A prática da meditação é encontrada em várias tradições espirituais, não apenas no budismo. Mas, apesar de vários aspectos da meditação estarem presentes em todas as tradições indianas, aqui vamos limitar nossa discussão ao modo como a meditação é apresentada no budismo.
O Que É Meditação
A palavra “meditação” significa “habituar-nos”. No tibetano, a palavra usada é “gom (sgom)”, que tem a conotação de construir um hábito benéfico. E a palavra original, sânscrita, é “bhavana”, que que tem mais uma conotação de fazer alguma coisa efetivamente acontecer. Existe um certo tipo de atitude ou estado mental benéfico que queremos fazer acontecer, em outras palavras, queremos fazer esse estado mental ser operante no modo como pensamos e vivemos. Dependendo da tradição na qual a meditação é usada, as instruções especificarão quais são os hábitos benéficos e qual a razão e objetivo de desenvolvê-los. No entanto, nas tradições indianas, esse processo é tripartido: primeiro se ouve os ensinamentos, depois se pensa e finalmente se medita.
(Veja: O que é Meditação?)
Ouvindo os Ensinamentos
Vamos supor que queremos construir o hábito benéfico de sermos compassivos. Para desenvolver compaixão ou aumentar um sentimento já existente de compaixão, precisamos primeiro ouvir ensinamentos sobre o tópico. Na Índia antiga, nenhum ensinamento era escrito. Eram todos transmitidos oralmente. Por esse motivo, alguém que estivesse aprendendo a meditar tinha que primeiramente ouvir os ensinamentos. É por isso que o primeiro passo é conhecido como “ouvir”.
Hoje em dia, porém, podemos ler sobre os vários ensinamentos – não precisamos efetivamente ouvir alguém nos ensinar ao vivo – entretanto, o princípio por traz disso é bastante relevante. Antigamente, tudo precisava ser memorizado e o ouvinte tinha que ter a certeza de que aquilo que alguém estava recitando era preciso. A pessoa recitando o ensinamento de memória poderia não se recordar dele corretamente. Alguns erros poderiam ser introduzidos e isso poderia ser um problema.
Consciência Discriminativa
Ao ouvirmos os ensinamentos precisamos desenvolver o que chamamos de “consciência discriminativa que surge do ouvir” O termo tibetano “sherab” (Skt. prajna) é frequentemente traduzido como “sabedoria”, mas a palavra “sabedoria” pode ser muito vaga; ela não tem um significado preciso. Se um grupo de pessoas ouve a palavra “sabedoria”, cada uma terá uma ideia diferente sobre o que efetivamente significa. Portanto, a palavra “sabedoria” não nos ajuda a entender o termo “sherab” com precisão. Por isso, eu prefiro traduzir “sherab” como “consciência discriminativa”.
A consciência discriminativa se baseia em um fator mental anterior, que eu traduzo como “distinguir”. A maioria das pessoas traduz esse termo como “reconhecimento”, mas “reconhecimento” também não é preciso. “Reconhecer” significa que você conhecia o objeto antes, e então o reconheceu; isso não é muito correto. “Distinguir” significa especificar algo como “isso” ao diferenciá-lo de tudo o que não é “isso”. Somos capazes de diferenciar “isso” de “não isso”, ou “isso” de “aquilo”, porque todas as coisas têm propriedades características específicas, individuais, marcas as que definem, e que percebemos quando estamos conscientes de alguma coisa. Um exemplo simples é a distinção que as crianças conseguem fazer entre “faminto” e “não faminto”. Crianças não precisam de palavras para essas duas sensações físicas diferentes e elas não precisam entender os conceitos de “faminto” e “não faminto” profundamente. Ainda assim elas conseguem distinguir entre as duas coisas, porque cada uma tem uma propriedade característica única que a define; a saber, um tipo de sensação física.
A consciência discriminativa adiciona um fator de certeza ao distinguir: “Definitivamente é isso e não aquilo”. É dessa certeza que precisamos quando ouvimos ou lemos ensinamentos. Precisamos de confiança para saber: “Esse é o verdadeiro ensinamento; esse não é um ensinamento falso”. Na realidade é muito difícil saber que “esse é o verdadeiro ensinamento”, porque as escrituras em si não são fáceis de entender. Mas como saber que um professor em particular é digno de confiança, autêntico? Alguém pode estar ensinando sobre budismo ou ensinando sobre amor e compaixão e talvez dando informações que entram em conflito com o que o budismo realmente diz. Precisamos estar muito certos, usando consciência discriminativa, que o ensinamento que ouvimos ou lemos é exatamente como deveria ser; precisamos estar certos que é o ensinamento autêntico.
Existem certos fatores que precisam estar presentes para que um ensinamento seja válido como ensinamento budista. O autor ou aquele que o transmite precisa ser alguém que possamos verificar, por investigação, se é um professor devidamente qualificado. Para isso, precisamos perguntar a outras pessoas, por exemplo: “Essa pessoa tem um professor válido, como é a relação entre eles? O professor dessa pessoa vem de uma linhagem de professores que vem do passado?” Essas são questões importantes de serem investigadas. Não devemos pegar qualquer livro e achar que é uma fonte confiável só porque foi escrito por alguém famoso. O mesmo princípio se aplica quando ouvimos uma palestra.
Usando de Discriminação para Determinar o Contexto de um Ensinamento
Ademais, há um contexto para cada um dos ensinamentos budistas, uma escola filosófica da qual o ensinamento deriva. É importante sabermos qual o contexto de um determinado ensinamento. A razão é que os vários sistemas budistas têm explicações diferentes para um mesmo termo técnico, como o “carma”, por exemplo. E ainda, os ensinamentos sobre carma de um sistema específico se encaixam com as explicações que esse sistema dá sobre muitos outros tópicos do Dharma, como por exemplo, a teoria da cognição. Precisamos ter certeza de qual sistema os ensinamentos vêm, para que possamos combiná-los com outros ensinamentos que já tenhamos ouvido.
Saber o contexto no qual as palavras estão sendo usadas é importante mesmo em conversas casuais. Por exemplo, você ouve a palavra “bon.” Esse é o nome da tradição pré-budista do Tibete. Mas em Frances, bon significa bom. Portanto se você não estiver ciente do contexto da língua, pode se confundir ao ouvir a palavra “bon”. Será que pessoa está se referindo a bon em francês ou em tibetano? Depender apenas do som da palavra, sem saber de qual idioma é, pode causar confusão.
Da mesma forma, se tomarmos como exemplo os ensinamentos sobre a vacuidade, veremos que explica-se a vacuidade de uma determinada forma em uma escola indiana de budismo e de outra em outra escola, também indiana, de budismo. E a mesma escola indiana de budismo é interpretada de forma muito diferente em cada uma das várias escolas de budismo tibetano.
O fato de haver tantas explicações diferentes para o mesmo tópico é um dos aspectos mais confusos para ocidentais estudando budismo. Já é suficientemente confuso, especialmente com a internet, termos acesso a tantas tradições asiáticas de budismo. Mas mesmo dentro da tradição budista de um determinado país – do Tibete, por exemplo – existem muitas variações e interpretações diferentes.
Deixe-me ilustrar esse ponto. Vamos supor que estamos estudando sobre carma com um determinado professor. Para não nos confundirmos a respeito do que estamos aprendendo, precisamos isolar a explicação do professor das encontradas em os outros sistemas que não aquele que o professor está ensinando. Por exemplo, precisamos saber que estamos aprendendo a interpretação budista, e não a Hindu. Dentro das explicações budistas, estamos estudando a que vem da tradição indiana sânscrita, não da tradição Theravada pali. Dentro das tradições indianas sânscritas, estamos estudando o ponto de vista Vaibhashika, não o ponto de vista Chittamatra. E ainda, estamos aprendendo a explicação Gelug da apresentação Vaibhashika e não a explicação Kagyu. Precisamos saber precisamente o contexto, pois as diferentes explicações sobre o carma variam bastante, dependendo do contexto filosófico. Se tentarmos encaixar a explicação Gelug de um tópico do Dharma no sistema Kagyu, ficaremos muito confusos. E se tentarmos misturar todas as explicações em uma grande sopa, ficaremos ainda mais confusos.
Um de meus professores fez uma observação muito perspicaz sobre os ocidentais. Ele disse: “Vocês ocidentais estão sempre querendo comparar duas coisas das quais não entendem bem. No final, só ficam mais confusos”. A lição que devemos aprender com isso é que não tem problema compararmos sistemas diferentes, mas só se conhecermos um dos sistemas muito bem. Uma vez que você conheça um dos sistemas muito bem, poderá analisar o outro e apreciar as diferenças, mas não antes.
Portanto, se quisermos meditar sobre o carma ou a vacuidade, ou sobre qualquer outro tópico budista, precisamos desenvolver a consciência discriminativa de ouvir. Isso significa saber com certeza e precisão que:
- Essas são as palavras que foram ditas, não são quaisquer palavras
- A pessoa que as disse era uma fonte precisa de informação sobre o tópico, não era alguém em quem não se pudesse confiar
- Esse, e não outro sistema qualquer, é o sistema filosófico de onde veio a informação.
Uma vez que tenhamos a consciência discriminativa que surge com o ouvir, estamos prontos para o passo seguinte.
Pensando sobre o Que Ouvimos
O próximo passo é desenvolver a consciência discriminativa que vem do pensar O que significa “pensar”? Pensar, aqui, significa tentar entender o significado de algo. Mas então o que significa “entender” algo? A definição do termo tibetano que normalmente é traduzido como “entender” é: “saber algo de forma precisa e conclusiva”.
A propósito, muitas das palavras sânscritas e tibetanas usadas para descrever atividade mental e mente tem significados bastante diferentes no idioma original, quando comparados às palavras que usamos nos idiomas ocidentais. Por isso é tão útil estudar os idiomas asiáticos originais e o significado das palavras dentro do contexto do idioma asiático. Isso não quer dizer apenas ler a tradução no dicionário, mas também trabalhar com o idioma, aprender as definições, e assim por diante. Se fizermos isso, ganharemos uma ferramenta analítica muito poderosa para entender os ensinamentos budistas.
Compreendendo as Palavras Que Foram Ditas
A palavra “entender” também pode ser usada em conexão com ouvir os ensinamentos. Nesse contexto, apareceria em frases como: “Eu entendo que foi você quem disse essas palavras”. Se a ênfase na frase for na palavra “você”, isso implica que não temos dúvida que foi realmente você quem disse as palavras. Não achamos que não foi você quem as disse ou que foi outra pessoa. Ouvimos você dizê-las e estamos totalmente confiantes que não há nada errado com nossa audição.
Se a ênfase for em “essas palavras”, então, “Eu entendo que você disse essas palavras” pode ter um significado diferente: “Eu entendi cada uma das palavras que você falou. Posso não compreender totalmente o significado mais profundo dessas palavras e frases – esse é um outro processo; mas eu entendi corretamente que você disse essas palavras e essa frase e essa sentença”. Precisamos ter certeza que ouvimos com precisão o que foi dito. Podemos verificar com outras pessoas para nos certificar que elas ouviram as mesmas palavras que nós. Se houver uma gravação, podemos ouvi-la. Se a voz do palestrante e a gravação forem claras, teremos confiança de que ouvimos as palavras corretamente. Se não estiverem muito claras, podemos verificar com outras pessoas para que elas nos ajudem, podemos descobrir o que elas ouviram e comparar com o que nós ouvimos. Isso é muito importante quando contamos com gravações dos ensinamentos. Portanto, usando a consciência discriminativa que vem com o ouvir, estabelecemos que compreendemos corretamente e decisivamente as palavras.
Entendendo o Significado das Palavras
Pensar – o segundo passo no processo tripartido de ganhar compreensão – significa entender o significado das palavras, que é, logicamente, absolutamente necessário. Se vamos construir um hábito benéfico, precisamos não apenas saber as palavras, mas o significado das palavras. Por exemplo, algumas pessoas recitam versos em tibetano e não fazem a mínima ideia do que eles significam. Como é possível construir um hábito benéfico se você nem sabe o significado das palavras?
Você perceberá que muitos professores de budismo tibetano recomendam a recitação de orações e de várias práticas em tibetano. É claro que existem benefícios em participar de rituais centenários: você sente que pertence a uma tradição, e é reconfortante saber que pessoas de países diferentes e diferentes idiomas estão cantando e recitando a mesma coisa. Mas recitar em tibetano não nos ajuda a adquirir um hábito benéfico em cima do que aquelas palavras dizem, a menos que saibamos o significado em tibetano. Portanto precisamos saber o significado, e o significado tem que ser preciso e conclusivo. Isso significa usar consciência discriminativa para isolar o que algo significa daquilo que não significa. Fazemos isso através de um processo de análise e raciocínio lógico, para chegarmos a uma compreensão conclusiva do que as palavras realmente significam.
Convencendo-se do Significado das Palavras nos Ensinamentos
A questão de ganhar uma compreensão conclusiva nos leva a um tópico muito difícil: Como realmente nos convencermos de algo? Para nos convencermos de algo que não é obvio e não pode ser conhecido pelos sentidos, precisamos contar com a lógica. Mas existem pessoas que, ao apresentar-lhes uma argumentação lógica, ainda assim não acreditam no que prova a linha de raciocínio. Em alguns casos elas não querem acreditar na conclusão, mesmo que seja lógica. Se formos assim, isso pode nos trazer muitos obstáculos no estudo do Dharma.
Mas vamos assumir que aceitamos as conclusões da lógica. E vamos usar a impermanência para um exemplo do processo de análise e raciocínio. O que queremos provar nesse caso, e desse modo entender, é que tudo o que é criado ou produzido na dependência de causas e condições vai eventualmente deixar de existir. Quer estejamos falando de um computador, um carro, um corpo ou um relacionamento pessoal, todos surgiram na dependência de causas e condições. E devido ao fato dessas causas e condições não serem renovadas a cada momento, aquilo que surgiu delas, e depende delas, eventualmente irá se desfazer.
Você pode pensar em exemplos usando algo que você comprou e que eventualmente quebrou ou falhou; como, por exemplo, o carro novo que você comprou e um dia quebrou, a flor que murchou ou a fruta que cresceu e depois apodreceu. Não há exceções à regra. Não existem exemplos de algo que foi produzido ou manufaturado e que nunca quebrou, que durou para sempre. Se foi criado – o que significa que não existia antes – um dia vai acabar. Por que? Porque algo novo só pode surgir na dependência de causas e condições anteriores. Mas imediatamente após alguma coisa surgir, as causas e condições que suportaram o surgimento inicial já mudaram. Elas mudaram porque também surgiram na dependência de outros fatores causais. Assim, não estão mais presentes para suportar o surgimento contínuo desse item nos momentos subsequentes. Em outras palavras, quando as causas e condições para o surgimento de alguma coisa não estão mais presentes, o que quer que tenha surgido na dependência desses fatores irá se desfazer. Isso porque faltam os fatores que suportam sua existência contínua no mesmo estado em que primeiro surgiu. Seu estado mudará porque será afetado por outras causas e condições.
Outro exemplo é os relacionamentos pessoais. Um relacionamento com alguém surge na dependência de muitas causas e condições. Por exemplo, eu tinha uma certa idade e a outra pessoa tinha uma certa idade, isso estava acontecendo na minha vida, aquilo estava acontecendo na vida dela, isso era o que estava acontecendo na sociedade. Todos esses fatores suportaram o nosso encontro e o desenvolvimento de um relacionamento. Mas essas condições não duraram; elas mudaram constantemente. Nós envelhecemos, coisas diferentes aconteceram em nossas vidas. Mesmo que tivéssemos ficado juntos por um longo tempo, um de nós iria morrer antes do outro. Por depender de causas e condições, nosso relacionamento estará sempre mudando e não poderá durar para sempre. Apesar de essa ser a conclusão que chegamos através da lógica, não queremos aceitar esse fato.
Em outro exemplo compramos um computador e esperamos que ele dure para sempre, que nunca pare de funcionar, mas ele para. Por que parou? Parou porque foi construído. O que quer que tenha acontecido quando ele parou ou quebrou, foi só a condição para seu fim. A causa real dele ter quebrado foi o fato de ter sido construído. É como dizer: “Qual o motivo dessa pessoa ter morrido? O motivo de sua morte foi seu nascimento”. Tem uma piada que diz: “Você sabe qual é a definição de vida? Vida é uma doença sexualmente transmitida com 100% de taxa de mortalidade”. Infelizmente é verdade!
Mas mesmo quando usamos de lógica para pensar a respeito de um determinado tópico, como quando estamos tentando entender a impermanência, muitas vezes existe uma grande resistência. Muitas vezes não queremos acreditar na informação que está sendo apresentada. Não queremos aceitar que a impermanência é um fato da vida. É por isso que precisamos repassar a lógica muitas vezes para realmente trabalharmos profundamente com esse tópico.
Através do processo de pensamento, chegamos a uma “compreensão” – que é chamada “consciência discriminativa que vem do pensar”. Entendemos corretamente o significado das palavras e chegamos a uma conclusão. Em outras palavras, através da lógica excluímos aquilo não era o significado das palavras. Impermanência não quer dizer que talvez meu computador vá quebrar. Significa que ele certamente irá quebrar algum dia.” Portanto, mesmo se não estivermos firmemente convencidos da verdade de que “tudo o que foi criado vai escangalhar”, pelo menos entendemos corretamente o que significa impermanência.
Nos Convencendo de Que os Ensinamentos Que Ouvimos são Verdadeiros e Úteis
A seguir precisamos nos convencer não só do significado das palavras que ouvimos, mas também de que aquilo que elas significam é verdadeiro. No nosso exemplo da impermanência, podemos entender o significado do termo, mas será que acreditamos que é realmente verdadeiro? Será que estamos realmente convencidos? Se persistirmos em pensar sobre a impermanência e realmente não conseguirmos encontrar nenhuma exceção à regra, passamos a verdadeiramente acreditar que a impermanência é uma lei fundamental. O processo de pensamento seria mais ou menos assim: “Definitivamente eu vou morrer. Todo mundo que nasceu morreu. Não existe exemplo de alguém que nasceu e não morreu. Portanto, existe alguma razão para eu acreditar que não vou morrer? Não, não existe”. Se estivermos convencidos de que em algum momento iremos morrer, tentaremos fazer essa vida a mais significativa possível. Geralmente, o que acontece é que alguém que teve uma experiência de quase morte se dá conta: “Ei, ainda estou vivo e quero tornar o tempo que me resta o mais significativo possível”. Mas não precisamos esperar por uma experiência de quase morte para nos convencermos de nossa mortalidade e ter a convicção de usar o tempo que nos resta.
Portanto, através do pensamento, primeiro entendemos o significado de forma correta e precisa. A seguir, nos convencemos de que é verdadeiro. E finalmente, precisamos nos convencer de que será bom se nós realmente absorvermos isso e fazer disso parte de como funcionamos na vida.
Tudo isso – entender o significado, se convencer de que é verdade e ter certeza de que é útil – é parte do desenvolvimento da consciência discriminativa que vem do pensar. É um processo muito importante e toma bastante tempo. Precisamos sentar silenciosamente e pensar muito profundamente sobre qualquer ensinamento que tenhamos ouvido ou lido. Se não fizermos isso e tentarmos meditar sobre a impermanência, por exemplo, é provável que sentaremos e não teremos a mínima ideia do que fazer. Cairemos em um torpor – que chamamos de “ficar olhando pro nada” - e consideramos isso meditação. De maneira alguma isso é meditação. Então o que é meditação?
Três Tipos de Meditação
Assim como ao ouvir os ensinamentos e pensar sobre eles desenvolvemos as consciências discriminativas associadas a essas ações, a meditação nos leva à “consciência discriminativa que surge da meditação”. Com essa consciência somos capazes de gerar, com total concentração, o estado mental benéfico que objetivamos desenvolver, e podemos discriminá-lo com precisão de outros estados mentais. Para ganharmos essa consciência discriminativa, nos acostumamos a esse estado mental desejado ao gerá-lo repetidamente. Existem muitos tipos de meditação para fazermos isso, mas consideremos apenas os três mais comuns.
Focando em um Objeto
O primeiro tipo de meditação está relacionado com foco em um objeto. Quando focamos em algum objeto, o que estamos tentando fazer é desenvolver concentração nesse objeto. Quer estejamos focando nas sensações do ar entrando e saindo durante a respiração, na visualização de um Buda ou na natureza da mente, tudo isso é focar em um objeto. A propósito, esses são os três objetos mais comumente utilizados no budismo tibetano para desenvolver concentração.
Uma variação importante desse tipo de meditação é focar em um objeto com concentração e, enquanto se concentra nele, tentar discerni-lo de uma certa maneira. Como sendo impermanente, por exemplo. Isso é muito importante para superarmos o apego às coisas como se elas fossem durar pra sempre.
Outro exemplo útil: Você tem uma amizade ou relacionamento com uma pessoa e ela não te liga ou visita e você fica muito chateado. Nesse exemplo, você precisa entender e se convencer totalmente do fato de que “Não sou a única pessoa na vida do meu amigo. Existem outras pessoas em sua vida além de mim. Portanto, não faz o mínimo sentido esperar que ele dedique seu tempo exclusivamente a mim e a mais ninguém”. Aqui você está desafiando uma projeção fantasiosa de algo impossível: “Eu sou a única pessoa na vida do meu amigo”. E então, quando estiver chateado porque seu amigo não está lhe dando atenção suficiente, você tenta focar nele com esse discernimento: “Ele tem outras pessoas e outras coisas em sua vida além de mim”.
Portanto, quando falamos de meditação, não estamos falando de algum tipo de processo místico ou mágico; não estamos partindo para o mundo da fantasia. Pelo contrário, meditação implica em vários métodos práticos para lidar com sofrimento, dificuldades e problemas em nossas vidas.
O primeiro tipo de meditação, portanto, é focar em um objeto de uma certa maneira, quer seja só com concentração ou com algum entendimento e discernimento, como no nosso exemplo do foco no amigo.
Gerando um Estado Mental
O segundo tipo é a meditação para gerar um determinado estado mental, como, por exemplo, para gerar amor ou compaixão e focar em sentir isso. A ênfase não está no objeto ao qual direcionamos o amor ou compaixão; mas sim em desenvolver a emoção ou sentimento.
Gerando uma Aspiração
O terceiro tipo de meditação é focar em um objeto com a aspiração de alcançar uma meta relacionada a ele; por exemplo, focar na nossa própria iluminação individual que ainda não ocorreu, com a aspiração de “eu vou conseguir”. Essa meditação é chamada de meditação de bodhichitta. Quando estamos meditando em bodhichitta, que às vezes também é chamada de “mente de despertar”, não estamos focando na iluminação de maneira generalizada, nem na iluminação do Buda; mas sim em nossa própria iluminação individual. Nossa iluminação ainda não aconteceu, mas pode acontecer - estamos convencidos de que pode acontecer – com base em no potencial de nossa natureza búdica e muito trabalho duro. Então, com esse terceiro tipo de meditação estamos focando em uma meta futura, com o forte objetivo de alcançá-la.
Os Três Tipos de Meditação na Vida Cotidiana
Esses três tipos de meditação desenvolvem hábitos benéficos que queremos trazer para nossas vidas diárias. É muito importante que a meditação não seja algum tipo de atividade periférica que não tenha nenhuma relação com nossa vida. Meditação não é um tipo de fuga; não é um jogo; não é um hobby. É um método para nos ajudar a desenvolver qualidades que queremos trazer para nossas vidas e usar todos os dias.
Vamos ilustrar como aplicar esses três métodos usando os exemplos já mencionados. Quando praticamos o primeiro tipo de meditação, no qual focamos em um objeto, aprendemos a aquietar a mente e aumentar nossa habilidade de concentrar. Aprendemos não só a nos concentrar no trabalho, mas também em uma conversa. Se estivermos conversando com alguém, queremos concentrar na pessoa e no que ela está dizendo, e não ficar pensando em todo tipo de coisas. Queremos ouvir sem nenhum tipo de comentário mental, sem julgar o que a pessoa diz: “Nossa, isso é muito idiota” ou “Queria que ele se calasse”. Queremos silenciar esse diálogo mental. Podemos complementar nossa concentração na pessoa e em suas palavras com discernimento: “Você é um ser humano e tem sentimentos, assim como eu; você quer que lhe deem atenção quando fala, assim como eu”. Isso é o que treinamos fazer na meditação de concentração.
Podemos usar o segundo tipo de meditação, gerar um estado mental para aumentar o amor e compaixão que temos normalmente. Trabalhamos para gerar amor – o desejo de que todos sejam felizes - sem importar onde estamos ou com quem estamos. Amor, aqui, realmente significa amar a todos: todos no ônibus, todos no metro, todos no trânsito, todos na loja, todos os animais e insetos - todos.
E, por fim, usamos a meditação para desenvolver uma aspiração que vamos carregar por toda a vida: “Estou trabalhando em direção a um objetivo. Estou tentando diminuir minhas falhas. Estou trabalhando para desenvolver boas qualidades, e estou trabalhando para me libertar e me iluminar.” Essa aspiração permeia toda a nossa vida, não apenas o curto período em que sentamos em uma almofada.
Conselho de Tsongkhapa para Desenvolver um Estado Mental Benéfico
Tsongkhapa, que foi um grande mestre tibetano, explicou muito bem o que realmente precisamos saber de todos esses métodos de meditação. Em outras palavras, como desenvolver um estado mental benéfico como base para a meditação.
Saber no Que Ele Foca
Primeiro precisamos saber no que estamos focando. Tomemos o exemplo da compaixão. Focando na compaixão, estamos focando no sofrimento alheio. O que é bastante diferente de bodhichitta, que é focar em nossa própria iluminação que ainda não está acontecendo. Algumas pessoas acham que estão meditando em bodhichitta quando estão apenas meditando em compaixão. Compaixão é a base para bodhichitta, mas compaixão e bodhichita não são a mesma coisa.
Conhecer Todos os Aspectos de Seu Objeto
Após determinarmos com precisão o objeto de foco – neste caso, o sofrimento alheio como objeto de foco da compaixão – precisamos conhecer todos os aspectos desse objeto. Assim, exploramos todos os vários aspectos e tipos de sofrimento que todos experimentam: infelicidade, nossa infelicidade comum, estar sob controle da impulsividade do carma, o sofrimento dos renascimentos incontrolavelmente recorrentes. Não focamos apenas em um tipo de sofrimento, de apenas alguns seres, como a infelicidade e as dificuldades de se perder o emprego. No caso da grande compaixão, focamos em todos os aspectos do sofrimento universalmente vivenciado por todos, incluindo os animais.
Saber Como Nossa Mente Está Se Relacionando com o Objeto
Em seguida precisamos saber como nossa mente está se relacionando com o objeto. No caso da compaixão, a mente foca em todo o sofrimento dos demais seres com o desejo de que ele vá embora e nunca volte. A atitude é de “Puxa, isso é muito ruim”. Novamente, esse pensamento é muito diferente de bodhichitta. Com bodhichitta estamos focando na nossa iluminação que ainda não aconteceu, e estamos nos relacionamos com ela com a seguinte intenção: “Vou atingir isso e assim beneficiar os outros”. Isso é muito diferente da forma como nos relacionamos com a compaixão, com o sofrimento dos outros.
Saber o Que Ajuda no Desenvolvimento
Então precisamos saber o que precisamos para desenvolver esse estado mental. No nosso exemplo, o que sustenta nossa compaixão é termos a mesma intenção ou sentimento com o nosso próprio sofrimento. Isso é o que se chama de “determinação de ser livre” normalmente traduzido como “renúncia” . Com a renúncia focamos em nosso próprio sofrimento com a determinação de nos livrarmos dele e de suas causas. Querermos nos livrar das causas do sofrimento significa estarmos dispostos a abrir mão dos comportamentos que nos fazem sentir mal, como ficar com raiva, por exemplo. Se conseguirmos realmente desenvolver a determinação de nos livrar do nosso sofrimento, isso sustentará nossa capacidade de direcionar essa atitude, ou esse desejo, aos outros, e com a mesma intensidade com que direcionamos para nós.
Saber o Que Prejudica o Desenvolvimento
Também precisamos saber o que atrapalha o desenvolvimento desse estado mental. O que atrapalha o desenvolvimento da compaixão é não levar as outras pessoas a sério e não levar o sofrimento delas a sério. Por isso precisamos pensar, “Todos querem ser felizes. Ninguém quer ser infeliz. Ninguém é diferente em seu desejo de se ver livre do sofrimento. Somos todos iguais. E todos têm sentimentos, assim como eu. Todo mundo que está sofrendo sente tanta dor quanto eu sinto quando sofro.” Assim, desenvolvemos sensibilidade e respeito pelos outros. Se não tivermos sensibilidade e respeito, teremos dificuldades para desenvolver a compaixão sincera.
Saber para Que Serve
Tsongkhapa continua: quando desenvolvermos esse estado mental, precisamos saber o que fazer com ele? Em outras palavras, precisamos saber para que ele serve. Desenvolvi compaixão, mas e daí? Bom, me ajudará a lidar com os outros; me ajudará a trabalhar para o benefício deles; e vai realmente me motivar e me empurrar para que eu alcance o objetivo final que é a iluminação, para que eu possa ajudar os outros de forma substancial. Entendo que o que me previne de ser capaz de ajudá-los agora são minhas limitações, então eu quero muito superá-las.
Saber o Que Ele Eliminará
A próxima coisa que precisamos saber é: O que esse estado mental eliminará? A compaixão eliminará a frieza com que trato os outros. Me ajudará a me livrar da preguiça de ajudar os outros e me ajudará a eliminar a preguiça de cuidar de mim mesmo. Eliminando essa frieza eu consigo ajudar mais os outros.
Se conhecermos todos esses elementos para desenvolver e meditar na compaixão, poderemos ter bastante confiança de que estamos meditando de maneira correta; sabemos exatamente o que estamos fazendo e porque estamos fazendo. Nos preparamos corretamente para meditar. Caso contrário é como mergulhar em uma piscina funda sem ter a mínima ideia de como nadar. Se simplesmente dissermos “Bom, sente e medite”, e não soubermos o que temos de fazer, é bem provável que não tenhamos bons resultados.