Existem Dificuldades Específicas para Praticarmos o Budismo no Ocidente nos Dias de Hoje?
Existe algo especial sobre a prática do Budismo no Ocidente que seja diferente da prática do Budismo em qualquer outro lugar ou momento? Existe algo especial sobre nós? Por que estaríamos sequer interessados em saber se somos especiais?
Podem existir várias razões. Algumas pessoas enfrentam dificuldades que acreditam serem específicas do nosso tempo e querem saber como superá-las. Outras procuram por uma desculpa para não terem que praticar tanto quanto as pessoas de outras épocas; estão barganhando a iluminação. Excluindo-se essas situações, podemos investigar mais seriamente se realmente enfrentamos alguma dificuldade específica.
Se estamos envolvidos no caminho budista, uma das coisas mais básicas que temos que tentar desenvolver é a consciência de que não há nada particularmente especial em nossa situação. Não dá pra dizer que no momento os ocidentais sentem mais raiva, ganância ou egoísmo do que as pessoas do outro lado do mundo ou do passado. Em todo o universo e ao longo dos tempos, as pessoas trabalham com as mesmas emoções perturbadoras, portanto, não há nada de especial sobre “hoje em dia”.
Mudou Muito?
Algumas pessoas argumentam que as circunstâncias agora são diferentes. Que temos, por exemplo, vidas muito estressantes. E estamos sempre realmente ocupados. Bem, será que um agricultor esforçando-se na Idade Média ou na Índia antiga, trabalhando nos campos por dezesseis horas ou mais por dia, era menos ocupado do que somos trabalhando em um escritório? A atividade podia ser diferente, mas eram certamente tão ocupados quanto nós. E o que dizer dos homens das cavernas? Devem ter tido muito estresse e preocupações com os animais selvagens, com a busca pelo alimento e assim por diante. Também tinham muito medo de coisas como relâmpagos e trovões, e outras coisas que não entendiam. As pessoas sempre viveram com medo e estresse, não é mesmo?
E a peste bubônica? Pensamos que sofremos estresse e medo hoje em dia, mas você pode imaginar viver naquela época? Portanto, eu não acho que podemos dizer que o que é especial sobre nós são nossas vidas ocupadas e estressantes. Pode ser tenhamos um tipo diferente de estresse, uma forma diferente de estarmos ocupados com as atividades que estamos envolvidos. Mas estresse, preocupação, falta de tempo? Isso sempre aconteceu, em todos as épocas, em toda parte.
Então você poderia dizer que nossa sociedade e cultura não compartilha nenhuma, ou, pelo menos, não compartilha a maioria das pressuposições fundamentais presentes no Budismo. E, portanto, o Budismo é realmente estranho à nossa cultura. Mas podemos observar a transmissão do Budismo na China como um exemplo, pois os chineses não acreditavam em renascimento. Pensavam que as pessoas morriam e transformavam-se em um tipo de espírito ou alma, e então adoravam esses antepassados. Isso é muito diferente de renascimento, que seria dizer que os antepassados já não estão mais por perto. Por isso, demorou bastante para os chineses entenderem muitos destes conceitos fundamentais e básicos do Budismo. Se enfrentamos agora um desafio similar, temos que entender que não é nada novo.
Essa compreensão, de que não somos “especiais,” pode ser muito útil. Pense nos adolescentes ou pessoas que têm um determinado problema, sejam seus pais alcoólatras ou o que for. Essas pessoas frequentemente pensam que são as únicos com esse problema, o que o torna realmente enorme para eles. Se tomassem conhecimento de que existem muitas outras pessoas com o mesmo problema, não se sentiriam sozinhas, e o problema se enquadraria em um contexto maior. Isso lhes daria uma perspectiva diferente, que idealmente as conduziria a desenvolver compaixão por aqueles que têm um problema similar, ao invés de pensarem somente em "eu, eu, eu".
Portanto, para elaborar uma prática diária budista, o problema de todo mundo é o mesmo: Como aplicar os ensinamentos budistas de forma que nos ajudem a lidar com os desafios da vida? Esse não é um problema especial “seu”, é o desafio de todos os interessados em praticar os métodos budistas no Ocidente.
O Excesso de Opções
Não podemos negar, entretanto, que existem alguns desafios exclusivos à vida no Ocidente na era moderna. No passado, a maioria das pessoas enfrentaram problemas por ter pouco alimento e pouca informação. Antes da invenção da imprensa, copiar à mão um texto budista era um ato incrivelmente generoso e positivo. Você estava disponibilizando mais uma cópia rara e preciosa para outros lerem e estudarem. Até mesmo obter o papel e a tinta era uma realização monumental. Hoje em dia, podemos simplesmente postar um texto ou um link em nossa página do facebook!
Nosso desafio exclusivo está em ter demasiado alimento e demasiada informação disponíveis. Como escolher o que é certo para nós? Como escolher quando há trezentos “tipos" diferentes de Budismo? Esse é um grande problema, mas não há nenhuma resposta mágica. Apenas porque algo aparece em primeiro lugar na busca do Google, não significa que é o melhor ou que supre as necessidades de todas as pessoas. Precisamos usar nossa inteligência, discernimento e paciência para ver o que é o melhor para nós. Para decidirmos sobre o que nos serve, precisamos experimentar as coisas por nós mesmos.
O Budismo Moderno
Digamos, porém, que após um período de teste, escolhemos uma tradição, um centro e um professor budista para estudarmos com ele. Então enfrentamos mais uma situação: Existem muitos níveis diferentes de prática budista e um número enorme de maneiras de aplicá-los a nossa vida diária. Por onde começar? Temos o nível bastante superficial, que não vai nos mudar muito internamente, e temos o nível mais profundo, em que trabalhamos realmente em nós mesmos, com a meta mínima de melhorar a qualidade de nossa vida e de evitar torná-la pior. Se iremos seguir em frente para obter a liberação e a iluminação, depende de como nos desenvolvemos. É impossível aspirarmos desde o início por objetivos sublimes. A maioria de nós sequer faz ideia do que significa liberação e iluminação.
No começo, muitas pessoas são atraídas pelo nível superficial, e por isso cuidam da parte externa. O que eu quero dizer é que elas arranjaram um cordão vermelho para enrolar em volta do pescoço ou pulso, ou ambos! Utilizam um mala, um rosário de contas, e às vezes, usam-no enquanto balbuciam algo. Têm um bom estoque de incensos e velas, e todas as almofadas apropriadas para meditação, pinturas tibetanas e retratos, e eventualmente começam até a usar algum tipo de roupa tibetana. Sentam-se solenemente neste set quase hollywoodiano, mas não fazem ideia do que fazer.
Eu me lembro quando fui pela primeira vez à Índia, em 1969. Era o auge da era hippie e havia pouquíssimos ocidentais lá naquele tempo. Mas muitos usavam túnicas e trajes típicos tibetanos, e me lembro de ter sido bastante crítico nesse caso. Eu pensei que era um pouco ofensivo com os tibetanos: esses ocidentais estavam apenas simulando e copiando. Então perguntei ao monge tibetano com quem eu estava morando o que ele achava dos ocidentais que caminhavam por lá vestindo roupas tibetanas. Ele respondeu com um comentário muito útil: "Achamos que eles gostam de roupas tibetanas." Não havia nenhum tipo de crítica ou julgamento nesta resposta.
Se criticamos isso ou não, somente trocar as nossas roupas ou usar um rosário e muitos cordões abençoados não nos muda muito, certo? Internamente, não faz realmente diferença alguma. Não traz mais "bençãos". Nossa prática budista precisa ser interna.
Transformação Pessoal
Seja no ocidente ou em uma sociedade budista tradicional, o que a prática budista requer é trabalhar em nós mesmos. Temos que nos transformar, o que não é algo feito através de rituais. É fácil aprender a fazer um ritual e recitar disparates em uma língua estrangeira que não compreendamos. Mas isto não nos transforma. Ainda ficaremos irritados, ainda sentiremos apego, e ainda assim não nos entenderemos com nossos pais. Sua Santidade o Dalai Lama sempre diz que praticar esses rituais quando você não faz ideia do que está fazendo não vai levá-lo adiante.
Nagarjuna, Aryadeva e todos os grandes mestres indianos disseram que a prática do Budismo se resume a domesticar sua mente. Isso significa primeiramente aprender os ensinamentos, os métodos de como lidar com emoções perturbadoras e situações problemáticas, e como analisar as várias experiências que temos. Mantemo-nos atentos, para nos recordar e aplicar os ensinamentos conforme necessitemos. Dessa forma, nos ajudarão a superar pelo menos os problemas comuns da vida, como a raiva, a preocupação e o nervosismo, a doença, o envelhecimento e os problemas de relacionamento - tudo isso e mais.
Portanto, temos que trabalhar e melhorar nossa personalidade e atitudes básicas perante a vida para nos transformarmos. Isso requer uma quantidade tremenda de trabalho e não é fácil de fazer. Necessitamos de paciência, coragem e perseverança. Nossa tendência no ocidente é querer que as coisas sejam baratas, fáceis e, sobretudo, rápidas. Queremos todos os ensinamentos imediatamente. Queremos conseguir todas as coisas maravilhosas sobre as quais lemos, aquilo que um Buda alcançou e assim por diante, com o menor trabalho possível.
Valorizando os Ensinamentos
Para promovermos transformação interna, necessitamos dos ensinamentos, mas receber ensinamentos no Ocidente requer dinheiro. Esse é um dos pontos difíceis que é de fato bastante singular na história do Budismo. Normalmente, você nunca pagaria para receber ensinamentos. Você voluntariamente faria uma doação de quanto quisesse, mas nunca seria requisitado a pagar na porta para entrar.
Porém, no Ocidente, se quisermos professores e facilidades, precisamos apoiá-los voluntariamente ou pagarmos uma admissão. Esse é o nível prático. O nível mais profundo é que se você quiser receber algo precioso, nomeadamente os ensinamentos, você tem que pôr muito esforço e trabalho nisso; do contrário você não os aprecia e valoriza.
Historicamente, a fim de convidar professores ao Tibete, os tibetanos não somente tinham que caminhar até a Índia, mas também tinham que recolher todas os tipos de recursos para a viagem e as oferendas. Colocavam uma quantidade incrível, tremenda de esforço para receber os ensinamentos. As pessoas tinham que fazer sacrifícios enormes para recebê-los. Olhe o que Marpa fez Milarepa passar a fim de receber os ensinamentos. Assim, de uma certa forma, se realmente quisermos receber os ensinamentos, necessitamos fazer algum esforço para juntar o dinheiro, por exemplo, ou viajar para a Índia ou para um lugar onde estejam disponíveis.
Agora é mais fácil. Aqui na Letônia, vocês viveram sob a União Soviética e não podiam viajar para longe ou ir para qualquer lugar realmente. Agora os ensinamentos estão disponíveis e como membros da UE, vocês estão completamente livres para viajar. Portanto, deveriam tirar vantagem disso e não somente lamentar: “Não há nada disponível onde eu vivo.” Isso não é para soar áspero, mas se estivermos seriamente interessados na transformação de nós mesmos, devemos nos comprometer. É necessário que isso seja uma prioridade em nossas vidas. Necessitamos de coragem, bravura e energia para agir da forma que for necessária, ou fazer o que for necessário para obter as melhores circunstâncias para o estudo e a prática.
Ser Honestos e Realistas conosco em Nosso Compromisso com a Prática do Darma
Se não estamos tão comprometidos assim, tudo bem. Mas podemos reconhecer: “Eu gostaria de aprender um bocado sobre o Budismo. Talvez isso possa me ajudar em minha vida, mas não estou disposto a me mudar se as circunstâncias não forem boas onde estou. Isso não tem prioridade máxima em minha vida, há outras coisas mais importantes para mim.” Se esse for nosso caso, então não tem problema algum. Mas não podemos esperar receber os resultados que receberíamos se investíssemos nosso tempo e esforço integrais nisso. Seja realista. Um pouco de esforço gera um pouco de resultado. Muito esforço e tempo, gera um resultado maior.
No ocidente, a maioria das pessoas parece preferir praticar como praticante leigo, não como monge ou freira, o que é um pouco diferente do Budismo tradicional. Por isso, é melhor termos centros de dharma do que monastérios e conventos. Não havia centros de dharma antes do Budismo começar a se desenvolver no Ocidente.
O que esperamos alcançar indo ao centro de dharma ou centro budista? Se formos uma vez por semana, após o trabalho, e estivermos realmente cansados durante a maior parte do tempo, cantamos uma canção em tibetano mas não sabemos realmente o que está acontecendo, que resultado podemos esperar? Não podemos esperar muito. O que é realmente triste é que a maioria dos centros de dharma não são nem mesmo um clube social como quando você vai à igreja. Seja Cristianismo, Judaismo ou Islamismo, parece haver um sentimento de congregação, de comunidade. Se alguém estiver doente ou não aparecer, as pessoas perguntarão e ligarão e levarão alimento. Isso parece faltar nos centros de dharma. As pessoas vêm, meditam um pouco, às vezes fazem um e puja e é isso. Ouvi queixas de pessoas que dizem: “Do que se trata o Budismo? Eu estive doente e no hospital, e ninguém ligou ou me visitou; ninguém se importou.”
Se nossa prática diária de Budismo significa irmos sozinhos ao centro para fazer um puja ou meditar, e então para casa, mas nem mesmo nos importamos com os outros que são parte do centro, o que é isso? Sentamos lá e dizemos: “Eu estou fazendo isto para todos os seres sencientes; que todos os seres sencientes sejam felizes…” mas se alguém estiver doente não nos importamos e nem vamos visitá-los. Isto não é apropriado. Se nossa prática budista for assim, algo está errado. Podemos nos tornar demasiado restritivos ou focados em nossa própria prática de fazer o puja e meditação, sem pensar socialmente sobre ajudar aqueles em nosso grupo. O Budismo engajado, que começou na Tailândia, é algo que realmente necessitamos mais no Ocidente. Alguns centros budistas já têm programas nos presídios, por exemplo. Algumas pessoas oferecem-se para ir à prisão dar aulas de dharma aos prisioneiros, o que é ótimo. Mas realmente não é o suficiente fazer apenas isso e não visitar alguém que está doente.
Mostrando Bondade Humana Básica
Ser budista, entretanto, não significa somente ser uma pessoa amável, mas naturalmente temos que ser uma pessoa amável, isso é a base, e não é de modo algum exclusividade dos ensinamentos do Buda. Você não necessita nem mesmo ser religioso para saber que é importante ser uma pessoa amável. Portanto, é claro que em nossa vida diária devemos tentar ajudar aos outros. Se não pudermos ajudar, o mínimo que podemos fazer é não ferir; este é o mínimo básico. Se quisermos dizer que essa é nossa prática budista, muito bem. Mas temos que compreender que é uma versão muito leve do Budismo.
Embora seja uma versão leve, é absolutamente necessária. Tentamos não nos irritar com outros, e se nos irritarmos nos desculpamos o mais rápido possível. Tentamos ser menos egoístas e mais sensíveis às necessidades das outras pessoas e ao efeito de nosso comportamento nos outros. Se fizermos negócios, tentamos ser honestos. Se lidarmos com clientes, tentamos recordar que são apenas seres humanos, como nós, e gostam de ser tratados agradavelmente, não apressadamente ou de maneira rude. O último cliente do dia merece tanta atenção, cuidado e simpatia quanto o primeiro.
Tudo isso é o que sua Santidade o Dalai Lama refere-se como sendo “valores humanos básicos,” valores que não são baseados em nenhuma filosofia ou religião em particular. Necessitamos aplicá-los não apenas com desconhecidos, apesar de ser bem mais fácil porque os vemos apenas por alguns minutos e não precisamos lidar com eles mais tarde. O verdadeiro desafio é aplicar esses valores quando estamos com membros de nossa família ou pessoas com as quais vivemos e trabalhamos. Não devemos ignorar aqueles que estão mais próximos de nós.
Deixe-me compartilhar um exemplo de minha própria experiência. Quando minha mãe ainda estava viva e eu a visitava, ela gostava que eu assistisse televisão com ela à noite. Ela gostava principalmente de programas de perguntas e respostas e me incentivava a tentar responder perguntas, do tipo: “Quanto custa este refrigerador?” Nessas situações, necessitamos ser pacientes e generosos, e não apenas sentar entediados, recitando mantras sob nossa respiração e pensando: "Que pergunta estúpida!" Quem se importa quanto custa?” Tente responder à pergunta, não importa quão estúpida ela possa parecer. Tentar responder perguntas como essas era uma maneira dela manter sua mente ativa na velhice. Apoiá-la no que estava fazendo, de fato, era um ato de bondade humana básica e generosidade.
Como Transformar o Budismo em um Estilo de Vida
Se desejarmos praticar o Budismo no Ocidente, devemos ir mais fundo do que apenas trabalhar em nós mesmos para sermos uma pessoa mais amável. O Budismo oferece uma enorme variedade de práticas, adequadas a uma grande gama de mentalidades e habilidades. Essas práticas incluem tanto o estudo como a meditação. Não há nada excepcionalmente asiático ou ocidental nisso. O ponto principal é que precisamos integrar em nossas vida cotidianas tudo o que estudamos e meditamos. Necessitamos fazer da nossa prática budista nosso estilo de vida.
Iniciamos ajustando a intenção para o dia quando acordamos. Qual é a nossa Motivação? Recordamos o nosso objetivo e o que queremos fazer com nossa vida, e criamos a intenção de realmente perseguir isso. Quando acordamos, idealmente deveríamos pensar: “Ainda bem que eu não morri durante meu sono, e como é maravilhoso ter agora um dia inteiro diante de mim no qual posso trabalhar mais no longo caminho budista." Ter esses tipo de pensamentos ao acordar é muito melhor do que: “Ah, não, um outro dia não!”
Fazemos a mesma coisa quando vamos para a cama à noite. Em vez de pensar: “Finalmente o dia acabou. Não vejo a hora de entrar no inconsciente," pensamos: "Não vejo a hora de poder acordar amanhã para continuar.” Isso nada mais é do que “refúgio.” Eu uso pouco essa palavra, pois penso que o que ela realmente quer dizer é que temos uma direção em nossas vidas. Temos uma direção mostrada pelos Budas, seus ensinamentos e realizações pessoais e a comunidade espiritual que o seguiu. Essa é uma segura, e que nos proteje do sofrimento.
Se tivermos uma direção em nossa vida, que tenha significado e finalidade, isso nos ajudará enormemente. Estamos trabalhando para nos livrarmos de todas as nossas confusões e estados mentais perturbadores, e para perceber todos os nossos potenciais positivos. Imprimir essa direção em nossas vidas significa que estamos tentando seguir os passos dos budas e de suas comunidades espirituais. Compreenderemos que até mesmo um pequeno passo nesse sentido é muito valioso. Mas precisamos confirmar através de nossa cuidadosa análise e experimentação. O Buda disse para não aceitarmos o que ele disse simplesmente porque temos fé. Como ocidentais, talvez possamos apreciar mais facilmente esta aproximação científica que o Buda ensinou. Devemos sempre manter uma atitude crítica.
Essa direção em nossa vida é algo que necessita ser internalizado muito profundamente. Isso é o que realmente nos torna budistas. Somente ser uma pessoa legal não o torna budista. É necessário que tenhamos total convicção de que é possível conseguir o que estamos tentando atingir. Se não pensarmos que é possível superar nossas deficiências e compreender nossos potenciais positivos, por que tentar atingir uma fantasia?
Inicialmente, não acreditaremos que seja possível atingir algum dos objetivos espirituais budistas. Podemos ter fé por termos um professor carismático ou mesmo por desejarmos que seja verdade. Dá trabalho convencer-se de que é realmente possível conseguir, passo a passo, mas uma vez que você tenha conseguido, você realmente porá todo seu coração e energia nisso.
Como budistas, isso faz parte de nosso trabalho. Esses pontos são muito importantes e ajudam na direção que estamos indo, tornando-a estável. Assim, começamos o dia reafirmando essa intenção. Terminamos o dia com uma dedicação e uma revisão do que fizemos durante o dia, de como nós agimos. Se nos irritamos ou algo do gênero, admitimos, nos arrependemos e purificamos. E dedicamos todas as nossas ações positivas para a realização dos objetivos positivos que temos. O grande mestre tibetano, Tsongkhapa, disse que precisamos carregar nossa intenção durante o dia inteiro, não apenas no início e no fim. Isto significa que necessitamos nos lembrar dela durante o dia.
O mestre vietnamita contemporâneo Thich Nhat Hanh tem um método encantador para isso. Ele tem um “sino da presença mental” que soa durante horas aleatórias durante o dia. Todos param por alguns momentos para trazer novamente sua intenção à mente. Um de meus estudantes programou seu telefone para tocar várias vezes durante o dia. Assim, há vários métodos que podemos usar para nos ajudar a recordar nossa motivação, se não for algo que nos vier automaticamente.
Sua Santidade o Dalai Lama enfatiza sempre que o mais necessário é o que chamamos de “meditação analítica,” que, em nosso estágio, é pensar sobre os ensinamentos, relacionando-os a nossas vidas e experiências pessoais. Um exemplo seria analisar porque estamos tendo problemas com tal pessoa no trabalho. Como podemos tratar esta situação? Necessitamos desenvolver paciência. Quais são os ensinamentos sobre paciência? Qual é o método? Assim, sentamo-nos calmamente e praticamos sermos pacientes enquanto pensamos nessa pessoa. Isso é a prática budista -- a palavra é exatamente esta: “prática.” Nós estamos praticando para sermos capazes de ter paciência em situações reais da vida.
No fim do dia, revemos o que fizemos. Não há motivo para sentir culpa se não fomos capazes de viver de acordo com nossa boa intenção, porque recordamos que a característica básica da vida é que ela tem altos e baixos. O progresso nunca é linear. Não importa quão intensamente tentamos, certos dias serão bons e alguns serão maus. Assim, quando tivermos errado ou feito algo prejudicial, reconhecemos e decidimos tentar nosso melhor para evitar repetir.
Todos estes altos e baixos irão acontecer até que nos tornemos seres livres. Esse é um longo caminho. Até então, vamos ter ganância, raiva e tudo mais. Isto é bastante sério! A atitude que é a mais útil em toda essa situação é a "equanimidade". Quando estamos cansados, fazemos uma pausa. E tudo bem, sem problemas. Quando queremos continuar, continuamos. E tudo bem também, sem problemas. Temos que evitar os dois extremos de sermos realmente duros conosco ou de tratar-nos como um bebê. Simplesmente vamos adiante, não importa o que for. Chamamos isso de "perseverança como uma armadura". Ela protege você em qualquer situação.
Um Exemplo Prático: Dando a Vitória aos Outros
Deixe-me dar um exemplo de como evitar desanimar-se ao aplicar uma instrução budista. Eu moro em um local bastante movimentado em Berlim. Alguns anos atrás construíram, debaixo do meu apartamento, no térreo, um café muito, muito popular. Fica aberto das 7 horas da manhã até as 3 horas da madrugada, sete dias por semana. No verão, as pessoas ficam lá fora bebendo cerveja, falando alto e rindo todas as noites. Depois de um curto período deitado em minha cama de noite, tentando dormir com todo o ruído e imaginando visões de cubas medievais de piche fervendo derramando-se sobre eles, eu lembrei do ensinamento: “Dê a vitória aos outros, aceite a sua derrota.”
Minha cozinha é o único cômodo na casa que não fica de frente para a rua, assim, coloquei o meu colchão lá. Durmo no chão da cozinha o verão inteiro. É tranquilo e confortável. E estou muito feliz e dou a vitória aos outros. Essa é uma aplicação prática desse ensinamento. Não há realmente nenhum problema em dormir na cozinha.
Assim sendo, precisamos ser inovadores e criativos com os ensinamentos, pois precisamos realmente aplicá-los. Naturalmente, para isso precisamos também conhecê-los. Portanto, é útil refrescar nossas memórias diariamente, lendo, por exemplo, um dos textos clássicos sobre como lidar com situações difíceis. A Guirlanda de Jóias de um Bodhisattva, As 37 Práticas do Bodhisattva e Os Oito Versos que Transformam a Mente, por exemplo, estão cheios de conselhos extremamente práticos. Se você os ler frequentemente, os terá sempre em mente e, enquanto estiver lendo, eles o mostrarão as respostas apropriadas às situações que você está vivendo.
Essas são algumas das práticas diárias dos budistas no Ocidente. Como eu disse, para obtermos resultados precisamos trabalhar duro, e não é barato.
Tornar os Ensinamentos Budistas Amplamente Disponíveis seria Contrariar seu Propósito?
Hoje em dia, os ensinamentos estão amplamente disponíveis. Vimos também que muitos centros ou eventos de dharma cobram taxas de participação, mas ainda há uma quantidade enorme de material disponível gratuitamente (como este site!). Se você tiver um computador e acesso à internet, não precisará viajar muito ou pagar pelos ensinamento. E a quantidade de material disponível sem dúvida irá aumentar no futuro.
Poderíamos argumentar que seria melhor esconder os ensinamentos nas bibliotecas para que fossem difíceis de conseguir, ou certificarmo-nos de que as pessoas tivessem que pagar, pois assim precisariam esforçar-se mais para consegui-los. Por outro lado, mesmo se os ensinamentos fossem disponibilizados livremente e em toda parte, ainda assim precisaríamos nos esforçar para ler, estudar e para praticar.
Não obstante quantos benefícios temos atualmente, no que diz respeito ao acesso aos ensinamentos, ainda assim necessitamos trabalhar duro. Leva tempo para compreender e internalizar os ensinamentos; isso nunca mudará. Não há uma maneira rápida ou barata e, nesse caso, não há nada especial sobre nós, que praticamos no Ocidente. Portanto, devemos realmente tirar proveito de todas as oportunidades que temos. Antes de mais nada, precisamos ser amáveis, mas também temos que trabalhar muito para alcançar os objetivos budistas: atingir a liberação de todas as nossas deficiências e dificuldades e atingir a iluminação com a completa realização de todos os nossos potenciais positivos.
Como Relacionar-se com os Objetivos mais Elevados do Budismo
Só podemos trabalhar realisticamente para alcançar a liberação e a iluminação se estivermos realmente convencidos que é possível atingir. Mas como se convencer? A convicção vem da compreensão do que queremos dizer com a palavra “mente,” o continuum mental. Quais são as características básicas da atividade mental? Ela continua momento a momento, com um objeto diferente a cada momento. Mas a característica que a define é sempre a mesma, e a confusão, a raiva e outras emoções são passageiras, como nuvens. Essas nuvens podem ser removidas porque não são uma parte integral da mente.
Para entendermos o que é a mente, precisamos estudar profundamente sua natureza, o que são as aparências e como surgem. Mas também precisamos de experiência na observação do que está realmente acontecendo em nossa própria mente, momento a momento. Portanto, é claro que precisamos estudar e saber o que significa estarmos liberados ou iluminados. Se esses termos forem apenas palavras para nós, serão vagos demais.
Mesmo saber o que é a iluminação, não é fácil, pois os pontos são extremamente sutis. No início, temos “o benefício da dúvida.” Não temos certeza, mas supomos que é possível. Estudamos e meditamos mais, de modo que possamos nos convencer. Essa é uma boa base para começarmos a trabalhar.
Um de meus amigos costuma dizer: “Eu não sei ao certo se liberação ou iluminação são possíveis. Eu não sei se sua Santidade o Dalai Lama é realmente iluminado. Mas se eu pudesse ser como ele, como o Dalai Lama, da forma como ele age e trata de problemas enormes, já seria o bastante.”
Resumo
Da caverna, ao campo, ao escritório, nossos problemas básicos não mudaram muito; o ambiente pode ter mudado, mas as pessoas sempre foram estressadas e ocupadas. Ao reconhecermos esse fato, percebemos que os métodos budistas de mais de um milênio atrás ainda são muito relevantes.
No passado, as pessoas esforçavam-se muito para obter os ensinamentos budistas, portanto somos realmente afortunados, pois hoje temos acesso a uma enorme quantidade de ensinamentos, não apenas na internet, mas em muitas cidades pelo mundo inteiro. Devemos tirar vantagem disso, e ter em mente que a quantidade de esforço que precisamos fazer não mudou e nunca mudará.