Renunciando ao Sofrimento do Samsara

O Sofrimento dos Planos Mais Elevados de Existência

Uma pessoa realmente espiritualizada, ou praticante do dharma, é alguém que trabalha para melhorar suas vidas futuras. Tal pessoa, em um nível inicial, segue a ética de evitar as dez ações destrutivas. Ela se engaja em ações construtivas a fim de obter um renascimento melhor e assim por diante. Tal pessoa tem um nível inicial de motivação. Ao tomar refúgio, ou seja, ao dar uma direção segura e positiva em sua vida, dessa maneira, ela conseguirá renascer como um ser humano ou um deus. Mas não podemos nos satisfazer apenas com isso. Pois, mesmo que renasçamos como um ser humano ou um deus, ainda assim será um tipo compulsivo de existência, e o tipo de felicidade que se consegue com esses renascimentos é a felicidade mundana e perecível.

De fato, todos esses estados que se pode alcançar são apenas exemplos de verdadeiros sofrimentos ou verdadeiros problemas. Tendo como base um renascimento humano ou como um deus, é possível se alcançar um estado mental tranquilo e estável, uma mente de shamata, quietude mental. E, tendo como base uma mente tão calma e estável, é possível renascer em um dos planos superiores da existência, um dos reinos mais elevados. Nesse estágio, se renascermos no plano das formas etéreas (o reino da forma), por exemplo, não manifestaremos quaisquer emoções ou atitudes perturbadoras associadas ao plano dos desejos sensoriais (o reino do desejo). Da mesma forma, se renascermos no plano dos seres sem forma (o reino sem forma), não manifestaremos quaisquer emoções ou atitudes perturbadoras associadas ao plano das formas etéreas. À medida que ascendemos a estes planos mais elevados de existência nos vários reinos de deuses, os estados tornam-se ainda mais notáveis, um após o outro. Por exemplo, o chão nesses planos de existência é feito de joias. Os corpos dos vários seres são belos e primorosos, e os vários aspectos que os diferenciam tornam-se ainda mais maravilhosos à medida que ascendemos.

No entanto, mesmo que nasçamos em um desses planos superiores de existência, onde tudo é tão maravilhoso e agradável, ainda assim teremos um tipo compulsivo de existência. Ainda assim teremos que vivenciar os problemas incontrolavelmente recorrentes do samsara. Por exemplo, podemos renascer em um desses planos mais elevados, mas depois acontecer a situação incontrolavelmente recorrente de cair em um renascimento em um plano inferior. Portanto, podemos até renascer em um plano mais elevado, subir e descer; mas, na verdade, a maior parte do tempo nós passamos nos vários estados piores de renascimento. Essa não é uma situação satisfatória, é como subir no topo de um arranha-céu: quando chegamos lá, a única coisa que nos resta a fazer é descer.

Podemos ver que renascer como um humano ou como um deus não é essencialmente bom, e continuamos tendo problemas incontrolavelmente recorrentes. Quando percebemos e compreendemos isso, pode surgir uma dúvida em nossa mente, de que talvez não seja necessário tentar obter um desses renascimentos, e, portanto, não seja necessário manter a ética de abster-se das dez ações destrutivas para renascer como um humano ou como um deus. Mas a questão não é satisfazer-se apenas em obter um desses renascimentos melhores, mas sim desejar obter tais renascimentos a fim de ser mais capaz de beneficiar os outros e de progredir espiritualmente. Não poderemos fazer nada disso se não obtivermos tais renascimentos.

As Circunstâncias Mais Favoráveis em um Renascimento Humano

Se, quando renascermos como humanos, tivermos uma vida longa, formos fisicamente fortes, tivermos forte influência positiva sobre os outros e uma grande quantidade de recursos disponíveis, isso nos permitirá beneficiar mais os outros. Por exemplo, se tivermos uma vida curta, mesmo que estejamos intensamente interessados nas práticas espirituais do dharma e nos dediquemos a elas, será muito difícil chegar ao final de nosso treinamento e de nossos estudos. Se sofrermos de doenças graves ou problemas físicos, isso também nos prejudicará muito. Isso pode até nos impedir de tomarmos votos como um monge ou monja. Por isso, também é muito importante e útil ter uma boa saúde.

Além disso, se renascermos em uma boa família e formos uma pessoa influente, naturalmente poderemos não apenas ter circunstâncias favoráveis para progredirmos, mas também estar em uma posição em que os outros nos escutarão. Poderemos incentivar outras pessoas em seu caminho espiritual. Se quisermos ter esse tipo de renascimento humano, é necessário gerar suas várias causas. Tais causas incluem ter grande respeito por nossos pais e por todos aqueles que possuem grandes talentos e boas qualidades.

Além disso, se tivermos um corpo e uma aparência bonita, outras pessoas se sentirão naturalmente atraídas por nós. Elas irão onde estivermos e vão querer ouvir o que dissermos. As causas para isso são, por exemplo, meditar e desenvolver o hábito de ter paciência e tolerância, nunca ficar com raiva e fazer oferendas de comida, flores, ornamentos e roupas para as várias estátuas e representações do Buda. Também precisamos oferecer comida e roupas para aqueles que são muito pobres ou doentes. Assim, geramos as causas para termos boa aparência.

Se tivermos bastante vigor físico, mental e força de vontade, seremos capazes de realizar grandes feitos e ver o fruto de nossa prática e esforço. As causas para isso são realizar várias ações físicas e mentais que outros não conseguem sequer conceber.

Também é importante ter credibilidade, para que os outros levem a sério o que dissermos, sejam eles humanos ou deuses, ou quem quer que esteja nos ouvindo. Se tivermos credibilidade, isso nos permitirá ajudar muito. A causa para isso é ser muito sincero em tudo o que você disser, não mentir, não usar linguagem grosseira e não cometer qualquer outra ação destrutiva da fala. Por exemplo, podemos ter duas pessoas que dizem exatamente as mesmas palavras com exatamente o mesmo significado, mas a primeira é ouvida e a outra não. A diferença vem dos vários tipos de ações que essas pessoas realizaram no passado. A pessoa que mentiu frequentemente, que falou palavras vazias e gostava de uma conversa fiada - ninguém prestará atenção ao que ela disser.

Temos todas essas ações causais que produzem boas qualidades como resultado. Precisamos gerar essas causas para renascermos com um corpo humano que tenha essas características. É importante realizar todas essas ações causais porque, se renascermos, por exemplo, numa família ou sociedade de criminosos ou pessoas extremamente negativas, será muito difícil superarmos esse obstáculo à nossa prática espiritual. Mesmo que tenhamos várias qualidades excelentes, é importante não termos outros fatores que nos impeçam de usá-las plenamente. Para fazer isso, precisamos oferecer vários tipos de orações, como: “Que eu tenha sempre um renascimento humano precioso totalmente dotado de todas as qualidades positivas e condições favoráveis. Em todas as minhas vidas, que eu jamais renasça em situações em que tenha muitos obstáculos a superar. Que eu esteja sempre em posição de ajudar os outros e que eu nunca, em nenhuma das minhas vidas, renasça como alguém que causa muitos danos ou problemas”. Esse é o tipo de oração que precisamos fazer a fim de renascermos com um corpo humano precioso, e com todas as qualidades positivas e circunstâncias propícias para utilizá-lo.

A Determinação de Se Livrar do Samsara

Mas não devemos ficar satisfeitos apenas em conseguir um renascimento humano precioso com todas essas características positivas. Isso porque, por mais esplêndida que seja uma vida assim, ela ainda apresenta problemas recorrentes incontroláveis. De fato, não importa quão boa ela possa parecer, sempre haverá problemas e sofrimento. Todas as situações incontrolavelmente recorrentes em que podemos renascer, situações samsáricas, não envolvem nada além de problemas. Precisamos estar cientes e pensar sobre isso: "Não importa quanta riqueza ou quantas coisas positivas eu possa ter em minha vida, ainda assim terei que enfrentar muitos problemas." Se pensarmos seriamente sobre todos os diferentes problemas e sofrimentos que existem, vamos desenvolver a atitude de desejar estar livre de todos eles. Com base nesse forte desejo de nos libertarmos de todos os problemas e sofrimentos, trabalharemos para alcançar o estado de liberação. E, novamente, isso é algo que podemos fazer com base neste precioso renascimento humano que temos.

O próximo verso fala sobre isso:

(5) Os esplendores da existência compulsiva, mesmo quando aproveitados, nunca nos satisfazem; porta de entrada de todos os problemas, não servem para dar segurança à mente. Ciente desta armadilha, peço inspiração para desenvolver um grande e ávido interesse pelo êxtase da liberação.

As Armadilhas e Problemas do Samsara

A primeira linha, “Os esplendores de uma existência compulsiva, mesmo quando aproveitados, nunca nos satisfazem”, refere-se ao primeiro tipo de problema que todos nós inevitavelmente enfrentaremos, não importa o tipo de renascimento que tenhamos. O problema é que não importa quantas coisas esplêndidas tenhamos - não importa quanta riqueza e prazer tenhamos - ninguém sente que é suficiente; nunca é suficiente. É como estar com muita sede e beber água salgada: não importa quanta água salgada bebamos, ela nunca vai saciar nossa sede. O mesmo acontece quando alguém tem muitos prazeres e assim por diante. Por estarmos presos à situação incontrolavelmente recorrente do samsara, nunca sentimos que temos o suficiente. Sempre queremos mais e mais. Quando uma pessoa alcança uma alta posição social ou um alto cargo, nunca sente que é alto o suficiente; ela sempre quer lutar por uma posição cada vez mais alta. Esta é a situação que todos nós encontramos: não importa quanta riqueza tenhamos, não importa quantas coisas tenhamos acumulado, todo mundo quer mais e mais. Mas todas essas coisas simplesmente acabam. Não importa quantas coisas acumulemos, tudo vai acabar.

Quanto mais coisas temos, mais problemas temos. É como diz aqui: “porta de entrada de todos os problemas”. Por exemplo, se tivermos uma fortuna de um milhão de libras, teremos todas as preocupações associadas a mantê-la, a não perdê-la, e assim por diante. Isso nos trás muito preocupação. Existem pessoas que possuem apenas cinco ou seis libras, apenas o suficiente para comprar uma refeição, e são bastante felizes. Suas mentes são livres. Existem outras, por sua vez, que têm muito dinheiro, mas agarram-se a ele com tanta força que não estão dispostas a gastar e desfrutar de nem mesmo cinco ou seis libras. Portanto, quanto mais temos, mais e mais problemas isso nos trás: nos tornamos avarentos e assim por diante.

E não importa quantos amigos e conhecidos tenhamos, o resultado final de uma reunião de amigos é que todos partem e vão para casa. O destino de qualquer coisa que se junta é se separar e seguir o seu próprio caminho. Não importa o quanto subimos, o resultado natural será descer. Por exemplo, quando este castelo em que estamos foi construído, era um edifício muito bonito, mas com o tempo ele caiu em ruínas. Coisas assim, como diz o texto, “não servem para dar segurança à mente”. Não importa quão esplêndida uma coisa possa ser, ela sempre será repleta de armadilhas.

Existem muitos outros problemas que podemos ter, e não importa em que estado de renascimento nos encontramos. Há o problema de nunca nos satisfazermos, isso já foi mencionado. Mas há também o problema de não haver qualquer certeza na vida. Alguém pode ser um grande funcionário, ter um cargo muito alto e então, no final de sua vida, ficar pobre e arruinado. Isso pode acontecer no período de uma única vida. Da mesma forma, alguém que é um amigo no início de nossa vida pode se transformar em nosso pior inimigo. E alguém que odiamos no começo de nossa vida e consideramos nosso inimigo pode mudar e tornar-se nosso melhor amigo. Portanto, não há como definir se alguém é um amigo ou um inimigo. Além disso, não importa o quanto desejamos que certas coisas aconteçam, ou o quanto desejamos obter certas coisas, muitas vezes temos grande dificuldade em conseguir o que queremos e conseguimos o que não queremos. Na verdade, parece que todas as coisas que nós não queremos simplesmente aparecem.

Os Sofrimentos de um Renascimento Humano

Falando apenas dos seres humanos e dos nossos sofrimentos, temos todos os problemas relacionados a envelhecer e a ser velho. À medida que envelhecemos, temos doenças cada vez piores. Isso é algo que podemos ver com nossos próprios olhos. Há também o problema de ficar doente [mesmo sendo jovem]. Isso também é algo que basta olhar à sua volta para ver: há muitas pessoas doentes. E quando somos nós que ficamos doentes, também experimentamos todo tipo de sofrimento e de infelicidade por estarmos doentes.

Há também o sofrimento terrível do momento da morte. Não importa quão bons sejam os remédios ou os médicos, nenhum deles pode nos ajudar na hora da morte. Nesse momento, a infelicidade e o sofrimento que sentimos são do pior tipo. Se não existissem renascimentos futuros, tudo bem, a morte seria o fim de tudo.  Mas não é assim. Existem renascimentos futuros. Nós temos que renascer.

Antes de renascermos, nós morremos, e imediatamente depois passamos para o estado intermediário, o bardo. Lá, se tivermos gerado uma grande quantidade de potenciais negativos, nós vamos passar por muitas situações assustadoras, ficaremos aterrorizados e sofreremos muito. Não importa o quanto trabalhemos em nossa vida tentando ter segurança material, acumulando uma grande quantidade de riqueza e posses; no momento da morte, teremos que deixar tudo para trás. Não podemos levar nada conosco - nem amigos, nem companheiros, nem parentes; ninguém pode ir conosco. Temos que entrar no período intermediário sozinhos. Se tivermos acumulado muitos potenciais negativos durante nossa vida, vamos passar por uma experiência extremamente aterrorizante. O sofrimento pelo qual podemos passar nesse período é muito ruim.

No período intermediário, temos a forma física de um ser humano de aproximadamente oito anos de idade. O estado intermediário desta vida já passou; foi o período antes de nascermos. O período intermediário pelo qual passaremos depois de nossa morte será o período intermediário antes da próxima vida. Se formos renascer como um ser humano, no estado intermediário depois de morrermos teremos uma forma física similar a que teremos em nossa próxima vida. Isto porque, o estado intermediário de existência e o próximo renascimento são ambos lançados pelo carma de lançamento que nos projeta para o próximo renascimento.

Foi apenas por razões auspiciosas que falei de sermos um ser humano nesta vida e também nascermos como um ser humano na próxima vida. Mas, obviamente, nem sempre é esse o caso. Nós podemos passar de qualquer estado de renascimento para qualquer outro. Se quisermos renascer como um humano novamente, no final do estado intermediário de existência, teremos que passar pela existência do momento da concepção. Nos encontraremos dentro do ventre de uma mãe, e o sofrimento e a infelicidade que teremos lá serão muito intensos. Teremos que ficar calados e confinados em um pequeno espaço por um período de mais de nove meses - nove meses e dez dias. Pense em ter que ficar calado em um armário muito pequeno, sem janelas e sem portas por nove meses, pense no quanto você seria infeliz, no quanto detestaria ficar confinado assim durante esse período de tempo. Se pensarmos bem, veremos que o sofrimento de ficar confinado em um útero é horrível.

E pense em todos os problemas que uma criança tem que enfrentar. Não é divertido ser um bebê: não podemos conversar, não podemos andar e não conseguimos controlar nosso intestino. Nos sujamos o tempo todo, e isso não é nada divertido. E à medida que vamos crescendo, temos que passar por todo o processo de ir à escola. Isso também nos tráz muito problemas e não é muito agradável.

Esses são os tipos de situação que se repetem incontrolavelmente. Passamos repetidamente por esse ciclo. É disso que se trata o samsara, uma existência incontrolavelmente recorrente. Mesmo que sempre renasçamos como um ser humano, teremos que passar repetidamente por esse ciclo incontrolavelmente recorrente. Às vezes as coisas funcionam bem e outras vezes não. Na verdade, na maioria das vezes as coisas não funcionam muito bem. De fato, nossas vidas serão cheias de problemas e sofrimentos. Se tivermos coisas - dinheiro, posses, amigos, fama e assim por diante -, teremos problemas em mantê-las, e se não tivermos essas várias coisas que queremos, teremos os problemas de não as ter e desejaremos tê-las. Em suma, não importa se temos ou não as coisas, nós sempre iremos perdê-las; nós sempre teremos problemas e sofrimentos.

A Verdadeira Fonte de Todos os Problemas

Agora, o que temos que ver é o seguinte: Quais são as causas, qual é a raiz, de todos esses vários sofrimentos e problemas? Se eles não tivessem uma causa, não haveria como nos livrarmos deles. Mas eles têm uma causa. Se perguntarmos: “Qual é a raiz ou a base para os nossos problemas?”, veremos que todos eles vêm das verdadeiras fontes de todos os problemas e sofrimentos, ou seja, de nosso comportamento impulsivo e de nossas emoções e atitudes perturbadoras. Todos os nossos problemas, toda a cadeia de problemas que temos, vêm de agirmos impulsivamente, e isso é carma. Agimos impulsivamente porque temos várias emoções e atitudes perturbadoras, ou ilusões. E de onde elas vêm? Todas elas vêm de nos agarrarmos às coisas como se elas existissem de maneiras impossíveis, como se tivessem identidades inerentes, verdadeiras, encontráveis, estabelecidas independentemente, por si só. Esse tipo de inconsciência ou ignorância com a qual nos agarramos às coisas, como se elas tivessem identidades realmente encontráveis, é a raiz de todos os nossos problemas. Nos agarrarmos dessa maneira faz com que tudo dê errado; essa é a raiz de todos os nossos problemas e sofrimentos.

O Buda girou a roda do dharma três vezes e fez três rodadas de transmissão das medidas preventivas. Isso muita gente sabe. A primeira rodada de transmissão contemplou os quatro fatos vistos como verdadeiros pelos seres altamente realizados, as Quatro Nobres Verdades. Dos quatro fatos que são vistos como verdadeiros pelos seres altamente realizados, ou seja, pelos aryas, o primeiro diz respeito aos verdadeiros problemas ou verdadeiros sofrimentos; o segundo à verdadeira fonte de todos os problemas ou sofrimentos, a saber, o comportamento impulsivo e as emoções perturbadoras. Estes vêm de nos agarrarmos às coisas como se tivessem identidades verdadeiras.

Como Não se Agarrar a uma Identidade Verdadeira

De fato, as coisas não têm identidades inerentes, verdadeiras e localizáveis, estabelecidas independentemente por elas mesmas. Quando projetamos que a identidade das coisas funciona assim, quando na verdade não funciona, e acreditamos que o que percebemos é a verdade, isso significa que estamos apreendendo as coisas como se tivessem identidades verdadeiras. Isso é uma cognição distorcida, porque está se agarrando a algo impossível, que não existe de forma alguma; não existem identidades verdadeiras. Tentar entender as coisas como se existissem tais identidades é uma distorção. Não se refere a nada real; não corresponde à realidade. Se conseguirmos desenvolver a compreensão de que não existem identidades verdadeiras, isso se oporá diretamente à inconsciência ou ignorância que nos faz apreender as coisas como se existissem identidades verdadeiras. Portanto, a compreensão e a mente com as qual percebemos que não existem identidades verdadeiras afetarão negativamente a atitude com a qual nos agarramos às coisas como se elas tivessem identidades verdadeiras.

Se perguntarmos: "Como essa compreensão pode afetar nossa atitude distorcida?" A resposta é que quando desenvolvemos fortemente, como um hábito mental benéfico, a percepção de que não existem identidades verdadeiras, eliminamos automaticamente a atitude com a qual nos agarramos às coisas, como se existissem identidades verdadeiras. Isso porque, a crença de que algo existe e a percepção de que não existe e nunca existiu são mutuamente excludentes. Por meio desse processo, quando não mais entendermos as coisas como se tivessem identidades verdadeiras, não teremos mais emoções ou atitudes perturbadoras.

É como cortar as raízes de uma árvore, a árvore cai e as folhas e galhos não crescem mais. Quando paramos de nos agarrar às coisas como se tivessem identidades verdadeiras, eliminamos todos os 84 mil tipos de emoções e atitudes perturbadoras que surgem da concepção errônea da realidade. Em outras palavras, uma vez que todas as 84.000 atitudes perturbadoras surgem de nos agarrarmos às coisas como se tivessem identidades verdadeiras, quando realmente percebemos que não existem identidades verdadeiras, é como arrancar a raiz de todo sofrimento. Portanto, a compreensão de que não existem identidades verdadeiras é a verdadeira raiz da liberação. Portanto, acostumar-nos a esse entendimento e desenvolvê-lo como um hábito benéfico, pode ajudar muito. Todos os nossos problemas e sofrimentos deixarão de surgir.

O Par Purificador e o Par Perturbador Dentro das Quatro Nobres Verdades

Esse estado, em que os problemas não surgem mais, em que os problemas cessam, em que eles estão ausentes, é conhecido como "verdadeiro cessar", uma "verdadeira cessação". Podemos perguntar: "Como esses problemas são eliminados? Como atingir esse estado onde há um verdadeiro cessar dos problemas?” Esse estado é alcançado por meio de um caminho mental através do qual compreendemos que não existe identidade verdadeira em coisa alguma. Tal compreensão é um verdadeiro caminho mental - a quarta nobre verdade. Portanto, aquilo que faz com que todos os nossos problemas cessem é um caminho mental, e nele temos a consciência discriminativa, com a qual vemos que não existem identidades verdadeiras – ou seja, temos a consciência discriminativa da vacuidade, da ausência total de identidades verdadeiras. Esse verdadeiro caminho mental é uma causa para obtermos como resultado um verdadeiro cessar de nossos problemas, de tal forma que eles nunca voltem a ocorrer. Portanto, definimos que os verdadeiros caminhos mentais e as verdadeiras cessações são um conjunto, onde os primeiros são a causa e as últimas o resultado.

Mas temos que distinguir com cuidado que tipo de resultado é um verdadeiro cessar. O verdadeiro cessar é o resultado de uma separação, que é um tipo específico de resultado. Ele não é o tipo de resultado produzido por causas e condições, como é a obtenção desse verdadeiro cessar. Em vez disso, o verdadeiro cessar, em si, é o tipo de resultado que é um fenômeno estático não condicionado. Sendo o resultado de uma separação, é uma ausência estática de algo, que não depende de causas e condições e nunca muda.

Assim, dentre os quatro fatos vistos como verdadeiros, ou seja, as Quatro Nobres Verdades, as verdadeiras cessações e verdadeiros caminhos mentais são o lado da purificação. E o lado perturbador é o das duas primeiras verdades. Aqui, as verdadeiras causas de todos os problemas são a causa, e os verdadeiros problemas são o resultado.

Há um mantra muito recitado chamado “a essência da originação dependente” (rten-'brel snying-po): Om ye dharma hetu prabhava, hetun teshan tathagathohya vadate, teshanca yo nirodha, evam vadi maha-shramanaye svaha. É uma frase em sânscrito que significa: “Om, qualquer fenômeno originado de uma causa, Aquele que Assim se Foi falou sobre sua causa; e qualquer que seja o cessar desse fenômeno, também foi mencionado pelo Grande Asceta, Svaha”. Esse mantra se refere a essas duas relações de causa e efeito dentro das Quatro Nobres Verdades.

O Buda alcançou um estado de total clareza mental e total evolução - alcançou a iluminação. E depois de alcançar a iluminação, ele ensinou a seus vários discípulos o caminho para que eles também se libertassem de todos os seus sofrimentos. Ele ensinou esses quatro fatos vistos como verdadeiros por seres altamente realizados. Se seguirmos esses ensinamentos e instruções sobre as Quatro Nobres Verdades, nós também poderemos alcançar um estado de liberação, exatamente como o Buda.

Desenvolvendo Interesse pela Liberação

Vimos que certamente não queremos problemas, e certamente queremos felicidade. Além disso, queremos o tipo de felicidade que é duradoura e estável. O único tipo de felicidade que é assim é a felicidade de alcançar o estado de liberação - liberdade de todos os nossos sofrimentos e problemas. Nós não só temos interesse em obter a libertação do samsara como também estamos convencidos de que isso realmente pode acontecer. Porém, a conquista de um estado de libertação do sofrimento não acontece sem que haja uma causa. Certamente é necessário haver uma causa. A causa é: obter a consciência discriminativa com a qual vemos que não existe uma identidade verdadeira em coisa alguma. Se entendermos que é necessária uma causa, e gerarmos a causa da libertação, desenvolvendo essa consciência discriminativa, poderemos realmente alcançar a felicidade que desejamos. Podemos alcançar o estado de felicidade duradoura, a felicidade de um estado de liberação total de todos os nossos problemas e sofrimentos. Se quisermos alcançar este estado de liberação, precisamos desenvolver um ávido interesse por ele.

E como desenvolver esse ávido interesse? Como realmente alcançar esse estado? Em primeiro lugar, por meio do que é conhecido como “consciência discriminativa elevada”, às vezes chamada de “treinamento em sabedoria elevada”. Para obter esse treinamento, precisamos antes treinar a concentração absorvida elevada. E, para isso, precisamos primeiro treinar a autodisciplina ética elevada. A autodisciplina ética e a concentração absorvida atuam como uma base estável para obter-se uma consciência discriminativa elevada. Esse treinamento em autodisciplina ética elevada implica manter vários conjuntos de restrições a fim de obter a liberação individual - os votos de pratimoksha.

Os Votos de Restrição para a Liberação Individual e a Importância de Manter a Ética

(6) Induzido por esse pensamento puro e motivador, peço inspiração para realizar com presença mental, atenção e muito cuidado, as práticas de liberação individual, a raiz dos ensinamentos.

Há oito conjuntos de restrições de votos para a liberação individual - três para chefes de família e cinco para monásticos. Dentre os cinco grupos de votos para monásticos, temos o conjunto para monges completos, com duzentos e cinquenta e duas restrições de votos. A linhagem de ordenação de monjas completas na tradição de votos Mulasarvastivadin, que é a seguida no Tibete, já não existe mais. Mas há os dois conjuntos de votos de restrição para monjas e monges novatos, e também o conjunto de votos para monjas em período probatório. Há também dois conjuntos de votos para leigos – para homens e para mulheres – e também os votos de um dia. Portanto, há oito níveis diferentes de votos de restrição para a liberação individual. Qualquer que seja o conjunto de votos que tenhamos, precisamos mantê-los com muita pureza e seriedade, mesmo que isso custe nossa vida. Seja qual for o tipo de disciplina ética com a qual nos comprometemos e prometemos manter - mesmo que seja apenas seguir a autodisciplina ética de nos restringirmos das dez ações destrutivas - precisamos mantê-la com muita pureza e cuidado. Manter a autodisciplina ética é a raiz de todas as realizações que o Buda indicou. Isso pode levar à liberação individual de quem sustenta esses vários votos de restrição. Portanto, eles são chamados de “restrições prometidas para a liberação individual”. Esse é o significado da palavra sânscrita pratimoksha.

Se não mantivermos nenhum tipo decente de disciplina ética ou de moralidade, não haverá como renascermos como humanos ou como deuses. Por exemplo, mesmo praticando muita generosidade - digamos que temos uma sala cheia de dinheiro e posses e distribuímos isso a milhares de pessoas todos os dias -, se não formos uma pessoa moral e não mantivermos uma autodisciplina ética decente, ainda assim podemos renascer ricos como resultado de nossa generosidade, mas não nasceremos necessariamente como um ser humano rico. Podemos renascer em um dos piores estados de renascimento, como um animal rico, por exemplo, ou como um naga (um tipo de criatura meio humana e meio-serpente) ou um fantasma faminto com muitos bens e joias. Há fantasmas famintos, por exemplo, que vivem em palácios feitos de ouro. Mas, por terem sido muito avarentos, são obrigados a cortar pedaços de sua própria carne e comê-la, pois não têm mais nada para comer. Tais coisas existem e surgem como resultado de sermos generosos, mas não sermos éticos.

Porém, se realizarmos os mesmos atos de generosidade e, ao mesmo tempo, mantivermos uma autodisciplina ética muito rígida, o resultado será que renasceremos como um ser humano e seremos capazes de desfrutar de muita riqueza. Além disso, seremos capazes de usar os recursos que teremos para continuarmos sendo uma pessoa generosa, e para gerarmos potenciais positivos cada vez mais fortes a fim de continuar progredindo espiritualmente. Portanto, nosso comportamento generoso e ético dará frutos repetidas vezes. Ao passo que, se formos generosos sem sermos éticos, o resultado não será renascer como um humano, mas sim em um dos estados piores. Nossas ações resultarão apenas em sermos ricos nos piores estados de existência, mas não estaremos em posição de acumular qualquer tipo potencial positivo adicional.

Seguir a autodisciplina ética e treinar até o mais ínfimo detalhe do que o Buda ensinou é, obviamente, a melhor maneira de praticar o dharma. Mas se não pudermos fazer isso, e seguirmos apenas os votos raiz da ética que foi ensinada pelo Buda, nasceremos entre o círculo de discípulos do próximo professor universal, o quinto buda deste eon, Maitreya. Essa é uma condição especial que o Buda indicou.

A autodisciplina ética, portanto, é o coração, ou a essência, de todas as práticas budistas. A fim de obtermos a liberação, precisamos treinar a consciência discriminativa mais elevada, com a qual entendemos que não existem identidades verdadeiras. Para isso, precisamos treinar concentração absorvida elevada. E, para isso, precisamos do treinamento em autodisciplina ética elevada. Isso é o que foi colocado no último verso.

Resumo do Escopo Intermediário de Motivação

Nós já progredimos bastante desde que começamos como alguém de escopo inicial. Antes, estávamos interessados apenas em melhorar nossas vidas futuras e em renascer como um humano ou um deus. Mas agora vemos que não importa onde renasceremos, sempre haverá problemas incontrolavelmente recorrentes. Nós desenvolvemos assim o desejo de obter liberação de todos os problemas e sofrimentos. Esse é o nível intermediário de motivação, com o qual desejamos liberação de todas as situações incontrolavelmente recorrentes do samsara.

Se desenvolvermos os vários caminhos mentais aqui indicados, poderemos cortar a raiz de todos os nossos problemas. Nós podemos realmente alcançar o estado de liberação, de um ser liberado. Em suma, se nos engajarmos em todas as práticas aqui indicadas e o fizermos para nos liberarmos de nossos próprios problemas, esse é o nível de motivação de alguém do escopo intermediário.

A Necessidade de Ir Além, para um Nível Avançado de Motivação

Mas não é suficiente nos libertarmos apenas dos nossos problemas. Claro, seria muito agradável ser liberado, ser um arhat, e não ter emoções ou atitudes perturbadoras. Nós teríamos todos os tipos de percepção extra-sensorial, os cinco poderes diferentes de emanação e assim por diante, mas nunca será bom se nos liberarmos somente de nossos problemas, sem incluir mais ninguém. Assim como as pessoas comuns não estão satisfeitas com o que têm, um praticante espiritual que pensasse apenas em liberar a si mesmo também não estaria satisfeito; não é o suficiente

O problema, aqui, é que ele ou ela não seria capaz, neste estado meramente liberado, de ajudar todos os outros seres, todos os seres limitados, todos os seres sencientes. E como poderíamos ajudar a todos os outros seres que têm mentes e corpos limitados? A única maneira é desenvolvendo uma mente totalmente clara, sendo um ser totalmente evoluído, ou seja, um buda. Ser meramente um ser liberado, um arhat, não é suficiente. Arhats não possuem a capacidade de ajudar a todos os seres.

Por que, não conseguimos ajudar totalmente os outros sendo meramente um ser liberado? Sim, é verdade que esse é um estado em que já eliminamos todos os obscurecimentos que vêm de emoções e atitudes perturbadoras - não temos mais emoções ou atitudes perturbadoras. Mas há outro conjunto de obscurecimentos, além dos emocionais. Há dois conjuntos de obscurecimentos, e nesse estado ainda não eliminamos o segundo - os obscurecimentos cognitivos relativos a todas as coisas conhecíveis. Como ainda temos obscurecimentos em relação a todas as coisas conhecíveis, e isso impede a onisciência, nem sequer cumprimos perfeitamente o nosso propósito. Como ainda não fizemos isso, como ainda não atingimos o estado mais elevado que podemos atingir, como ajudar os outros a atingir? E como que não cumprimos o nosso propósito? É que, mesmo que tendo alcançado um estado de liberação, ainda não percebemos nosso maior e mais pleno potencial; nós não alcançamos o estado de um buda.

Definição Geral do Coração Dedicado de Bodhichitta

Por que é necessário atingir o estado iluminado? Por que é necessário atingir um estado onde temos uma mente totalmente clara e somos completamente evoluídos, um estado onde somos totalmente purificados e desenvolvidos? Porque com isso podemos ajudar todos os demais seres o máximo possível. Quando nos dedicamos totalmente a esse objetivo, esse estado de espírito é o que conhecemos como um coração dedicado de bodhichitta. Visamos, nesse caso, o propósito de todos os outros seres, e o que pretendemos fazer é ajuda-los a realizar seu propósito da melhor maneira possível. Além disso, nossa mente é focada em nossa própria iluminação futura e individual, a qual ainda não alcançamos, mas que alcançaremos. E quando a alcançarmos, isso nos permitirá ajudar todos os seres a realizarem seus propósitos. Se não tivermos um coração dedicado dessa maneira, é porque não alcançamos nenhum tipo de veículo vasto da mente Mahayana. Mesmo que tenhamos uma compreensão correta da vacuidade, ou da realidade, se não tivermos esse coração dedicado de bodhichitta, não seremos capazes de atingir plenamente o estado búdico.

Este coração dedicado de bodhichitta é algo em que temos que trabalhar. Essa dedicação realmente não é algo que possamos desenvolver em um instante, apertando um botão. Então, qual é a base para um coração dedicado de bodhichitta? A base, ou raiz, é a compaixão. Portanto, a grande compaixão é a principal coisa em que temos que meditar e transformar em um hábito mental benéfico.

Compaixão

O que é compaixão? É um estado de preocupação intensa e amorosa, em que desejamos que todos os seres estejam livres de seus problemas e infelicidade. Isso é compaixão. O desejo de que todos sejam felizes é o que chamamos de "amor". E quando temos a atitude de pensar: "Eu vou fazer alguma coisa a esse respeito; eu mesmo vou trabalhar para levar felicidade a todos os seres e remover seu sofrimento" esse estado de espírito é chamado de "uma determinação excepcional." Mas mesmo que tenhamos este estado de espírito onde decidimos que nós mesmos vamos levar felicidade e remover todo o sofrimento dos seres, na verdade, não temos essa capacidade. Bom, e quem tem? Apenas um buda plenamente iluminado, alguém totalmente evoluído e com a mente totalmente clara. Portanto, quando dedicamos nosso coração a sermos capazes de atingir esse estado, a fim de conseguirmos realmente beneficiar a todos os seres, trazer-lhes felicidade e remover seu sofrimento, isso é conhecido como um coração dedicado de bodhichitta.

O estado de determinação excepcional e o coração dedicado são o resultado de se ter grande compaixão, enquanto o amor é sua causa. É muito importante desenvolver compaixão como um hábito benéfico da mente - em outras palavras, meditar sobre ela - porque ela atuará como base para provocar esses grandiosos estados de mente e coração. Se desenvolvermos a compaixão como um hábito benéfico da mente, isso automaticamente nos purificará de uma grande quantidade de potencial negativo que podemos ter gerado anteriormente.

Como Asanga Desenvolveu Compaixão

Asanga foi um dos dois grandes pioneiros dos ensinamentos Mahayana da mente vasta. Ele se esforçou durante anos tentando obter realização, de forma a realmente ver e realizar a figura do Buda Maitreya. Ele se retirou perto do Mosteiro de Nalanda, muito perto do Pico do Abutre, em uma caverna, e praticou intensamente por doze anos a fim de ver Maitreya. Primeiro ele praticou por três anos e desistiu. Depois voltou para a caverna por mais três anos. E assim continuou em surtos de três anos somando um total de doze anos.

Um dia ele saiu da caverna desanimado depois de doze anos sem resultados, e viu um cão muito grande que tinha uma terrível doença de pele – ele não tinha pelo no corpo, apenas pele e feridas abertas cheias de vermes na parte inferior do seu corpo. Ainda assim, o cachorro latia ferozmente. Vendo esse cão em uma condição tão terrível, Asanga encheu-se de compaixão. Além de não ter pelos, o animal estava cheio de feridas. E não era só isso, as feridas estavam infectadas com vermes e com uma aparência absolutamente horrível. Então, movido por uma grande compaixão, ele decidiu tentar fazer alguma coisa. Ele foi até o centro do vilarejo mais próximo, pegou uma faca bem afiada, cortou um pedaço de sua própria carne e a colocou no chão como uma fonte alternativa de alimento para os vermes. Ele não queria eles morressem por terem sido retirados do corpo do cachorro e tampouco se machucassem. Por isso, ao invés de removê-las com os dedos, ele se abaixou para removê-las delicadamente com sua língua.

Ele fechou os olhos, abaixou-se e esticou a língua tentando remover os vermes, mas não conseguiu tocar no cachorro. Então ele abriu os olhos e viu diante dele, onde o cachorro estivera, o próprio Maitreya, em todo o seu esplendor. Asanga então segurou o manto de Maitreya e perguntou: "Eu trabalhei duro durante doze anos tentando vê-lo. Como é que só agora eu consegui?” E Maitreya respondeu: “Eu sempre estive com você ao longo desses doze anos. Mas você estava cego demais para me ver. Sua mente estava muito obscurecida. Porém, a sua grande compaixão agiu como causa para remover esses obscurecimentos, por isso você é capaz de me ver agora. Como prova de que eu estava bem na sua frente durante todo esse tempo, olhe para a barra das minhas vestes. Aqui está todo o cuspe e catarro que você pôs para fora ao longo dos anos, descansando em cima do meu manto".

Asanga estava tão feliz por ver Maitreya que o colocou em seus ombros e foi para o vilarejo desfilar, gritando para todo mundo: "Saiam todos e vejam o glorioso Maitreya!" As pessoas saíram, mas ninguém foi capaz de ver nada nos ombros de Asanga. Todos disseram: "Pobre Asanga, trabalhou em práticas tão intensas que ficou louco.”  Depois disso, Maitreya levou Asanga para a Terra Pura de Tushita. Lá ele ensinou-lhe as cinco escrituras de Maitreya, que Asanga trouxe consigo de volta à Terra. A linhagem de práticas extensivas vem daí.

Isso é o que está indicado neste verso:

(7) Assim como caí no oceano da existência compulsiva, todos os outros seres sencientes também caíram — eles foram minhas mães. Vendo isso, peço inspiração para gerar o supremo ideal de bodhichitta e tomar para mim a responsabilidade de liberar todos os seres sencientes.

Resumo

Esse verso é para alguém com um nível avançado de motivação. No começo, quando tínhamos um nível inicial de motivação, pensávamos em todo o sofrimento que vem com a morte e o renascimento em um dos piores estados de existência. Depois, quando progredimos para o nível intermediário de motivação, pensávamos em todos os problemas e sofrimentos envolvidos em qualquer situação incontrolavelmente recorrente do samsara, e assim desenvolvemos a determinação de nos livrarmos de todos eles: nós desenvolvemos renúncia.

Existem dois tipos de determinação de se livrar dos problemas: há a determinação em que nos afastamos da obsessão com as coisas desta vida e há a determinação com a qual nos afastamos de nossa obsessão com as vidas futuras. Depois de desenvolvermos o segundo tipo de determinação, com base em termos pensado em todos os nossos problemas e em como seria bom nos livrarmos deles, nós invertemos essa determinação: ao invés de focarmos em nós mesmos, focamos em todos os outros seres e nos seus problemas. A determinação de sermos livres se transforma na determinação de que todos estejam livres de seus sofrimentos e problemas. Desta forma, desenvolvemos um estado de grande compaixão, com o qual desejamos que todos estejam livres de seu sofrimento. Essa grande compaixão irá funcionar como uma base, a partir da qual poderemos nos mover na direção da determinação excepcional de assumir a responsabilidade pelo bem-estar dos outros seres e na direção do um coração dedicado de bodhichitta, com o qual nos dedicamos aos objetivos de todos os outros e a atingir um estado de iluminação para conseguir fazer isso. Esses são os estágios progressivos através dos quais nos treinamos.

Continuaremos amanhã com os demais pontos desse verso.

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