Perguntas sobre Estágios do Progresso e o Tantra

Em nossa última sessão, falamos sobre os obstáculos que nos impedem de nos sentir conectados com os outros, e a natureza assustadora de nosso comportamento. Antes de continuarmos, vocês têm perguntas ou coisas que gostariam de discutir?

Minha pergunta é em relação a quando cientistas, por exemplo, falam publicamente sobre um assunto e os fatos que apresentam suscitam emoções negativas no público para o qual estão falando. Um exemplo extremo é o de Giordano Bruno, que no século XVI enfureceu pessoas por ter mencionado fatos que depois acabaram sendo comprovados, como a ideia de que as estrelas eram sois distantes com seus próprios planetas. Ele foi queimado na fogueira por isso. Nesse caso, seria uma ação ou um comportamento construtivo quando alguém diz uma verdade que pode suscitar a fúria de outras pessoas, ou seria uma mistura de um comportamento construtivo e destrutivo?

Bem, trata-se realmente de uma questão complexa, quando começamos a analisá-la. De um lado, temos a definição de um comportamento destrutivo, que é uma forma de agir, falar ou pensar motivada por uma emoção perturbadora - como a raiva, a cobiça, a arrogância, a inveja ou a ingenuidade.  Se a pessoa transmitiu a informação apenas por arrogância, para mostrar como era inteligente, diríamos que foi uma ação destrutiva. Ou se ela o fez para enfurecer as pessoas, também seria destrutivo. 

Contudo, quando falamos sobre ignorância, sobre a ignorância subjacente ao comportamento compulsivo, seja ele construtivo ou destrutivo, pode ser que a pessoa tivesse uma motivação positiva: por exemplo, que quisesse ajudar, instruir, informar as pessoas e assim por diante. Entretanto, mesmo  não sendo uma viagem do ego - para demonstrar o quanto ele era inteligente - podia haver uma ignorância em relação à reação das pessoas. Não discriminar entre o que é ou não é adequado dizer - isso é ignorância. Talvez a pessoa não soubesse qual era o nível do público ao qual estava se dirigindo ou qual seria sua reação - isso acontece muitas vezes. A maioria das pessoas não está preparada para lidar com fatos concretos, como as estatísticas.

Por exemplo, meu assistente adora estatísticas e, independentemente do que estivermos fazendo, ele citará estatísticas e fatos concretos. Cada decisão que temos que fazer tem que ter como base uma análise estatística e confesso que fico bem impaciente e irritado por ele ficar citando estatísticas o tempo todo; felizmente, ele não está aqui agora. E ainda que esteja certo - eu não costumo verificar suas estatísticas - ainda assim, temos que analisar o que nos irrita enquanto público. Isso é o que interessa.

Pode ser que fiquemos irritados porque “não estou com vontade de ficar escutando isso”, pois destrói minhas crenças, que só são baseadas no que “eu penso” e não têm fundamento, é claro. Também temos que considerar o fato de que nem todo mundo age racionalmente e de que há, também, uma base emocional e irracional para o comportamento das pessoas, apesar do que dizem as estatísticas sobre “as pessoas agirem dessa ou daquela maneira”.  Neste caso, a habilidade de quem fala é usar o tom de voz adequado. Não deveria ser o tipo de tom de voz de quem diz: “você é burro, pois as estatísticas dizem isso e aquilo”.   É claro que isso gera irritação e raiva por parte daquele que está ouvindo; a pessoa fica muito na defensiva. “A estatística diz isso e isso e mais isso” - esse tipo de apresentação de estatísticas irritaria qualquer um. 

Por isso, uma das grandes características ou qualidades de um buda são métodos habilidosos. Um buda sabe como apresentar fatos em doses graduais, de acordo com o que as pessoas estão preparadas para entender, com um tom de voz e um método de ensino maravilhosos, que não faz com que as pessoas fiquem na defensiva. No entanto, é algo muito difícil de fazer. Portanto, apresentar fatos não é, por si só, construtivo nem destrutivo. Tudo depende da motivação. Tudo depende da motivação e do método de ensino - dos meios hábeis que estão sendo utilizados. 

Geralmente, você traduz o termo “refúgio” como “direcionamento seguro”. “Refúgio" e "direcionamento seguro" são traduções da mesma palavra? Se for o caso, você poderia por favor mostrar como é feita a tradução?

Eu costumo traduzir refúgio como “direcionamento seguro” principalmente porque o termo tem essa conotação. Não é a tradução literal. A palavra em si, “sarana" em sânscrito, ou “kyab" em tibetano, significa “proteção”. A expressão usada significa, literalmente: “ir em direção à proteção”, o que seria bem estranho se o disséssemos em nossos idiomas. “Vou tomar refúgio” é o que costumamos dizer e sempre me parece uma expressão um pouco estranha em inglês. Não sei como é em russo. Quero dizer, sempre soou para mim como se eu estivesse indo fazer algo, como ir ao mercado comprar leite. Em outras palavras, é como ir ver o Buda para que ele me dê algo, ou seja, o refúgio. No entanto, não se trata de uma ação passiva, a intenção por detrás do refúgio não é que ele seja passivo.  

Além disso, temos o refúgio causal e o resultante. O refúgio causal é naqueles que alcançaram a iluminação - Buda, Dharma e Sangha; eles a alcançaram e proporcionam um direcionamento seguro. Depois, há o refúgio resultante, que é onde nós, pessoas comuns, “tomamos refúgio” na nossa realização de Buda, Dharma e Sangha, que ainda não ocorreu. Nossa conquista do estado búdico não aconteceu ainda, mas esse não-acontecendo-ainda existe como um fenômeno de imputação com base em suas causas. Essas causas estimularão nossa iluminação quando todas as condições, o desenvolvimento da força das causas, e assim por diante, estiverem completos, mas as causas têm realmente o potencial de nos levar à iluminação. Essas causas se referem aos fatores de nossa natureza búdica. Por isso, sempre começo com prostrações para aqueles que alcançaram a iluminação, para a nossa própria iluminação que queremos alcançar no futuro e para nossa própria natureza búdica, que nos possibilitará chegar lá. Essa maneira de praticar o refúgio e as prostrações têm como base a análise do refúgio causal e resultante. 

Como posso ir em direção à minha futura iluminação, que ainda não ocorreu, ou aos fatores de minha natureza búdica, mas não fazer nada para alcançá-los ou ativá-los? Eles me darão proteção sem que eu tenha que fazer nada, apenas me submeter ao seu poder? Eles são meus salvadores? Isso não é budismo. Não faz sentido algum buscar refúgio neles como se fossem nossos salvadores. Lembrem-se que o termo refúgio tem a conotação de proteção. “Estamos indo em direção a eles” parece funcionar melhor e ter a conotação correta. 

Ir em direção a eles nos proporciona proteção. É o significado da palavra “dharma”, que é algo que nos ajuda a não nos causarmos sofrimento. O dharma nos ajuda a evitar o sofrimento - como quando somos cuidadosos ao atravessar uma rua, olhando para os dois lados para evitar que um carro nos atropele. É o significado da palavra “dharma”- uma medida preventiva, algo que nos ajuda a prevenir. “Dharma” vem literalmente do termo em sânscrito que significa “evitar”, impedir que algo ocorra. 

Por isso tenho usado “ir em direção a”. Além disso, é um direcionamento seguro e positivo; é seguro no sentido de que nos impede de criar mais sofrimento para nós, evitamos criar mais sofrimento para nós. Escolhi essa nova terminologia com base em minha experiência de que muitas pessoas têm a tendência de estagnar nos estudos do Dharma por causa dos termos e não investigam realmente o que eles significam. É claro que, em relação a isso, meu assistente diria: “Bem, qual é a estatística para isso?” Mas eu não tenho uma estatística; simplesmente “acho que é assim”. Portanto - confesso - eu acho, com base em minha própria experiência e das poucas pessoas com quem conversei, que elas não costumam investigar. Não tenho estatísticas para comprovar. Ele tem razão em perguntar, mas simplesmente é o que eu acho, ainda que não tenha estatísticas. 

Faz algum tempo que sinto que tudo está bem - tudo está bem com a família, com o trabalho, etc. Quando uma pessoa sente que alcançou o topo da montanha, o único lugar para ir é para baixo. O que você aconselharia nesse caso, onde o único lugar para ir é para baixo?

Bem, descer não é necessariamente a única possibilidade após uma conquista. Quando falamos do caminho para a iluminação ou a libertação, por exemplo, ele leva a um estado que permanecerá estável e do qual, uma vez alcançado, não se pode “cair”. Quando o alcançamos, estamos conquistando um verdadeiro cessar, a terceira nobre verdade. É o verdadeiro cessar de todas as causas que nos fazem decair, portanto já não há a possibilidade de regredir. É muito difícil nos convencermos disso, pois tem como base o entendimento da pureza natural da mente – de que ela não é naturalmente maculada ou adulterada pelas causas dos problemas. 

Um dos votos ao longo do caminho é de nunca ficarmos satisfeitos com nosso entendimento. Precisamos ir sempre além no caminho para a libertação e a iluminação para conseguirmos sair do samsara para sempre. Queremos fazer isso porque a existência incontrolavelmente recorrente e o fato de que nossas circunstâncias têm altos e baixos constantes são características do samsara. As coisas podem ir bem por muito, muito tempo, e pensarmos: “Bem, eu realmente superei a minha raiva.” e, de repente, aparece alguém em nossa vida que é a pessoa mais irritante do mundo. De repente, depois de muitos anos de prática do dharma, começamos a ficar com raiva dessa pessoa. Estou falando por experiência própria, isso realmente acontece. A única maneira de lidar com isso é como foi explicado nos Oito Versos do Treinamento Mental. Devemos ver essa pessoa como um tesouro, alguém que entrou em nossa vida para nos ensinar. Mesmo acreditando termos chegado a algum lugar, ainda temos um longo caminho pela frente. Um bom exemplo é o rapaz das estatísticas - todas as minhas crenças, meus valores, tudo que fiz, tinha que ser provado com estatísticas. E lá estava eu sem estatísticas para provar nada, só dizendo “eu penso assim”. Fiquei muito irritado, mas ele estava agindo como um grande professor, realmente me ajudando. 

Há exemplos de pessoas que alcançaram esse estado mental no qual ninguém consegue irritá-las? Existe esse tipo de pessoa no mundo atual?

Bem, sua Santidade o Dalai Lama diz que ele ainda fica irritado. E eu penso que ele é provavelmente a pessoas mais desenvolvida do mundo atualmente. No entanto, ele diz que só fica irritado por alguns segundos e logo supera a irritação. Acho que é esse o rumo que queremos tomar, que nossa irritação não dure muito tempo, que consigamos superá-la cada vez mais rápido. 

Pensem nisso, faz bastante sentido. Desde um tempo sem início, um tempo muito longo, uma eternidade, acumulamos hábitos de ignorância, raiva e assim por diante. São hábitos muito intensos que agora têm um grande poder. Por outro lado, qual é a força de nossos hábitos de paciência, amor, sabedoria e assim por diante? São hábito muito fracos quando comparados à raiva e à ignorância eternas. Com toda a nossa prática - o que nos remete à neuroplasticidade - estamos tentando construir hábitos positivos mais e mais fortes e enfraquecer os negativos. No entanto, eliminar completamente os negativos é muito difícil. Podemos apenas trabalhar para torná-los cada vez mais fracos e tornar os hábitos positivos cada vez mais fortes. É um processo gradual.

No início, evitar as condições, as circunstâncias, que ativam os hábitos negativos, pode ajudar. Togmey Zangpo diz, nas 37 Práticas do Bodhisattva, que quando é muito difícil permanecermos no lugar onde vivemos ou crescemos e todos ali nos fazem sentir muita raiva, apego e assim por diante, é melhor partir por um tempo. Assim, evitamos as circunstâncias que estimulam todos esses padrões negativos. Depois, trabalhamos no fortalecimento dos hábitos positivos. É claro que esses padrões incontrolavelmente recorrentes se manifestarão em todos os lugares, mas ainda assim em outro lugar teremos a oportunidade de reforçar ainda mais os hábitos positivos. No entanto, depois de alcançarmos certo nível de estabilidade, é bom voltarmos às situações desafiadoras para verificar quanto progredimos. Queremos ser desafiados, pois isso nos mostra quanto trabalho ainda temos pela frente. No entanto, fazer isso requer muita coragem. Os tibetanos traduzem “bodhisattva" para o tibetano acrescentando uma sílaba ao termo, que significa “herói, ou pessoa corajosa”. 

Enfrentar nossas emoções perturbadoras e nossos comportamentos destrutivos, sem nos dar por satisfeitos quando tivermos um pouquinho mais de controle sobre eles, requer uma grande coragem; temos que realmente perseverar e nos aprofundar. A palavra perseverança, em sânscrito, “virya”, está relacionada com “vira”, que significa “herói”. Também está relacionada com a palavra “viril” em português, por exemplo, “a força viril masculina”. Basicamente, requer uma coragem heróica perseverar e não desistir. Portanto, não desistam! Só porque as coisas estão indo bem não significa que não vai aparecer alguém para nos desafiar de novo. Quando essa pessoa chegar, dê-lhe as boas-vindas.

Tenho uma pergunta sobre o sutra e o tantra. O sutra é o caminho das causas e o tantra é o caminho dos resultados. De certo ponto de vista, é possível alcançar a iluminação através das práticas do sutra, que leva eras incontáveis. Ao mesmo tempo, de acordo com o trabalho de Lama Tsongkhapa, praticando o tantra é possível alcançar a iluminação em três anos e três fases da lua, e sem o tantra é impossível alcançar a iluminação. Como devemos entender isso?

 Tenho que admitir que isso é realmente um problema no budismo. Refiro-me ao sectarismo interno. Cada uma das escolas diz: “Com o nosso ensinamento, você alcançará a libertação” ou “Com o nosso ensinamento, você alcançará a iluminação”. Já uma outra escola declarará que tem mais profundidade, não com base no que dizem: “você não vai conseguir completar o caminho com o outro sistema. Ele o ajuda a progredir, mas para se aprofundar, você terá que seguir conosco.” Com isso querem dizer que você precisa do entendimento dessa escola. No budismo há essas diferentes escolas, e até mesmo dentro das escolas do Mahayana, temos sutra e tantra. E dentro do tantra, temos diferentes tipos de tantra, e cada escola do Mahayana afirma que só podemos alcançar a iluminação através do “nível de entendimento” que ela pode nos proporcionar, por isso costumo chamar isso de sectarismo interno. 

É muito difícil avaliar esses ensinamentos com estatísticas. Meu querido assistente fez uma lavagem cerebral em mim, me fazendo acreditar em estatísticas, e onde estão as estatísticas que afirmam: “Com o entendimento Chittamatra só conseguimos alcançar este patamar e, se quisermos progredir, realmente precisamos de Madhyamaka?” Será que Tsongkhapa baseou suas conclusões em estatísticas ou na lógica e na experiência? Não sei.

Se olharmos para Shantideva, ele aponta para a afirmação das escolas Hinayana de que, através do entendimento da impermanência e das quatro nobres verdades é possível alcançar a libertação. Ele afirma que esse entendimento nos liberta das emoções perturbadoras mais grosseiras, mas que algumas emoções mais sutis ainda persistem. Esse é um dos testes para sabermos se um entendimento nos libertou: temos que nos examinar para ver se realmente alcançarmos um verdadeiro cessar das emoções perturbadoras ou se ainda restou um pouco delas. 

No que se refere ao sutra e tantra, Tsongkhapa diz que, de acordo com seu entendimento da visão Prasangika -  que era completamente diferente do entendimento de todo os outros, já que Tsongkhapa era um revolucionário incrível e sua visão acabou se tornando a visão Gelugpa da Prasangika - essa visão Prasangika é comum ao sutra e ao tantra; não há diferença entre elas. De fato, a visão é exatamente a mesma, no que diz respeito a alcançar a libertação ou a iluminação. Ninguém ousou dizer isso antes; ele expressou que precisamos exatamente do mesmo entendimento para alcançar a libertação e a iluminação nos caminhos do sutra e do tantra. 

Quando ele falou que o tantra é necessário, ele estava se referindo ao tantra anuttarayoga, o tipo mais elevado de tantra, não outros tipos de tantra. Tsongkhapa disse que quando alcançarmos o décimo bhumi, o décimo estágio de bodhisattva, justo antes da iluminação - nesse ponto teremos que acessar a mente de clara luz com nossa cognição não-conceitual da vacuidade para nos livrarmos do nível mais sutil de obscurecimentos que impedem a onisciência. Para isso, precisamos de métodos da anuttarayoga.

Novamente, não faço a mínima ideia se há estatísticas para comprovar tudo isso. Ainda assim, faz sentido no que se refere à teoria. A Iluminação acontecerá automaticamente?  Precisamos praticar os métodos do anuttarayoga para alcançarmos a iluminação? Novamente, não sei.

Kedrup Je, um dos discípulos de Tsongkhapa, afirma categoricamente que todas as escolas de anuttarayoga são igualmente capazes de nos levar à iluminação. Nenhuma é melhor do que a outra, nenhuma proporciona uma iluminação melhor do que a outra, ainda que cada uma delas diga “Somos o rei de todos os tantras” ou “Somos os melhores.” Eles afirmam essas coisas para motivar as pessoas, mas isso não significa que a escola é melhor do que as outras; que, por exemplo, Kalachakra é melhor do que Guhyasamaja.

Voltemos ao tema do sutra e é disso que comecei a falar antes. Desde sempre temos esses hábitos negativos, e nossos hábitos positivos quase não têm força. Mesmo se tivermos um entendimento intelectual correto da vacuidade, sozinho isso não nos libertará. De fato, não é possível alcançar nem mesmo a cognição não-conceitual da vacuidade só com base no entendimento intelectual. Precisamos de uma tremenda quantidade de força positiva, que desenvolvemos a partir da prática da renúncia, de bodhichitta e assim por diante. Se compararmos nosso eterno acúmulo de hábitos negativos com algumas horas de meditação sobre hábitos positivos, obviamente não nos libertaremos tão rápido dos negativos. 

Pensando assim, faz muito sentido precisarmos de três zilhões de eras de acúmulo de força positiva e hábitos positivos, o que é pouco tempo para superarmos nossos hábitos negativos, se compararmos com a eternidade que passamos acumulando força negativa. Não importa realmente quanta força positiva é necessária. O que importa é que  é necessária uma quantidade incrivelmente grande de força positiva. Se pensarmos nesse processo como um acúmulo de “méritos”, soará como ganhar pontos para vencer um jogo. No entanto, a força positiva é o que precisamos para superar e eliminar a força negativa que temos acumulado desde sempre. Caso contrário, como poderíamos nos livrar dela? É arrogante pensarmos “Bem, agora que fiz 100000 prostrações, nunca mais sentirei raiva.” É bem arrogante pensar assim, não é? Mesmo se tivermos realizado as prostrações com perfeição.

Quero apenas ressaltar que requer coragem comprometer-se eternamente com a prática de acumular força positiva  - bem, não eternamente, mas a ponto de dizer “farei isso por três zilhões de eras”. Não seja ingênuo. Quando pensamos que é possível alcançar a iluminação em uma vida com o tantra anuttarayoga, podemos pensar: “Bem, se isso for verdade, não deve ser tão difícil assim.” Mas essa conquista não ocorrerá sem causas para que ocorra e não ocorrerá nesta vida se não tivermos acumulado uma quantidade incrível de força positiva nas vidas passadas para que, nesta vida, possamos dar os passos que faltam. Sim, é possível fazermos isso em três anos e três fases da lua como foi mencionado no Kalachakra, mas esse número é simbólico. Ter um nível de mente de clara luz com uma cognição não-conceitual da vacuidade não é uma tarefa simples. Temos que ter uma força positiva tremenda. Sim, podemos fazer ngondro, as práticas preliminares, mas isso é apenas uma gota no oceano de força positiva que precisamos para superar esses hábitos negativos que temos desde sempre. 

Então, o que deveríamos fazer durante esses três anos e três ciclos da lua?

Os textos do kalachakra dizem: “Você pode alcançar a iluminação através do tantra anuttarayoga no curto espaço de três anos e três fases da lua.” O que significa isso? Isso também foi mencionado nos outros tantras, mas este número específico vem do kalachakra. Ao longo de um dia, a respiração alterna doze vezes entre a narina direita e a narina esquerda. Quando acontece a transição de uma narina para a outra, uma respiração chamada de respiração de consciência profunda, entra no canal central. Em cem anos de vida, o número de respirações que entrariam no canal central durante esse tempo é 21600. Portanto, tomando esse mesmo número, - o kalachakra adora quando os números se correspondem - quando tivermos alcançado a cognição não-conceitual da vacuidade com uma mente de clara luz, se, com esse tipo de mente, acumularmos 21600 gotas do que chamamos de “felicidade imutável” em nosso canal central, alcançaremos a iluminação. 

É o mesmo número das respirações de consciência profunda. Se tomássemos todos esses momentos das assim chamadas respirações de consciência profunda e os alinhássemos consecutivamente, como se os estivéssemos tendo a cada instante, a soma deles resultaria em três anos e três fases da lua. Com base nessa simetria, disseram que é possível alcançar a iluminação através do tantra anuttarayoga em três anos e três fases da lua - no entanto, esse número não é para ser entendido literalmente. Sim, se acumularmos 21600 gotas de felicidade imutável consecutivamente, a cada momento, por três anos e três fases da lua, sim, alcançaremos a iluminação, mas lembrem-se que isso só pode ocorrer se antes tivermos alcançado a mente de clara luz com a cognição não-conceitual da vacuidade. 

Temos que entender o que significam todos esses números e por que eles existem. Depois, ficará claro que isso quer dizer que, não importa o que acontecer, será preciso investir um tempo e um trabalho monumentais. No entanto, o anuttarayoga Guhyasamaja afirma que quando alcançarmos o estágio da assim chamada “mente isolada”, se estivermos praticando o tantra anuttarayoga com a visão Chittamatra, mudaremos automaticamente para uma visão Prasangika. Isso porque nossa prática evidenciará que a existência das coisas só pode ser definida pela rotulagem mental. Com a prática chegaremos automaticamente a essa realização. Basicamente, nossa visão mudará de forma automática.

Isso me faz pensar que, se alcançarmos o décimo bhumi através dos métodos do sutra e percebermos que, para alcançarmos a iluminação, precisaremos conquistar uma mente de clara luz com a cognição não-conceitual da vacuidade que já temos, em qual ponto do estágio completo (estágio de completude) será necessário começar? Ou será que teremos que voltar ao estado geracional (estágio de geração) para acumular causas e alcançar os Corpos de Formas de um buda? Não sei. São perguntas que vale a pena perguntar ao Dalai Lama ou alguém como ele. 

Por exemplo, do ponto de vista Prasangika, um arhat shravaka terá que voltar ao caminho da visão se ele continuar no caminho do bodhisattva depois de se tornar um arhat, O que acontece com um bodhisattva do sutra do décimo bhumi que recorre ao tantra anuttarayoga para se livrar dos mais sutis dos obscurecimentos sutis que impedem a onisciência?

Agora fui muito, muito longe na teoria avançada, mas voltando à nossa experiência prática, a pergunta é: onde começamos com nossa prática do tantra? Em qual ponto do caminho do sutra precisamos estar? Essa é realmente a pergunta, não é? Devemos esperar até estarmos super avançados no sutra antes de começar, mas quando seria isso? Queremos evitar um início prematuro no tanta, antes de termos uma boa base no sutra. Essas são perguntas muito importantes. 

Tudo isso nos leva de volta ao lam-rim. Poderíamos estudar o lam-rim de uma forma tradicional, sem saber o que vem depois - começar apenas com o nível inicial e não ter a mínima ideia do que é o nível intermediário ou avançado. No entanto, hoje em dia, há muitas informações disponíveis; a maioria de nós leu algo sobre lam-rim, portanto sabemos qual o escopo do caminho. Por isso, podemos pensar agora: ‘tudo bem, estou me dirigindo ao escopo avançado, rumo ao Mahayana, e agora que estou treinando o escopo inicial, qual a importância do escopo inicial? Como isso se aplica no que se refere a alcançar o escopo avançado, o mahayana?” Pensando assim, sempre nos lembramos também do resto do caminho. É obvio que para ajudar os outros - essa é nossa abordagem aqui - temos que parar de agir de forma destrutiva. Além disso, queremos parar de agir de forma destrutiva não só porque agir assim nos machuca, mas também porque parar de agir assim ajuda os outros. Esse é objetivo que temos em mente. 

Qual o real significado da prática do tantra, se o tantra é o que queremos alcançar, por ser tão conhecido agora, especialmente o tantra anuttarayoga, a classe mais elevada? Qual a essência dele?  É conseguir nos visualizarmos com muitos braços? E daí? Esse é o objetivo maior de todas as nossas práticas? Não! A essência do tantra anuttarayoga é transformar o processo da morte, do bardo e do renascimento a fim de acessarmos, de forma semelhante, a mente de clara luz. E também conseguir gerar, a partir dela, os Corpos de Forma de um buda - em vez das formas do bardo e do renascimento - as formas de Sambhogakaya e Nirmanakaya. Basicamente, essa é a essência de todo o tantra.  

Se tivermos uma ideia do caminho completo - de qual é nosso objetivo desde o início - poderemos começar com o escopo inicial do lam-rim. No entanto, se não acreditarmos em renascimento, se não começarmos a pensar seriamente nisso, transformar a morte, o bardo e o renascimento não fará sentido algum. Portanto, realmente precisamos começar a pensar nessas coisas, e examinar o que significa o renascimento. E aí, com o escopo inicial, se agirmos destrutivamente, entenderemos que isso nos fará obter renascimentos piores e não queremos que isso aconteça. Queremos nos livrar de toda essa questão do renascimento, queremos transformar isso. Portanto, desde o início trabalhamos pensando nesse objetivo, com o qual o tantra irá trabalhar. 

Se só quisermos melhorar esta vida - que é o ponto no qual quase todos nós começamos - nosso interesse no Dharma só será relacionado a esse desejo de melhorar um pouco esta vida. Esse objetivo é bom, é o que costumo chamar de "Dharma Light". Não precisamos do tantra para isso. Com esse objetivo, não temos o escopo mental para saber o que estamos fazendo ao fazer as visualizações e elas se tornam rapidamente uma fuga para uma ilha da fantasia. 

Portanto, com uma abordagem Dharma Light, começamos pensando, de forma realista: “Vou aprender no dharma o que pode vir a ser benéfico para mim nesta vida”. Ótimo. O dharma tem coisas maravilhosas para oferecer nesse caso. No entanto, se estivermos interessados no tantra, nossa abordagem do dharma tem que ser autêntica - o que costumo chamar de “Dharma Autêntico” e isso tem que incluir aceitar o renascimento e todas as coisas envolvidas no tantra. Se estivermos interessados no tantra, bem, como sempre dizia meu professor Serkong Rinpoche, temos que levar esse caminho a sério. Não é uma brincadeira. É preciso ser sério e começar do início. Basicamente, temos que saber onde estamos entrando. 

Peço desculpas por ter falado tanto. Não falei com base em estatísticas, mas com base em “eu penso que isso é benéfico”. Talvez isso ajude vocês. Vamos fazer uma pausa agora e depois voltaremos ao nosso tema.  

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