O Carma e a Origem do Universo

Revisão 

Em nossa conversa sobre a questão do livre-arbítrio ou escolha versus predeterminação ou determinismo, vimos que há muitos, muitos fatores envolvidos e muitas partes dos ensinamentos budistas que temos que juntar para entender o que está acontecendo com toda essa questão. Além disso, vimos que o livre-arbítrio parte do princípio que existe um “eu” que é verdadeiramente existente, que pode fazer escolhas apenas com base em si mesmo, independente de tudo que está acontecendo, de todas as várias circunstâncias, condições, fatores mentais e assim por diante que o afetam. Vimos a falácia básica dessa maneira de pensar. Entretanto, as escolhas ocorrem e elas se baseiam em vários hábitos, não apenas de nossos tipos de comportamento, mas também de nossas emoções, tanto positivas quanto negativas. Estou usando hábitos aqui em um sentido muito amplo.

Nossas escolhas também podem ser influenciadas por fatores que não estão conectados com nossos contínuos mentais, como várias circunstâncias externas, por exemplo, as circunstâncias físicas dos eventos climáticos e universais ou as circunstâncias ocasionadas pela influência de outras pessoas que encontramos, pela sociedade em geral, pelos governos e assim por diante. Da mesma forma, os vários ensinamentos com os quais podemos entrar em contato, que obviamente também derivam dos contínuos mentais de outras pessoas, também têm influência sobre nossas escolhas. Além disso, nossas escolhas também são influenciadas por nossos fatores mentais de consciência discriminativa, dúvidas aflitivas, intenção, etc. e nossas emoções. 

O fato de que, subjetivamente, fazemos escolhas todos os dias, é indiscutível. O problema é a conotação do nosso conceito ocidental de escolha, que envolve um “eu” independente que está fazendo essas escolhas. Para entender toda a questão, precisamos tentar parar de abordá-la pensando em termos de um “eu” que existe independentemente, fazendo escolhas por conta própria, com livre arbítrio, independente das influências externas e internas.

Não excluímos apenas o livre-arbítrio, mas também a predeterminação, porque não há ninguém que tenha decidido o que vai acontecer, que é a conotação da predeterminação. O que faremos não foi decidido antes de o fazermos. Embora um buda saiba o que ainda-não-aconteceu, o que-já-aconteceu e o que está-acontecendo-no-momento, é claro que tudo isso está mudando constantemente, porque o que está-acontecendo-no-momento é diferente a cada momento. Ainda assim, o Buda não decidiu o que está acontecendo. A onisciência do Buda não é onipotente e consegue, por seu próprio poder, fazer as coisas acontecerem independentemente dos princípios de causa e efeito. Isso é muito difícil de entender e requer uma compreensão realmente profunda da vacuidade: vacuidade de causa e efeito, vacuidade dos três tempos e assim por diante. 

Também vimos que há vários impulsos diferentes, alguns deles cármicos e outros não-cármicos, e todos eles influenciam o que fazemos. Os impulsos cármicos incluem os estímulos mentais que impulsionam nossas mentes em ações nas quais exercemos esforço e, nos sistemas Vaibhashika e Madhyamaka, os impulsos físicos, que são o movimento do corpo e as expressões da fala, que por sua vez são os métodos implementados para fazer com que as ações do corpo ou da fala ocorram. 

Quando analisamos o sistema Theravada, vimos que há impulsos de energia nas restrições relativas à mudança das estações, ao crescimento das sementes em plantas, ao fato de que os fenômenos afetados por causas e condições mudam a cada momento e à maneira como a cognição sensorial funciona. Os quatro primeiros são impulsos não-cármicos, mas afetam as escolhas que fazemos ao realizar algo. Por exemplo, as mudanças climáticas durante o inverno. 

Também vimos que a apresentação Sautrantika de Vasubandhu faz uma clara distinção entre impulsos de empenho e impulsos funcionais. Os impulsos de empenho são cármicos e incluem os estímulos mentais que impulsionam a consciência mental e os fatores mentais que a acompanham a pensar e decidir realizar uma ação do corpo ou da fala como também a consciência corporal e os fatores mentais, que a acompanham, a impulsionar o corpo ou a fala a realizar a ação. Esses impulsos cármicos envolvem esforço, com um agente querendo e pretendendo fazer algo e se esforçando para isso. Os impulsos funcionais, por outro lado, são os estímulos mentais que impulsionam os vários tipos de consciência e os fatores mentais que os acompanham na percepção de objetos, por exemplo, quando vemos algo. Esses impulsos são não-cármicos.  

A apresentação do Chittamatra de Asanga é mais completa e inclui cinco tipos de impulsos. Os impulsos de observação são os estímulos mentais envolvidos com a percepção. Os funcionais, nesse sistema, referem-se aos impulsos envolvidos com os elementos que desempenham suas funções, como a terra que sustenta algo sobre ela e os objetos sensoriais que funcionam como objetos de cognição sensorial. Incluímos aqui o elemento água em nossos estômagos desempenhando sua função de digerir alimentos e talvez matando pequenas criaturas no processo. Em seguida, os impulsos de realização são aqueles envolvidos com a realização dos caminhos mentais de um arya. Nenhum desses impulsos é cármico. Os únicos impulsos cármicos são os impulsos de empenho, que nesse sistema são os mesmos do Sautrantika - são os estímulos mentais que impulsionam a consciência e os fatores mentais que a acompanham em ações do corpo, da fala e da mente. Todas elas são precedidas por um objetivo pretendido e incluem esforço. Falamos só desses estímulos mentais quando mencionamos o carma nos sistemas Sautrantika e Chittamatra. 

Também vimos que um buda, por ser onisciente, conhece todas as variáveis externas e internas que afetam o que pensamos, dizemos e fazemos. O Buda vê que tudo o que acontece conosco e afeta nosso comportamento não deriva exclusivamente de nosso carma. O fato de nos depararmos com situações externas e a forma como as vivenciamos se baseia em nosso carma, mas o que acontece no universo não se baseia apenas em nosso carma individual. Há muitos outros fatores envolvidos, por exemplo, as ordens não-cármicas explicadas no Theravada e os impulsos não-cármicos explicados por Vasubandhu e Asanga.

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