Introdução
As Quatro Nobres Verdades
O Buda viveu há 2500 anos na Índia. Como seus discípulos tinham disposições e capacidades diferente, ele ensinou cada um deles de forma individualizada, da forma que melhor conseguisse entender. Mas a primeira coisa que ensinou a todos os seus discípulos foi o insight que teve ao se iluminar, que ele chamou de “As Quatro Nobres Verdades”. Essas verdades são quatro fatos a respeito da vida, que as pessoas comuns não percebem como fatos, mas os seres altamente realizados (aryas), que viram a realidade de uma forma não conceitual, os veem como verdade. Resumidamente, essas quatro verdades respondem às seguintes perguntas.
- Quais são os verdadeiros tipos de sofrimentos e problemas que todos vivenciamos?
- Quais são suas causas?
- Será que é realmente possível nos livrarmos desses problemas, que eles cessem de forma a nunca mais voltar?
- Que tipo de entendimento poderia ocasionar esse cessar, que nos livraria das causas do sofrimento?
A resposta a essas perguntas constitui a estrutura básica do que o Buda ensinou em profundidade durante o resto de sua vida, e foi a primeira coisa que ele ensinou.
Quando olhamos para essas Quatro Nobres Verdades, vemos que elas não existem de uma maneira isolada, por si só. Elas surgem a partir de uma base e, quando são totalmente compreendidas, nos levam a um determinado objetivo. Simplificando, a base dessas quatro verdades – desses quatro fatos da vida – é a realidade.
Se quisermos resumir o budismo em uma única palavra, um amigo meu, que também é professor de budismo, disse que essa palavra seria “realidade”.
Se pudéssemos ver, entender e aceitar a realidade sem projetar coisas impossíveis e irreais sobre ela, poderíamos lidar com as situações problemáticas de uma forma realista.
Portanto, os ensinamentos a respeito da realidade são a base dessas quatro verdades. No entanto, a realidade abrange vários níveis de como as coisas existem e funcionam. O Buda ensinou tudo isso.
As Três Joias Preciosas
O que fica claro com essas Quatro Nobres Verdades é a direção que devemos dar à nossa vida para superarmos os problemas e o sofrimento. Essa direção é indicada pelo que chamamos de “Três Joias Preciosas” ou “Três Joias de Refúgio” no jargão budista – Buda, Dharma e Sangha. Cada uma tem vários níveis de significado, mas no nível mais profundo significam:
- O Dharma – o objetivo pelo qual estamos lutando, nomeadamente nos livrar dos problemas e de suas causas e obter a compreensão plena que nos livrará deles para sempre.
- Os Budas – aqueles que atingiram totalmente esse objetivo e nos ensinam a fazer o mesmo.
- A Sangha – aqueles que seguem esses ensinamentos e atingiram parcialmente o objetivo, mas não totalmente.
Uma Oração Para os 17 Mestres de Nalanda
Sua Santidade o Dalai Lama escreveu um texto muito bonito, é um pedido de inspiração para 17 grandes mestres budistas de um grande monastério da Índia antiga, chamado Nalanda. Esse monastério durou cerca de mil anos. Administrado como monastério, era uma famosa universidade na época e produziu grandes mestres da tradição budista indiana. O Dalai Lama escreveu esse texto na forma de uma oração a cada um desses 17 famosos mestres: “Inspire-me a seguir seus passos”. Após os versos em que suplica a cada um deles, Sua Santidade conclui com alguns versos endereçados a todos esses mestres.
O que quero apresentar é um comentário de um desses versos finais, que resume o que acabei de explicar sobre a realidade (as duas verdades), as Quatro Nobres Verdades e as Três Joias de Refúgio. Refúgio significa apenas que se seguirmos a direção indicada por essas três joias, evitaremos sofrimento e problemas.
O verso diz:
Conhecendo o significado das duas verdades, que é a base, a forma como todas as coisas existem,
Como as coisas existem significa como são, como elas funcionam. Em outras palavras, conhecer a realidade.
Adquirimos certeza, através das quatro verdades, de como continuamos a ter renascimentos incontrolavelmente recorrentes, mas também de que é possível reverter isso.
Se compreendermos a realidade, entenderemos, através dessas quatro verdades, como estamos perpetuando nossos problemas, e como podemos nos livrar deles.
Ocasionada pela cognição válida, torna-se firme nossa convicção de que os Três Refúgios são verdadeiros.
Lembre-se, os Três Refúgios são formulados de acordo com um objetivo real, um objetivo que podemos atingir – o cessar completo de todos os nossos problemas, de forma que nunca mais voltem, e a compreensão que o ocasiona.
Se você quer praticar o caminho budista, está buscando um objetivo. Como saber se esse objetivo é possível de ser atingido? Será que é apenas ficção? Será que é apenas uma bela história ou é realmente um fato? Muitas pessoas buscam esse objetivo tendo apenas a fé como base: “Meu professor disse que é assim. Ok, eu quero acreditar, então acredito”.
Pode ser que isso funcione para muitas pessoas, mas não é a forma mais estável de se praticar. Após praticarmos por um longo tempo, o que muitas vezes acontece é que começamos a questionar: “o que estou fazendo”? Isso acontece porque vemos que ainda sentimos raiva, apego, egoísmo e outras coisas – os verdadeiros causadores de problemas – e realmente é muito difícil nos livrarmos desses sentimentos. O progresso é muito lento. Mas também precisamos lembrar que o progresso nunca é linear: sempre tem altos e baixos. Alguns dias estamos melhor e outros pior. Se você praticar os métodos budistas tendo como base apenas a fé, poderá ficar muito desencorajado, porque pode parecer que não está chegando a lugar algum. E você pode se perguntar: “Será que é realmente possível atingir esse objetivo”?
É por isso que o verso diz: “ocasionada pela cognição válida”. Ou seja, quando você realmente entende – com base na lógica e na razão – que esse objetivo existe e que é realmente possível atingi-lo, sua convicção de que é possível atingi-lo e de que existem pessoas que realmente o atingiram fica muito firme. Você toma isso como fato, mas não porque está escrito em algum livro sagrado. Você está convencido de que isso é verdade porque as duas verdades são uma realidade, e consequentemente, com base na lógica, as quatro verdades e os três refúgios também.
Inspire-me a plantar essa raiz do caminho da mente que leva à liberação.
Em geral plantamos sementes, mas aqui plantamos uma “raiz”, e não uma semente. A escolha dessa palavra indica que a estrutura das duas verdades, quatro verdades e três refúgios é a raiz de todo o caminho espiritual budista, já que tudo mais deriva disso. Tendo essa raiz firmemente plantada em sua mente, sua prática estará baseada na convicção. Você passará a entender o que está fazendo, você entenderá que é possível atingir o objetivo, e também o que é esse objetivo.
Acho essa abordagem muito importante. Se vamos seguir um caminho espiritual, é muito importante estarmos convencidos de que é realista, que não é apenas uma fantasia idealista pela qual somos atraídos emocionalmente, mas sim algo muito importante. Se estivermos convencidos de que o que estamos fazendo espiritualmente é realista, nosso relacionamento emocional com esse caminho será positivo. Precisamos equilibrar razão e emoções positivas como compaixão, entusiasmo, paciência, etc.
As Duas Verdades
Verdade Convencional, Relativa
Conhecendo o significado das duas verdades, que é a base, a forma como todas as coisas existem,
A primeira linha desse verso fala sobre as duas verdades: “a verdade relativa” ou “verdade convencional” e a “verdade mais profunda” – em outras palavras, ela fala de dois fatos verdadeiros a respeito da realidade de todas as coisas. Um é o nível mais superficial e o outro o mais profundo. Ambos são válidos, mas de diferentes pontos de vista. São muitas as apresentações dessas duas verdades, mas vamos seguir aqui a que Sua Santidade o Dalai Lama costuma usar quando fala para o público em geral.
Causa e Efeito
No nível superficial, qual é a verdade a respeito de tudo o que vivenciamos? É que tudo acontece apenas por causa de sua relação com causas anteriores. Em outras palavras, tudo surge ou acontece na dependência de causas e efeitos. Os físicos também ensinam esse princípio da causalidade, mas só no que diz respeito aos fenômenos físicos, como a relação entre bater em uma bola e ela se mover. Essa relação é puramente mecânica, é causa e efeito.
Logicamente, a causalidade pode ser explicada em um nível muito mais complexo se considerarmos todos os fatores que leva à ocorrência de um fato. Por exemplo, se tomarmos os problemas econômicos, o aquecimento global, as guerras regionais, veremos que não têm uma única causa. E também veremos não surgem de causa nenhuma, ou de uma causa irrelevante. Todas essas situações surgem na dependência de muitos fatores. Isso inclui não somente o que está acontecendo no presente, mas também o que já aconteceu no passado. Um exemplo é este país, a Ucrânia, onde não podemos separar a situação presente do passado soviético ou da Segunda Guerra Mundial. A atual situação econômica e ecológica surgiu como consequência de tudo o que aconteceu ao longo da história. Portanto, não podemos dizer que o que está acontecendo no momento é culpa de apenas uma pessoa ou um acontecimento. As coisas surgem na dependência de uma enorme rede de causas e condições. Essa é a realidade, não é mesmo?
Se olhar em termos de psicologia: se você tem um problema em família, você não pode dizer que ele surgiu de uma única causa ou de causa nenhuma. Cada membro da família contribuiu como causa para o problema. E também não se pode dizer que a forma como cada pessoa dessa família está se comportando não tem nada a ver com o que está acontecendo em seu trabalho, escola ou com os amigos. Tudo influencia. E ainda, a situação dessa família não está isolada da situação da sociedade e do sistema político, social e econômico. Tudo isso, de uma forma ou de outra, influencia no problema.
Portanto, realismo, aqui, refere-se ao fato de que tudo está interconectado e influencia tudo mais. Tudo o que acontece, acontece como resultado de uma enorme e complexa rede de causas e condições. Essa é a realidade.
Se esse é o caso dos objetos físicos, e também das questões globais e dos problemas familiares, o que poderíamos dizer do âmbito individual, de cada um de nós, pessoalmente? E da felicidade e infelicidade? Será que têm uma causa? Será que não têm causa alguma? Afinal, algumas vezes sinto-me feliz, outras infeliz, e não tenho como saber como me sentirei no próximo momento. Então, será que isso não vem de causa alguma? Será que depende apenas do que estou fazendo no momento? Bom, isso não faz sentido, não é mesmo? Eu poderia comer a mesma coisa em dias diferentes e em um dia me sentir feliz e no outro infeliz, portanto, a felicidade ou infelicidade não vem do que estou comendo. Eu poderia estar com a pessoa que mais amo e, ainda assim, algumas vezes sentir-me feliz e outras infeliz. Eu poderia ser rico e tudo estar indo bem e ainda assim sentir-me infeliz.
Então de onde vem a felicidade e a infelicidade? Será que vem de um ser elevado que aperta um botão e faz com que às vezes eu me sinta feliz e outras infeliz? Perdoem-me, não quis ofender. Estou apenas levando a questão ao extremo do absurdo. Mas, se tudo o que acontece – de objetos que se movem a mãos que são queimadas e machucadas quando tocamos no fogo – segue as leis de causa e efeito, será que a felicidade e a infelicidade não deveriam também seguir leis compreensíveis de causalidade? No contexto deste verso, essa é a questão e o ponto principal na referência à verdade relativa. O verso refere-se à realidade da relação causal entre nosso comportamento e a experiência de felicidade e infelicidade.
Karma
Isso nos leva aos ensinamentos budistas básicos sobre karma. O que é karma? Não é um tópico fácil de entender. Existem diversas explicações e muitos malentendidos, mas basicamente:
Karma refere-se à compulsividade que induz e é característica da forma com que agimos, falamos e pensamos.
Se pensarmos bem, nosso comportamento, quer seja destrutivo, construtivo ou mesmo neutro, é muito compulsivo.
- Eu fico irritado e tenho vontade de gritar com alguém, então, compulsivamente, grito.
- Sou superprotetor e tenho vontade de dar uma olhada para ver se o bebê está bem, então, compulsivamente, fico repetidamente checando se está tudo bem, muito mais vezes do que é necessário ou saudável.
- Tenho fome e sinto vontade de abrir a geladeira e pegar alguma coisa para comer, então, compulsivamente, abro.
De onde vem essa compulsão? E ao que leva? São essas as perguntas que os ensinamentos sobre karma respondem. A explicação budista é que quando você age, fala ou pensa de maneira compulsiva, você está desenvolvendo potenciais e tendências em seu continuo mental que continuarão lá em todos os momentos seguintes de sua experiência. E quando esses potenciais e tendências são ativados, por várias circunstâncias, eles lhe levam a sentir vontade de repetir um determinado padrão de comportamento. Com base nessa vontade surge a compulsão, que lhe leva a repetir a ação incontrolavelmente. É nessa compulsão que o karma realmente está envolvido
Claro que também é possível explicar esse fenômeno no âmbito psicológico: agir de uma determinada maneira desenvolve e reforça caminhos neurais, e consequentemente fica mais fácil repetir padrões de comportamento. Certamente o budismo não nega essa base fisiológica; ele só aborda o fenômeno do ponto de vista experimental, mas ainda o analisa como mais um exemplo de causa e efeito.
E quanto à felicidade e infelicidade? O budismo também explica isso em termos de causas e efeitos kármicos. Se você sente infelicidade, ela é o resultado a longo prazo de ações compulsivas destrutivas cometidas sob influência de emoções perturbadoras. Se você sente felicidade comum – o tipo de felicidade que não dura e nunca satisfaz, mas mesmo assim é boa – isso é o resultado a longo prazo de ações construtivas executadas sob influência de emoções positivas, como a paciência e a amabilidade. No entanto, ainda assim são compulsivas, por estarem misturadas com confusão a respeito de como existimos. É o caso das pessoas que compulsivamente ficam tentando fazer tudo pelos outros, ou são compulsivamente perfeccionistas.
Como compreender as relações causais? Primeiro precisamos entender a diferença entre comportamento construtivo e comportamento destrutivo. A diferença entre os dois não tem como base o efeito que nosso comportamento tem nos outros. Por exemplo, se você estiver com muita raiva de alguém e lhe der uma facada, isso é destrutivo. Mas se você for um cirurgião e cortar alguém com uma faca em uma operação de emergência para salvar sua vida, isso é construtivo. Obviamente, a ação de enfiar uma faca em alguém não é o fator determinante aqui para a ação ser construtiva ou destrutiva. Tudo depende da motivação: do estado mental com o qual a ação foi executada e o objetivo da ação.
Se a ação for motivada por uma emoção destrutiva como a raiva, o apego, a ganância, a ignorância, a inveja, e assim por diante, será destrutiva, mesmo que você esteja fazendo alguma coisa que, em si, é boa. Por exemplo, se você mandar uma mensagem muito bonita, mas mandá-la por desejar e querer molestar alguém sexualmente, sua ação será destrutiva. Por outro lado, se uma ação estiver livre de emoções perturbadoras, será construtiva, mesmo não sendo uma ação considerada muito boa. É o caso de um pai ou mãe que manda um filho malcriado para o quarto, mas não por raiva, e sim por amor e preocupação de ensiná-lo a não ser assim. No entanto, na maioria dos casos, o ato construtivo ainda assim é compulsivo, pois está misturado à um impulso inconsciente de obter, com o ato, um sentimento de haver uma identidade verdadeira – no caso, de um bom pai ou boa mãe.
Como, então, entender a relação causal entre infelicidade e o comportamento destrutivo baseado em emoções perturbadoras, e felicidade e o comportamento construtivo livre de emoções perturbadoras? Isso não só é uma questão muito interessante como também muito crítica, pois o Buda identificou o karma, as emoções perturbadoras e a confusão a respeito de como existimos como sendo as causas de como nos sentimos. São as causas da infelicidade e da felicidade comum que não satisfaz. Precisamos ir além desses dois sentimentos para nos livrar do sofrimento que eles acarretam.
Vamos pensar sobre isso. Quando você age, fala ou pensa em alguém com raiva, por exemplo, você se sente bem? Sua energia fica tranquila? Não, não fica tranquila; fica toda agitada. Você sente felicidade nessas horas? Não acho que alguém possa dizer que se sente feliz ao sentir raiva ou qualquer outra emoção perturbadora. Da mesma forma, se você observar sua energia quando sente ganância, perceberá que não fica tranquila; que você tem com medo de não conseguir o suficiente. Quando você é extremamente apegado a alguém e sente muita sua falta, não fica tranquilo; sua energia fica perturbada. Por outro lado, quando não sente raiva, ganância, egoísmo e coisas do gênero, quando só está tentando ser gentil, sua mente fica relativamente calma e sua energia tranquila, não é mesmo? Basicamente, você se sente feliz, apesar dessa felicidade poder ser sutil e não dramática. Mesmo quando pratica compulsivamente boas ações e quer fazer tudo perfeito, sua energia é mais relaxada, e você sente-se mais feliz fazendo algo positivo do que agindo por raiva. Claro, se ao fazer uma ação positiva estiver com medo de errar ou não ser bom o suficiente, certamente não se sentirá tranquilo com tais pensamentos e preocupações.
O que é digno de nota aqui é que os sentimentos de infelicidade e felicidade relativa duram por algum tempo depois da ação ter terminado. Isso mostra que o que você está sentindo quando faz uma determinada coisa pode estar sendo influenciado por algo que você fez antes. No entanto, quando o Buda falou sobre a relação entre o karma e nossos níveis de felicidade ou infelicidade, ele não estava se referindo, primariamente, ao que sentimos logo após cometer uma ação. Ele estava falando do efeito a muito mais longo prazo. Contudo, podemos começar a apreciar esse ponto quando pensamos na relação entre nosso comportamento emocional compulsivo e a forma como a energia circula em nosso corpo.
A verdade relativa a respeito de tudo o que vivenciamos, portanto, é que tudo surge na dependência de causas e condições, inclusive nosso estado mental geral, se somos felizes ou infelizes, e não apenas o que temos vontade de fazer. Esse é um aspecto da realidade – no verso, é chamado de base, a forma como as coisas existem – ou seja, como as coisas funcionam.
Verdade Mais Profunda
A segunda verdade sobre as coisas foca em um nível mais profundo. Apesar das coisas parecerem existir e funcionar de formas impossíveis, por conta de nossas projeções e fantasias, essa maneira impossível como parecem existir não corresponde à realidade.
A total ausência de algo encontrável que corresponda às nossas projeções é chamada de “vacuidade”, muitas vezes também traduzida como “vazio”.
Apesar de haver muitos níveis sutis nas formas impossíveis de existência que nossa mente projeta em nossa confusão habitual, podemos começar a trabalhar com essa verdade mais profunda em seu nível mais geral: as coisas não existem de formas impossíveis. Como poderiam? A realidade é que não há nada que corresponda à insensatez que nossa mente confusa projeta. Há uma total ausência dessas formas impossíveis, não há nada que seja assim.
Considere o exemplo clássico: Uma criança acha que tem um monstro embaixo da cama. Na verdade, tem um gato embaixo da cama, mas a criança projeta um monstro no gato. E porque a criança acredita que realmente há um monstro, apesar de não fazer sentido, ela sente muito medo. Portanto, projetar esse absurdo tem um efeito na criança, mas certamente não faz do gato um monstro, porque não existem monstros. A vacuidade é a ausência total de um monstro de verdade que corresponda à fantasia da criança. Não há e nunca houve um monstro. Mas retirando a projeção, ainda há um gato embaixo da cama; não estou dizendo que não há nada.
Imaginamos, por hábito, que as coisas existem como aparecem para nós. Só temos consciência do que está bem na nossa frente ou do que estamos sentindo no momento. Digamos que eu esteja infeliz agora, e me pareça que esse sentimento surgiu do nada, sem motivo algum. Simplesmente estou infeliz. Desconheço o motivo. Estou entendiado, sei lá, estou infeliz e isso não parece estar relacionado com nada do que estou fazendo ou com as pessoas que estão comigo. Do nada me sinto infeliz. Não precisa ser algo dramático, pode ser apenas uma pequena insatisfação. Então como isso apareceu? Parece que apareceu sem causa alguma. Mas isso é impossível. Isso não corresponde à realidade. Essa é a verdade mais profunda.
A verdade convencional, relativa, é que tudo, incluindo minha felicidade e infelicidade, surge de um processo de causa e efeito. Apesar de ser a realidade, não parece assim para mim. Parece que o que eu sinto vem do nada e por motivo nenhum. A verdade mais profunda é que a forma como aparece para mim não corresponde à realidade – é uma projeção de algo impossível. Se pensarmos bem, essa realidade é muito profunda.
Deixe-me dar outro exemplo. Suponhamos que eu tenha um amigo íntimo que algumas vezes grita comigo. Temos uma relação ótima, mas do nada ele se irrita com alguma coisa e grita comigo. Com isso aparece para mim? Aparece como “eu não gosto mais de você”. Fico muito chateado, porque tudo o que aparece para minha mente é o meu amigo gritando comigo, e eu o identifico totalmente com esse comportamento e nada mais. Mas essa projeção não corresponde à realidade. O grito não surgiu do nada, ele não existe totalmente separado de ser apenas um incidente no contexto de nossa amizade de longa data. Talvez isso tenha acontecido com você também.
O que acontece é que não conseguimos ver a totalidade de nosso relacionamento com esse amigo – todas as outras vezes que estivemos com essa pessoa, todas as nossas demais interações. Mas isso não é tudo: também não conseguimos enxergar um contexto mais amplo. Não somos a única pessoa na vida do nosso amigo, e nossa amizade não é a única coisa que está acontecendo em sua vida. Ele tem toda uma vida além do nosso relacionamento, e isso também afeta como ele se sente e como age. Talvez tenha tido um dia difícil no trabalho, talvez tenha tido um problema com seus pais e isso tenha lhe deixado de mau humor, fazendo com que gritasse comigo. A verdade mais profunda é que o que projetei é impossível: simplesmente não é real o fato de que ele gritou comigo independentemente do contexto do resto de nossa amizade e de tudo o mais que estava acontecendo em sua vida. Uma realidade que corresponda à aparência de eventos existindo independentemente não pode existir, não existe tal coisa. A ausência total de tal modo de existência é chamada “vacuidade”, “shunyata” em sânscrito, que é a mesma palavra usada para o número zero.
No que diz respeito às duas verdades, causa e efeito funcionam exatamente porque as coisas não possuem uma existência isolada e independente das outras coisas. Isto porque causa e efeito só existem de forma relativa e na dependência um do outro. Algo não pode existir como causa a menos que exista um possível efeito. Se algo não pode produzir um efeito, como poderia existir como causa de alguma coisa? A verdade relativa das coisas, nomeadamente sua relação causal, só funciona por causa da verdade mais profunda de todas as coisas: nada existe dessa forma impossível, desconectado de todo o resto.
O fato de que as duas verdades se sustentam mutuamente é, conforme mencionado no texto, a base, a forma como tudo existe. A “base” também indica a base para o que vem na linha seguinte. Tendo como base a visão da realidade, ou seja, das duas verdades, o Buda compreendeu as quatro verdades.
Perguntas
Vivenciando a Realidade Verdadeira
Será possível vivenciarmos diretamente a realidade verdadeira, onde não temos nenhuma concepção falsa? Ou será que isso é impossível?
Não, não, é possível. Apesar de nossa atividade mental fazer tudo parecer existir de uma maneira que na verdade é impossível, como isso não corresponde à verdade, é possível nos livrarmos daquilo que causa a distorção. Isto porque existe uma coisa que chamamos de realidade, e distorcer a realidade não é parte da natureza básica da atividade mental. É possível a atividade mental funcionar sem nenhuma projeção ou distorção.
Tendo isso como base, entendemos que quando nossa atividade mental distorce a realidade, ela nos causa problemas, sofrimento e infelicidade. Mas já que é possível fazer com que nossa mente pare de projetar essa distorção, podemos parar de criar e vivenciar problemas. Uma vez que entendamos que nossa mente é capaz de atingir esse objetivo, conseguir isso será a direção segura que daremos à nossa vida para evitar e prevenir o sofrimento. Essa direção segura é o que chamamos “refúgio”. Mas só podemos perseguir esse objetivo se estivermos convencidos de que é realmente possível alcançá-lo. Nossa convicção vem de percebermos que tudo o que mencionei está baseado na realidade e também vem de nossa habilidade de perceber isso.
Mas isso requer muito treinamento, para nos familiarizarmos com a realidade e quebrarmos os bloqueios mentais. É aí que entra a meditação. A meditação, nesse contexto, é um treinamento para nos familiarizarmos com a realidade, e fazemos isso através da criação do hábito benéfico de ver a realidade. Se construirmos esse hábito, sempre que encontrarmos uma pessoa, estaremos acostumados a não vê-la apenas da forma como aparece para os nossos olhos. Estaremos totalmente conscientes de que um dia ela foi um bebê, teve uma infância e depois uma vida adulta, e muitas coisas a influenciaram durante a vida. E ela provavelmente envelhecerá e será influenciada por ainda outras coisas. Desta forma, veremos a realidade de todo o contexto da vida da pessoa, e que tudo que aconteceu em sua vida esta interconectado. Essa visão nos permitirá interagir de forma muito mais benéfica e realista, ao invés da forma míope de vê-la como se fosse uma fotografia, algo estático na nossa frente.
Mas você precisa treinar-se para isso. Certamente você não conhece todos os detalhes da vida das pessoas e como eles as influenciaram, mas isso não importa. O simples fato de estar conscientes de que a pessoa tem um passado com muitas influências, e provavelmente terá um futuro, lhe abrirá para a realidade dela. Portanto, se você ver um bebê, por exemplo, não o verá apenas como um bebê; verá que existe ali um adulto em potencial, e tudo o que você fizer influenciará a maneira como esse bebê vai crescer e virar um adulto. Você olha o panorama geral. Está em contato com a realidade.