Existem Pontos Comuns ao Budismo e ao Islamismo?

Abordagem teórica

Existem muitas dificuldades e perigos em explorar os pontos comuns entre dois sistemas religiosos ou filosóficos. Uma das principais dificuldades diz respeito à abordagem teórica adotada na disciplina acadêmica de religiões comparadas. Eu gostaria de mencionar um esquema para classificar diferentes abordagens para essas comparações na teologia cristã, conforme descrito por Kristin Beise Kiblinger em seu artigo, "Posturas Budistas em Relação às Outras: tipos, exemplos, considerações", publicado em Atitudes Budistas para com as Outras Religiões.

Nesse artigo, Kiblinger descreve três abordagens: exclusivismo, inclusivismo e pluralismo.

  • A abordagem exclusivista defende que apenas uma religião tem o verdadeiro caminho para a salvação ou libertação. Embora as outras religiões possam tratar dos mesmos tópicos, suas posições são falsas. Muitos textos budistas têm essa atitude, e não apenas em relação às visões não-budistas, mas também às outras visões budistas.
  • De acordo com a abordagem inclusivista, existem muitos caminhos para a salvação ou libertação, mas um é superior. Ou seja, outras religiões podem compartilhar pontos em comum com a nossa e, embora todas sejam válidas, a nossa é melhor. Alguns seguidores de alguma das tradições tibetanas tendem a ter essa atitude em relação às outras tradições tibetanas - todas elas levam à iluminação, mas a nossa é a melhor.
  • De acordo com o pluralismo, existem muitos caminhos para a salvação ou libertação, e nenhum deles é superior. Essa é a visão não-sectária, que simplesmente apresenta as várias posições das diferentes religiões em relação a tópicos comuns, mas sem classificá-las.

Dentro das abordagens inclusivista e pluralista, há graus de quanto se aceita diferenças reais e quão profundas são essas diferenças.

  • O tipo 1 enfatiza as semelhanças e, embora reconheça diferenças, as minimiza, reformulando-as como sendo similaridades, coisas equivalentes ou questões secundárias sem importância. Vemos as outras religiões fazendo a mesma coisa que nós, apenas de uma maneira diferente - em certo sentido, é como se estivessem seguindo nossa religião sem realmente saber. Por exemplo, a Gelug explicando as práticas dzogchen da Nyingma segundo a teoria do anuttarayoga da Gelug.
  • O tipo 2 respeita as diferenças genuínas e considera o diálogo uma ferramenta valiosa para estimular o crescimento, considerando ou não sua religião como superior.

Para o tipo 1 (eles estão fazendo a mesma coisa, mas de uma maneira diferente), o perigo é ser presunçoso, arrogante e narcisista - pressupor que sabemos melhor do que eles o que a religião deles significa. No que diz respeito variação inclusivista, que acredita que nossa religião é superior, essa visão pode assumir a forma de que a outra religião está na verdade apontando para o nosso objetivo, sem saber. Ou é apenas um estágio inferior do nosso caminho. Com essa atitude, não há nada que possamos aprender com eles, só eles que podem aprender conosco. As subcategorias para isso são:

  • Todas, ou a maioria das religiões, estão caminhando em direção ao mesmo objetivo; e, embora o caminho delas não seja tão bom quanto o nosso, no final, ele naturalmente levará ao mesmo objetivo.
  • Eles precisarão, no final, serem conduzidos para nosso caminho, a fim de alcançarem o mesmo objetivo que alcançamos com o nosso caminho e o qual eles estavam almejando, mas não conseguirão alcançar se seguirem apenas seu próprio caminho. Um exemplo dentro do budismo é a afirmação do anuttarayoga tantra de que o sutra ou os tantras inferiores só podem levá-lo ao décimo nível de bhumi-mente (décimo bhumi), e você precisa dos métodos do anuttaryoga para realmente alcançar a iluminação.

Outras variantes do inclusivismo do tipo 1 (aquele que minimiza as diferenças e diz que são realmente semelhanças) são:

  • Palavras, conceitos e doutrinas são expressões inexatas de experiências meditativas, e todas as religiões estão falando sobre a mesma experiência.
  • Existe uma teoria central comum ou afirmações centrais de todas as religiões, e apenas as circunstâncias culturais e históricas são responsáveis pelas diferenças. Por exemplo, a apresentação usual das várias formas de budismo em diferentes países - Índia, Sudeste Asiático, China, Japão, Tibete, etc.

Além disso, quando exploramos uma possível interseção entre o budismo e o islã, ela toca no tópico da conversão.

  • Na visão exclusivista, se apenas a nossa religião é verdadeira, para que você seja salvo, você precisa abandonar sua religião e adotar a nossa.
  • Na visão inclusivista, não há problema em você seguir sua religião, porque na verdade é uma forma inferior da nossa religião, e no final você naturalmente perceberá nossa visão (por exemplo, Chittamatras que praticam o anuttarayoga tantra se tornarão naturalmente Prasangikas quando atingirem o estágio de isolamento da mente na prática do estágio de completude), ou teremos que convertê-los no final.
  • Na visão pluralista, cada religião leva a seu próprio objetivo final, e todas são louváveis – e há duas variantes: os objetivos são equivalentes ou não - mas nenhum é superior. Portanto, não há necessidade de conversão. Seria como se você seguisse as práticas budistas e chegasse ao céu budista, não ao paraíso muçulmano; e se você fizesse práticas muçulmanas, chegaria ao paraíso muçulmano, não a um paraíso budista.

Quanto ao inclusivismo e ao pluralismo do tipo 2 (o tipo que respeita as diferenças entre as religiões, e aceita que todas são válidas, independente de se considerar superior ou não), a delicada questão é como compreender a outra religião e compará-la à sua própria.

  • Você consegue entender outra religião seguindo exclusivamente os termos dela ou precisa colocar o que ela afirma em seus próprios termos e sistema de crenças para compreendê-la?
  • Se for colocar o que ela afirma em seus próprios termos e crença, a fim de compreendê-la, você consegue fazer isso sem que essa abordagem se transforme, ou degenere, no tipo 1, onde você afirma que essas crenças são apenas variantes da sua própria?

Por outro lado, se você conseguir encontrar questões ou temas comuns às duas religiões, ao budismo e ao islamismo, por exemplo, mesmo que precise expressar esses temas e a abordagem da outra religião na estrutura conceitual de seu próprio sistema, você pode entender e respeitar as diferenças. Você pode respeitar as diferenças com uma atitude tolerante e sem julgamento, sem afirmar que sua própria religião é a melhor e sem ter uma atitude condescendente em relação à outra religião. É com base nesse entendimento e respeito que você consegue estabelecer uma harmonia religiosa.

Esta é a abordagem que Sua Santidade o Dalai Lama adota. Quando perguntado: "Qual é a melhor religião?" Sua Santidade responde: “O conjunto de crenças e práticas que ajudam você a se tornar uma pessoa mais bondosa e compassiva”.

Perspectiva Histórica

A Maneira como o Budismo Historicamente Aborda o Islã

Agora, vamos olhar especificamente para [a relação entre] o budismo e o Islã. Para falar sobre o Islã, me baseei em minha própria pesquisa sobre o assunto e no livro escrito por Reza Shah Kazemi chamado Common Ground Between Islam and Buddhism (O Território Comum entre o Budismo e o Islã), com prefácio de Sua Santidade o Dalai Lama e o príncipe Ghazi bin Muhammad, da Jordânia. E extraí citações relevantes do Alcorão, do trabalho do Dr. Kazemi.

Historicamente, tanto os muçulmanos quanto os budistas (e aqui vamos nos limitar às formas indo-tibetanas de budismo) adotaram uma abordagem inclusivista. Os muçulmanos, por exemplo, incluíam os budistas como pessoas do livro, assim como os judeus, cristãos e zoroastrianos. Como isso aconteceu?

Durante o Califado Omíada (661 - 750), os árabes espalharam seu domínio e sua religião, o Islã, por todo o Oriente Médio. Assim, no início do século VIII, o general omíada Muhammad bin Qasim conquistou a região predominantemente budista de Sind, no atual sul do Paquistão. Os budistas e hindus de Brahmanabad, uma de suas principais cidades, perguntaram se podiam reconstruir seus templos e manter a liberdade religiosa. O general Qasim consultou o governador, Hajjaj bin Yusuf, que por sua vez consultou os clérigos muçulmanos. Os clérigos religiosos, no que ficou conhecido como “assentamento de Brahmanabad”, declararam os budistas (também hindus) como pessoas do livro.

O governador omíada Hajjaj decretou:

O pedido dos chefes de Brahmanabad sobre a construção de templos budistas e outros, e a tolerância em assuntos religiosos, é justo e razoável. Não vejo que outros direitos possamos ter sobre eles além do imposto habitual. Eles nos prestaram homenagem e comprometeram-se a pagar o imposto tributário fixo (Ar. Jizya) ao califa. Como se tornaram suditos protegidos (Ar. Dhimmi), não temos o direito de interferir em suas vidas e propriedades. Permita que eles sigam sua própria religião. Ninguém deve impedi-los.

Posteriormente, os budistas foram autorizados a reconstruir seus templos e mosteiros e receberam o status de súditos protegidos não muçulmanos, desde que pagassem o imposto tributário. Os califas omíadas e mais tarde os califas abássidas que governavam em Bagdá (750 - 1258 dC) e os governantes muçulmanos posteriores na Índia mantinham em princípio essa mesma política, embora, é claro, nem sempre ela tenha sido seguida por todos os governantes ou generais. Porém, a implicação dessa decisão é que o budismo não era análogo às religiões politeístas pagãs, cujos seguidores não receberam tais privilégios.

Agora, você poderia argumentar que conceder aos budistas o reconhecimento legal foi algo mais político do que teológico, decorrente mais do pragmatismo do que de análises filosóficas sutis. Provavelmente foi. Depois de permitir a reconstrução dos templos budistas e hindus, os governadores árabes tributavam os peregrinos que iam adorá-los. No entanto, os estudiosos do Islã não consideram essa política "pragmática" uma violação ou comprometimento de qualquer princípio teológico fundamental do Islã. A implicação de conceder aos budistas reconhecimento legal, proteção política e tolerância religiosa é que o caminho espiritual e o código moral da fé budista derivam de uma autoridade superior, a saber, uma autêntica revelação de Deus.

Qual foi a base para declararem os budistas como Pessoas do Livro? Foi apenas com base em costumes comuns de adoração? Por exemplo, no início do século VIII, o historiador iraniano al-Kermani escreveu um relato detalhado do mosteiro Nava Vihara em Balkh, no Afeganistão, e descreveu alguns dos costumes budistas em analogias com o Islã. Ele descreveu o templo principal como tendo um cubo de pedra no centro, envolto em tecido, e os devotos o circundavam e se prostravam, como se faz com a Kaaba em Meca. No entanto, ele não discutiu nenhuma das crenças budistas.

Então, existe uma base doutrinária para eles declararem os budistas pessoas do livro? Essa é uma questão importante, pois, se os budistas são reconhecidos como Pessoas do Livro, eles devem ser implicitamente incluídos no espectro das comunidades "salvas", conforme expresso no versículo a seguir do Alcorão (2:62):

Aqueles que realmente creem e aqueles que são judeus, cristãos e sabeus - que creem em Deus e nos Últimos Dias e realizam atos virtuosos -, para esses, a recompensa é com o Senhor deles. Medo ou sofrimento não caírão sobre eles.

Isso indica um ponto em comum entre o budismo e o islamismo de acordo com o Alcorão – a crença em Deus e no último dia do julgamento e a realização de atos virtuosos e construtivos. Mesmo que as opiniões não sejam as mesmas, o Islã as considera semelhantes o suficiente para serem compatíveis. Como diz o Alcorão (2: 137):

E se eles acreditam em algo semelhante ao que você acredita, então eles são guiados corretamente.

Essa abordagem, portanto, é claramente inclusivista. Os budistas também alcançarão a salvação que é ensinada no Islã, porque seguem visões semelhantes.

A questão é: quais são os limites do que pode ser incluído nos conceitos de Deus, uma religião revelada por Deus, o último dia do julgamento, a unicidade da verdade e assim por diante? Tanto no lado muçulmano quanto no budista, alguns clérigos deixaram as definições bastante rigorosas. Mas outros as deixaram bastante flexíveis.

A Maneira como o Budismo Historicamente Aborda o Islã

Antes de explorarmos as fronteiras desses conceitos, vejamos a abordagem histórica dos budistas em relação ao Islã. A única tradição textual budista que menciona quaisquer costumes ou crenças islâmicas é a literatura sânscrita Kalachakra Tantra, que surgiu entre o final do século X e início do século XI, provavelmente na região sudeste do Afeganistão e norte do Paquistão. Naquela época, os budistas dessa região enfrentavam a ameaça de uma possível invasão pelos governantes de Multan, no centro do Paquistão. Os governantes de Multan seguiam uma forma oriental de Ismaili Shia, uma subseção do Islã. Multan, em aliança com os califas fatímidas do Egito, era rival dos abássidas árabes no controle do mundo muçulmano. E os budistas e hindus no sudeste do Afeganistão e norte do Paquistão foram pegos no meio dessa rivalidade.

[Veja: Profecias do Kalachakra Sobre uma Invasão Futura]

Os textos do Kalachakra mencionam algumas das crenças e costumes dos potenciais invasores. Algumas crenças descritas parecem ser específicas ao pensamento ismaili da época, como a lista de profetas; enquanto outros o contradizem, ao adicionar, por exemplo, Mani, o fundador do maniqueísmo, a essa lista. A maioria dessas crenças, no entanto, são crenças fundamentais do Islã como um todo. Algumas dizem respeito ao comportamento ético e ecoam as afirmações budistas sobre disciplina ética, embora a literatura não as identifique como sendo semelhantes. Esses pontos, no entanto, podem ser considerados pontos comuns entre as duas religiões. Por exemplo, em A Essência do Tantra Adicional do Glorioso Kalachakra Tantra (dPal dus-kyi 'khor-lo'i rgyud phyi-ma rgyud-kyi snying-po, Skt. Shri-Kalachakra-tantrottaratantra-hrdaya), diz:

Eles têm uma única casta, não roubam e falam a verdade. Eles se mantêm limpos, evitam as esposas dos outros, claramente seguem práticas ascéticas e permanecem fiéis às próprias esposas.

Em outros lugares, encontramos uma abordagem mais inclusivista quando os textos do Kalachakra começam a descrever as crenças dos invasores em termos budistas. Por exemplo, o Tantra Régio Resumido do Kalachakra (bsDus-pa'i rgyud-kyi rgyal-po dus-kyi 'khor-lo, Skt. Laghu-Kalachakra-tantra-raja), II.164cd, declara:

Criado pelo Criador é tudo o que surge, o que se move e o que não se move. Por agradarem-no, o que é causa da libertação para os Tayis, existe o céu. Este é o verdadeiro ensinamento de Rahman para os homens.

"Tayi", uma denominação que os textos do Kalachakra aplicam aos invasores, é a palavra árabe (persa: Tazi) usada para denominar os invasores árabes do Irã. "Rahman", o Compassivo, é um epíteto de Alá.

Pundarika elabora esse versículo em Luz Imaculada: Um Comentário Explicando "O Tantra Régio Resumido do Kalachakra" (bsDus-pa'i rgyud-kyi rgyal- po dus-kyi 'khor-lo'i' grel-bshad dri-ma med-pa'i 'od, Skt. Vimalaprabha-nama-laghu-Kalachakra-tantra-raja-tika),

Agora, quanto ao que afirmam os invasores Tayi, o criador Rahman origina todos os fenômenos funcionais, tanto os móveis quanto os imóveis. A causa da libertação para os Tayis, os invasores vestidos de branco, é agradar a Rahman, e isso, [para eles,] definitivamente leva a um renascimento mais elevado (no Paraíso). De não o agradar, vem (um renascimento no) o inferno. Estes são os ensinamentos de Rahman, o que os Tayis afirmam.

Pundarika detalha mais:

O que afirmam os invasores Tayis é que os humanos que morrem experimentam felicidade ou sofrimento em um renascimento, com seus corpos humanos, mais elevado (no Paraíso) ou no Inferno, conforme a decisão de Rahman.

O ponto comum, aqui, entre o budismo e a compreensão budista do Islã é o renascimento no céu ou no inferno, com base no comportamento ético de alguém. É interessante, com relação a essas passagens, que os textos do Kalachakra não comentem a afirmação de um criador, nem o papel do criador em determinar a vida após a morte com base no fato de uma pessoa o agradar ou não. Nesse último ponto, inclusive, sobre Alá julgar alguém com base em agradá-lo ou não, a apresentação budista não é justa. De acordo com um hadith (relatos de Maomé), Alá disse:

Ó meus servos, são apenas as vossas ações que eu reconheço e depois recompenso.

De qualquer forma, os textos do Kalachakra focam apenas na natureza da vida após a morte e no efeito causado pelas ações de uma pessoa nesta vida em geral. Ao discutir a questão dessa maneira, os textos revelam uma abordagem inclusivista, por identificar a afirmação dos invasores a respeito de um renascimento eterno como uma visão incorreta, que é explicada mais corretamente no budismo. O Tantra Régio Resumido do Kalachakra, II.174, declara:

Na vida (eterna) após a morte, a pessoa experimenta (os resultados das) ações cármicas que cometeu neste mundo. Se assim fosse, o carma dos humanos não se reduziria de um nascimento para outro. Não haveria saída do samsara nem libertação, mesmo em termos da existência incomensurável. Esse pensamento, de fato, aparece entre os Tayis, embora seja descartado por outros grupos.

Se olharmos para este ponto referente à condenação eterna em um contexto budista mais amplo, o ponto comum entre as visões budista e muçulmana se tornará mais amplo. No entanto, isso ocorre porque você pode ver a posição muçulmana sobre o renascimento e a libertação como um passo que leva à posição budista. Nos termos budistas, você poderia dizer que o Islã fala apenas da libertação do sofrimento do sofrimento ou dos piores estados do renascimento. Essa libertação é um renascimento mais elevado em um paraíso. Afinal, esse é o escopo inicial de motivação nos estágios graduais do caminho do lam-rim. O budismo vai além, fala da libertação do sofrimento onipresente do renascimento, que é o objetivo do escopo intermediário de motivação. Assim, seguir o Islã se torna um passo inicial para seguir o budismo.

Mas, você pode olhar para a afirmação muçulmana sobre o sofrimento eterno de uma maneira diferente, para que não seja tão diferente da visão budista. Nos textos do Kalachakra, a objeção ao conceito muçulmano de inferno é que, uma vez que você vá para fogo do inferno, é eterno, e você não pode se libertar disso. Mas se olharmos para as descrições budistas do samsara, queremos sair dele, como saímos de um prédio em chamas. Também o renascimento samsárico será eterno, a menos que alguém faça algo a respeito disso, ou seja, recorra ao Dharma.

O mestre Nyingma do século XIX, Mipam (Mi-pham 'Jam-dbyangs rnam-rgyal rgya-mtsho), em seu trabalho Iluminação do Sol Vajra, Esclarecendo o Significado das Palavras do “Glorioso Kalachakra Tantra”: Comentário ao Capítulo (Cinco), Consciência Profunda (dPal dus-kyi 'khor-lo'i rgyud-kyi tshig don rab-tu rdo-red-rje-rje nyi-ma'i snang-ba, Ye-shes le'u'i' grel-chen), seguiu uma abordagem inclusivista ainda mais forte do que a literatura original do Kalachakra. Sugerindo que, com meios hábeis, o Buda ensinou métodos para levar os muçulmanos à iluminação. Mipam escreveu:

Os invasores não-índicos mantêm dois (pontos filosóficos). Eles sustentam que os fenômenos externos têm a natureza de um conjunto de átomos, e sustentam também a existência de um eu (self) nas pessoas, que nasce, ou que tem um aspecto que nasce, temporariamente no samsara. O objetivo é alcançar a felicidade dos deuses como fruto. Fora isso, eles não defendem nenhum outro tipo de nirvana.

Mipam segue mostrando que a afirmação dos invasores sobre a natureza atômica da matéria se encaixa nas crenças budistas. Ele explica que as escolas Vaibhashika e Sautrantika do budismo Hinayana afirmam existirem átomos indivisíveis e sem partes; enquanto as escolas Chittamatra e Madhyamaka do budismo mahayana afirmam que átomos são infinitamente divisíveis.

Com relação ao eu ou à alma, Mipam continua,

Conhecendo suas disposições e pensamentos, o Buda ensinou sutras que eles (os invasores) conseguiam aceitar. Por exemplo, no Sutra de Responsabilidade (Khur 'khu-ba'i mdo), o Buda disse que as pessoas que carregam a responsabilidade (por suas ações) existem, mas não fala da alma de uma pessoa como sendo permanente ou impermanente. Esses pontos são verdadeiros face às afirmações (dos invasores). O que o Buda quis dizer é que as pessoas existem como continuidades de um eu que é responsável pelo carma, mas que é meramente imputado a um contínuo e, por natureza, não é permanente nem impermanente.
Em um sonho, que surge meramente de hábitos mentais, o indivíduo encarnado que sente alegria e tristeza é inexistente. Como é uma mera aparência, a impermanência (do indivíduo) nesse caso não é nem como a natureza de uma coisa impermanente. Isto porque, não tem a natureza de um indivíduo. Em uma mera análise, fica (óbvio) que é um objeto que não pode ser interpolado entre os permanentes ou impermanentes, assim é ensinado. Por meio desse ensinamento Daquele Que Assim se Foi, (os invasores) abandonaram o dharma de invasores e posteriormente se tornaram Vaibhashikas, mantendo um sistema budista.

A atitude inclusivista aqui é que o Buda deu ensinamentos de acordo com as afirmações do invasor e, por esse meio hábil, teria levado os invasores à libertação. Os muçulmanos certamente achariam isso ofensivo e essa atitude certamente não leva à harmonia religiosa.

Pontos Comuns com Base nos Budistas Serem Considerados Pessoas do Livro

Vamos voltar às implicações do Islã considerar os budistas como Pessoas do Livro, a fim de examinarmos outros pontos comuns. Conforme vimos, a base comum para essa afirmação é a de que o budismo é uma religião revelada por uma autoridade superior, nomeadamente Deus. É claro que isso traz a questão de Deus como a fonte da revelação e a pessoa que recebeu essa revelação e a compartilhou com o mundo.

Tanto os budistas quanto os muçulmanos seguem uma abordagem inclusivista a respeito dessa questão da revelação. Por exemplo, o comentário Kalachakra, Luz Imaculada (Stainless Light), explica:

Em relação aos invasores, Muhammad era um avatar de Rahman, o indicador dos ensinamentos dos invasores, o guru e mestre do invasor Tayis.

No hinduísmo, um avatar é uma encarnação da alma de um deus em outra forma. Assim, a afirmação de que Muhammad é um avatar de Rahman é paralela à afirmação hindu de que Krishna é um avatar do deus Vishnu. Em termos budistas, essa analogia seria equivalente a afirmar que Muhammad é uma emanação Nirmanakaya de Alá.

Por outro lado, será que o Buda poderia ser considerado um profeta ou mensageiro de Alá? O historiador persa, al-Biruni, acompanhou Mahmud de Ghazni em sua invasão do subcontinente indiano, no início do século XI dC. Com o que aprendeu lá, al-Biruni escreveu Um livro sobre a Índia (Ar. Kitab al-Hind). Nele, descreveu as crenças e costumes budistas básicos e observou que os indianos consideravam o Buda como um profeta. Isso não significa necessariamente que ele estava sugerindo que os muçulmanos aceitassem o Buda como profeta ou mensageiro de Alá. No entanto, o Alcorão (4: 163-164) diz:

Realmente Nós inspiramos vocês, assim como Nós inspiramos Noé e os profetas depois dele, assim como Nós inspiramos Abraão, Ismael, Isaac, Jacó e os patriarcas, Jesus, Jó, Jonas, Arão e Salomão, e como concedemos a Davi os Salmos. Mencionamos alguns Mensageiros enviados anteriormente, enquanto outros Mensageiros não mencionamos.

O Buda poderia ter sido incluído entre os mensageiros não mencionados explicitamente.

Por exemplo, de acordo com a apresentação das doze ações iluminadoras de um buda, eles vêm em momentos diferentes, quando os seres estão maduros, e ensinam o Dharma de diferentes maneiras em cada época, a maneira adequada aos seres. Embora haja mil Budas Nirmanakaya Supremos para este eon, e um número enorme de grandes eons antes do próximo grande eon em que tais budas aparecerão, há muitos Nirmanakayas como Personagens que vêm durante o tempo que duram os ensinamentos de cada Nirmanakaya Supremo. Ambos os grupos de Nirmanakayas poderiam ser rotulados como "Mensageiros do Dharma". Além disso, cada Buda usa de meios hábeis diferentes para ensinar o Dharma para pessoas diferentes. Para alguns, o Buda até ensinou que existe um eu (self). O Islã também tem sua própria versão de ensinar com meios hábeis. O Alcorão (14: 4) diz:

E Nós nunca enviamos um mensageiro com uma linguagem diferente da do seu povo, para que assim ele possa deixar as coisas claras para eles.

Temos que ter cuidado aqui. Embora o Islã possa aceitar o Buda como um mensageiro de Deus, os muçulmanos, assim como os cristãos e judeus, ficariam bastante ofendidos se disséssemos que Maomé, Jesus, Abraão e David eram Budas Nirmanakya ou avatares de Alá. Essa é uma grande desvantagem da abordagem inclusivista na comparação das religiões. No entanto, como devemos entender a afirmação budista de que Nagarjuna revelou os ensinamentos do Prajnaparamita que Manjushri confiou aos nagas, que os esconderam sob o oceano? Ou a afirmação de que Asanga recebeu de Maitreya os ensinamentos de ação tão difundidos sobre amor, compaixão e bodhichitta, quando foi levado para o céu de Tushita? Como devemos entender a visão pura e os textos de ensinamentos preciosos revelados na tradição Nyingma? Será que essas afirmações budistas são tão diferentes assim da afirmação muçulmana de que os profetas revelam a palavra de Deus?

Quanto a Deus, o único aspecto que o budismo refuta é o de um criador onipotente que cria as coisas sem ser afetado ou influenciado por nada, nem pelo desejo de criar.

O budismo não refuta outras qualidades de Deus, ou a criação em si. Por exemplo, o anuttarayoga tantra explica que a mente de clara luz de cada indivíduo é a criadora de todas as aparências que ela vivencia, e isso é influenciado pelo carma individual da pessoa e pelo carma coletivo. Além disso, como verdade mais profunda, a mente de clara luz está além de palavras e conceitos, assim como Deus. O Corão declara:

Glorificado seja Alá acima e além do que eles descrevem.

No entanto, existem noventa e nove nomes para Alá, e estes se referem às qualidades essenciais de Alá. Da mesma forma, em Um Concerto de Nomes de Manjushri (‘Jam-dpal mtshan-brjod, Skt. Manjushri-nama-samgiti), Manjushri refere-se à mente de clara luz em seu estado primordial, e os versos deste texto do Kalachakra explicam suas qualidades.

Assim como Alá, a mente de clara luz Manjushri, é:

(58) A primordial, a mais elevada, sem começo
(100) Ela é quem não tem começo nem fim
(97) A imanifesta, a que não aparece, aquela sem nenhum sinal que a faria ser vista.

Além disso, Alá é Um, e da mesma forma, a mente de clara luz Manjushri é:

(47) Não dual, a oradora da não dualidade.

Uma das qualidades essenciais de Alá é al-haqq - o real, o verdadeiro, o apropriado, também no sentido ético. Isso tem uma afinidade conceitual com o Dharma, no sentido de dharmata – a verdade mais profunda, a consciência profunda Dharmakaya.

A mente de clara luz Manjushri é:

(55-56) O santificado Dharma, a governante do Dharma ... a magnífica esfera imperecível da realidade
(47) Ela é perfeitamente perfeita, a ausência de um natureza-identidade, o estado real
(157) Ela é a pureza e a glória da verdade mais profunda.

Sempre se refere a Alá como al-Rahman, o compassivo, e al-Rahim, o misericordioso - compassivo no sentido de ser compassivo em criar e misericordioso em salvar os outros do sofrimento. No dzogchen, a qualidade de rigpa, da pura consciência, que cria as aparências, se diz ser "compaixão". Além disso, Manjushri, a mente de clara luz, é:

(38) Composto de grande amor, ele é a mente primordial de grande compaixão
(88) Ele é o que realiza os desejos de todos os seres limitados, o que deseja benefícios, o que tem afeição parental em relação aos seres limitados. 

Além disso, assim como Alá, Manjushri é:

(152) O digno de oferendas, digno de louvor, a quem se prostra ... digno de demonstrações de respeito, o mais digno de veneração, digno de homenagem.

Todas essas características relativas a Alá, a mente de clara luz, a revelação da verdade, a compaixão e assim por diante, indicam um ponto comum entre o budismo e o islamismo, além dos princípios éticos básicos compartilhados. Muitas outras características também poderiam ser mencionadas, como a recitação de dhikrs no Islã e mantras no budismo, a ênfase na caridade, no estudo, nos meios de vida honestos e assim por diante. Se abordarmos todas essas características comuns de maneira respeitosa e pluralística, sem julgar e sem tentar incluir os ensinamentos dos outros como meras variantes dos nossos, teremos uma base firme para a harmonia religiosa.

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