causas e condições e na dependência da convenção de que tais e tais sintomas são características definidoras de câncer ou infecção. Uma forma incorreta (de estabelecer sua existência) seria através de algo localizável na doença em si, que por seu próprio poder a tornasse um câncer ou uma infecção, independentemente de qualquer outro fator. Isso geralmente acontece com hipocondríacos que acreditam estar doentes e ter câncer simplesmente porque pensam que estão.

Desconstruindo a Falsa Aparência de um Eu

Mas vamos dar uma olhada em um exemplo mais profundo, mais caracteristicamente budista, ou seja, o exemplo do "eu". De acordo com o budismo, existe um "eu". Quando estou doente, parece que sou “eu” quem está doente, e isso é uma aparência correta de quem está doente. Não é “você” que está doente, e também não é que ninguém esteja doente. Pensar de uma dessas duas maneiras seria acreditar em uma falsa realidade. Mas o que é esse eu, essa pessoa chamada “eu”, e como a sua existência é estabelecida?

De acordo com o budismo, o “eu” é um fenômeno individual em constante mudança, que não é uma forma de fenômeno físico nem uma forma de estar ciente de algo. Nesse sentido, é como a idade. Às vezes é chamado de "fenômeno de imputação". O que isso significa é que nem o “eu” nem a idade podem existir por si mesmos, são um tipo de fenômeno que está sempre ligado a alguma coisa e, portanto, dependentes disso. A idade está sempre ligada a um objeto; precisa ser a idade de algo ou alguém. Da mesma forma, um “eu” está sempre ligado ao contínuo individual de um corpo vivo e de uma mente que funciona com base nesse corpo, e esse corpo e mente estão sempre mudando. Em outras palavras, o “eu” é o indivíduo subjetivamente vivenciado como “eu”, e que existe na dependência dessa continuidade (de corpo e mente) como base.

O budismo afirma ainda que cada “eu” individual segue de vida em vida, sem que tenha um começo ou fim, mudando a base grosseira à qual está ligado em cada vida. Mesmo no período entre vidas, ele está ligado a uma base - ou seja, à consciência extremamente sutil e à energia que sustenta a vida.

O fato de que a consciência extremamente sutil, a energia de suporte vital extremamente sutil e o “eu” não têm começo nem fim é a conclusão lógica ao se analisar causa e efeito. Algo que muda momento a momento não pode surgir do nada, sem causa, e todas as causas das quais surge também devem mudar a cada momento, a fim de originá-lo. Isso significa que todas as causas precisaram ter sido afetadas por condições anteriores para originarem alguma coisa.   Além disso, apenas algo da mesma categoria de fenômeno pode se transformar e depois dar origem a outra coisa da mesma categoria. A raiva não pode se transformar em um broto, apenas uma semente pode. Portanto, é apenas um momento anterior de consciência mais sutil, de energia de suporte vital mais sutil e um eu individual que está ligado a essa consciência e energia, que podem dar origem ao primeiro momento (de consciência, energia e “eu”) em uma próxima vida.

Esses são alguns dos pontos lógicos que surgem na análise budista da criação – não apenas da matéria e da energia, mas também da consciência e do “eu” – por um Deus onipotente ou por um Big Bang. Um começo absoluto, do nada, de qualquer coisa que muda de momento a momento contradiz a lógica. Afirmar que isso é um mistério além de nossa compreensão não é compatível com os princípios budistas.

Quando analisamos com mais profundidade, vemos que o “eu” não é nem idêntico à sua base, nem totalmente dissociado dela. Estamos acreditando em uma falsa realidade quando nos identificamos, por exemplo, com um corpo saudável e jovem quando ele é, na verdade, velho e doente com câncer, ou quando nos recusamos a aceitar que o câncer diagnosticado está acontecendo “comigo”.

Além disso, não sendo uma forma de fenômeno físico, o “eu” não tem aparência própria e, portanto, não pode ser conhecido sem que algum aspecto de sua base também apareça e seja conhecido simultaneamente. Não consigo me ver sem ver alguma parte do meu corpo; não consigo pensar em mim sem ao menos pensar no som da palavra “eu”. Não consigo simplesmente “me conhecer” independentemente de saber algo sobre mim. Quer eu me perceba ou pense em mim, nunca deixo de existir. Mas me perceber ou pensar em mim não me cria.

Como podemos estabelecer que existe algo como um “eu”, uma pessoa que chamo de "eu"? Se dissecarmos o corpo, o cérebro ou a própria consciência, não conseguiremos encontrar o “eu”. Não conseguiremos nem mesmo encontrar uma característica definidora, seja no próprio “eu” ou em qualquer parte de sua base, que por si só seja a característica definidora de um “eu” independentemente de ter sido designada como a característica definidora de um eu.

Rotulagem Mental

Vamos analisar isso melhor. Todos nós temos um conceito de “eu”, que designamos com a palavra "eu". Como categoria, esse conceito surge automaticamente sempre que temos algum pensamento em que há uma representação mental do som da palavra "eu", como quando vemos uma série de fotos de nossa vida e pensamos em cada uma delas como "esse sou eu." Cada um desses sons mentais “eu” é uma representação conceitual da categoria “eu”.

Conforme mencionei, todas as aparências têm dois aspectos: aquilo que parecem ser e a maneira como parecem ter sido estabelecidas como existentes. Lembre-se de que ambos os aspectos são inseparáveis. Quando pensamos em todas essas fotos como “esse sou eu”, pode ou não estar correto que cada pensamento verbal “eu” refere-se a mim e não a meu irmão que parecia muito comigo quando éramos crianças. Mas o quê nesses “eus” está estabelecido como existente?

No nível mais grosseiro, parece que o “eu” que aparece em cada uma dessas fotos sempre foi o mesmo “eu” que esteve lá durante a minha vida, sem nunca ter sido afetado pelo que aconteceu, independentemente de quaisquer partes ou fases da vida, e vai continuar assim para o resto desta vida e, depois, para sempre, independentemente de um corpo ou uma mente. Mas quando analisamos, percebemos que nada disso faz sentido. Podemos ter sido ensinados que existimos assim, mas isso não corresponde à realidade. Não existe esse “eu” estabelecido como existindo dessa maneira. Há uma vacuidade de tal “eu”.

Em um nível mais sutil, um nível que surge automaticamente, quando eu penso “eu” depois de olhar para essas fotos, parece que posso pensar “eu” sem simultaneamente pensar em alguma base para esse “eu”, mesmo que apenas o som mental da palavra "eu". Um “eu” que pode aparecer e ser pensado por si só é impossível. Não existe tal coisa.

Em um nível ainda mais sutil, nossas cognições conceituais, quando olhamos para estas fotos antigas, rotula mentalmente a categoria “eu”, representada pelo som mental “eu”, na base que é cada uma das fotos. Se, de fato, todas essas fotos fossem minhas, o que faria com que rotulá-las mentalmente como fotos de "mim" correspondesse à realidade, o que estaria estabelecendo que todas elas são "eu"? Elas parecem ser “eu”, mas como podemos provar?

Quando analisamos as fotos, não conseguimos encontrar nenhuma característica definidora imutável nelas que, por seu próprio poder, estabeleça ou prove que a pessoa na foto sou “eu”. Cada foto parece diferente. Nós designamos cada uma delas igualmente como "eu", mas não há nenhuma entidade inalterável e localizável que tenha sido fotografada e corresponda a cada um desses sons mentais "eu". Então, quem foi fotografado em cada uma das fotos? Convencionalmente falando, teríamos que responder "eu".

E quanto ao que estabelece que todas são fotos de “mim”, isso é estabelecido ou provado meramente pelo poder de serem mentalmente rotuladas e designadas como “eu” e isso não contradizer o que aqueles que nos conheceram ao longo de nossas vidas podem corroborar. A pessoa “eu” é apenas aquilo a que a categoria e a palavra “eu” se referem, com base em todas essas fotos, mas não há um “eu” localizável em cada uma das fotos que corresponda ao que elas parecem sugerir quando são chamadas de “eu”. A ausência total dessa entidade localizável, com uma característica definidora localizável, sustentando as cognições de um “eu”, mesmo as sensoriais não conceituais, é a visão mais profunda da vacuidade.

Mas o vazio é apenas um aspecto da realidade, pois todos nós existimos e as leis de causa e efeito estão em operação. A existência convencional de tudo que é validamente conhecível, portanto, surge de forma dependente, com base em causas, condições, partes e aquilo a que os conceitos e palavras para eles se referem. Com essa análise da realidade falsa e verdadeira, o budismo não precisa incluir o papel de um Deus criador.

Resumo

Em resumo, a abordagem budista para diferenciar realidade de fantasia é se basear na análise lógica e racional.  O caminho para a felicidade e bem-estar de todos depende de todos verem e aceitarem a realidade e, trabalhando em conjunto, encontrarem e implementarem métodos realistas para resolverem os problemas universais que nos afligem. Obrigado.

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