A meditação é certamente muito importante se quisermos colocar em prática os ensinamentos do Buda. Entretanto, ela não é uma exclusividade budista. A meditação é uma prática encontrada em todas as tradições indianas, bem como em sistemas não budistas e não indianos.
Em sânscrito, a palavra para meditação é “bhavana”. Bhavana vem do verbo “bhu”, que significa “tornar-se” ou “transformar uma coisa em outra”. Portanto, bhavana é um processo no qual pegamos um ensinamento sobre como gerar um estado mental construtivo e nos “tornamos” esse estado, figurativamente falando. Em outras palavras, através do processo da meditação, fazemos nossa mente permanecer em um estado benéfico.
Uma vez que bhavana vem da raíz sânscrita “bhu”, da palavra “tornar-se”, bhavana implica em transformação. Por exemplo, meditar no amor nos transforma em alguém que tem amor no coração. Quando o termo foi traduzido do sânscrito para o tibetano, utilizou-se uma palavra que implica na “construção de um hábito”. Essa palavra é “gom”. Gom significa habituar-se a algo positivo, e assim, construir um hábito positivo, um hábito construtivo.
Portanto, a palavra utilizada pelos tibetanos tem um significado semelhante à palavra sânscrita, quer dizer a mesma coisa. Os dois termos têm o significado de que para nos transformarmos de acordo com nosso objetivo, para ser alguém com amor no coração, por exemplo, precisamos desenvolver o amor como um hábito. E o método que utilizamos para desenvolver esse bom hábito é a meditação.
Ouvindo os Ensinamentos
Os principais textos de filosofia indiana anteriores à época do Buda são os Upanishads, e esses textos já continham referências à meditação. Neles, a meditação é discutida no contexto de um processo de três passos: escutar, pensar e meditar. Ou seja, o Buda não inventou isso; esse processo já existia em sua época. Se queremos transformar algo em um hábito positivo, é óbvio que primeiro precisamos ter ouvido falar disso, depois precisamos entender o que é isso, pensar nisso, e finalmente precisamos internalizar isso.
Se não soubermos coisa alguma sobre o dharma, precisaremos primeiro obter algumas informações básicas e nos certificar de que estão corretas. Só as informações corretas podem ser uma base confiável para nos interessarmos pelos ensinamentos do dharma genuíno. No entanto, na época do Buda, ninguém escrevia ensinamentos filosóficos. A compilação de seus ensinamentos em textos começou séculos depois. É por isso que o processo de três passos começa com a necessidade de se “escutar” os ensinamentos, ou seja, escutar os ensinamentos que são falados.
Hoje em dia, poderíamos incluir nesse primeiro passo a leitura de livros, ou da internet, que falem sobre o as práticas ou os estados mentais que estamos querendo desenvolver. No entanto, isso é discutível, pois quando escutamos os ensinamentos direto do professor, existe todo um ambiente criado pela presença dele. Quando escutamos um ensinamento diretamente da pessoa, podemos obter uma inspiração que não obtemos ao ler um livro; mesmo quando a pessoa é a mesma que escreveu o livro. Vivenciamos isso em nosso cotidiano também. Por exemplo, quando vamos a um show, a experiência é muito mais poderosa e inspiradora do que simplesmente ouvir o CD em casa. É uma experiência muito diferente.
Quando ouvimos ensinamentos, uma das melhores recomendações que nos são dadas é remover os “três defeitos do vaso de barro”.
- Primeiro, precisamos evitar ser como um vaso emborcado, em que nada entra. Ou seja, se nossa mente estiver fechada, obviamente não conseguiremos aprender nada do que escutamos.
- Segundo, precisamos evitar ser como um vaso furado, onde tudo o que entra sai. No português a expressão é “entrar por um ouvido e sair pelo outro”. Precisamos evitar isso.
- Terceiro, precisamos evitar ser como um vaso sujo. Quando colocamos água limpa em um vaso sujo, a água também fica suja. Da mesma forma, quando temos muitas preconcepções em mente, elas contaminam nosso entendimento do novo material. Ao invés de simplesmente ouvir o que a pessoa diz, ficamos misturando o novo material com as projeções de nossas próprias ideias.
Para evitar que isso ocorra, é bom escrever ou gravar os ensinamentos, para nos lembrarmos corretamente dos pontos mencionados. Isso é muito útil para quem não tem uma memória perfeita – como a maioria de nós. Quanto mais demorarmos para escrever, mais as nossas preconcepções contaminarão nossa memória. E mesmo quando escrevemos ou gravamos os ensinamentos, precisamos depois escutá-los novamente, várias vezes. Ter os ensinamentos em um caderno na prateleira ou em um arquivo no computador ou celular certamente não basta.
Sonam Tsemo, um mestre Sakya, disse que para começarmos a praticar o dharma, precisamos:
- Reconhecer que temos problemas e estamos sofrendo
- Ter o desejo de nos livrar dessa situação de sofrimento
- E nos interessar pelo dharma como uma forma de nos livrar do sofrimento.
Quando somos novos no dharma, precisamos ter uma mente aberta e tentar reter ao máximo o que aprendemos; mas, acima de tudo, precisamos escutar os ensinamentos com interesse e com a intenção de analisar o que estamos escutando. Precisamos analisar para ver se, caso coloquemos em prática o que escutamos, isso pode nos ajudar a resolver nossos problemas. Não ouvimos ensinamentos budistas para passar em um exame na escola ou para impressionar os outros com nossa erudição. Ouvimos para ver se achamos algo que seja relevante para nós e nos ajude.
Quando ouvimos os ensinamentos, há várias formas como podemos considerar a nós mesmos e à situação. No método conhecido como os “três reconhecimentos”, nos reconhecemos como uma pessoa doente, reconhecemos o professor como um médico e os ensinamentos como um remédio que vai nos ajudar a curar várias doenças ou problemas – as doenças são as emoções perturbadoras.
À medida que avançamos em nossa prática, recebemos mais instruções que tratam da atitude que devemos ter em relação ao professor, no que diz respeito a ver o professor como um buda, e assim por diante; mas essas instruções não são para principiantes.
Pensando Sobre Aquilo que Escutamos
O segundo passo é pensar sobre o que escutamos. Pensamos nos ensinamentos para conseguir compreendê-los. E atingimos o ponto final desse processo quando conseguimos entender corretamente seu significado. Para colocar os ensinamentos corretamente em prática, não precisamos apenas compreendê-los, mas também estarmos convencidos de que são válidos e de que precisamos adotá-los para superar determinados problemas. Também precisamos estar convencidos de que é possível alcançar aquilo que o ensinamento está falando. Se acharmos que é impossível, que nunca conseguiremos superar a raiva, por exemplo, por que faríamos uma prática que visa acabar com a raiva? Temos que estar convencidos de que a prática funciona.
Quando pensamos sobre um ensinamento, pensamos a partir de vários pontos de vista. Por exemplo, se estivermos falando de meditação para desenvolver amor equânime, precisamos conhecer os vários passos que nos levarão a isso. Por exemplo, do que depende o amor equânime? Depende de ver a todos como iguais, ver que todos já foram bondosos conosco e assim por diante. Portanto, para desenvolver amor universal em nossa mente, precisamos saber do que depende esse amor e quais insights e estados mentais precisamos desenvolver para que ele cresça em nós.
Além disso, precisamos saber quais são os fatores que se opõem ao amor e que o amor irá sanar. Mais especificamente, precisamos estar convencidos de que os fatores que se opõem ao amor são raiva e ódio; e precisamos estar convencidos de que o amor pode subjugar esses fatores e nos livrar deles. Também precisamos entender como o amor nos livrará deles.
E mais, precisamos entender o propósito de desenvolvermos amor, e o que faremos com ele quando o desenvolvermos. Ou seja, temos que saber quais são os benefícios de desenvolver amor. Normalmente, os muitos textos que nos ensinam a desenvolver o ideal de bodhichitta (o ideal de atingir a iluminação para beneficiar todos os seres) começam falando dos benefícios de atingirmos esse ideal, para nos convencermos de que isso é algo que gostaríamos de desenvolver.
E por fim, precisamos estar convencidos da lógica dos ensinamentos. Eles precisam ser lógicos, precisam ser plausíveis e precisam fazer sentido em termos dos estágios e dos detalhes dos ensinamentos.
Portanto, precisamos pensar em muitas coisas. Ir direto à prática da meditação, sem entender as coisas que precisamos desenvolver primeiro e como elas podem nos livrar de estados mentais problemáticos, e também quais a fatores opositores aos quais precisamos estar atentos e assim por diante... não seria muito sábio. A analogia para isso é: “Escutar é como colocar comida na boca; pensar sobre o que escutamos é como mastigar”. Se tentarmos engolir sem mastigar, vamos engasgar. Da mesma forma, se tentarmos meditar sem antes pensar sobre os ensinamentos, teremos dificuldades. Mas como é esse processo de pensar? O estágio de pensar sobre os ensinamentos pode ser pensar livremente sobre os vários pontos que mencionei, ou, se já tivermos feito isso, pode ser um processo mais formal.
O Processo Formal de Pensar
O processo formal de pensar significa seguir uma linha de raciocínio. Se quisermos possuir um determinado estado mental, teremos que desenvolvê-lo. Teremos que desenvolvê-lo passo a passo, e geralmente esses passos incluem trabalhar com linhas de raciocínio. Por exemplo, um ensinamento pode incluir uma linha de raciocínio que desenvolve um entendimento da impermanência (que as coisas que são afetadas por causas e condições que mudam momento a momento, até que se acabam); ou pode incluir uma linha de raciocínio que desenvolve a compreensão da vacuidade (que as coisas são desprovidas de modos impossíveis de existência). Ao pensar e trabalhar com a lógica das linhas de raciocínio, nos convencemos não só de que a impermanência e a vacuidade são válidas, mas também de que as linhas de raciocínio provam, validamente, que a impermanência e a vacuidade são verdades. Lembre-se: convencer-se é parte do processo de pensar.
Alternativamente, podemos desenvolver um determinado estado mental seguindo estágios, e não uma linha de raciocínio. Por exemplo, se quisermos desenvolver o ideal de bodhichitta, temos que seguir estágios como: desenvolver equanimidade, ver todos os seres como tendo sido nossa mãe em vidas passadas, lembrar da gentileza do amor materno, desenvolver gratidão e assim por diante. Trabalhamos esses estágios para nos convencer de que, seguindo-os, podemos atingir o objetivo de desenvolver o ideal de bodhichitta. Isso ainda é parte do processo de pensar.
Nesse processo de pensar, precisamos entender muito bem o estado mental que estamos tentando cultivar. Algumas meditações têm o propósito de nos ajudar a focar em um determinado objeto, na imagem mental de um buda, por exemplo. Para meditarmos na imagem de um buda, precisamos entender que estamos fazendo uma meditação de foco, cuja meta é focar em um objeto específico, ou seja, em um pequeno buda tridimensional, feito de luz, e que estamos imaginando que está à nossa frente, na altura de nossos olhos.
Por outro lado, há meditações cuja meta é desenvolver um estado mental específico, como o amor. O amor não é um objeto de foco, mas um estado mental, um tipo de atitude mental que desenvolvemos. Portanto, precisamos saber com qual tipo de meditação vamos trabalhar: estamos tentando focar em um objeto específico ou estamos tentando desenvolver um determinado estado mental? O que estamos tentando fazer?
Em ambos os casos, Tsongkhapa enfatizou que há duas coisas que precisamos saber:
- Primeiro, precisamos saber com clareza qual objeto precisa aparecer em nossa mente. Quer estejamos falando da meditação na imagem do Buda ou no amor, qual objeto precisa aparecer em nossa meditação?
- Segundo, precisamos saber como a mente toma esse objeto, como ela toma consciência dele.
Se não tivermos absoluta clareza desses dois pontos, como poderemos gerar o estado mental que desejamos?
Tomemos a compaixão como exemplo: qual o objeto da compaixão? Qual objeto aparece em nossa mente quando meditamos em compaixão? São os seres sencientes, os vários seres limitados que sofrem. Nossa mente foca neles e distingue um determinado aspecto deles. No caso, o sofrimento e as causas do sofrimento. Mas como a mente toma esses objetos? A mente toma esses objetos com o forte desejo de que esses seres se livrem do sofrimento e de suas causas, e com a intenção de tentar fazer com que isso aconteça. Pensar nessas instruções, que recebemos ou lemos, nos permite especificar e entender com muita clareza o estado mental que estamos tentando gerar.
Se planejamos meditar em bodhichitta, precisamos pensar e ter clareza em relação ao que nossa mente faz nessa meditação. Muitas pessoas confundem bodhichitta com compaixão; mas bodhichitta e compaixão não são a mesma coisa. Bodhichitta é um estado mental que tem a compaixão como base; mas bodhichitta vai muito além de apenas querer que os outros se livrem do sofrimento e de suas causas. Vai além de apenas querer levar todos os seres à iluminação e assumir a responsabilidade por isso. Mas esses desejos e sentimentos são as emoções positivas das quais bodhichitta depende e com base nas quais ela cresce. Precisamos primeiro ter essa base de amor e compaixão.
Então no que focamos quando sentamos para meditar em bodhichitta? Focamos em nossa própria iluminação, que ainda não está acontecendo, mas que pode acontecer com base nos fatores de nossa natureza búdica e em todo o trabalho que precisamos fazer para atingirmos a iluminação. Os fatores da natureza búdica são as qualidades e características básicas que todos temos, como a natureza pura da mente, que nos permitem tornarmo-nos budas. Não estamos focando na iluminação do Buda Shakyamuni. Não estamos focando na iluminação de uma forma abstrata. Estamos focando em nossa própria iluminação, a nossa iluminação que ainda não aconteceu.
Como focar em nossa iluminação que ainda não aconteceu? Não é muito fácil. Primeiro precisamos entender o que isso significa, que tipo de fenômeno é esse – um fenômeno que ainda não aconteceu. Por exemplo, precisamos considerar: será que o broto dessa iluminação que ainda não aconteceu já existe dentro de uma semente e está só esperando para sair? Ou será que esse broto não existe na semente?
Obviamente, precisamos ter um entendimento a respeito da vacuidade para conseguirmos compreender aquilo em que estamos focando. Nossa iluminação que ainda não aconteceu não está sentada em algum lugar, não está na linha de chegada da corrida em que estamos. Ela também não está sentada em algum lugar na nossa mente ou na nossa natureza búdica, só esperando para sair. Ela não é um objeto encontrável. Por outro lado, não estamos focando em algo que não existe; não estamos focando no nada. Precisamos entender que nossa iluminação que ainda não aconteceu pode ser validamente imputada em nosso contínuo mental com base nos fatores da natureza búdica. Também precisamos saber o que significa imputar validamente algo em uma base apropriada.
Para focar nessa iluminação que ainda não aconteceu, precisamos usar algum tipo de representação em nossa mente. Por exemplo, podemos imaginar o som da palavra “iluminação” ou podemos visualizar um buda na nossa frente. No tantra, podemos nos visualizar na forma de uma figura búdica. Em cada um desses casos, precisamos conceber o som ou a imagem mental como a representação de nossa iluminação que ainda não aconteceu.
Depois, como nossa mente foca nesse objeto mental? Focamos em nossa iluminação que ainda não aconteceu utilizando o objeto mental que a representa, com duas intenções. A primeira intenção é: “Vou atingir a iluminação”. Agora, termos essa intenção de atingir a iluminação depende de outras coisas que precisamos ter pensado a respeito ou compreendido. Precisamos saber realisticamente o que precisamos fazer para atingir a iluminação. Nossa atitude pode ser uma atitude casual de: “Ah, vou atingir isso”. Mas precisamos saber como vamos atingir e estarmos convencidos que que podemos atingir. Precisamos ter uma intenção válida de atingir a iluminação; caso contrário, isso não passará de um sonho. E, logicamente, precisamos entender corretamente o que significa a iluminação, o que também não é muito fácil. Adquirimos essa compreensão através do segundo passo do processo: pensar.
Nossa segunda intenção ao focar em uma representação mental é atingir a iluminação para beneficiar os outros ao máximo. Afinal, iluminar-se não significa tornar-se um deus onipotente. E a capacidade de beneficiar a todos, é claro, está baseada nos passos que demos para construir o alicerce sobre o qual bodhichitta se estabelece, ou seja, amor e compaixão. Estamos assumindo a responsabilidade de levar os demais seres à iluminação porque desejamos que se livrem de todo sofrimento e sejam totalmente felizes.
Esse processo de pensamento é um passo muito grande e requer muito trabalho, mas, ao final, entendemos e sabemos, com precisão e certeza, qual o estado mental que estamos tentando atingir e como gerá-lo. Também ficamos totalmente, e validamente, convencidos de que somos capazes de gerar esse estado mental e de que isso é extremamente benéfico.
Apesar desse processo de pensar parecer com meditação, de acordo com a definição tradicional, não é meditação. Ocidentais que não usam essa terminologia com muita precisão podem chamar esse processo de “meditação”, mas isso não está correto. A diferença entre pensar e meditar precisa estar clara.
O processo de pensamento é uma atividade que vale muito a pena, e pensar sobre os ensinamentos é algo que podemos fazer a qualquer hora. É algo muito útil e que podemos fazer enquanto estamos engajados em outras atividades. Por exemplo, quando estamos no trânsito, podemos pensar a respeito de como um determinado estado mental, como o amor, poderia ser aplicado nessa situação. De que forma ele poderia ser relevante? Quais seriam seus benefício? Podemos pensar nisso durante o dia.
Meditação
Agora chegamos ao terceiro estágio do processo de três passos: a meditação. A meditação é como a digerir a comida após mastigar. O propósito da meditação é fazer de um determinado estado mental um hábito, é nos tornarmos esse estado mental, depois de pensar sobre ele, compreendê-lo e convencer-nos de que podemos gerá-lo.
A meditação é um processo que tem basicamente dois passos”. O primeiro é o que eu traduzo como “meditação de discernimento”, mas é normalmente traduzido como “meditação analítica”. Porém, chamar de meditação analítica pode fazer com que seja confundido com o passo de pensar. Eu acho que a palavra “discernimento” é mais acurada. Nesse contexto, discernir significa escrutinar com muito cuidado e entender de uma certa forma. E o segundo aspecto da meditação é a meditação de fixação, na qual fixamos um estado mental e nos mantemos focados nele. Chamamos esse segundo estágio de “meditação de estabilização”.
Mas como realizar o primeiro passo, a meditação de discernimento? Durante o processo de pensar, nós seguimos uma linha de raciocínio ou passamos por estágios e passos para desenvolver um determinado estado mental. Fazemos isso para compreender o estado mental que queremos desenvolver e como desenvolvê-lo. Com a meditação de discernimento, seguimos novamente a linha de raciocínio ou os passos para desenvolver o estado mental. Mas, agora, fazemos isso para efetivamente gerar o estado mental e tê-lo fresquinho em nossa mente. Por exemplo, para desenvolver compaixão por todos os seres, seguimos a seguinte linha de raciocínio: “Todos já foram minha mãe, todos já foram bondosos comigo...”, e assim por diante, até desenvolver o estado mental e realmente senti-lo.
Uma vez que tenhamos desenvolvido passo-a-passo o estado mental ao qual queremos nos habituar, podemos ativamente discernir, ou entender, dessa forma o objeto em que estamos focando. Se estivermos meditando na compaixão, por exemplo, focamos em todos os seres limitados, mas especificamente neste detalhe que distinguimos neles: seus problemas e sofrimentos. Discernimos que estão sofrendo, temos o desejo de que se livrem desse sofrimento e a intenção de ajudá-los nisso. Estamos realmente vendo seres sencientes em nossa mente, estamos olhando para eles dessa maneira em nossa mente; mas poderíamos também estar vendo-os em pessoa. A compaixão é focada nos outros seres e no seu sofrimento, e há nela o desejo de que esses seres se livrem do sofrimento.
Mantemos esse discernimento por um tempo, em um processo ativo. A meditação de estabilização que vem a seguir é basicamente internalizar aquilo que discernimos, nos concentrar totalmente nesse tópico ou estado mental. Obviamente, também precisamos de concentração para a fase de discernimento, mas na fase de estabilização deixamos o sentimento penetrar profundamente em nosso coração: sentimos fortemente a compaixão.
Ficamos alternando esses dois estágios, discernimento e estabilização, e eventualmente conseguiremos combiná-los. Combinar os estágios de discernimento e estabilização é muito difícil. A discussão que envolve como combinar esses estágios é muito complexa. Se quiser saber mais detalhes, temos textos que tratam disso no site.
E quando formos muito avançados, não precisaremos mais fazer o que chamamos de “meditação trabalhada”. Meditação trabalhada é aquela em que temos que passar por todos os estágios para desenvolver o estado mental. Quando estamos em nível avançado, conseguimos fazer uma meditação de discernimento que não é trabalhada. Conseguimos gerar o estado mental desejado instantaneamente, sem precisar dos passos ou da linha de raciocínio. E depois continuamos utilizamos esse estado mental para discernir o objeto de foco, assim como fazíamos quando a meditação de discernimento era trabalhada
Tipos de Meditação
Normalmente, ouvimos falar de dois tipos de meditação. As palavras sânscritas para elas seriam “shamata” e “vipashyana”, ou, em tibetano “shinay” e “lhagtong”. Esses dois termos referem-se a dois estados mentais que almejamos atingir através do processo de meditação. Shamata é um estado mental quieto e assentado. Assentado no sentido de termos acalmados todos os níveis de torpor e agitação mental e do nosso foco assentar-se firmemente no objeto. Portanto, em shamata, a ênfase é na meditação de estabilização.
Podemos desenvolver esse estado mental quieto e assentado focando em várias coisas diferentes, como a respiração, a visualização de um buda e assim por diante. Há uma longa lista de possíveis objetos.
Mas até mesmo para a meditação shamata precisamos ouvir as instruções e pensar a respeito dos estágios de meditação. Por exemplo, se quiséssemos visualizar um buda, a instruções seriam sobre como construir essa imagem mental, passo a passo. Depois, pensaríamos o que fazer em primeiro lugar, em segundo e assim por diante.
“Vipassana” significa um estado mental extremamente perceptivo. É um estado mental capaz de perceber as coisas de uma forma excepcional. A meditação vipassana, portanto, dá ênfase à meditação de discernimento. Atingir o estado de vipassana é atingir um estado de excepcionalmente perceptivo, capaz de discernir a impermanência e a vacuidade, mas não apenas isso. No anuttarayoga tantra, a classe mais alta do tantra, um dos métodos para desenvolver vipassana é visualizando um pequeno ponto ou gota na ponta do nariz. Mantendo a visualização desse ponto, você visualiza depois mais dois pontos em uma próxima fileira, e depois quatro, oito, dezesseis, trinta de dois e assim por diante. Você tem que mantê-los perfeitamente ordenados e depois dissolver a visualização em estágios. Esse tipo de visualização faz com que você desenvolva uma mente extremamente afiada e perceptiva. Se você realmente quiser desenvolver um nível elevado desse estado mental, existem práticas nas quais você visualiza, em cada gota, toda a mandala do sistema de deidades que você pratica, com todas as deidades e detalhes. Se conseguir fazer isso, é porque você tem um estado mental extremamente perceptivo!
Esses dois tipos de meditação, shamata e vipassana, existem em todas as tradições budistas, assim como em muitos dos outros sistemas indianos. Na tradição budista Teravada, essas meditações são conhecidas em seus nomes Pali, que são “samatha” e “vipassana”. Também encontramos esses dois tipos de meditação no Zen. No budismo Son, o Zen Coreano, há um koan que diz: “O que é isso?” Quando focamos em “O que é isso?”, o ponto não é responder: “Isso é uma mesa” ou “Isso é um copo”. O ponto é desenvolver um estado de “profunda dúvida” – sempre questionar a realidade de “o que é isso”. Assim, nosso estado mental torna-se excepcionalmente perceptivo.
Há uma estória muito engraçada que mostra que os mestres tibetanos não são familiarizados com a tradição Zen: em um famoso encontro entre um mestre Zen e Kalu Rinpoche, o mestre Zen segurou uma laranja e perguntou: “O que é isto?” Kalu Rinpoche olhou para o tradutor com uma cara de quem não estava entendendo nada e perguntou: “Como assim, não existem laranjas no país dele?”
Voltando à shamata e vipassana. Shamata não é só uma concentração perfeita que é desenvolvida através de nove estágios, usando diferentes tipos de atenção, etc. Além da concentração perfeita, shamata também é imbuída do que se chama de um “estado mental vigoroso”. “Uma sensação de estar preparado e ser capaz (ing. fitness)” seria o termo técnico. Além da concentração perfeita, existe essa sensação de estar preparado, de ser capaz, um estado de vigor físico e mental. Essa sensação é similar ao estado de um atleta perfeitamente treinado.
Tsenshap Serkong Rinpoche, meu professor, explicou que o estado mental de shamata é como ter um avião a jato: se você o colocar no chão ele fica e se quiser voar ele voa. Você tem a impressão de que pode concentrar-se em qualquer coisa, pelo tempo que quiser. O corpo não se cansa, a mente não se cansa; você se sente totalmente apto a fazer qualquer coisa, e cheio de vigor. Shamata é um estado mental vigoroso, energético e alegre. Mas não é uma alegria exuberante, em que você tem vontade de sair pela rua cantando e dançando como em um filme – não é isso. Em shamata a mente é afiada, como um atleta extremamente bem treinado.
É importante esclarecer que o estado mental de vipassana é adicional à shamata. Vipassana adiciona ao estado de perfeita concentração e aptidão de shamata uma segunda sensação de aptidão, que é a sensação de estar apto a entender e discernir qualquer coisa.
Existe ainda um outro tipo de meditação, que geralmente é chamada de “meditação de olhadela (ing. glance)”. Quando trabalhamos em uma determinada prática meditativa, vez por outra temos que rever todo o caminho budista. O objetivo é lembrarmos de como nossa meditação se encaixa no caminho, assim não enfatizamos um tópico e pulamos ou negligenciamos outro. A meditação de olhadela significa rever todo o caminho; é um tipo de revisão.
Há muitos anos fui a Moscou com o Dr. Tenzin Choedrak, que era o médico pessoal de Sua Santidade o Dalai Lama. Estávamos trabalhando em um projeto para usar a medicina tibetana afim de ajudar as vítimas da radiação de Chernobil. Ficamos em ótimos hotéis e éramos escoltados por agentes do Ministério da Saúde. Várias vezes nos levaram aos famosos banquetes russos de sete pratos. Agora, o Dr. Tenzin Choedrak passou vinte anos em um campo de concentração chinês antes de conseguir sair do Tibete e ir para a Índia. Então, quando serviam o primeiro prato, não adiantava avisar a ele que viriam mais seis, ele comia como se não fosse mais comer por semanas. Isso é uma analogia da situação que queremos evitar ao fazer a meditação de olhadela. Queremos rever e ter em mente o menu completo de sete pratos. Assim, não meditamos demais em um único tópico. Isso seria como devorar o primeiro prato e não poder aproveitar os demais.
Bom, eu falei das meditações que geram um determinado estado mental, mas essas não são as únicas meditações que fazemos no budismo. Em algumas práticas de meditação, nas meditações na natureza da mente, da linhagem Kagyu, e em algumas práticas do Zen, a abordagem é diferente. Ao invés de desenvolvermos um estado mental, nós acalmamos o estado mental para descobrir que existem certas qualidades natas em nossa mente, como o amor e a clareza mental, e acessá-las. Mas mesmo quando fazemos esse tipo de meditação, precisamos primeiro ter ouvido as instruções a depois pensado nelas até entende-las. Também precisamos saber em que se baseia esse estado mental que estamos nos acalmando para alcançar, o que é que vamos alcançar, o que precisamos fazer primeiro e assim por diante. A estrutura do tipo de meditação em que nos aquietamos é a mesma das meditações em que desenvolvemos alguma coisa.
O Ambiente Mais Propício à Meditação
Existem extensas instruções sobre como fazer uma sessão de meditação, como arrumar o espaço de meditação limpando o chão e o cômodo, instruções para fazer prostrações, oferendas e assim por diante – tudo isso é muito importante para montarmos um ambiente propício à meditação. Mas apesar de ser importante ter circunstâncias propícias, um ambiente adequado, um assento apropriado, um ambiente limpo, não precisamos de um ambiente todo elaborado. Não precisamos gastar um monte de dinheiro para ter todos os acessórios dourados, incenso, música New Age de fundo, etc. Certamente Milarepa não tinha isso e teve muito sucesso em sua meditação! Temos que tentar deixar nosso espaço o mais bonito e arrumado possível, mas sem exagerar e sem fazer isso só para impressionar.
E precisamos conseguir meditar em qualquer lugar. Se formos fazer uma longa viagem de trem, não podemos dizer: “Não posso meditar no trem porque não tenho minhas tigelas de água, não posso acender um incenso, não posso fazer prostrações, etc.” Quando desenvolvemos um pouquinho de proficiência em meditar, conseguimos meditar em qualquer lugar, quer seja em um trem ou em uma fila. Até mesmo no cotidiano, entre as sessões formais de meditação, podemos lembrar de tratar os outros com amor e compaixão – isso é meditar, não é?
Lembre-se, a função da meditação é internalizar os ensinamentos – torná-los parte de nós, para que consigamos aplicá-los no dia a dia. Se a meditação for algo totalmente separado do nosso cotidiano, será apenas um hobby. E se a nossa meditação envolver visualizações tântricas exóticas, pode virar uma viagem à Disneylândia, a uma ilha da fantasia que não tem nada a ver com a nossa vida cotidiana. Se tomarmos esse caminho, perderemos a estabilidade mental e a meditação terá muito pouco efeito em nossa vida. Lembre-se, o propósito da meditação é aplicá-la à vida.
E não importa onde estejamos, quando vamos meditar, temos que primeiro estabelecer a motivação, afirmar a motivação e ter a intenção de meditar com concentração. Se a nossa mente se distrair, a trazemos de volta. Se ficarmos com sono, nos despertamos. E, no final da meditação, temos que dedicar a força positiva. Se não dedicarmos a força positiva gerada pela meditação, nosso esforço em meditar melhorará apenas a nossa situação samsárica. Queremos dedicar a energia positiva à iluminação, ao benefício de todos os seres.
Meditação Individual versus Meditação em Grupo
Algumas pessoas meditam individualmente. Os tibetanos meditam principalmente a sós; eles não fazem meditação em grupo, apesar de nos monastérios os monges e monjas recitarem orações e texto ritualísticos em grupo. Mas, no ocidente, desenvolvemos o costume de meditar em grupo. Para a maioria das pessoas, o maior benefício de meditar em grupo é desenvolver disciplina. Sozinhos não temos a disciplina de sentar e meditar. Nos levantamos bem antes do tempo pretendido para nossa sessão. Já se tivermos em grupo, temos mais disciplina. Tendemos a nos mexer menos, porque temos vergonha de ficar o tempo todo nos mexendo.
Mas algumas pessoas simplesmente não gostam de meditação em grupo, pois se distraem com as outras pessoas, especialmente se elas ficam tossindo e se mexendo, então elas preferem meditar sozinhas. E se o grupo estiver recitando alguma coisa em uníssono, e algumas pessoas estiverem recitando mais devagar ou rápido que o resto do grupo, elas ficam extremamente irritadas e entediadas.
Precisamos julgar o que é melhor para nós – meditar individualmente ou em grupo. Mas eu percebi uma coisa interessante ao meditar com grupos pequenos, de uma ou duas pessoas: a meditação pode ser muito boa quando temos um vínculo especial com as outras pessoas, sentimos uma grande harmonia. É como se nossas energias se reforçassem mutuamente. Meditar com essas pessoas nos dá muito mais energia e clareza. Mas quando a energia dos indivíduos do grupo se choca, o efeito é oposto: ficamos perturbados e nossa mente mais entorpecida. Portanto, se for meditar com outras pessoas, você precisa saber com quem vai meditar.
A Importância da Perseverança
A última orientação é uma das mais importantes, diz que a natureza do samsara é ter altos e baixos e, portanto, a nossa meditação também terá altos e baixos. Nossa prática de meditação nunca será um processo linear que fica melhor a cada dia. Alguns dias a meditação será boa, e outros nem tanto. Alguns dias vamos querer meditar e outros não. Isso é totalmente normal e natural – é a natureza do samsara. A questão é: não importa como você se sinta, simplesmente persevere e continue. Se tiver o pensamento: “Não estou com vontade de meditar” – e daí? Medite assim mesmo. Mantenha a continuidade; medite todos os dias, mesmo que seja por apenas dois ou três minutos. Essa continuidade é muito importante para adquirirmos estabilidade no caminho.
E não faça uma sessão muito longa, especialmente no começo. Três ou cinco minutos é suficiente. Caso contrário, ficará pensando: “Não vejo a hora disso acabar” e não vai querer meditar novamente. Se você terminar a meditação enquanto ainda estiver sentindo vontade de continuar, terá prazer em meditar novamente. É como separar-se de uma pessoa com quem você ainda gostaria de ficar mais tempo; você fica querendo vê-la novamente em breve. Porém, se estiver com uma pessoa, já estiver cansado dela e ela não for embora, não ficará muito feliz em vê-la novamente.
E, finalmente, é importante aumentarmos gradualmente o tempo que meditamos. Mas seja flexível – é muito importante que sejamos flexíveis. Como eu disse: Nunca deixe de meditar, nem mesmo por um dia. Se meditar todos os dias, ira adquirir estabilidade e confiança. Mas seja flexível: algumas vezes conseguirá fazer toda a meditação e outras, quando não tiver tempo, terá que fazer uma versão condensada. Mas faça algo todos os dias. E não seja fanático, não se esforce demais. Meu koan favorito é: “A morte pode chegar a qualquer hora. Relaxe!”