Carma Coletivo e Desastres Natura

Uma conversa entre Jonathan Landaw e Dr. Berzin

Landaw: Hoje em dia, muitas pessoas perguntam se o carma coletivo poderia causar coisas como o terremoto que devastou o Haiti. A explicação geralmente dada é que o responsável pelas características gerais e elementos que constituem um planeta é o carma de todos os seres que o habitam. Depois que surgem os elementos, as leis impessoais da física assumem o controle. Por exemplo, o calor aumenta e vários movimentos resultam disso, como o movimento das placas tectônicas e assim por diante.  Uma manifestação desses movimentos são os terremotos. Partindo-se desse ponto de vista, os terremotos são uma consequência inevitável do planeta ter surgido como surgiu; e ele surgiu assim como resultado de um carma coletivo muito amplo de todos os seres que já viveram neste planeta. Você poderia comentar sobre isso?

Dr. Berzin: O carma, ou, mais especificamente, as forças cármicas positivas e negativas (bsod-nams or sdig-pa) e as tendências cármicas (sa-bon), amadurecem gerando vários tipos de resultado. Um desses tipos resultado é o resultado dominante (bdag-po’i ‘bras-bu). Um resultado dominante é nossa experiência do meio ambiente ou sociedade em que nascemos ou vivemos, da forma como ela nos trata e também dos objetos que possuímos e o que acontece com eles. 

No caso do resultado dominante do carma coletivo – o termo técnico é “carma compartilhado” (thun-mong-gi las) – de um grupo de seres limitados, trata-se principalmente da vivência compartilhada de situações ambientais ou sociais quando o grupo as vivencia.  Entretanto, podemos dizer que o resultado dominante de um carma coletivo também é o próprio meio ambiente, situação social e ocorrências que geram as circunstâncias para esse grupo vivenciá-las. 

Isso não quer dizer que o carma coletivo desse grupo é a única causa da existência do meio ambiente que vivenciam quando o vivenciam. O meio ambiente que vivenciam, o planeta ou o universo, é o resultado de inúmeras causas e condições. No caso do universo, sua causa obtentora (nyer-len-gyi rgyu) – aquilo de onde surge o universo e que deixa de existir quando o universo surge – é o Big Bang. Podemos subdividir as causas obtentoras em: aquelas que ocorreram há muito tempo, como o Big Bang, e aquelas que imediatamente precedem o momento presente, que é o caso do movimento das placas tectônicas como causa do terremoto. As pequenas mudanças que ocorrem no meio ambiente, como uma folha cair de uma determinada árvore, é o resultado das leis da física do universo. Mas, no que diz respeito ao meio ambiente, também há resultados da ação do ser humano (skyes-bu byed-pa’i ‘bras-bu), como é o caso da poluição do ar. Além disso, os elementos constituintes de um momento específico, como a matéria e a energia do universo em um determinado momento, são as causas simultaneamente emergentes (lhan-cig ‘byung-ba’ rgyu) do universo nesse momento.

O carma coletivo que contribuiu como causa para a formação do planeta e de suas leis físicas é o carma compartilhado por todos os seres que vivem no planeta no momento, bem como de todos os seres que aqui viveram e que vão viver. Mas, uma vez que a Terra é uma parte do universo e as leis da física não se aplicam apenas à Terra, mas a todo universo, precisamos de um escopo mais amplo do carma coletivo – o carma coletivo de todos aqueles que já viveram, vivem ou viverão no nosso universo. Afinal, a natureza física do universo é tal que a maioria, senão todos, os planetas constituídos de matéria sólida são instáveis e sujeitos a terremotos. 

Já que estamos falando da formação do universo, o carma coletivo que contribuiu para sua formação e para que um grande número de seres vivenciassem este universo tem que ter sido gerado antes do Big Bang por todos os seres com carma para nascer neste universo.

Mas, e as pessoas que vivem no local exato em que há um terremoto violento acontece, como o do Haiti? Para entender isso, é importante lembrar que (1) nem todos no planeta vivenciaram o efeito devastador desse terremoto e (2) mesmo no Haiti, nem todos morreram ou sofreram ferimentos. Mesmo tendo causado uma grande devastação, nem todos que estavam na área devastada morreram ou foram feridos. Isso indica que aqueles que se tiveram ferimentos sérios colheram o carma, tanto individual quanto coletivo, de ferir-se, enquanto os que não foram muito afetados não colheram tal carma.

Isso não quer dizer que os que morreram eram “piores”, como pessoas, do que os que escaparam. Todos temos uma vasta coleção de carmas em nosso contínuo mental, tanto positivos quanto negativos. E, as condições que determinam qual carma irá amadurecer e quando ele irá amadurecer são muitas e variadas. Algumas pessoas podem ter sobrevivido milagrosamente a esse terremoto, só para morrerem em outro grande desastre no dia, ano ou vida seguinte. Será que podemos distinguir o carma coletivo “amplo”, que compartilhamos com todos os seres deste planeta, do carma coletivo “restrito”, que compartilhamos com apenas uma pequena parcela dos seres?

Sim, podemos fazer essa distinção. O carma coletivo mais amplo é o que contribuiu para a formação do universo, e é compartilhado por todos os que vivem nele. Dentro desse grupo de pessoas há um subgrupo daquelas que possuem o carma coletivo de viver na Terra. Esse carma contribuiu para a formação especifica da Terra. Dentro desse subgrupo há ainda um outro subgrupo, daquelas que tem o carma coletivo de vivenciar um terremoto no Haiti, o que, de certa forma, contribuiu para a ocorrência do terremoto. 

Apesar de cada pessoa desse sub-subgrupo ter vivenciado o terremos de uma forma diferente, como resultado de seu carma individual (thun-mong ma-yin-pa’i las; carma não compartilhado); podemos encontrar outras subdivisões de carmas coletivos, carmas que são compartilhados por grupos menores de indivíduos. Por exemplo, algumas pessoas morreram e outras sobreviveram. As que morreram tinham o carma coletivo de morrer no terremoto, e não de apenas estar no terremoto. Entre os que morreram, há aqueles que tinham o carma coletivo de morrer no desabamento de algum prédio. Portanto, quando falamos de carma individual, estamos falando de vivenciar algo único, não compartilhado com mais ninguém, como morrer quinze minutos depois de ser atingido na cabeça por uma determinada viga, por exemplo. 

Levando para um âmbito mais cósmico, seres que já purificaram suficientemente seu carma e têm muita fé podem renascer nas chamadas “terras puras” ou “campos búdicos”, como o do Buda Amitaba. Esses mundos não estão sujeitos a perturbações tão violentas. Dizem que tudo nessas terras transmite ensinamentos do dharma, como o barulho do vento nas árvores, por exemplo. E isso deixa esses seres mais próximos à iluminação. Digo isso só para salientar a questão da relação entre as características de um local e a qualidade da mente dos seres que o habitam.

Resumindo, seres cuja mente está sob a influência dos três venenos – ignorância, ganância e ódio – encontram-se em um mundo onde há males de muitos tipos; já os que estão mais livres dessas delusões venenosas vivenciam um ambiente onde esses males são menos comuns ou mesmo ausentes, como no caso de uma terra pura. 

No caso de uma terra pura, como a de Amitaba, a causa obtentora do seu surgimento foi a força positiva que ele gerou e as preces que ofereceu antes de se iluminar.  Essas preces dedicavam sua rede de força positiva para que ele pudesse ensinar, em formas Nirmanakaya, não-aryas que tivessem o carma para receber ensinamentos de um Buda Nirmanakaya e, mais especificamente, que tivessem o carma para nascer em uma terra pura Nirmanakaya e receber esses ensinamentos. Além disso, ele deve ter feito preces para ensinar, em formas Sambhogakaya, arya bodhisattvas com o carma para receber ensinamentos de um Buda Sambhogakaya e, mais especificamente, com o carma para nascer em uma terra pura Sambhogakaya e receber esses ensinamentos. Considerando-se que Amitaba teria oferecido essas preces quando ainda era um bodhisattva, muito antes de tornar-se um buda, sua terra pura poderia ser considerada um resultado dominante de sua rede de força positiva direcionada à iluminação. 

Uma condição simultânea (lhan-cig byed-pa’i rkyen) para o surgimento da terra pura de Amitaba seria o sofrimento de todos os seres limitados, o que o teria motivado a ter compaixão e fazer essas preces antes de se iluminar. Uma condição simultânea é um item que existe antes do surgimento de alguma coisa e que ajuda a fazer com que ela surja, mas que não se transforma naquilo que surge. 

As práticas de purificação de alguém que vai nascer na terra pura de Amitaba, feitas na vida que imediatamente precede seu nascimento na terra pura, não podem ser consideradas uma causa para o surgimento da terra pura.  Isso porque a terra pura de Amitaba já existia quando a pessoa se engajou nessas práticas de purificação. As práticas de purificação e preces feitas nessa vida são a última gota na rede de força positiva gerada durante inúmeras vidas e que resultará em seu nascimento na terra pura. Só o que poderia funcionar como causa para o surgimento da terra pura de Amitaba como resultado dominante seria as práticas de purificação e as preces, de pessoas que tinham o carma para renascer na terra pura de Amitaba, feitas quando ele ainda era um bodhisattva. Mas elas só serviriam de causa em conjunção com as preces de Amitaba antes de se tornar um buda. Só se essas pessoas conhecessem Amitaba quando ele era um bodhisattva, e tivessem rezado para nascer em sua terra pura quando ele se tornasse um buda, é que a terra pura de Amitaba seria o resultado abrangente disso.

Eu li um texto do dharma que dizia que os terremotos estariam relacionados a um desequilíbrio do elemento terra nos seres sencientes. Isso é interessante, mas não saberia como interpretar essa afirmação. Você poderia ajudar?

Nunca ouvi isso, mas acho que pode ser compreendido utilizando-se a apresentação sobre carma do Kalachakra. Segundo essa apresentação, existem inúmeros universos, e cada um deles passa por éons de formação, éons de permanência, éons de desintegração e éons vazios. Quando um universo está na fase dos éons de formação, um outro pode estar nos éons de desintegração. Os ciclos de cada universo não são necessariamente sincronizados.
Durante os éons vazios, onde não há presença de universos, os cinco elementos dos universos estão colapsados em uma partícula de espaço (nam-mkha’i rdul-tshan). Essa partícula de espaço é remanescente do “buraco negro”, mas é claro que são coisas diferentes. Os cinco elementos são espaço, vento, fogo, água e ar; ou talvez possamos pensar nos cinco elementos como espaço, gás ou energia, calor, líquido e sólido. As partículas de espaço, especificamente, são constituídas de um traço das partículas elementares mais grosseiras de um universo, que não estão mais combinadas.  Nessa situação, as leis comuns da física do universo anterior não operam mais. A partícula de espaço para um universo que ainda não surgiu funciona como a base para as partículas grosseiras desse universo que irá surgir.

O Kalachakra também fala dos ventos do carma (las-kyi rlung), ou seja, das energias sutis que carregam as forças cármicas e tendências individuais. No fim do éon vazio anterior ao Big Bang que formou o universo, por exemplo, os ventos do carma coletivo dos seres que tinham o carma para nascerem em nosso universo afetou a partícula de espaço do universo. Eles fizeram a partícula de espaço explodir com o Big Bang e desenvolver-se no nosso universo, com suas características e leis físicas específicas. 

Na época do Big Bang, os seres que tinham o carma para nascer neste universo, e cujo carma coletivo estava influenciando a formação deste universo, estavam em outros universos. Sendo seres samsáricos, os cinco elementos de seu corpo estavam desequilibrados. Consequentemente, os ventos de seu carma coletivo teriam afetado a partícula de espaço do nosso universo de forma que os cinco elementos grosseiros que se desenvolveriam dela também fossem desequilibrados. Assim, podemos dizer que um desequilíbrio no elemento terra dos seres com o carma para nascer no nosso universo contribuiu para o desequilíbrio do elemento terra neste planeta, resultando em um terremoto.

Os ensinamentos do Kalachakra explicam a relação entre o carma coletivo e o fato de que os planetas rochosos do nosso universo estão sujeitos a instabilidades e terremotos. Mas qual seria um exemplo do carma coletivo que resulta em um grupo de pessoas vivenciarem um terremoto específico juntas? Será que é algo que esses seres fizeram, como no caso muito citado dos aldeões que jogaram areia em uns monges e, mais tarde, foram soterrados em uma tempestade de areia? Ou será algo mais sutil e abrangente que isso?

Essa é uma pergunta muito difícil de responder, logicamente. Um grupo de seres vivenciando juntos um determinado desequilíbrio do elemento terra neste planeta teriam que ter gerado um carma coletivo para isso, participando de um ato específico. Esse ato teria que ter causado o desequilíbrio do elemento terra em uma área, e o sofrimento de outros seres. Por exemplo, esse ato destrutivo poderia ser causado por um grupo de pessoas que trabalhassem juntas em um projeto que deteriorasse o meio ambiente, que fizesse com que morros cedessem ou lama deslizasse. Ou esse grupo poderia estar envolvido em operações de dinamitação em uma mina.

Mas lembre-se, seres samsáricos já viveram em inúmeros planetas e inúmeros universos. O carma coletivo dos seres que vivenciaram um terremoto específico em um determinado planeta, não precisa ter sido gerado por uma ação destrutiva compartilhada que cometeram nesse mesmo planeta. Eles podem ter cometido o ato em algum outro planeta e em qualquer lugar do passado. Tenho certeza que os seres samsáricos já destruíram inúmeros planetas por causa de ganância e ingenuidade (ignorância). Mas só um buda conseguiria saber qual ato específico gerou um determinado resultado cármico. Afinal, carma é o tópico mais difícil de entender completamente, com todos os seus detalhes.

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