Desconstruindo o Ciúme: Conceitos Colorem as Relações

Eu pensei em começar com algumas perguntas, se vocês tiverem dúvidas.

Andrea diz que concorda que não temos o direito de demandar as coisas, mas e uma criança? Uma criança não tem o direito de ser amada?  Cada ser humano não tem o direito de pelo menos ter o mínimo necessário para viver?

Para analisar objetivamente esse assunto, acho que devemos observar exclusivamente o reino dos seres humanos, se quisermos ver se há algo inato que seja inerente. Mas se olharmos para o mundo animal, veremos que há muitos bebês animais, Sua Santidade o Dalai Lama sempre usa o exemplo da tartaruga marinha, que coloca ovos na areia e vai embora. Os ovos eclodem e os bebês tartaruga tem que tomar conta de si mesmo. Por isso acho que seria difícil provar que há um direito inerente.

Agora, uma questão totalmente diferente é se nós, como pais temos ou não responsabilidade sobre nossos filhos, de cuidar e amar da melhor forma possível. Isso eu acho que fazemos, quando tomamos a decisão de sermos pais. Mas não creio que seja possível estabelecer ou provar que os filhos têm um determinado direito inerente. É nossa responsabilidade amá-los como pais e tomar conta deles, não obstante o que façam. Eles não precisam merecer. Mas Sua Santidade não usa o exemplo das tartarugas neste caso. Ele fala disso quando fala de afeição, no sentido de haver uma afeição natural pelas crianças. Por isso Sua Santidade diz que seria uma experiência interessante trazer de volta a mãe tartaruga marinha para junto de seus filhos, depois que eclodiram, para ver se existe alguma afeição natural entre ela e os filhotes ou se a tartaruga marinha é uma exceção neste caso.

Sua Santidade usa também o exemplo de que todos querem ser felizes, não querem ser infelizes e todos têm o direito de ser feliz e não ser infeliz. Mas penso que temos que examinar isso um pouco mais de perto. Acredito que convencionalmente falando, isso é verdade, mas se formos mais a fundo no assunto, acho que chegaremos a uma conclusão um tanto diferente. O que temos que dizer é que na minha busca por ser feliz e não ser infeliz, não tenho o direito de fazer isso às custas da felicidade de outra pessoa e causar-lhe infelicidade. Não é que os outros tenham que ser felizes, mas eu não tenho o direito de fazê-los infelizes ou de bloquear a sua felicidade em prol da minha. Essa descrição parece encaixar-se mais profundamente com a forma de ver as coisas da perspectiva budista. Em nossa busca pela felicidade, desejamos que todos sejam felizes.

E se alguém me disser: “As liberdades que você tem estão me fazendo infeliz.” E depois, analisando o seu próprio estilo de vida, perceber que também tem dificuldades quanto a isso, porque não dá para agradar todo mundo.

Primeiro temos que ver que não temos um direito inerente - enfatizando a palavra “inerente” - o direito inerente de ser feliz, independente do que eu fizer. Mas isso não significa que não tenho o direito de ser feliz. E que não posso ser feliz - não é permitido. Não estamos dizendo isso. Não me entenda mal. Tudo depende de causa e efeito, de como nos comportamos, o que fazemos, e assim por diante. Se apenas tomarmos as coisas, querendo cada vez ainda mais, e não dermos nada em troca, isso não é razoável. Ou se apenas dermos e a outra pessoa não der nada em troca, isso não é razoável. Agora, não estamos falando de crianças pequenas, estamos falando de companheiros. Estamos falando dos dois casos: quando eu só dou e você só recebe ou quando você só dá e eu só recebo. É a mesma coisa em ambos os casos.

Por exemplo, estou dando minha contribuição para o relacionamento, minha contribuição para criar os filhos e no pensamento comum, tenho o direito a algum tempo livre. E você tem que contribuir também. Isso é justo. Isso não é uma lei inerente, mas é como as coisas funcionam. Se a outra pessoa não aceitar que seja dessa forma, teremos que reconsiderar todo o esquema. Não temos que ser mártires ou vítimas e ceder. Essa não é a solução ideal. Não é que “eu não tenho o direito de ser feliz. Tenho que apenas servir, o tempo todo." Isso não é o que estamos dizendo aqui, de forma alguma. E fácil entender errado o que estamos falando, portanto, obrigado por esclarecer isso.

 O Budismo sempre tenta evitar os extremos e, às vezes, quando você aponta para um extremo, esquece de indicar o outro. É como negar que uma pessoa vestida de Papai Noel é o Papai Noel e esquecer-se de reafirmar que é uma pessoa.

A maneira que você se expressou sobre a democracia, ela não está absolutamente de acordo com isso, porque você parece desvalorizá-la, e a seu ver, não há melhor maneira de permitir que as pessoas tomem parte no poder. Parece que você simplesmente levou para o lado da inveja e da rivalidade.

Bem, sim. Novamente apresentei um extremo sem mencionar o outro. Obrigado por chamar a minha atenção. Isso não significa que estou advogando direitos ou despotismo ou algo do gênero. Ou caos. Estou falando de uma situação muito difícil. É uma campanha eleitoral baseada em rebaixar a outra pessoa e perdendo tempo procurando escândalos e coisas completamente inoportunas, mostrando o quão ruim a outra pessoa é comparada comigo. Há uma diferença grande entre uma eleição baseada no que chamamos de campanha difamatória, onde tentamos fazer com que a outra pessoa pareça má, e uma campanha baseada simplesmente em “estas são minhas qualidades.” E você apresenta suas qualidades sem rebaixar a outra pessoa. E o povo pode escolher. E se for uma sociedade como a tibetana, em que seria muito petulante dizer quais são suas próprias qualidades, você terá que procurar alguém para fazer isso em seu lugar.

Porém, claro, isso pode ser idealizar um pouco, ou muito, o sistema. Mas você estava falando do sistema ideal. Naturalmente, por detrás disso tudo, estaria um candidato, totalmente honesto sobre suas qualidades e sem esconder seus pontos fracos. E isso seria muito difícil de encontrar, mas de um ponto de vista totalmente honesto, assim seria. Ninguém é perfeito, portanto fingir que você é perfeito é um absurdo. Eu digo: “Fumei maconha quando tinha vinte anos. Há trinta e cinco anos atrás.” e daí? Não estamos tentando esconder isso. Ok, eu fiz isso. Eu não faço agora.

Mas, vocês sabem, frequentemente os candidatos, mesmo se não rebaixarem a outra pessoa, soam como vendedores mentirosos e corruptos tentando vender um carro que está com defeito, o apresentando como a coisa mais maravilhosa do mundo. Completamente irreal. Se a democracia estiver baseada nisso e você estiver escolhendo entre quem é o melhor vendedor de carros usados, será patético. E gastar um ano inteiro com isso, ao invés de apenas algumas semanas ou um mês, meu Deus. Isso vira um esporte. Talvez tenhamos inclusive gladiadores. Eu não estou dizendo que há algo errado com a democracia. O ponto é como torná-la ética, de forma que não seja baseada em emoções perturbadoras.

Como você criticar de forma a fazer as coisas melhorarem, não para rebaixar as pessoas ou torná-las más pessoas, apenas para retificar ou melhorar as situações? Como fazer isso?

Penso que necessitamos primeiramente tranquilizar a pessoa que for particularmente sensível a críticas: “Veja bem, eu gostaria de fazer uma crítica construtiva, pode ser?” E tem que dizer: “E é claro que eu ainda amo você. Não acho que você é uma má pessoa.” Mas você tem que dizer o que está fazendo. Só então pode fazer a crítica.

Há uma diferença entre criticar repreendendo e criticar fazendo uma sugestão para que a pessoa viva melhor, encontre um emprego melhor. O tom e a motivação são importantes. Se dissermos: “Sabe, estou realmente furioso porque você não faz o trabalho direito,” e depois criticarmos, é bem diferente de: “Ok, pedi que você fizesse uma coisa, porque eu estava com preguiça ou ocupado, e não faz sentido eu pensar que você faria  isso da forma que eu teria feito...”. Entretanto, com paciência, você dá uma sugestão de como melhorar. “Isso não era exatamente o que eu tinha em mente. Poderia fazer assim?” O tom da voz e a motivação são muito importantes.

Pessoalmente, eu tento seguir o conselho que é dado no treinamento budista, às vezes chamado de treinamento da mente. Eu prefiro “purificar as atitudes,” melhorando minhas atitudes, ou seja, aceitando a fracasso e oferecendo a vitória aos outros. E o que isso significa é: “Eu errei por não ter explicado claramente o que eu queria.” Pego a culpa para mim. E então explico: “Não digo que foi seu erro; eu errei, não expliquei suficientemente.” Quando não as culpamos, geralmente as pessoas aceitam, ou aceitam mais facilmente, que devem melhorar. Essa forma é indireta. É uma maneira muito tibetana de fazer as coisas, implicitamente. Não há nenhuma necessidade de assinalar que foi a outra pessoa que errou. Tome a culpa para você.

Deixe-me dar um exemplo. Pedi para uma pessoa traduzir algumas coisas no meu site, e essa pessoa não tinha experiência. Era a primeira vez que estava traduzindo. Ela traduziu e mandou de volta para mim. Então enviei a outra pessoa que também trabalha com esse idioma e ela me retornou com muitas correções, muitas mesmo. Portanto, posso dizer que foi minha culpa. Não expliquei para a primeira pessoa que eu não esperava um trabalho perfeito, afinal, era a sua primeira tentativa. E também não expliquei que ia mandar para outra pessoa para corrigir, de forma que ela pudesse aprender. Foi meu erro não explicar claramente o processo. Indiretamente, a nova tradutora entendeu a mensagem de que esta seria uma experiência de aprendizagem e que eu esperava que ela melhorasse.

Ela disse que entende o que você disse, mas no nível pessoal, entre duas pessoas. O que ela queria com sua pergunta era algo mais amplo, como entre organizações, como no caso de uma organização ambiental que deve se impor perante algumas indústrias, e especialmente quando algumas coisas não estão muito claras do outro lado. Sua pergunta, portanto, era como fazer isso, como criticar de maneira correta?

Acredito que há uma diferença entre averiguar e condenar a outra parte pelo que está fazendo. Averiguar é averiguar. E apresente como uma informação objetiva. E tente encontrar pessoas para executar e trabalhar nisso. Mas xingar: “Vocês são poluidores terríveis,” e você sabe, os maus - qualquer um que estiver daquele lado recebendo a crítica, automaticamente irá se fechar e provavelmente contra-atacar. Que outra resposta você espera se for agressivo?

Mas se você apontar os pontos fracos de alguém, o que estão fazendo, antes de mais nada, você tem que analisar o todo, não ver apenas um pequeno aspecto, porque eles também têm a sua razão. Se você parar a indústria madeireira, ninguém nesta cidade terá mais trabalho. Como essas pessoas irão alimentar seus filhos? Portanto, você deve apresentar alguma ideia para lidarem com o problema, até mesmo se todas essas pessoas estiverem envolvidas na produção de armas, e então perderem seus empregos.

Não seja totalmente idealista. Ofereça uma solução razoável, que resolva as consequências daquilo que você está propondo. Senão, você será atacado, se apenas disser idealisticamente: “Não às armas. Não às armas.” Como essas pessoas irão sobreviver? Ou seja, você precisa apresentar um plano. Essa é a crítica construtiva. Você tem que mostrar que eles têm uma alternativa e são capazes de concretizar isso. Isso é realista. Dessa forma, percebemos que esses problemas não são tão fáceis de resolver.

Ok. Agora vamos continuar com nossa discussão.

Havíamos entrado em um tópico muito importante, que eu gostaria de dar seguimento agora, que é a questão das categorias - dividir o mundo e nós mesmos em vencedores e perdedores. Porque chegamos ao assunto que é chamado no budismo de "rótulos mentais", que está estreitamente ligado à questão da vacuidade. Isso não se limita de forma alguma à discussão sobre a dualidade. Dividir o mundo entre vencedores e perdedores. Essa é apenas uma pequena variação de um tema muito mais abrangente. Como eu disse, em uma palavra simples mais fácil para os ocidentais entenderem, “categorias.” Que categorias são essas em que vemos o mundo?

Essa é a maneira que basicamente utilizamos para tentar compreender o mundo e nossa experiência. E as categorias são coisas simplesmente criadas pelas mentes. Elas são construídas mentalmente. Deixe-me dar um exemplo que gosto muito de usar, pois penso que fica fácil de compreender: as cores. Se olharmos no geral, há uma gama inteira - e desculpem-me pela falta de exatidão, mas não sou um cientista - de comprimentos de onda. Como dividimos essa gama de cores? É totalmente arbitrário. Seria possível dividir de várias formas. Elas não estão fixadas pelo espectro. E assim, uma cultura específica decide que entre este comprimento de onda e o outro haverá uma categoria de cor. Eles escolhem sua própria definição de categoria. É totalmente arbitrário.

Não importa se você define os parâmetros por este número até aquele ou por indicadores, onde qualquer coisa que é mais escura que isso é vermelho e qualquer coisa mais clara é alaranjado. Não importa; você está limitando e dando uma definição. Toda questão é: “As definições são inerentes às coisas ou são inventadas pela cultura, pela mente?” E elas são criadas pela cultura ou pela nossa mente. Assim, estabelecemos os limites e fixamos que esta é uma definição: entre este ponto e esse ponto vou criar uma categoria. Ou nossa cultura irá dividir em categorias, em uma cor. Não há no universo nenhum limite ou muro dividindo o vermelho do laranja. Mesmo no que diz respeito à sensibilidade, ainda há um limite. O que está dentro de uma categoria e o que está dentro de outra. Não importa a base utilizada para criar a categoria. Isso é irrelevante. O ponto é que os limites são ajustados arbitrariamente.

E então, o que a cultura faz é criar padrões acústicos. Um padrão acústico seria como O, eR, Ah, eN, Ju. Esse padrão acústico, esses sons não têm nenhum significado inerente no mundo. E a cultura une isso e diz que “este padrão acústico tem um significado. E significa que criamos a definição de uma cor entre este ponto e esse ponto.” Não acho que as pessoas se juntaram e disseram: "Bem, vamos fazer isso." Mas se falarmos de processo mental, este é um processo mental. Criamos palavras - elas são apenas sons; elas são padrões acústicos. Vocês já escutaram uma língua que não entendem nada? Não é possível nem mesmo diferenciar as palavras. São somente sons. Fica claro. Os sons não têm nenhum significado inerente.

Criamos estas categorias e cada sociedade faz suas divisões. Algumas podem fazer a mesma divisão, mas as sociedades não dividem as coisas da mesma maneira. E assim pode haver uma sociedade, uma cultura, que tem as categorias “vermelho,” “laranja” e “amarelo,” e uma outra cultura que têm somente as categorias “vermelho” e “amarelo.” Metade do laranja está no vermelho e metade está no amarelo. E talvez o seu “vermelho” tenda um pouco ao que consideraríamos “marrom.”

Há experiências interessantes feitas em Harvard quando eu estava lá, que mostravam às pessoas diferentes imagens de cores de diferentes culturas e lhes perguntavam que cor era. E alguns diziam “azul,” alguns diziam “verde.” Não há nada inerente na cor. As diversas culturas definem conceitos diferentes de categorias e cores; os limites são diferentes, as definições são diferentes.

O que é visível ao olho humano, os limites são diferentes para o que é visível ao olho de uma águia. É relativo. O que estou tentando fazer é introduzir o que o budismo quer dizer com o termo "conceito".  Pensamento conceitual – o que está envolvido nisso? O que está envolvido é o pensando em termos de categorias. E as categorias estão profundamente conectadas com o idioma, embora não necessariamente, pois certamente os animais pensam em termos de categorias, mas talvez não tenham palavras para elas. Um cachorro certamente formulou a categoria “meu dono” e age nessa categoria quando por exemplo está sozinho, trancado em casa e sente a falta do seu dono e chora. Um cão tem o conceito de “meu território”. Um cão tem o conceito de “inimigo” ou “intruso.” Mas nenhuma destas é uma categoria verbal, não obstante são categorias e você teria que dizer que um cão pensa conceitualmente nos termos destas categorias.

Se conseguirmos compreender isso, no que diz respeito às cores, podemos aplicar à coisas mais sutis, como emoções. Certamente, o que uma cultura chama de “inveja” outra define como algo ligeiramente diferente. Talvez isso não caiba no conceito tibetano que é indicado por uma palavra diferente. Esses conceitos não necessariamente se sobrepõem. Elas são construções mentais. Não somente emoções perturbadoras, qualquer emoção - os limites não necessariamente se sobrepõem. Conforme conversamos durante o almoço, mesmo a distinção em inglês entre “jealousy” e “envy” não é exatamente a mesma distinção que as duas palavras em alemão ”Eifersucht" e “Neid.” Vocês disseram que, em alemão, uma serve mais para pessoas e relacionamentos e a outra aponta mais para coisas materiais.

E esse não é o caso em inglês?

Não.

Você sente ciúme de alguém que tem um sorvete?

Claro.

Então é diferente…

Não estamos nem falando sobre a diferença entre o ponto de vista europeu e asiático. Mesmo dentro de nossas culturas europeias, estas categorias - particularmente quando se trata de emoções - são definidas de maneira completamente diferente, e nossas palavras, embora se sobreponham em muitos aspectos, não são correspondências exatas. Mesmo dentro de uma língua, pode haver entendimentos diferentes das palavras e seu uso é definido diferentemente.

Isso significa que o espectro emocional não possui linhas sólidas, delimitando categorias. Há algo que é definido. A palavra que é usada na análise budista é “convenção.” É uma convenção, uma convenção de comum acordo. Nós mesmos criamos nossas próprias convenções, a que damos um nome. É uma convenção. É conveniente; a palavra “conveniente” está relacionada à convenção. É conveniente para a comunicação e para compreender o que está acontecendo.

Isso realmente faz sentido. Podemos até mesmo falar a mesma língua, mas dois parceiros em um relacionamento podem definir muito diferentemente o que significa “fidelidade” ou o que um “relacionamento” significa ou o que é um “bom relacionamento”, o que é “ser responsável.” E o que torna nossas convenções mais válidas do que as convenções dos outros? Peguemos um simples exemplo, como a palavra “educado.” O que é educado e o que é mal-educado? Isso é muito diferente entre as culturas. O que torna nossos costumes e nossa definição corretos? E os outros errados? O erro está em pensar que estas categorias existem e que o mundo existe realmente dentro de categorias. Isso é o que significa inerente: estabelecido por si mesmo.

Uma imagem que acho útil aqui é a de um livro de colorir infantil. Tendemos a pensar inconscientemente que o mundo inteiro existe como em um livro de colorir, com uma linha preta sólida em torno de tudo. Ou é isso ou é aquilo. Vocês já pintaram seguindo os números? Há um número pequeno dentro do espaço. Pinte aqui desta cor. As categorias estão aí, com uma grande linha ao seu redor. Isso é obviamente Quatsch, é lixo - se usarmos o vocabulário de hoje de manhã. O número no espaço, esses desenhos com números são o exemplo de definições que são inerentes por parte dos objetos. Você sabe, há uma definição: “Isto é o número um,” pinte desta cor, porque o número é inerente no lado da página. “Característica essencial” é o termo técnico.

Isso é profundamente sutil e extremamente profundo. Vamos tirar alguns minutos para entender. Mas certamente é isso que está por trás de tudo, vencedores e perdedores, não é?

[meditação]

O que estamos dizendo sobre não haver linhas inerentes em torno das coisas e nada de categorias inerentes não significa que o universo inteiro é um enorme caldo sem diferenciação. Esse é um erro comum. Uma conclusão equivocada disso. E somos todos um. Tudo é um. Que não há realmente nenhuma divisão entre “eu” e “você,” ou seja, não há limites e posso usar tudo que é seu. Essa não é a conclusão que tiramos disso.

Portanto, precisamos diferenciar aqui: estas categorias e palavras relacionam-se à maneira que as coisas são. Estão se referindo a algo, mas o universo não corresponde a estas palavras e categorias. Referem-se a algo, mas essa referência não corresponde a essas coisas. Há uma diferença. Porque estas categorias, estas palavras, são convenções. Convencionalmente é verdade que “essa é minha casa; não é sua casa.” Convencionalmente, “é meu parceiro, não seu.” Quando usamos estas palavras, quando usamos estas categorias, elas referem-se a algo - uma convenção. Assim, essa convenção, ou verdade convencional, é real. Entretanto, isso não significa que, como o gado, há um tipo de marca lateral na pessoa, “minha,” como se ela tivesse saido da barriga da mãe com isso. Essas coisas correspondem na verdade à essa categoria sólida e permanente. Porque as categorias são fixas. Vocês sabem: “Veja, esta palavra está aqui no dicionário. O seu significado é fixo.” O universo não corresponde a isso.

Mas quando usamos a linguagem, ela se refere a algo, e precisamos dela, senão não podemos nos comunicar. E não poderíamos entender as coisas que experimentamos se não tivéssemos categorias. Se não pudéssemos reconhecer que esta é uma porta, e aquela também é uma porta, mesmo que realmente sejam completamente diferentes, não é? E é por ela que você passa para chegar ao outro lado. Como funcionaríamos? Não estamos falando apenas de palavras. Estamos falando de significados. O budismo diferencia “palavras gerais” de “significados gerais”. De que há uma coisa chamada “porta” definida de tal e tal forma. Isso é uma convenção. Quero dizer, o universo não começou com portas. Mesmo assim todos sabemos o que é uma porta, não obstante que palavra usemos para isso; até mesmo uma vaca sabe o que é uma porta. A vaca não vai contra a parede quando quer entrar no galpão. E uma vaca é capaz de reconhecer uma porta em muitos edifícios. Precisamos dessas coisas. Não queremos jogá-las fora, tipo “Ah, esqueça, é tudo conceito.” Esses conceitos são convenientes e precisamos deles. O universo não corresponde a eles, mas precisamos deles, senão realmente não conseguiríamos funcionar.

Este é um bom exemplo: o mapa não é um território; o mapa da rua não é a rua. O que eu quero dizer que é muito interessante o fato de em muitas culturas não haver mapas. Tentar explicar o conceito de um mapa a alguém de alguma tribo isolada na Nova Guiné, ou seja lá onde for, é realmente difícil. Para nós isso é uma coisa natural, não é? Um mapa das ruas é útil pois mostra a disposição das ruas em uma cidade. Mas não é da mesma cor, do mesmo tamanho da rua, o nome da rua não está escrito no meio dela. Correto? Esse é um exemplo bobo, mas conceitos, idiomas e categorias, são a mesma coisa. Vamos digerir isso. Entender a questão. Estes são elementos sutis. Estamos indo rápido aqui, a expressão é “como se tirassem o chão de nossos pés: “Oh, nunca olhei para o mundo dessa forma.” E você tem que realmente certificar-se de que não entendeu mal e não pensar: “Ah, tudo é um grande caldo sem diferenciação.”

A relevância de tudo isso é que estamos colocando o "eu" dentro de uma determinada categoria: vencedor, perdedor, bem sucedido, mal sucedido, e assim por diante. Estas são apenas categorias. “Convencionalmente, eu perdi a corrida. Você ganhou a corrida.” É verdade. “Você foi promovido no trabalho, eu não.” “Meu parceiro está agora com você e não comigo.” Convencionalmente isso é verdade e descreve a situação. Mas isso é tudo. Isso descreve a situação. Não significa que estou nesta categoria sólida de “perdedor”, “fracassado” e você está na categoria de “vencedor.” E adicione ainda: “Você não merecia.”

Quando realmente entendemos isso e somos capazes de ver e entender: “Sim, é verdade.” A nossa resposta emocional às situações torna-se totalmente diferente. Não temos mais esta enorme linha entre compreensão intelectual e compreensão emocional. Também são categorias. Quando compreendemos realmente algo, sentimos isso. Há uma compreensão emocional mais profunda. Não há um sólido “Hum, tenho que ir de um a outro, e é somente isso e não aquilo; é somente intelectual, não é emocional.” É um espectro, é como você descreve. Compreender afeta as emoções, definitivamente.

Vamos tirar alguns minutos aqui para digerir esses pontos.

[meditação]

A diferença entre a coisa em si e o conceito, a aparência de uma coisa e a aparência têm a ver com o conceito que estou fazendo dela e talvez eu possa fazer conceitos cada vez melhores, mas há algum meio para chegar diretamente a coisa em si, indo além do conceito para chegar aos fenômenos propriamente ditos?

Essa é uma pergunta interessante e uma questão também presente na filosofia ocidental: “a coisa em si” da filosofia alemã. Mas certamente em termos de conceitos e categorias, há aqueles que são mais exatos do que outros. Categorias que são precisas e categorias que são imprecisas. E há muitos critérios diferentes para ver se algo é ou não preciso. Esta é uma longa e enorme discussão: a validade da cognição.

A sua pergunta, formulada de uma maneira budista, seria: É possível realmente encontrar o objeto, a coisa em si, ir além do conceito? E esta é uma questão seriamente analisada pela filosofia budista e há diferentes níveis de explicação. Assim não saltamos imediatamente à explicação mais sutil e sofisticada; nos aproximamos em estágios e isso leva anos. E toda a questão sobre vacuidade, em uma instância mais profunda, trata da questão de se algo pode ser realmente encontrado.

Sendo assim, não há resposta simples à sua pergunta. A questão da vacuidade é o que prova que algo existe? E “existir”, nas definições budistas, significa ser validamente conhecível. Posso imaginar que há um invasor da quinta dimensão debaixo de minha cama, mas este não é um pensamento válido. Você não vai encontrar um invasor da quinta dimensão debaixo da minha cama, apenas porque pensa que ele existe. E então há uma longa e enorme discussão sobre o que significa ser “validamente reconhecível.” Mesmo que eu pense que existe, não prova que existe.

Uma explicação menos sofisticadas, a que vem logo antes da mais profunda, diz que “Ok, aceitarei todas estas coisas que você diz sobre categorias e assim por diante, são somente convenções.” Mas, não obstante, você poderia realmente encontrar aquilo a que palavras e conceitos referem-se; o objeto de referência é perceptível. Isso prova que existe. Eu posso encontrá-lo. Quando eu digo “flor,” certamente é uma categoria e uma convenção, todas essas coisas, e é universal. Mas quando eu digo “flor,” isto está se referindo a uma flor logo ali. Isso é o que dizem que prova que existe, pode ser encontrada, há um referencial para a palavra.

Não estamos falando em um nível muito simplista que: “Não sou capaz de encontrar um invasor da quinta dimensão debaixo da minha cama, mas consigo encontrar um gato debaixo da minha cama e se eu procurar aonde o gato foi, posso encontrá-lo debaixo da minha cama.” Não estamos falando no nível de encontrar algo. Senão nunca encontraríamos nossas chaves; nunca encontraríamos o caminho de casa.

O ponto é que quando analisamos, as características definidoras são encontráveis nessa coisa que está embaixo da cama, as características que fazem com que seja um gato, que provam que é um gato? “Bem, possui uma longa cauda e faz um som específico quando você o acaricia, e coisas do gênero. Ok, onde está essa característica definidora, eu consigo encontrar? Está na célula da cauda, onde está? E você olha mais profundamente em um microscópio de elétrons. Você não consegue encontrar, não é?

Há alguma coisa que você possa encontrar nessa coisa debaixo da minha cama que a torne nem que seja um objeto reconhecível? Há uma linha em torno dela que o separa de um átomo longe dela? O espaço entre os pelos não é o gato? Há uma linha em torno dele, dividindo e fazendo dele um objeto sólido? Você não consegue encontrar a linha. Onde o átomo do gato termina e o átomo do ar próximo dele começa? Não há nenhuma linha. Onde está a linha que separa os campos energéticos dos dois átomos? Aqui está o gato deste lado do muro e aqui o ar do outro lado do muro.

Isso é mais profundo do que categorias. As categorias não são o nível mais profundo do que estamos projetando. Estamos projetando que as características definitivas por parte do objeto, sem mencionar a categoria, e estamos projetando que há até mesmo uma linha em torno dele, que é um objeto conhecível. Que há algo por parte do objeto que o torna um objeto individual e conhecível com uma linha em torno dele, não obstante em qual caixa o pusermos. Até mesmo isso é uma construção mental. Assim, não é o suficiente pararmos onde pensamos haver um pensamento conceitual e pensar que chegamos lá. Vai muito além disso. Você não é capaz de encontrar nada. Não há nada lá fora que faz com que ele seja um objeto conhecível, uma coisa.

Não podemos medir a concentração de pelo de gato?

É uma convenção, onde você diz: “Acima deste número é isso e abaixo deste número é aquilo.” É uma convenção. Todas essas coisas são convenções. Não estamos dizendo que tudo é um caldo sem diferenciação. Lembre que esse era o outro extremo. Porém esse extremo é que há realmente algo que pode ser encontrado lá fora, inerente por parte do objeto. Não apenas uma convenção. Construir a categoria de onde o gato termina com base na densidade do pelo do gato, é falar de números, é 46,3 ou 46,2? Onde está a linha? Esse é o ponto, trata-se de uma convenção. E como convenção ela funciona, não estamos negando isso.

Portanto, isso não prova que algo existe e que é encontrável. Isso é como dizer, você sabe, o que prova que eu existo é que sou capaz de ir à quinta dimensão. Essa é uma razão ridícula, já que você não pode mesmo ir à quinta dimensão. Você nem mesmo consegue encontrar algo. Então como dizer que poderia provar que algo existe. De fato, você não pode dizer nada que prove que algo existe por si só. Tudo que você pode dizer é que temos estas convenções, e é meramente convenção, que é um gato e que o limite é este, e se dê por satisfeito, porque tudo funciona nessa base. É isso que significa vacuidade. Poder ser encontrado é impossível. Enfim, você não pode afirmar o que prova por parte do objeto que algo existe. Isso que é vazio.

O gato, certamente é uma convenção, refere-se ao que está debaixo da cama. Mas onde encontrarei esta coisa? Neste átomo, nesta célula? Não é possível dizer. “Perdi meu parceiro”. “Perdi meu trabalho.” Isso refere-se a algo, mas não há nada por parte do “eu” que eu possa encontrar e que faz de mim um perdedor, com poder próprio, não há nada inerentemente errado comigo. Exploraremos mais esse assunto amanhã: por que o “eu” é apenas um conceito? Do que se trata tudo isso?

Um gato não é somente um conceito. Não é que tudo seja literalmente uma ilusão, que esteja apenas em nossa cabeça. Mas temos que ser muito cuidadosos aqui. E a linguagem é delicada. É por isso que devemos ir além da linguagem. A linguagem sempre passa uma ideia equivocada. Contudo necessitamos trabalhar com ela, senão não conseguiremos nos comunicar.

Não estamos dizendo que tudo é simplesmente um conceito; os conceitos são úteis para descrevermos as coisas. E assim que começamos a usar a linguagem, somos envolvidos por conceitos. E é por isso que precisamos eventualmente ir além das palavras. Mas isso não significa esquecer as palavras e não usar mais a linguagem.

Vamos terminar com a dedicação. Pensemos que tipo de compreensão ganhamos inicialmente. Que ela possa ser aprofundada até que seja entendida e comece a fazer diferença. Porque definitivamente fará, em termos de experiência de vida, especialmente nossa experiência emocional. E que através disso, que não apenas superemos nossos próprios problemas, mas que também estejamos em uma posição melhor para ajudar aos outros.

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