O que é História?
A história é uma forma de organizar o material do passado para entender o desenvolvimento que aconteceu ao longo do tempo. Se olharmos para a citação: “Se a história aconteceu, o homem a presenciou”, podemos considerar a história como algo que existiu de forma independente – como uma coisa por si só – e o homem apenas um espectador, que assistiu e participou dela como o faz em um evento esportivo. Mas a história não existe como “uma coisa”. Ela é apenas uma forma de organizar e olhar para vários temas dentro do material de um período de tempo. Na terminologia budista, essa organização do material histórico é uma “construção mental”.
Podemos relacionar essa ideia de construção mental com o tema das projeções. Por exemplo, podemos perguntar: “A Revolução Russa aconteceu?” Mesmo que a resposta seja “Sim”, ainda precisaremos perguntar: Então, o que realmente aconteceu naquele momento? Muitas pessoas estavam lá e experimentaram diferentes coisas a cada momento, mas será que experimentaram “A Revolução” como se ela fosse um elefante a quem todos estavam assistindo? Se não, então o que foi a revolução? A revolução só foi descrita depois, quando diferentes historiadores tentaram dar sentido às várias experiências das muitas pessoas que estavam lá. Esses historiadores juntaram depois os relatos das testemunhas oculares em algum tipo de síntese mental – uma organização de experiências chamada “história”. Também podemos ver esse tipo de organização no material budista, que pode ser apresentado de várias maneiras diferentes.
Se tomarmos o tópico da psicologia, por exemplo, embora existam inúmeras escolas de psicologia, sobre o que a psicologia realmente fala? Podemos dizer que ela é a vasta quantidade de experiências momentâneas de um grande número de pessoas diferentes. Um psicólogo apresenta essas experiências dentro de um esquema organizacional, que é explicado por meio de uma teoria psicológica. As experiências podem ser apresentadas não apenas dentro de um esquema, elas também podem ser organizadas de acordo com vários sistemas.
Se fizermos a pergunta filosófica: será que aconteceu realmente alguma coisa? A resposta seria “Claro que aconteceu alguma coisa”. Mas, será que é apenas uma construção mental que a coloca numa síntese, a “história”? Essa é uma questão bem relevante, pois nos apresenta a maneira analítica budista de ver as coisas – uma maneira que é importante entendermos.
Os budistas tibetanos estudam as quatro escolas do budismo indiano como um percurso gradual, ou seja, um nível leva ao outro, tanto em termos da compreensão quanto dos insights progressivamente mais profundos e a desconstrução mais sutil de nossa falsa visão da realidade. Essa é uma forma de organizar um material com o propósito de obtermos a liberação e a iluminação; o objetivo budista. Se esses esquemas de organização são meramente construtos mentais, então eles são mentalmente construídos por uma ou mais pessoas, e com um propósito; assim como as diferentes teorias psicológicas são reunidas com o propósito de ajudar os pacientes. Podemos organizar o material dos ensinamentos budistas de acordo com um desenvolvimento lógico de ideias, onde temos o início do conceito do ensinamento que queremos desenvolver e, depois, o elaboramos ou expandimos – isso é conhecido como “a história do budismo”.
Em nosso modo de pensar ocidental, essa ideia de como as coisas se desenvolvem – que chamamos de “progresso” – é algo que nos preocupa muito. Ela se baseia no nosso conceito de tempo linear, algo culturalmente específico. O tempo linear nos fornece, como ocidentais, informações úteis sobre como as ideias se desenvolvem ao longo do tempo, mas para tibetanos e indianos essa informação é irrelevante. Eles não acreditam na história em termos de tempo linear. E será que podemos dizer que nossa análise histórica ocidental é mais válida do que a indiana/tibetana? O Buda ensinou todos os tópicos simultaneamente em vários reinos, portanto a questão de dividir os ensinamentos de acordo com o tempo é irrelevante. Mesmo que as três transmissões dentro dos três giros da roda do Dharma possam ser divididas, as datas reais dessas transmissões são irrelevantes.
O importante é não adotar um ponto de vista acadêmico arrogante, tendencioso conceitualmente, com uma visão que considera apenas a história como verdadeira e que foram as pessoas, mais tarde, que desenvolveram todas essas ideias. Isso não é budismo. O budismo autêntico é apenas aquilo que o Buda ensinou. Então, será que é vale a pena estudar ou construir uma linha de desenvolvimento de ideias para ter uma perspectiva histórica? Vale a pena tomar o conceito do que é um buda em uma determinada época, para então analisar o desenvolvimento ou progressão dessa ideia?
Uma das formas de rotular uma sequência de tempo é olhando em termos de desenvolvimento ou progresso, e outra é olhando em termos de degeneração. Qualquer uma dessas formas é igualmente válida, pois faz sentido dentro do contexto de uma determinada forma de pensar. E você também pode olhar como algo interpretável ou definitivo (não interpretável), considerando que as pessoas podem simplesmente inventar, para ganhar legitimidade – “foi isso que o Buda realmente quis dizer”.
Se voltarmos à pergunta de para que serve a história, para que serve construir a história do desenvolvimento de algumas ideias, talvez não tenhamos uma resposta. No entanto, poderíamos dizer que, para nosso modo de pensar, que é muito linear, isso é útil, pois nos ajuda a dar sentido a um material dentro de nossa própria estrutura conceitual. É importante não julgarmos e, de um ponto de vista budista, não dizermos que adotar uma perspectiva histórica é muito mais válido do que algumas das formas budistas de entender como organizar materiais.
Aqui, quando nos referimos ao tempo linear, estamos falando de um tempo que teve um começo, tenha ele sido criado por um ser superior ou iniciado com um big bang. Esse começo vai continuar e chegar a um fim, seja com a destruição do universo ou com o big crunch, e consequentemente o tempo vai acabar. Isso contrasta com o ponto de vista budista, segundo o qual não há começo nem fim. O que há é outro big bang e outro big crunch ou expansão para o nada – isso continua indefinidamente e de maneira não linear.
As diferentes visões de linear e não linear destacam um dos benefícios do estudo do material budista, pois nos ajudam a identificar as nossas formas de pensar que são culturalmente específicas. A palavra “específica” aqui é importante, pois mostra que é apenas a nossa cultura que pensa dessa maneira, e na verdade precisamos entender que existem muitas outras maneiras de olhar para o universo e para nossa experiência. Muitas vezes, por estarmos familiarizados apenas com nosso próprio ponto de vista, sequer consideramos a possibilidade de que haja outra forma de ver o universo, muito menos que ela possa ser igualmente válida. Portanto, estudar algo tão diferente quanto a forma de pensar budista nos ajuda a identificar essas projeções que temos de formas de organizar um material. As noções de “uma verdade”, “progresso” ou “degeneração” são simplesmente formas de compreensão construídas pela mente – elas não são necessariamente universais nem existem “lá fora” como A Verdade.
De acordo com o ponto de vista do Chittamatra, “é como aparece para nós”. As situações aparecem para cada pessoa de maneira diferente, dependendo de sua cultura. Por exemplo, na terapia familiar, a maneira como uma situação aparecerá para a mãe, para o pai ou para os filhos será diferente. Quando abrirmos a mente para considerar que existem outras formas de organizar e compreender um material, para diversos fins, teremos muitas outras ferramentas para lidar com nossos problemas cotidianos. Considerar outras possibilidades nos mostra que podemos ter sido condicionados por nossa cultura e, de fato, olhar de outra maneira nos ajudará a encontrar uma solução melhor. Ou podemos achar útil juntar diferentes pontos de vista para chegar a mais uma síntese mental.
Nosso condicionamento, que nos faz pensar de uma determinada maneira, não significa que devemos julgar nossa cultura, achando que ela é superior e a dos outros inferior ou vice-versa. Todos crescemos em um determinado contexto, ninguém existe fora de um contexto. Também não temos que ver nosso condicionamento como limitado, pois o ponto é que existem outras maneiras úteis de olhar e entender diferentes tópicos.
Após a morte do Buda
Se nos voltarmos para a ideia ocidental de história, depois que o Buda faleceu, seus discípulos tiveram que lidar com a vasta quantidade de material que ele deixou – na forma de ensinamentos – e do qual nada havia sido escrito. Existem diferentes versões do que aconteceu com este material, segundo as várias escolas e autores budistas. Diferentes pessoas lembram-se de diferentes eventos e contam suas histórias ou versões para seus alunos ou filhos, etc. Portanto, como existem várias versões do que aconteceu, não é possível encontrarmos apenas uma possibilidade ou a “única verdade”.
Os principais discípulos do Buda contaram que as pessoas que escreveram os ensinamentos eram todas arhats. Mas, na verdade, não temos como saber se todas as quinhentas pessoas eram arhats, se eram todas seres liberados. É dito que os quinhentos arhats se reuniram e recitaram de memória palavra por palavra do que o Buda ensinou.
Aqui, é importante notar que nada foi escrito sobre os ensinamentos do Buda por aproximadamente quatrocentos anos após a época em que faleceu. Depois desse tempo, apareceu a versão escrita em Pali, da escola Teravada, enquanto outras versões foram escritas ainda mais tarde. É por isso que Shantideva disse: “Se você questionar a precisão do que nós lembramos que foi dito, poderemos questionar a precisão do que você lembra”. Não podemos saber com certeza se os arhats se lembraram de tudo palavra por palavra, pois havia uma quantidade enorme de material. Essa situação, em que o material é primeiro transmitido oralmente e depois escrito, não é exclusividade do budismo. De fato, em muitas religiões do mundo nada foi escrito na época do fundador da religião, as coisas eram lembradas e só foram escritas muito mais tarde.
Linguagem Escrita e Memorização
No que diz respeito à história da linguagem escrita, poderíamos perguntar: por que desenvolvemos uma linguagem escrita? De acordo com muitos pesquisadores, a escrita foi desenvolvida principalmente para fins militares, para enviar alguma ordem etc. para outra parte do exército, ou para fins administrativos. No início, particularmente na Índia, a linguagem escrita não era usada para assuntos filosóficos ou espirituais; era usada apenas para fins práticos, como no caso dos comerciantes que anotavam o que vendiam e quanto havia custado.
Para entender se as pessoas daquela época realmente conseguiam se lembrar de uma quantidade tão grande de material, podemos olhar para os tibetanos de hoje em dia. Os tibetanos são capazes de memorizar milhares de páginas de textos e depois recitá-los. O melhor exemplo é o de Sua Santidade Dalai Lama, que memorizou uma enorme quantidade de material que pode citar a qualquer momento e em qualquer lugar. Portanto, é normal que a única maneira de as pessoas que não têm livros, nem mesmo o conceito de livro, aprenderem seja memorizando muito.
É difícil para nós imaginar como seria se não houvesse livros, muito menos computadores e internet, e se todo o nosso sistema educacional fosse baseado apenas em ouvir a explicação dos ensinamentos, que teriam que ser lembrados - isso significaria, em certo sentido, memorizar. A necessidade de memorizar implicaria que esses ensinamentos não seriam recitados apenas uma vez, mas repetidas vezes e de uma forma organizada. Essa repetição ajudaria os jovens estudantes que, ao ouvirem os ensinamentos muitas vezes, os recitariam, praticariam e aprenderiam continuamente. (Naquela época,) um aluno só poderia contemplar e tentar compreender os ensinamentos se os tivesse ouvido e memorizado.
Entre os tibetanos, a memorização dentro do sistema educacional existe até hoje em instituições budistas. Mesmo que os alunos agora tenham livros, eles ainda os recitam e memorizam. De fato, todo o sistema educacional é orientado para aproveitar a excepcional capacidade de memorização das mentes jovens. Quando crianças, podemos memorizar várias coisas – como as canções de ninar – e lembrar delas muitos anos depois; enquanto lembrar algo que vimos ontem, como um número de telefone, é muito mais difícil – a memória de longo prazo é sempre melhor do que a de curto prazo.
O sistema educacional tibetano é tal que, até os treze anos, os alunos não recebem nenhuma explicação - apenas memorizam. Alguns ocidentais podem achar que isso não é satisfatório e que é uma “forma medieval” de estudar, mas pode-se argumentar que uma forma medieval de aprender tem seus benefícios. Um aluno que memoriza não é totalmente dependente da internet e das bibliotecas. Ele pode se lembrar de algo sem ter que fazer uma busca.
Primeiro Concílio Budista
O Primeiro Concílio foi convocado em Rajagriha, no reino de Magadha, no ano seguinte ao falecimento do Buda. Observe que o termo “Concílio” é uma palavra ocidental que significa um corpo governante eleito. Na verdade, aqui o termo significa uma reunião com o objetivo de todos recitarem as escrituras e assim garantirem que não estejam sendo corrompidas.
O Primeiro Concílio contou com a presença de quinhentos arhats. Entre esses, três dos mais destacados memorizadores recitaram uma das três principais divisões dos ensinamentos do Buda. Ananda, primo do Buda (ter um parente como assistente e discípulo próximo era um costume na época e ainda pode ser encontrado na tradição tibetana), possuía memória fotográfica e, portanto, recitava de cor todos os sutras. Assim, como ele tinha a melhor memória, foi convidado para recitá-los, apesar de Mahakashyapa, um monge idoso, mas cuja a ordenação tinha sido relativamente recente, não quisesse que ele estivesse presente, por ciúme. Os sutras são temas para prática, especialmente em se tratando de concentração.
Uma parte dos ensinamentos do abhidharma, de acordo com uma das versões, foi recitada por Mahakashyapa. Entretanto, outras tradições dizem que ele apenas presidiu o concílio e que os ensinamentos do abhidharma, ensinados pelo Buda, não foram recitados neste momento, e só mais tarde é que foram reunidos por vários arhats do concílio. O abhidharma aqui é traduzido como “tópicos especiais de conhecimento” e trata de metafísica – como entendemos o universo, do que ele é feito, os diferentes tipos de seres que existem nele, o tópico da biologia, etc. para que desenvolvamos o que é chamado de “consciência discriminativa” e assim possamos entender os vários fatores de nossa experiência.
As regras de disciplina para a ordem monástica (vinaya) foram recitadas pelo monge Upali. Existem votos de monges e votos de monjas, bem como divisões entre noviços, totalmente ordenados, etc. O Buda formulou essas regras para resolver algum incidente ou problema na comunidade, e não para impor “obediência”. Dentro do monasticismo cristão, um dos principais votos é o de obediência – um voto que não existe no sistema monástico budista. As leis bíblicas ou gregas antigas, celestiais ou dos reis, e o sistema judicial ocidental, têm legislações que devem ser seguidas e obedecidas. Nesses contextos, ser obediente é sinônimo de “ser bom”, e a desobediência é punida. Quando olhamos para o sistema “judicial” ocidental – a administração da justiça –, descobrimos que não existe “justiça”. Se alguém segue a lei, é bom; se desobedece, é “culpado”. Esse conceito de culpa é uma maneira de pensar muito ocidental.
Por outro lado, a ética budista é baseada na compreensão do problema e não na obediência. Quando surge um problema ou dificuldade, encontra-se uma solução ou regra para ajudar a evitar que ele se repita, causando mais dificuldades. Isso é algo relevante hoje em dia em qualquer organização ou sociedade com chamadas leis ou regras que os cidadãos devem obedecer estritamente. No entanto, se as pessoas entendessem as razões ou motivos por trás dessas regras, não haveria necessidade de polícia e a sociedade funcionaria de uma forma muito mais suave.
O Primeiro Concílio foi presidido por Mahakashyapa, um brâmane mais velho e honrado de Magadha, que tornou-se monge quando já era idoso. Antes de falecer, o Buda deu a Mahakashyapa seu velho e gasto manto em troca do manto novo do brâmane. Isso, mais tarde, foi interpretado como um sinal de que o Buda havia transmitido a autoridade de sua linhagem de ensinamentos a Mahakashyapa, e assim, este sentiu que estava no comando.
A intenção do Buda sempre foi que a autoridade sobre os ensinamentos fosse mantida de forma igualitária, ou seja, sem uma pessoa responsável. Porém, ao longo da história budista, houve uma contínua dialética entre uma figura central de autoridade, que se encarregava da organização e estruturação dos ensinamentos e tinha um certo poder, e uma comunidade monástica democrática e igualitária, cujos líderes eram eleitos por meio do voto e as decisões eram tomadas em conjunto. Isso é evidente hoje em dia dentro da comunidade monástica tibetana em relação à ordenação total de monjas. A linhagem para esses votos foi quebrada, mas há um forte movimento para restabelecê-los. No entanto, Sua Santidade o Dalai Lama não pode simplesmente reintroduzi-los. O que o Buda estipulou foi que essas decisões não podem ser tomadas por uma autoridade central, mas sim por um conselho de anciãos que devem concordar entre si. Uma decisão importante adotada por unanimidade na comunidade monástica budista é realmente difícil na prática, e isso também é uma questão relevante hoje em dia na União Européia, por exemplo. Na comunidade budista, o Buda encorajou o pensamento independente mesmo havendo patriarcas, e como não havia uma aplicação estrita de uma série de costumes, diferentes interpretações se desenvolveram em diferentes áreas.
Depois do falecimento do Buda, Mahakashyapa assumiu o comando, estabelecendo o concílio para revisar e codificar os ensinamentos. No início do primeiro concílio, Ananda se encontrou com o primeiro-ministro de Magadha para lhe contar sobre a intenção do Buda de criar uma ordem democrática igualitária, mas o primeiro-ministro estava muito ocupado se preparando para atacar o reino Avanti, no oeste de Magadha.
Especula-se que o fato de Mahakashyapa ser um líder forte e ter iniciado a codificação dos ensinamentos provavelmente contribuiu para a sobrevivência da ordem budista naqueles tempos conturbados. A partir dele, desenvolveu-se posteriormente uma sequência de patriarcas – linhagem ou sucessão – que se encarregavam de toda a comunidade budista. Os tibetanos contam sete patriarcas na linhagem, enquanto a tradição Zen (japonesa) conta 28, sendo o último Bodhidharma, que trouxe o Zen para a China e iniciou a linhagem dos patriarcas chineses da tradição Chan. Mais tarde, ramificações dessas tradições foram para a Coréia, Japão, etc. Nos países Theravada do sudeste asiático, os patriarcas nacionais começaram uma linha de sucessão, por exemplo “O Grande Patriarca da Tailândia”, etc. No Tibet, uma posição similar, com um patriarca, foi desenvolvida com a instituição dos Dalai Lamas. No entanto, nem os patriarcas nem o Dalai Lama são considerados como um papa – infalíveis, com uma comunicação direta com o Buda, com autoridade legal sobre a ordem monástica. Eles basicamente têm a responsabilidade de manter toda a ordem unida e cuidar do bem-estar das comunidades monásticas e leigas em seus países.
Um ponto interessante no desenvolvimento histórico dos ensinamentos do Buda é a separação de várias escolas dentro do que geralmente é conhecido como a tradição Hinayana. Essas escolas têm versões ligeiramente diferentes do abhidharma, bem como adaptam ou alteram o Vinaya de acordo com suas diversas necessidades. Esta adaptação foi decidida de forma democrática por um grupo de anciãos, e não de forma autocrática. Os anciãos seguiram o costume dos jainistas. O sistema religioso/filosófico jainista começou cinquenta anos antes do Buda, e este adotou muitas de suas ideias. Os monges jainistas memorizavam e recitavam seus votos a cada duas semanas, pois não eram escritos.
Foi depois do Primeiro Concílio que se tornou um costume a assembleia de monges recitar os vários ensinamentos de memória e primeiro ouvir as palavras corretas dos ensinamentos através da transmissão oral (entendê-los não era um requisito naquele momento!) para depois memorizá-los corretamente. A transmissão oral é uma característica importante dentro dos mosteiros tibetanos até hoje. E a recitação em grupo dos sutras é um costume importante nos mosteiros budistas tradicionais em toda a Ásia.
Segundo Concílio Budista
Cerca de cem anos após o Primeiro Concílio – há opiniões diferentes quanto à data, 386 a.C ou 376 a.C – houve um Segundo Concílio, realizado em Vaishali, na república Vajji.
Diferentes versões descrevem diferentes objetivos principais para o Segundo Concílio, como a divisão da comunidade, por exemplo. Observe aqui que “divisão” não significa cisma, como Devadatta fez com o Buda. Não é que as pessoas se odiassem e desejassem matar umas às outras; havia apenas um desacordo a respeito dos costumes. Uma versão é que, das dez questões controversas a serem discutidas, a principal naquele momento era a opinião divergente sobre o manuseio de ouro pelos monges, se eles podiam ou não manusear ouro (dinheiro) de acordo com as regras monásticas.
O grupo que achava que a intenção do Buda era que os monges não lidassem com ouro era o Teravada. Eles eram os mais rígidos, o grupo conservador. Teravada significa “Os Proponentes de Acordo com os Anciãos”. Na tradição Teravada, ainda hoje, os monges não têm permissão para manusear ou carregar dinheiro, e devem ter atendentes ou noviços para lidar com suas questões financeiras. A Mahasanghika, que significa “a Comunidade da Maioria”, foi o grupo que se separou e disse que era apropriado os monges terem ouro.
Esse ponto sobre o manuseio do ouro é bastante polêmico, pois alguns monges estavam começando a acumular dinheiro e isso começou a criar problemas em uma comunidade que deveria ser igualitária. E ainda é um problema nas várias ordens monásticas. Na tradição Teravada, por exemplo, da Tailândia, o dinheiro é tratado com muito rigor e os monges não podem nem tocá-lo. Nos países Teravada, monges e monjas não pagam nada. Espera-se que vivam da mendicância e que aceitem qualquer alimento que lhes seja oferecido. Os leigos que sustentam a comunidade monástica, dando a própria comida e colocando-a nas tigelas de mendicância, acumulam força positiva – o que se chama de “mérito”. Esta situação difere da do Tibete, onde faz muito frio e as distâncias são muito grandes para se mendigar descalço, especialmente no inverno. No sistema tradicional tibetano, várias pessoas levavam comida para os mosteiros, que depois a distribuíam aos monges. Ao longo da história, essas regras se desenvolveram de maneira diferente nos diferentes países.
Outra versão diz que a principal questão deliberada no Segundo Concílio dizia respeito à situação daqueles conhecidos como arhats, seres liberados. Esses seres não sabiam de tudo, ou seja, não eram oniscientes. Por exemplo, se eles estivessem perdidos, teriam que pedir informações na estrada. No entanto, apesar das limitações de seu conhecimento, os Teravadas admitiram que eles eram conhecedores do Dharma; que eles sabiam como ensinar os outros e sabiam o significado dos ensinamentos. Os Teravadas insistiam que os arhats, assim como o Buda, estavam completamente livres de quaisquer emoções perturbadoras, como o desejo.
No entanto, o outro grupo, os Mahasanghikas, sem dúvida baseado na própria experiência, disse que os arhats ainda podiam ser seduzidos em seus sonhos. Podiam ter sonhos eróticos e emissões noturnas. Eles questionaram se alguém poderia ser considerado arhats se ainda fosse influenciado por sonhos sexuais. Esta foi uma questão muito prática, pois surgiu por causa das experiências dos praticantes. Os Mahasanghikas afirmaram que um buda não era influenciado por sonhos. Esta afirmação resultou em uma ênfase maior na diferença entre um buda e um arhat. Para os Teravadas não havia uma diferença tão grande entre um arhat e um buda. Para eles, um buda ensinava a um público mais amplo, enquanto um arhat ensinavam apenas um número limitado de seres.
Quando olharmos para o desenvolvimento histórico do grupo Mahasanghika, parte dele foi do centro da Índia para o noroeste, a área em que hoje é o norte do Paquistão. Outra parte foi para o sul, para a área que hoje é Andhra Pradesh, na costa oeste da Índia. Foi particularmente na área de Andhra onde o Mahayana surgiu e, mais tarde, o tantra também evoluiu, lá e no Paquistão. Historicamente, a ideia do que é um buda se desenvolveu cada vez mais na direção da onisciência; a ideia de que um buda conhece absolutamente tudo, simultaneamente, e pode se manifestar em um número incontável de formas, ensinando e sendo compreendido em todas as línguas. O conceito do que é um buda ampliou-se continuamente, até chegarmos à visão Mahayana, que apresenta a maioria das qualidades de um buda.
Terceiro Concílio Budista
Algumas fontes não registram a terceira reunião como um concílio. As que registram afirmam que o Terceiro Concílio ocorreu cerca de cento e cinquenta anos após o segundo. De acordo com diferentes versões, a data foi por volta de 237 a.C. ou 247 a.C.
Oitenta anos antes, houve a fundação do Império Maurya no norte da Índia, e assim, na época do Terceiro Concílio, o famoso imperador Ashoka era quem governava. Esse imperador era cruel e a princípio liderou muitas guerras, nas quais um grande número de pessoas foram mortas. Mas depois de ouvir os ensinamentos budistas, ele se arrependeu e tornou-se um forte seguidor e apoiador dos ensinamentos budistas, enviando vários professores para explicá-los em todo o seu império e regiões adjacentes. Foi durante o reinado de Ashoka que o budismo foi para o Sri Lanka, bem como para o atual Afeganistão, Caxemira, Mianmar, etc.
De acordo com uma das versões, o foco principal do Terceiro Concílio era em manter a pureza dos ensinamentos, pois vários grupos se reuniam com vários pontos de vista diferentes e os Teravadas estavam preocupados. Portanto, o monge chefe do concílio escreveu uma refutação analítica de todos os pontos de vista que ele considerava interpretações incorretas dos ensinamentos. Aqueles que tinham entendimentos ou pontos de vista diferentes sobre o abhidharma - como as coisas existem no passado, presente e futuro (questões metafísicas) - formaram uma escola separada, "a tradição Sarvastivada ", e romperam com os Teravadas.
De acordo com os Sarvastivadas, toda matéria é composta de partículas ou átomos – no sentido não-ocidental. Portanto, tudo existe – o termo sânscrito “sarvasti” significa todo-existente. Eles afirmam que as (partículas de) matéria do universo permanecem basicamente as mesmas no passado, presente e futuro; alterando apenas sua configuração. Por exemplo, os átomos de um corpo vêm dos átomos do esperma do pai e do óvulo da mãe. Esses átomos são os mesmos que se dissolverão na terra quando morrermos ou se transformarão em cinzas se o corpo for cremado. Desta forma, existe o conceito de tudo existir no passado, presente ou futuro. Este é um tópico relevante para a ciência moderna. Podemos indagar se uma determinada quantidade de matéria e energia no universo persiste ao longo do tempo, mudando de forma, ou se uma nova matéria e energia são criadas.
Os Teravadas não concordaram com a visão dos Sarvastivadas. Eles afirmaram a existência apenas do presente e disseram que as únicas coisas que existiam eram fenômenos presentes. Para eles, eventos passados que ainda não produziram seus resultados existem no presente, como uma discussão entre um casal que aconteceu no passado, mas ainda é eficaz na medida em que pode levar ao divórcio.
Ao longo de vários séculos, após o Terceiro Concílio, mais e mais escolas começaram a se separar com base em seus diferentes entendimentos: algumas do Teravada e outras da Mahasanghika ou das escolas Sarvastivada. Cerca de cinquenta anos depois, surgiu uma nova ramificação, a Escola Dharmaguptaka. Os praticantes dessa escola elevaram o status dos budas, enfatizando a importância de fazermos oferendas primeiro às stupas – monumentos contendo as relíquias do Buda ou de um mestre realizado – depois aos budas e, finalmente, com menos importância, aos monásticos. Nela, o aspecto devocional tornou-se o foco principal.
A escola Dharmaguptaka era a principal escola budista Hinayana em Gandhara, região que abrange o atual norte do Paquistão e leste do Afeganistão. Foi aqui que a versão escrita mais antiga dos ensinamentos budistas foi feita, começando no primeiro século a.C, no idioma Gandhari.
Uma das principais questões naquela época era a de “quem ou o que era o Buda?” Com o passar dos séculos, podemos entender que o fundador de qualquer ordem (ou “religião”) se torna cada vez mais glorificado. Quando olhamos para as outras tradições Hinayana (dezoito ao todo), descobrimos no desenvolvimento histórico ao longo dos séculos antes da era atual, que o Buda se tornou cada vez mais sobrenatural, no sentido de ter ganhado mais poderes e se tornado mais onisciente. Portanto, a diferença entre um arhat e um buda tornou-se maior. Podemos notar aqui que o Buda ensinou habilmente a vários públicos, de modo que os ensinamentos se adaptassem à necessidade específica daquela época, de um aspecto devocional na prática religiosa, o que também fica evidente na literatura não-budista. A necessidade de uma figura devocional corresponde ao Buda se tornando cada vez mais um ser exaltado, bem como um foco de adoração nas stupas, relíquias e monumentos, não apenas ao Buda, mas também a várias outras grandes figuras.
Em reação a esse aspecto devocional, as escrituras ou sutras Mahayana enfatizam os grandes benefícios, força positiva ou mérito, obtidos com a recitação e estudo de textos. Historicamente, as escrituras Mahayana começaram a aparecer entre os séculos I e IV dC na região onde atualmente é Andhra Pradesh, no sudeste da Índia. Essa foi a região para a qual o ramo Mahasanghika do Hinayana se mudou, e onde ele estabeleceu o Buda como uma figura sobre-humana, ampliando a lacuna entre suas realizações e as de um arhat. Os primeiros principais sutras Mahayana que surgiram foram os Sutras Prajnaparamitra, sobre a vacuidade de todos os fenômenos. O Buda os ensinou no Pico do Abutre – o segundo giro da roda do dharma.
O foco dos sutras Mahayana não está na devoção excessiva, onde as pessoas simplesmente acendem incensos e velas em monumentos, mas sim na necessidade de estudar e recitar os textos. Nesses sutras, os benefícios do estudo são repetidos continuamente, e os números dados, como: gera trinta e seis milhões de vezes mais mérito estudar e recitar um texto do que fazer oferendas a uma estupa. Mas, como Shantideva, um grande mestre budista indiano do século VIII dC, apontou, ainda assim não é inútil fazer oferendas.
O aspecto devocional também está presente na Escola Dharmaguptaka, que se desenvolveu mais na Ásia Central. Os seguidores desta escola reúnem um conjunto do que chama de “dharanis”. Um dharani é basicamente uma frase ou fórmula curta que é recitada continuamente para que a mente permaneça focada e atenta a um determinado ensinamento – é um tipo de devoção. O uso de dharanis se propagou em uma época em que o hinduísmo devocional também estava se desenvolvendo. É difícil dizer se foi o hinduísmo que influenciou o budismo ou vice-versa. Ambos ocorreram ao mesmo tempo, com os hindus cantando Hare Krishnas, por exemplo, e os budistas cantando dharanis.
O aspecto devocional do movimento Dharmaguptaka é claramente percebido no budismo chinês, onde os seguidores entram nos templos para acender incensos e velas, recitando dharanis constantemente. Na maioria das escolas budistas da China, não há tanta ênfase no estudo. E os dharanis não tiveram uma influência apenas no aspecto devocional do budismo, mas também no desenvolvimento do tantra. Mais tarde na história budista, a recitação de mantras, que geralmente são muito mais curtos do que os dharanis, tornou-se uma constante na prática tântrica, para manter o praticante atento ao significado de um ensinamento específico.
O desenvolvimento da Escola Dharmaguptaka não apenas levou a um maior foco no aspecto devocional, como também criou uma versão diferente dos votos monásticos para monges e monjas. Essa tradição se propagou pela Ásia Central e depois para a China. Entre os séculos IV e V dC, outro ramo se separou da Sarvastivada, conhecido como Mulasarvastivada, cuja versão das regras monásticas de disciplina é seguida pelos tibetanos. Portanto, atualmente existem três linhagens principais de ordenação monástica: a primeira é o Teravada, no Sudeste Asiático; a segunda, o Mulasarvastivada, que foi para o Tibete e depois para a Mongólia e regiões vizinhas; e a terceira, o Dharmaguptaka, que foi para a China, depois Coréia, Japão e Vietnã.
Quarto Concílio Budista
Dois concílios diferentes foram chamados de “Quarto Concílio Budista”. O primeiro foi realizado dentro da tradição Teravada no final do primeiro século aC, no Sri Lanka. Naquela época houve uma grande fome e muitos monges morreram. Assim, para preservar os ensinamentos até então transmitidos oralmente, eles foram escritos. Isso aconteceu no idioma Pali, o dialeto no qual os ensinamentos Teravada foram transmitidos.
O outro Quarto Concílio Budista ocorreu no final do primeiro século dC na Caxemira e no norte da Índia, dentro da Escola Sarvastivada Kumaralata, que rejeitou a autoridade dos textos do abhidharma, seguindo exclusivamente os sutras Sarvastivada. A tradição que se seguiu foi chamada de “Sautrantika”. Também nesta época, no primeiro século dC, os Kushans, vindos da Ásia Central, conquistaram Gandhara, a Caxemira e o norte da Índia e estabeleceram a dinastia Kushan. Durante o reinado do imperador Kushan Kanishka, este outro “Quarto Concílio” foi convocado na Caxemira, sob o comando de Vimalamitra. Nele, os membros do conselho rejeitaram as afirmações do Sautrantika e codificaram os ensinamentos do abhidharma Sarvastivada no Mahavibhasa Sutra. Este tornou-se a base da divisão Vaibhashika da Sarvastivada. Os ensinamentos da Vaibhashika e da Sautrantika foram transmitidos nas universidades monásticas da Índia e continuam sendo transmitidos até hoje nos mosteiros tibetanos.
Devido à falta de uma figura central de autoridade, diferentes interpretações e opiniões surgiram naturalmente em diferentes áreas geográficas e, assim, o budismo se desenvolveu.
Resumo
Os tibetanos/indianos veem a história como algo não linear, baseado nos níveis dos ensinamentos budistas, enquanto os ocidentais veem a história como linear, organizando o material histórico de maneira lógica, com base em datas e fatos. Do ponto de vista ocidental da história, os ensinamentos budistas não foram escritos até muitos séculos depois de terem sido ensinados pelo Buda; eles foram transmitidos oralmente, recitados continuamente e memorizados – um costume que persiste até os dias de hoje. Os Concílios foram criados para que os seguidores de todas as escolas budistas recitassem juntos os ensinamentos e identificassem possíveis corrupções. O Primeiro Concílio contou com a presença de quinhentos arhats, dos quais três deles recitaram uma das principais divisões dos ensinamentos do Buda. Mahakashyapa assumiu o comando deste conselho, apesar da intenção do Buda de que a comunidade monástica permanecesse igualitária. A autoridade de Mahakashyapa levou à codificação dos ensinamentos e às linhagens dos patriarcas.
O Segundo Concílio foi formado para deliberar sobre se os monásticos deveriam ou não lidar com ouro, e sobre a situação dos arhats em relação ao desejo. Devido a uma diferença de opinião entre os monges, aconteceu uma divisão na comunidade monástica, entre as tradições Teravada e Mahasangika.
Na época do Imperador Ashoka, foi estabelecido o Terceiro Concílio, para assegurar a pureza dos ensinamentos e harmonizar as várias interpretações à luz das várias escolas que estavam se separando e se desenvolvendo. Como resultado de mais diferenças na interpretação dos ensinamentos, a Sarvastivada se separou da Teravada.
O Quarto Concílio do Sri Lanka, foi convocado para escrever os ensinamentos budistas. O Quarto Concílio na Caxemira foi convocado para compilar os ensinamentos que formaram a base para o sistema de princípios filosóficos Vaibhashika dentro da Sarvastivada enquanto rejeitava as interpretações Sautrantika.
Desta forma, devido à falta de uma autoridade central, diferentes interpretações e opiniões surgiram naturalmente em diferentes áreas geográficas e assim o budismo se desenvolveu.