Como se Tornar Mãe Versus Como se Tornar um/uma Buda

Introdução

Hoje vamos discutir um tópico muito importante: Como desenvolver bodichita pela primeira vez? É é uma questão de livre-arbítrio, determinismo ou outra coisa? Veja bem, se nossa motivação é ajudar todos os seres e, para isso, precisamos nos libertar e atingir a iluminação, a pergunta é: como isso acontece? É apenas uma questão de livre arbítrio - podemos simplesmente escolher? Já está determinado – o Buda profetizou ou, de alguma forma, vem do carma ou de alguma outra explicação mecanicista?

Escrevi uma palestra inteira sobre isso e também dei dois seminários sobre a questão do livre-arbítrio versus determinismo. O que eu gostaria de fazer nas sessões de hoje é apresentá-los à meditação analítica sobre isso.

[Veja: Por Que Ainda Não Somos Todos Iluminados? Veja também: Análise do Livre Arbítrio Versus Determinismo, bem como Carma: Nem Livre Arbítrio Nem Determinismo]

O que escrevi é muito longo e não acho que seria muito útil simplesmente ler para vocês, mas o que eu proporia fazermos é ir devagar, porque o importante é treinar como analisar problemas tão difíceis, porque não se pode simplesmente procurar em algum livro (tradicionalmente não se discute esses tipos de tópicos no budismo tibetano). Portanto, iremos até onde conseguirmos e, com sorte, você terá adquirido um pouco das ferramentas para que possa ir mais longe, se quiser. Afinal de contas, o objetivo de vir aqui é aprender. E para seguir o caminho budista, a maneira de aprender é receber as ferramentas e depois aprender a usá-las por conta própria, porque o caminho do desenvolvimento espiritual é um caminho de autodesenvolvimento. Aprendemos a analisar e trabalhar em nós mesmos para alcançar a iluminação. Dessa forma, por meio de nosso esforço e inspiração (orientação de nossos professores), podemos nos desenvolver até a iluminação.

Agora, para analisar, precisamos de muitas ferramentas, e isso significa que precisamos ter ao nosso alcance uma grande quantidade de informações básicas dos ensinamentos budistas. É por isso que o estudo é tão importante. Por exemplo, podemos estudar o lam-rim (os estágios graduais do caminho), mas não é um processo que ocorre uma única vez. Depois de estudar uma vez, você pega tudo do lam-rim inteiro e volta ao início tentando encaixar o que já aprendeu em cada um dos pontos à medida que avança novamente, e depois encaixa todos os estudos Madhyamaka e todas as outras coisas que estudou.

Veja bem, na maneira como estudamos o Dharma, é como receber peças de um quebra-cabeça. Então, temos todas essas pequenas peças e o que precisamos aprender a fazer é juntá-las, e elas se unem de muitas maneiras diferentes, e não de uma única maneira. É por isso que costumo usar o termo rede, pois todas essas coisas se interligam e se reforçam mutuamente de muitas maneiras multidimensionais. Quanto mais coisas conseguirmos incluir nessa rede, mais profunda será nossa compreensão e insight, até que, por fim, desenvolveremos a mente onisciente de um Buda, na qual tudo, todo o conhecimento e compreensão, estarão interligados na consciência onisciente de um buda. Portanto, é uma aventura. Se olharmos para isso como uma aventura e não como uma tarefa difícil, poderemos desenvolver uma perseverança alegre, que é quando gostamos de trabalhar com isso. Então, vamos começar nossa aventura hoje.

Nem Livre-Arbítrio Nem o Determinismo

O samsara refere aos renascimentos incontrolavelmente recorrentes e não tem início, mas pode haver um primeiro momento em que desenvolvemos um ideal de bodichita. Essas duas coisas são bastante difíceis de juntar: não há um início para o contínuo mental e, ainda assim, há um início para o desenvolvimento da bodichita. É claro que, na tradução, o que aparece é que você usa a expressão tempo sem princípio

O tempo se torna uma questão muito difícil aqui, por isso não quero entrar em muitos detalhes sobre isso - tenho muito material em meu site sobre o conceito budista de tempo - mas é muito diferente da ideia ocidental convencional de tempo, pois não estamos falando do tempo como um contêiner, onde as coisas acontecem dentro desse contêiner e esse contêiner não tem início. Essa certamente não é a maneira budista de ver as coisas, tampouco é a maneira científica moderna. Estamos falando de continuums - continuums mentais, continuums de universos, matéria, energia e assim por diante - e esses continuums não têm início. Um continuum não pode ter um começo, onde um nada começa a se tornar algo. Esse é o problema de um início absoluto. Não há como um nada tornar-se algo.

Em todo caso, como surge a decisão de ter como objetivo alcançar a iluminação para o benefício de todos os seres, se há uma primeira vez para isso? Será que é uma questão de livre arbítrio - escolhemos ter como objetivo a iluminação? Será que tudo é determinado por nosso carma e acontece de forma mecânica, de modo que não temos escolha alguma - simplesmente acontece? Ou será que é muito mais complexo do que isso? Nem livre-arbítrio nem determinismo explicam como tomamos decisões e fazemos escolhas. Ambas são posições extremas. Para isso, precisamos aplicar nossa meditação sobre a vacuidade.

Vacuidade

Quando falamos de vacuidade, estamos nos referindo a uma ausência. Estamos falando apenas de uma ausência. Mas, uma ausência de quê? O que está ausente é que o que imaginamos, o que projetamos – que não corresponde à realidade. O que está ausente, portanto, é um referente real que corresponda ao que imaginamos. Não existe tal coisa. Imaginamos coisas que são impossíveis, especificamente o que é impossível e especificamente formas impossíveis de existir. Por exemplo, imaginamos que as coisas existam sozinhas, independentemente de qualquer outra coisa, como se estivessem encapsuladas em plástico e depois simplesmente paradas ali. Isso não corresponde à realidade. Não existe tal coisa. Portanto, a vacuidade é uma ausência disso.

Não estamos falando de um copo que está vazio de água. É por isso que a palavra vazio é enganosa, a palavra inglesa empty (vazio). Veja, em alemão é muito fácil: você só tem uma palavra. Em inglês, há duas palavras, empty (vazio) e void (vácuo); elas têm significados muito diferentes. Não estamos falando de algo que está vazio de outra coisa. Estamos falando de nada. Há simplesmente uma ausência. Não existe tal coisa. (A palavra shunya em sânscrito é a palavra para zero, nada.) Mas isso não significa que não exista nada. Significa apenas que o que é impossível não existe.

Livre Arbítrio

Então, quando falamos de livre-arbítrio, o que implica o livre-arbítrio? Implica um eu verdadeiramente existente que pode tomar decisões de forma independente, sem ser afetado por causas e condições. Também implica decisões que existem de forma independente, por si só - como escolhas em um cardápio, e o eu que existe de forma independente pode simplesmente escolher no cardápio essas escolhas que existem de forma independente. Mas isso é impossível. Se esse eu existisse, seria como se estivesse encapsulado em plástico, e essas escolhas também estariam encapsuladas em plástico, e nunca poderia haver uma interação entre eles. Qualquer coisa que exista de forma independente significa que não pode fazer nada. Não pode ser afetada pela decisão de fazer algo. Não pode ser afetada pelo fato de ter feito algo e depois algo resultar disso. Não pode ser afetada por nada. Portanto, "isso não existe". A alternativa do livre-arbítrio é, na verdade, impossível, se levarmos o livre-arbítrio ao pé da letra (que você pode fazer qualquer coisa). Então, vamos digerir isso por alguns minutos.

Vou dar um exemplo: Você não pode escolher comer a menos que haja alguma condição, como estar com fome ou haver comida na mesa e essa ser sua única oportunidade de comer. Você não pode escolher comer a menos que haja comida lá. Veja, quando você analisa, precisa pensar em outros exemplos para demonstrar o ponto e tentar encontrar contraexemplos que refutariam a afirmação.

A conclusão, a propósito, de qualquer tipo de análise como essa, é focar em "não existe tal coisa". É assim que nos concentramos na vacuidade. Por exemplo, o Papai Noel. Muitas pessoas acham que o Papai Noel existe. Existe essa convenção. Muito legal, mas não corresponde a nada real. Não existe Papai Noel morando no Pólo Norte com renas, se é que existe esse mito aqui na Alemanha. (O Papai Noel vive no Polo Norte com renas. Não sei se o Pai Natal vive). 

Portanto, não existe tal coisa. Isso não corresponde à realidade. Não existe. O Papai Noel não existe. Como você se concentra nisso? Quero dizer, eu não queria que isso fosse uma palestra sobre a vacuidade, mas é útil. Você consegue ver que não há maçã nesta mesa? O que você vê? Nada. Você não vê nada na mesa, mas sabe a que esse nada se refere: significa que não há maçã, a ausência de uma maçã; não significa a ausência de um elefante. Portanto, o que aparece é nada, mas o que você entende é que isso significa que não há Papai Noel, não há Pai Natal.

Portanto, é a mesma coisa: não há livre-arbítrio, livre-arbítrio absoluto (você poder fazer qualquer coisa sem nenhuma razão por trás). Não estamos refutando a tomada de decisões. A tomada de decisão ocorre. Estamos falando sobre como a tomada de decisão ocorre. Portanto, "Não existe isso". Concentre-se nisso. Basicamente, você não presta atenção ao que seus olhos veem. Não estamos nos concentrando em um nada visual. Mental. Tudo bem? Então, você não presta atenção ao que está vendo. Isso é bom.

Há muitas razões pelas quais, no budismo tibetano, incentivamos as pessoas a meditar com os olhos abertos e não fechados. Um dos motivos é muito mahayana: se, para se lembrar e ter consciência da vacuidade, da compaixão ou de qualquer outra coisa na vida diária, você tivesse que fechar os olhos primeiro, seria impossível aplicar os ensinamentos na vida diária. Deixe isso entrar em sua mente. Se você tem o costume de fechar os olhos para sentir amor e compaixão, por favor. Na verdade, as pessoas não se dão conta disso. Elas adquirem um hábito muito pesado de sempre fechar os olhos: "Não me incomode. Estou meditando". Você se fecha para o mundo. Isso não é muito Mahayana. Acho que isso merece alguns momentos de reflexão.

Determinismo

OK, agora o outro extremo, o determinismo. Se você estudou Madhyamaka, os ensinamentos sobre a vacuidade, eles nos permitem encaixar esse conceito de determinismo (que é uma expressão ocidental) em algum tipo de categoria que se encaixe no tipo de análise Madhyamaka da vacuidade. Isso é muito, muito importante. Nosso modo de pensar ocidental, que, é claro, difere de país para país, mas se pudermos falar de modo geral, o modo de pensar ocidental conceitua nossa experiência de um modo bem diferente do budismo tradicional. Quero dizer, muitas coisas que vivenciamos podem ser muito, muito difícil dizer em tibetano –desde palavras simples, como insegurança, até coisas como "não estou conseguindo entrar em contato com meus sentimentos" (o que não faz absolutamente nenhum sentido em tibetano).

Portanto, é importante conseguir encaixar de alguma forma a nossa maneira de pensar as coisas no sistema budista, para que consigamos usar o sistema budista para nos ajudar. Mas, claro que não haverá uma correspondência exata. Essa é realmente a chave para conseguirmos usar nossas ferramentas budistas no dia a dia, uma vez que conceituamos nossa experiência de forma diferente.

Conceituar. Deixe-me pelo menos esclarecer essa palavra, já que muitas pessoas se confundem com ela. Conceitual significa apenas "pensar com categorias". É só a isso que se refere. Pensamos em categorias, como homem, mulher, cachorro, maçã, qualquer coisa. Todas elas são categorias nas quais há muitos, muitos exemplos individuais. São indivíduos diferentes, mas podemos reuni-los em uma categoria: homem, mulher. Assim, colocamos nossa experiência emocional em categorias: insegurança, nervosismo, depressão, o que for. E é claro que precisamos ter essas categorias, pois é a elas que as palavras são atribuídas. Atribuímos palavras a categorias. Você não tem uma palavra diferente para cada maçã do universo; você tem a palavra maçã que pode ser usada para todas elas.

Portanto, categorizamos as coisas de forma diferente. Como classificaríamos o determinismo? O determinismo implica que o resultado realmente existe, já pode ser encontrado na causa, realmente existe lá, está lá esperando para aparecer e se manifestar. Já está determinado – o que vai acontecer, o que eu vou escolher. A decisão está lá, como se estivesse fora do palco, esperando para entrar e acontecer, e depois sair do palco.

Nesse caso... Temos a refutação budista, a refutação clássica que você encontra em todos os textos: Se fosse assim, o resultado já teria sido produzido e, portanto, não poderia ser afetado por nenhuma condição para surgir. Nenhuma condição poderia fazer com que ele surgisse, porque já haveria surgido. Além disso, não haveria necessidade de algo que já surgido surgir novamente. Como uma decisão poderia acontecer se ela estivesse em sua mente, se já tivesse acontecido? Lembre-se de que verdadeiramente existente significa encapsulado em plástico, pensando em termos bem simplistas.

Portanto, se tudo está determinado, de certa forma, tudo já aconteceu e isso destrói totalmente qualquer linha do tempo: nada poderia se desenvolver, nada poderia crescer. Como uma flor. Não é que a flor exista dentro da semente e você simplesmente aperte um botão e ela sai. O método budista: usar exemplos absurdos.

Essa última refutação, a refutação do determinismo, pode ser encaixada em outro formato de análise da vacuidade, que é: o resultado não é nem verdadeiramente existente nem totalmente inexistente no momento da causa. Se ele realmente existisse, se o resultado já existisse, algo não poderia se tornar ele mesmo novamente (ele já existia). Estamos falando do momento da causa. Se no momento da causa o resultado já existe, ele não pode acontecer novamente. Por outro lado, se o resultado fosse totalmente inexistente no momento da causa, um nada não poderia se tornar algo. Como um nada poderia ser afetado para se tornar algo se ele fosse totalmente inexistente no momento da causa?

A propósito, isso - desculpe, não resisto a acrescentar isso - é algo muito, muito importante de se entender se formos considerar o caso do aborto. Quando começa a vida? Essa é uma pergunta muito difícil. Será que, por um certo período de tempo durante o início da gravidez, ele é um nada e, de repente, se torna algo, um ser humano? É primeiro um nada e depois um algo? Se é um nada, como pode se tornar algo? E há muitas, muitas coisas que se seguem na análise disso, mas não vou me aprofundar. Deixarei que você brinque com isso. Essa é uma análise muito, muito interessante e importante a ser aplicada se você for considerar o caso de qual é a posição budista sobre o aborto.

Por Que Todos Já Foram Nossas Mães, Mas Nem Todos Já Alcançaram a Iluminação?

Portanto, se o caso não é nem o livre-arbítrio nem o determinismo na tomada de decisões e nas escolhas, nossa discussão realmente se resume a uma análise de como ocorrem as decisões, como as decisões envolvidas no desenvolvimento de bodichita pela primeira vez (a decisão de aspirar e trabalhar para atingir a iluminação para o benefício de todos). Gostaria de discutir esse assunto considerando uma questão maior, uma questão muito difícil, que se baseia em certas suposições que fazemos no budismo. Não estamos questionando os axiomas ou crenças básicas do budismo. Estamos pegando esses axiomas, juntando-os e dizendo como podemos explicar algo além. Em outras palavras, estamos juntando algumas peças do quebra-cabeça e tentando descobrir o que isso implica - como podemos encaixar outras peças aqui?

Se nossos contínuos mentais não têm início e, consequentemente, todos foram nossas mães em alguma vida anterior, por que nem todos decidiram desenvolver bodichita e já alcançaram a iluminação? O tempo sem princípio não foi suficiente? Essa é a pergunta. Pensem nisso. Essa é realmente uma pergunta importante.

OK, vamos fazer uma pergunta mais completa, juntando mais algumas peças. Dado que

  • não há início para o continuum (portanto, em nossa linguagem comum, diríamos que o tempo não tem início, embora não seja um recipiente),
  • o número de seres limitados ou seres sencientes é finito,
  • todos são iguais,
  • sempre existiram budas, não houve um início,

Considerando tudo isso, essas peças do quebra-cabeça, pergunta-se: Por que todo mundo ainda não se iluminou? Tempo sem início, seres limitados. Portanto, à medida que cada pessoa se ilumina, há menos - há incontáveis menos um, incontáveis menos dois, etc. Não há início.

Essa é uma situação muito diferente da outra pergunta: Considerando que o tempo não tem início, que o número de seres limitados é finito, que todos são iguais, como podemos provar que todos foram minha mãe em algum momento? Pois isso é aceito no budismo. O budismo aceita que todos já foram minha mãe e também afirma que nem todos já se iluminaram. Como você prova ambos os fatos? Isso é o que você analisa quando está fazendo meditação analítica. Por quê? Para se livrar das dúvidas. Então, qual é a diferença?

Por Que Todos os Seres Foram Nossas Mães

No caso de ser minha mãe - se analisarmos essa situação - a diferença é que não há nenhuma força oposta mutuamente exclusiva e sem princípio que impeça alguém de ser minha mãe. Nada que não tenha início precisa ser superado para que  (alguém) se torne minha mãe. Além disso, em todas as vidas em que nasci de um útero ou de um óvulo, tive uma mãe, portanto, tive um número infinito de mães. Essa é a diferença, uma das diferenças.

Para se tornar iluminado, você precisa superar a inconsciência ou ignorância. Essa inconsciência impede a iluminação, mas não há nada que impeça alguém de ser minha mãe. Qual é o oposto (como consciência e inconsciência)? Não há nenhum oposto mutuamente exclusivo que impeça alguém de se tornar minha mãe. ok?

Agora a prova de que todo mundo já foi minha mãe. É um estilo de prova prasanga. Meus alunos e eu criamos essa prova - você não vai encontrá-la em nenhum texto - mas eu a verifiquei com alguns geshes, e eles concordam que é uma prova válida. Aqui está a prova:

Se um ser foi minha mãe, todos os seres foram minha mãe, pois todos são iguais e não há nenhuma força opositora sem início que precise ser superada para que alguém se torne minha mãe. Certo? Para provar algo: aqui está o assunto, o que você quer provar sobre ele e a razão. Tudo bem? Se uma pessoa foi minha mãe, todo mundo foi minha mãe, pois somos todos iguais, etc. Agora, o método prasanga (você dá o oposto): Se esse não fosse o caso, se um ser não foi minha mãe, a conclusão absurda será que ninguém jamais foi minha mãe, inclusive minha mãe nesta vida, exatamente pela mesma razão - porque todos são iguais e nenhuma força opositora sem início teve que ser superada para que se tornassem minha mãe. Você precisa pensar nisso. Se alguém foi minha mãe, todo mundo foi minha mãe, pois se alguém não foi minha mãe, ninguém foi minha mãe. Esse é um método prasanga de prova. Pensem nisso.

OK. Então, aqui está o ponto importante desse argumento. Se alguém já foi minha mãe, todo mundo já foi minha mãe, porque nada impede isso e somos todos iguais. Todos são iguais e nada está impedindo isso. (E isso também provaria que, se alguém não foi minha mãe, ninguém foi minha mãe). Como somos todos iguais e nada está impedindo isso, por que aquele que não se tornou minha mãe? Portanto, nada teria impedido aquela que não era minha mãe de ser minha mãe. Você precisa entender a maneira prasanga de pensar.

Espero que você esteja entendendo que, ao estudar os textos de Nagarjuna e outros, que eu sei que você está estudando aqui, que têm todos esses argumentos do tipo prasanga, você aprende que eles não são apenas algo que fica em um livro didático, não são algo que é um método de análise e prova que se limita apenas ao que é discutido nos textos, mas uma ferramenta que podemos usar para analisar e entender muitas, muitas outras coisas.

Por Que Nem Todos Já Alcançaram a Iluminação

Agora, a questão de por que nem todos já se libertaram ou iluminaram é diferente. Mas, o que há de diferente? A diferença é que aqui há forças opostas mutuamente exclusivas e sem início, que impedem a liberação e a iluminação - os dois obstáculos ou obscurecimentos: emocional e cognitivo - portanto, a inconsciência ou ignorância, o apego à existência verdadeiramente estabelecida, suas tendências, seus hábitos e assim por diante. E todos os seres limitados, os seres sencientes, são iguais no sentido de terem essa inconsciência e esse apego como parte de seus contínuos mentais, também sem princípio. Portanto, isso tem que ser levado em conta em nossa equação.

Então, agora - no clássico estilo indiano de comentários e análises - surge uma dúvida. Você tem que considerar a dúvida. Isso é o que naturalmente surgiria em sua meditação, em sua análise. Primeiro, vou dizer de forma bem simples: todos têm uma ignorância sem início, mas todos também não têm uma natureza búdica sem início? Agora, deixe-me dizer de uma forma mais completa: Somos todos iguais no que diz respeito a ter, desde sempre, como parte de nosso continuum mental, os fatores da natureza búdica que permitirão que a inconsciência e o apego sejam interrompidos para sempre, que nos permitirão superar esses obscurecimentos sem início.

Esses fatores são o que chamo de rede de força positiva (bsod-rnams-kyi tshogs) e rede de consciência profunda (ye-shes-kyi tshogs), e são geralmente chamados de coleção de mérito e coleção de sabedoria (ou insight ou como você quiser chamar). Escolhi muito conscientemente os termos que uso para isso. Não estamos falando de uma coleção como uma coleção de selos onde, se você conseguir selos suficientes, ganhará um prêmio ou algo assim. E mérito soa como selos, não é? Ou pontos em um jogo - onde se conseguirmos pontos suficientes, se conseguirmos mérito suficiente, ganhamos o jogo. Certamente não é isso. Você recebe o prêmio, a iluminação, é verdade, mas é força positiva, e toda essa força positiva se conecta e se reforça mutuamente.

E sabedoria ou insight é totalmente inapropriado, pois é algo que uma minhoca também tem, e não se poderia dizer que a minhoca tem sabedoria. Estamos falando apenas da forma como a mente funciona aqui, dessa capacidade de receber informações, juntar as coisas, saber o que fazer com elas e assim por diante. E é muito profunda (consciência profunda), no sentido de que é a maneira fundamental pela qual a mente funciona. E, é claro, pode se tornar profunda em outro sentido, o de profundidade (compreensão da vacuidade).

Portanto, esses são os fatores da natureza búdica. Temos essas duas redes. Você pode comprovar isso. Como comprovar? Não aceite apenas o que está escrito no texto. Você tem que comprovar. Qual é a principal coisa que amadurece com a força positiva? (Os ensinamentos básicos sobre carma - agora você precisa se lembrar deles.) Felicidade. Como todos nós, em algum momento, por mais infelizes que sejamos, já experimentamos alguns momentos de felicidade, isso demonstra que temos uma rede de força positiva. Tudo bem? Quais são as leis do carma? A felicidade é o resultado da força positiva. A infelicidade - o sofrimento - é o resultado da força negativa. Veja, isso se torna um pouco difícil se você estiver pensando em termos de mérito e pecado; não funciona assim. E todo mundo tem uma rede de consciência profunda, porque podemos receber informações, podemos juntar as coisas. Até mesmo uma minhoca sabe, quando vê algo, que é comida, não pedra, e sabe o que fazer com ela. Ela sabe que deve comê-la, não é? Você não chamaria isso de sabedoria.

Portanto, temos redes sem início e a vacuidade sem início, a natureza mais profunda da mente. Entretanto, juntando as duas redes (sem início) com a inconsciência e o apego à existência verdadeiramente estabelecida, também sem início - o que você obtém? Juntando essas duas coisas (duas redes sem início e inconsciência e apego sem início), o que você obtém? O samsara. Renascimento e sofrimento incontrolavelmente recorrentes. Isso ocorre porque, a menos que sejam acompanhadas de renúncia ou de renúncia e bodichita, as redes de força positiva e consciência profunda são redes que constroem o samsara. Isso é um problema, não é? Sem renúncia, ou sem renúncia e bodichita, o mecanismo que temos aqui apenas perpetuará o samsara. Desagradável, não é?

Agora tenho que apresentar algo antes de fazermos nosso intervalo para o chá. De acordo com o comentário de Haribhadra sobre o Abhisamayalamkara (A Filigrana das Realizações) de Maitreya ... Esse é o ponto principal. Os tibetanos o estudam por cinco anos em seu programa de geshe. O comentário de Haribhadra é o principal comentário a ele, um comentário indiano. É o texto que fala sobre os pontos mais minuciosos do que se desenvolve nesses estágios do caminho. De qualquer forma, nesse comentário ele explica a palavra sânscrita que os tibetanos traduziram com essa palavra que significa coleção ou rede e assim por diante. O fato de os tibetanos terem traduzido de uma forma não significa que essa seja realmente a conotação do sânscrito. Eles apenas adotam uma conotação. Portanto, a maneira como Haribhadra explica é essa: É a palavra sânscrita sambhara. Sam significa "puro" e bhara é "algo que constrói", portanto, estamos falando de algo que constrói um estado puro. 

Essas redes são o que nos permite construir o estado puro de liberação ou iluminação. Portanto, se falarmos de força positiva, por exemplo, nesse contexto, não estamos falando de força cármica positiva. Lembre-se, o carma só vai construir o samsara. A força cármica positiva apenas nos dá bons renascimentos, renascimentos agradáveis, o melhor tipo de renascimento. Não é isso que queremos. Estamos falando de um tipo diferente de força positiva que você precisa desenvolver por três incontáveis eras para alcançar a liberação e a iluminação. Esses são os construtores puros, os construtores da liberação e da iluminação.

[Consulte: As duas coleções: duas redes].

É apenas de outro texto de Maitreya, Uttaratantra (O Continuum Eterno Mais Distante, rGyud bla-ma) ... Todo mundo estuda isso também. Esse é o texto básico sobre a natureza búdica. Nele você tem a estrutura de base, caminho e resultado. Dele que tiramos a ideia dessas redes como estando no nível da base (que produz o samsara). O nível do caminho se refere a quando elas estão construindo a liberação e a iluminação, e o nível resultante são os dois corpos de um buda, o corpo da forma Rupakaya e o Dharmakaya (corpo mental, a mente).

Portanto, para analisar, para ter mais ferramentas, é muito importante ter estudado muitos textos diferentes e depois pegar as pequenas peças deles, as peças do quebra-cabeça, e juntá-las. Essa é a nossa responsabilidade, não a do professor. O professor pode mostrar algumas maneiras pelas quais elas se combinam, mas cabe a nós juntar mais e mais peças. Dessa forma, você se desenvolve, e é interessante e divertido, e quanto mais você faz isso, mais feliz você se torna, porque tudo isso tem a intenção de nos ajudar a superar o sofrimento, todos os ensinamentos sobre perseverança alegre. Não é como ter que fazer o dever de casa de matemática da escola à noite.

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