Bodhichitta Convencional e Mais Profunda
Existem duas facetas da bodhichitta: a convencional e a mais profunda. Ambas as bodhichittas visam a nossa própria iluminação individual, que ainda não aconteceu; mas com base em nossa própria natureza búdica e em muito esforço e trabalho de nossa parte, realmente podemos alcançá-la. Por estarmos convencidos de que é possível alcançá-la e termos uma ideia precisa do que se trata, com a bodhichitta convencional, rumamos em direção à nossa futura iluminação – sabendo como será, as qualidades envolvidas e assim por diante – com duas intenções: a intenção de alcançar a iluminação através de métodos realistas que realmente nos levem até ela e de beneficiar todos os seres o máximo possível por meio dessa conquista. Entendemos perfeitamente que não nos tornaremos deuses onipotentes que apenas precisam estalar os dedos – ou nem mesmo precisam estalar os dedos – para dissipar os problemas de todo mundo. Isso é impossível. Mas podemos ensinar às pessoas através de instruções factíveis e de nosso próprio exemplo a alcançar a iluminação. Depois, dependerá delas chegar lá.
Mais especificamente, a bodhichitta convencional visa a mente de nossa iluminação que ainda não está ocorrendo – a Dharmakaya de Consciência Profunda. A bodhichitta mais profunda visa a vacuidade (vazio) e as cessações verdadeiras de nossa iluminação que ainda não está ocorrendo – a Svabhavakaya (Corpo de Natureza Essencial, Corpus de Natureza Essencial).
Estados Mentais que Acompanham a Bodhichitta
A bodhichitta convencional é acompanhada por vários outros estados mentais que se manifestam com ela, simultaneamente, e que são parte de nossa motivação para alcançarmos a iluminação. Esses estados mentais estão focados primariamente em todos os seres – o que significa absolutamente todos seres sencientes (ou seres com um corpo limitado e uma mente limitada), de forma absolutamente igual. Portanto, estamos falando de cada inseto, de todo mundo – com amor, com o desejo que sejam felizes e tenham as causas da felicidade, e com compaixão, que é o desejo que sejam livres de sofrimento e das causas do sofrimento. Assim sendo, o amor visa a felicidade e o bem-estar dos seres sencientes, e é o desejo que a felicidade aumente e cresça. A compaixão visa o sofrimento dos seres sencientes; é o desejo que sejam livres dele. Os estados mentais do amor e da compaixão acompanham o foco na nossa iluminação que-ainda-não-está-ocorrendo.
Precisamos ter clareza em relação ao foco dos estados mentais para poder realmente gerar esses estados mentais. Caso contrário, não saberemos o que fazer com a nossa mente e nossos sentimentos quando estivermos meditando sobre amor ou compaixão, ou, neste caso, sobre bodhichitta. Segundo explica Sua Santidade, a compaixão não é apenas o desejo de que os problemas alheios acabem sem que a pessoa tenha nenhuma noção ou convicção de que realmente é possível livrar-se de seus problemas. A compaixão se baseia no entendimento de que é possível livrar-se dos problemas. Caso contrário, trata-se de um desejo sem sentido. Ela também é acompanhada de um entendimento em relação a como as pessoas podem se livrar de seus problemas. Não há nenhum salvador onipotente que as salvará; a compaixão traz a coragem que realmente as ajudará a superar seus problemas. Há um entendimento – sempre há um entendimento – que acompanha essas emoções, esses sentimentos positivos.
Também temos outro estado mental, ou outra emoção, ou como quiser chamar, que acompanha a nossa bodhichitta, chamado de resolução excepcional (lhag-bsam, Skt. adhyashaya). Focar em todos os seres e suas situações de forma igual é a resolução excepcional à qual Sua Santidade às vezes se refere como sendo a responsabilidade universal; não se trata apenas da coragem de ajudar os seres, mas de uma resolução absoluta e inabalável: “Tentarei ajudá-los e beneficiá-los o máximo possível. Assumo a responsabilidade, um senso de responsabilidade, de realmente fazer algo para ajudar.”
Uma Anotação sobre A Bodhichitta Vermelha e A Bodhichitta Branca
Na classe mais elevada do tantra, falamos sobre a bodhichitta branca e a bodhichitta vermelha. Como isso às vezes pode ser bastante confuso para algumas pessoas, achei importante mencionar aqui. Trata-se de formas de fenômenos materiais, ou seja, fenômenos físicos, muito sutis. Não se trata de estados mentais. É difícil achar palavras adequadas para descrevê-los, mas vamos chamá-los de faíscas de energia criativa que todos nós temos. Na classe mais elevada do tantra, nos estágios muito avançados, quando conquistamos essa habilidade – uma habilidade incrivelmente difícil de conquistar – conseguimos mover energias criativas muito sutis dentro de nosso corpo e dissolvê-las no chakra do coração para alcançarmos ou acessarmos o nível mais sutil da mente. É chamada de mente de clara luz (’od-gsal) e é usada para focar na vacuidade e alcançar a iluminação, pois trata-se do nível mais eficiente da mente.
A bodhichitta branca e a bodhichitta vermelha são substâncias e métodos com os quais trabalhamos para alcançar a bodhichitta mais profunda, a clara luz da mente focada na vacuidade. Muitas vezes no budismo o nome do resultado é dado também à causa que leva a ele. Assim sendo, damos o nome do resultado – a bodhichitta mais profunda – como um nome alternativo para esses dois tipos de energia sutil criativa dentro do corpo. Este é o significado da bodhichitta branca e da bodhichitta vermelha e a razão de serem chamadas assim.
Estou explicando apenas para que isso não gere confusão, pois sei que esses nomes podem confundir bastante. Em nosso nível de prática, não estamos absolutamente envolvidos com essa questão, nos deparamos com ela apenas na prática muito, muito avançada. Para que as pessoas não se confundam, é importante saber que tanto homens quanto mulheres têm as duas bodhichittas, branca e vermelha. Embora haja diferentes níveis rudimentares, não devemos associá-las com as suas representações rudimentares e pensar que apenas os homens têm a bodhcihitta branca e as mulheres têm a vermelha; isso seria incorreto.
Bodhichitta de Aspiração e Engajamento
Dentro da bodhichitta convencional, há o estágio da aspiração (smon-sems, bodhichitta do desejo), que significa que aspiramos ou desejamos alcançar a iluminação para beneficiar a todos, e há o estágio engajado (’jug-sems), no qual realmente nos engajamos no comportamento, na conduta, que de fato nos levará a esse objetivo. Primeiro desenvolvemos o estágio da aspiração, depois do engajamento.
O estado da aspiração tem dois estágios, o primeiro é meramente a bodhichitta da aspiração (smon-sems smon-pa-tsam), quando desejamos alcançar a iluminação, e depois a bodhichitta da aspiração comprometida (smon-sems dam-bca’-can), com a qual temos uma resolução muito forte e estamos decididos a nunca mais voltarmos atrás. Quando alcançamos o estado de bodhichitta engajada, da bodhichitta relativa, este estágio envolve fazer os votos de bodhisattva. Ambos vão juntos. Não se pode desenvolver a bodhichitta engajada sem fazer os votos de bodhisattva.
Um voto (sdom-pa, sct. samvara) é uma modelagem da mente, uma modelagem de nossa conduta. Ele estabelece limites que não transgrediremos. “Evitarei elogiar a mim mesmo e rebaixar os outros por estar apegado à fama, a querer que os outros gostem de mim, ao amor e ao dinheiro, e coisas desse gênero.” Nós nos comprometemos a não fazer certas coisas, pois elas prejudicam muito nossa capacidade de ajudar os outros. Por exemplo, quando exploramos os outros, dizendo coisas do tipo: “Sou o melhor”, como candidatos ao governo em busca de poder costumam fazer em suas campanhas: “Sou o melhor e o outro candidato é terrível, é o demônio.” Não se pode confiar em pessoas que fazem isso. Isso prejudica muito a capacidade delas de ajudar os outros, pois apenas estão se engrandecendo para obter poder. Por essa razão, o processo de campanhas e eleições é bastante alheio aos tibetanos, parece-lhes difícil compreendê-lo ou participar nele, pois a maneira como as campanhas eleitorais são feitas em muitos países realmente vai totalmente contra os princípios do bodhisattva: “Sou o melhor. O outro cara é péssimo.”
Shantideva, outro grande mestre indiano, escreveu em “Engajando-se no Comportamento de um Bodhisattva” (Bodhicharyavatara):
(IV.2) Se houver algo que eu tenha feito repentinamente ou que não tenha examinado bem, mesmo que haja feito uma promessa, é apropriado examinar: “Devo ou não devo fazer?”
(IV.3) Mas como eu poderia desistir daquilo que os budas e seus descendentes espirituais examinaram com grande consciência discriminativa e eu mesmo repetidamente examinei?
Esses dois versos são muito importantes. Eles estão dizendo que antes de fazer os votos de bodhisattva, a bodhichitta engajada, é importante estudar esses votos, é apropriado estudá-los (eles estão em meu site, com as respectivas explicações, na seção de votos no berzinarchives.com), para ver e examinar o que o Buda disse: “Bem, se quiserem alcançar a iluminação, é isso que precisam evitar para realmente beneficiar os outros”. Então, devemos nos examinar com precisão: “Será que consigo ou não consigo fazer este voto?” E depois nós o fazemos. Não se trata de algo que fazemos repentinamente apenas porque todos os outros estão fazendo, ou porque há um lama oferecendo os votos, e assim nós os tomamos sem realmente examiná-los bem. Shantideva aponta para isso de forma muito clara.
As Definições Svatantrika and Prasangika das Perfeições
O que está vinculado a realmente manter os votos de bodhisattva? Basicamente, trata-se de desenvolver as seis – a palavra em sânscrito é paramita (pha-rol-tu phyin-pa); geralmente traduzida como perfeições, mas eu prefiro a tradução mais literal: as atitudes de amplo alcance. Elas nos levarão muito, muito longe, até a outra margem, até a iluminação.
No budismo indiano há muitos sistemas diferentes, e em um deles (chamado Svatantrika), de acordo com esse sistema, apenas no estado de um buda as seis atitudes de amplo alcance teriam de fato um sentido de perfeições. Apenas nos tornamos bodhisattvas quando temos a bodhichitta espontânea. Enquanto bodhisattvas (e antes mesmo de nos tornarmos bodhisattvas, quando fazemos os votos de bodhisattva) não temos que passar pelo processo de pensar que “todas as pessoas foram minhas mães” para de fato sentirmos isso, pois temos esse sentimento o tempo todo, dia e noite. Entretanto, o processo, os estágios anteriores ao estado búdico, as seis atitudes de amplo alcance, são apenas uma aproximação do verdadeiro estado búdico.
No sistema Prasangika, os dois estágios – aquele que inicia nos votos de bodhisattva e vai até o estado búdico, e o estado búdico em si – ambos são chamados de “atitudes de amplo alcance”.
Portanto, independentemente do sistema que seguimos, estamos falando sobre a mesma coisa. Mencionei isso porque há escolas tibetanas que seguem o sistema que mencionei primeiro e outras que seguem o segundo.
As Dez Perfeições (Dez Paramitas)
Há também uma explicação de dez paramitas, na qual as quatro paramitas adicionais são basicamente divisões da sexta, que é a consciência discriminativa de amplo alcance, ou a perfeição da sabedoria, prajnaparamita. Portanto, quando falamos de seis, ou, em um formato mais completo, de dez atitudes de amplo alcance, trata-se de estados mentais ou atitudes, que não são necessariamente um tipo de comportamento, embora moldem nosso comportamento. Nós agimos, colocamos essas atitudes em prática, fazemos o melhor que podemos de acordo com cada situação, com nossas habilidades, e assim por diante. Estamos tentando desenvolver essas atitudes, esses estados mentais. Shantideva deixou isso muito, muito claro.
Tampouco deveríamos pensar que um sistema de dez atitudes de amplo alcance existe apenas no Mahayana. Também o temos no Hinayana e no Theravada. Trata-se de um conjunto de dez paramitas ligeiramente diferentes: muitas delas são iguais, mas algumas são diferentes. Conforme mencionamos, a diferença entre Hinayana e Mahayana – já que ambos têm muitas práticas em comum – é a dedicação da força positiva para alcançar a libertação ou a iluminação. Nos dois casos, as dez paramitas são praticadas com a dedicação de que a força positiva gerada pela prática possa contribuir para a libertação de quem pratica.
Nunca deveríamos pensar que os praticantes do Hinayana não trabalham para beneficiar os outros, não são generosos, pacientes e assim por diante. É claro que são. E eles têm amor, desenvolvem compaixão, e todas essas coisas. Os textos do Mahayana levam a perspectiva do Hinayana ao extremo – dizem que quem a pratica apenas trabalha de forma egoísta para se autobeneficiar, e não se importa com os outros – para evidenciar os extremos que devemos evitar. Não devemos pensar, especialmente hoje em dia, que os praticantes do Theravada são assim. É possível achar praticantes do Mahayana que são assim, da mesma forma que se pode achar praticantes do Hinayana que são assim.
Esse é um método usado na escola Prasangika do Mahayana, Madhyamaka, que tira conclusões absurdas e extremas para ajudar as pessoas a evitar os perigos que podem advir de certas formas de pensamento. Assim como a conclusão extrema e absurda de trabalhar para alcançar a libertação seria tornar-se completamente egoísta e não se importar com mais ninguém – a pessoa não faz nada para ajudar os outros, não tem amor nem compaixão – da mesma forma, pode-se dizer que a conclusão absurda e extrema do Mahayana seria apenas focar em ajudar todo mundo e ajudar todas as pessoas, mas nunca trabalhar para superar a própria raiva e o apego e assim por diante, o que seria igualmente um grande equívoco. Precisamos entender a metodologia usada aqui e não cair na posição muito equivocada do sectarismo, pensando que o Mahayana critica fortemente o Hinayana. Por isso, nos votos de bodhisattva há muitos deles que visam não rebaixar o Hinayana.
Portanto, temos aqui o sistema abreviado e básico das seis perfeições, que são:
- generosidade (sbyin-pa)
- autodisciplina ética (tshul-khrims)
- paciência (bzod-pa)
- perseverança (brtson-’grus)
- estabilidade mental (bsam-gtan, concentração)
- consciência discriminativa (shes-rab, sabedoria).
A Diferença entre a Consciência Discriminativa e a Consciência Profunda
Em inglês, a palavra “sabedoria” é usada para traduzir tantos termos técnicos diferentes, que o uso desta palavra faz com que se percam todas as distinções entre esses termos, portanto costumo usar consciência discriminativa para a sexta perfeição.
Faço uma distinção na tradução entre duas palavras tibetanas – também diferentes em sânscrito – que são frequentemente traduzidas em inglês apenas como “wisdom”, sabedoria (e então perde-se a diferença entre ambas as palavras). Uma delas é a consciência discriminativa; sherab (shes-rab) em tibetano, ou prajna em sânscrito. E a outra é a consciência profunda; yeshe (ye-shes) em tibetano, ou jnana em sânscrito. Ambas são bem diferentes. Vou explicar a diferença.
Embora haja muitas diferentes formas de usar cada uma dessas palavras, se tentarmos ser um pouco mais claros, a definição do termo consciência discriminativa adiciona certeza ao ato de distinguir. O ato de distinguir – frequentemente traduzido como reconhecer – tem a ver com distinguir que algo é isso e não aquilo. Trata-se de discriminar entre o que é construtivo e destrutivo; entre o que é útil e inútil, entre o que é adequado e inadequado; entre o que é exato e inexato, no que se refere ao que corresponde e não corresponde à realidade. Geralmente, é associado com vacuidade (vazio). Trata-se do entendimento de vacuidade que discrimina que as coisas não existem de formas impossíveis; elas existem de uma forma realmente possível. Essa é a consciência discriminativa.
Até mesmo uma minhoca tem essa consciência. Uma minhoca consegue discriminar – ter bastante certeza – que isso é comida e aquilo não é comida. Uma vaca consegue discriminar entre a porta aberta do estábulo e a parede do estábulo, e não bater contra a parede. Assim sendo, “sabedoria” não é a melhor tradução para este termo.
Quando falamos em termos de vacuidade, a consciência discriminativa discrimina apenas a verdade mais profunda das coisas, a vacuidade. Por outro lado, a consciência profunda, é a consciência das duas verdades, ou as duas verdades juntas, ou uma verdade dentro do contexto da outra. Mas a consciência profunda faz parte da natureza búdica, é algo muito profundo que todos possuem, portanto, ela se refere à consciência semelhante a um espelho (me-long lta-bu’i ye-shes) (à capacidade de absorver informações), à consciência equalizadora (mnyam-nyid ye-shes) (ver padrões, tirar conclusões), à consciência individualizadora (sor-rtog ye-shes) (ser consciente da individualidade disso ou daquilo) e assim por diante.
No que se refere a esses aspectos da natureza búdica, a minhoca também os tem. Assim sendo, novamente, é um pouco estranho chamá-los de sabedoria.
O termo consciência profunda pode ser usado de forma ligeiramente diferente nas diferentes tradições tibetanas. Mas em todo caso, não se trata da consciência discriminativa. Na Gelug, ele é usado para descrever aquilo que um arya (’phags-pa) tem – alguém com uma cognição não-conceitual da vacuidade – como um significado adicional da palavra.
Duas Redes (Duas Coleções)
Para alcançar a iluminação – para alcançar qualquer um dos objetivos espirituais dentro do budismo – precisamos fortalecer e estabelecer as duas redes. Todos nós possuímos essas duas redes até um certo ponto, como parte da natureza búdica; não começamos do zero. Mas temos que fortalecê-las, estabelecê-las cada vez mais. Dependendo de como nós as dedicamos, elas podem ser edificadoras do samsara (quando não fazemos nada, nenhum tipo de dedicação, e apenas desejamos melhorar o samsara para nós mesmos), edificadoras de libertação (quando as dedicamos à libertação) ou edificadoras da iluminação (dedicamos as duas para alcançar a iluminação). Novamente, a dedicação é extremamente crucial aqui.
Essas duas redes – são chamadas de redes, pois tudo nelas se conecta, se comunica e se reforça mutuamente. E elas crescem; não é como uma coleção de selos. Uma delas geralmente é traduzida como coleção de méritos (bsod-nams-kyi tshogs, sct. punyasambhara), mas não se trata de uma coleção de pontos. Mérito significa força positiva – portanto, trata-se da rede de força positiva – que vem de realizar ações positivas, e assim por diante. Depois, há a rede de consciência profunda (ye-shes-kyi tshogs, sct. jnanasambhara), que às vezes também é chamada de rede de sabedoria, mas é um termo diferente do que aquele usado para a consciência discriminativa. Portanto, é claro que ajudar os outros sem fazer nenhuma dedicação melhorará nosso samsara; mas se não dedicarmos a ajuda para a libertação ou para a iluminação, ela não contribuirá nesse sentido.
Atribuindo as Perfeições às Duas Redes
Temos um sistema na apresentação Mahayana no qual dividimos as seis atitudes de amplo alcance em duas redes. No Prasangika, uma divisão especial do Mahayana, há outra maneira de dividir as atitudes. As seguintes perguntas nos ajudam a entender este processo: “Qual o propósito dessas redes? Qual a função delas?” Como também expliquei no início desta semana, as atitudes podem ser divididas de muitas maneiras, mas na iluminação temos os assim chamados Corpos de buda ou Corpus, pois em realidade se trata de uma rede de muitas, muitas coisas e não apenas um corpo parecido com o nosso. Assim temos o Dharmakaya (chos-sku, Corpus que Abrange Tudo), que é toda a rede da mente onisciente de um buda, a vacuidade dessa mente e assim por diante. Depois, há a rede das formas iluminadoras (gzugs-sku, Skt. Rupakaya, Corpus de Formas), para que haja as formas sutis (Sambhogakaya (longs-spyod rdzogs-pa’i sku, Corpus de Pleno Uso)) e as formas grosseiras (Nirmanakaya (sprul-sku, Corpus de Emanações)). Há muitas, muitas formas nas quais um buda pode surgir – milhões de formas – simultaneamente, por isso chamamos a isso de rede; não se trata de apenas um corpo. Um buda sabe de tudo simultaneamente. Portanto, não se trata de um corpo. É uma rede.
Assim sendo, essas duas redes edificam a iluminação. No budismo, falamos de muitos tipos diferentes de causas – seis tipos diferentes de causas – e muitos tipos diferentes de condições. É muito, muito complexo. Mas em realidade há apenas um tipo de causa: poderíamos compará-la à massa usada para fazer pão. É a substância que vira pão, mas quando o pão está pronto a massa não existe mais. De certa forma, depois de assada, a massa se transforma em pão. Tais causas são chamadas de “causas de obtenção” (nyer-len-gyi rgyu).
Essas redes edificadoras da iluminação são como a massa: elas se transformam, são a substância – advinda da rede de força positiva – que se transforma na rede de formas iluminadoras, que ajuda os seres. A rede de consciência profunda é a massa que se transforma na rede do dharmakaya, a mente onisciente de um buda. Mas é preciso realizar as duas. Elas se apoiam mutuamente. Não é possível apenas conquistar uma delas enquanto trabalhamos na outra. Elas têm que ser conquistadas juntas.
Portanto, para cada uma delas, a outra age como a massa. Para cada uma das redes iluminadoras de um buda, uma das redes edificadoras de iluminação agirá como a massa e a outra será como o calor do forno. A massa não se transformará no pão sem o calor do forno. Dessa forma, elas se apoiam mutuamente. É preciso ter ambas para conquistar qualquer um dos corpos de um buda – cada um dos corpos, os “corpus” de um buda, as redes de um buda.
Como eu disse, há duas formas de dividir as seis atitudes de amplo alcance nessas duas redes edificadoras de iluminação. Teremos que examinar uma de cada vez para que vocês entendam e eu possa responder às perguntas. Então agora lhes daremos a lista, de acordo com o Mahayana geral, de quais das seis contribuem para cada uma das duas redes de amplo alcance e edificadoras da iluminação.
De acordo com esse sistema, para a rede edificadora da força positiva, antes de tudo vem a generosidade, depois a disciplina ética. Em seguida, a paciência, que tem três formas diferentes. Duas delas – a paciência de não ficar com raiva nas dificuldades com outras pessoas e a paciência de não ficar com raiva de seus próprios problemas – contribuem para a rede de força positiva.
Quais delas contribuem para a rede de consciência profunda? Antes de tudo, a atitude de amplo alcance da consciência discriminativa, e a estabilidade mental de amplo alcance, e o terceiro tipo de paciência, a paciência de não se frustrar com as dificuldades de praticar o dharma.
A atitude de amplo alcance do entusiasmo, ou da perseverança, contribui para as duas redes e as fortalece.
Já no kalachakra fala-se em três redes edificadoras da iluminação. A terceira aqui é a rede da disciplina ética. Nesse esquema de classificações, a disciplina ética – que, no mahayana geral, contribui para a rede de força positiva – é abordada separadamente e forma a rede da disciplina ética.
Mais Detalhes sobre a Atribuição das Perfeições às Duas Redes
No que diz respeito à classificação geral das seis atitudes de amplo alcance dentro das duas ou três redes, não ajuda muito pensar: “Trata-se apenas de um esquema intelectual. Não significa nada.” Mas podemos questionar: “O que se transformará em todas essas formas e assim por diante, que nos farão ser budas, capazes de realmente ajudar os outros?” A generosidade, mais especificamente, ajudar os outros. Precisamos da disciplina de ajudar e não machucar os outros. E também precisamos ser pacientes e não nos frustrar ao tentar ajudar os outros, pois não será sempre fácil, e ser pacientes com nossos próprios problemas e imperfeições enquanto tentamos ajudar os outros – trabalhar com eles e, é claro, em nós, mas não desistir. Portanto, esta combinação é o que se transformará em ter todas as formas e habilidades de um buda para ajudar os outros.
O que se transforma na mente de um buda? Bem, é claro que precisamos ter a consciência discriminativa. Precisamos ter estabilidade mental, o que significa, além de ter concentração, não nos agitarmos com altos e baixos, humores e emoções perturbadoras, e assim por diante. E precisamos de paciência para não nos frustrarmos com as dificuldades da prática do dharma, especialmente no que se refere à meditação e tentar conquistar a assim chamada sabedoria. Isso é o que se transformará na mente de um buda.
E precisamos de perseverança para as duas coisas. A grosso modo: precisamos persistir, não desistir, e realmente nos alegrar quando ajudamos os outros e quando meditamos. Essas ações contribuem de duas maneiras: ao ajudar os outros, acumulamos força positiva – para explicar de uma forma bem simples – e também fortalecemos a consciência profunda ao meditar. É claro que ajudamos os outros e meditamos justamente sobre acumular força positiva e fortalecer a consciência profunda. Estou apenas falando de forma simplificada para que seja mais fácil de entender.
Não importa o que estivermos fazendo, temos que persistir e não desistir. Isso é perseverança. E sentir alegria ao fazer isso, ao invés de pensar: “Nossa, isso é horrível. Odeio isso, mas vou fazer de qualquer maneira, pois me sinto obrigado a fazer e me sentiria culpado caso não fizesse.” Desfrutem: “Adoro meditar, adoro ajudar os outros. Isso me traz uma grande alegria.” Ou: “Adoro traduzir. Isso me dá um grande prazer. Nada me faz mais feliz do que fazer isso.”
Shatideva escreveu:
(VII.64) Embora as pessoas ajam com o intuito de serem felizes, não podem ter certeza se alcançarão a felicidade; mas para [um bodhisattva] cujas ações realmente proporcionam felicidade, como ele poderia ser feliz sem essas ações?
Em outras palavras, se seu trabalho lhe traz felicidade, você ficará infeliz se não trabalhar. E não estamos falando daqueles viciados em trabalhar dentro de um escritório. Estamos falando de ajudar os outros. Quando não estamos fazendo algo que beneficie os outros, não nos sentimos realmente felizes. “Sempre quero fazer algo para ajudar os outros. Isso é o que dá mais alegria à vida.” É disso que falamos quando mencionamos a perseverança alegre. Não importa o que estivermos fazendo para ajudar os outros – cuidando de nossos filhos, trabalhando em um negócio que visa ajudar os outros de alguma forma, ensinando o dharma. Não importa. Fazemos aquilo que somos capazes de fazer.
Outra forma de atribuir as seis perfeições às duas redes é a encontrada no sistema Prasangika de acordo com a tradição Gelug, formulada por Tsongkhapa. As primeiras tradições tibetanas – Nyingma, Sakya, e Kagyu – têm um entendimento diferente da posição Prasangika. Tsongkhapa diferencia as seis perfeições de acordo com as duas verdades. A consciência discriminativa de amplo alcance da verdade mais profunda, da vacuidade, contribui para a rede de consciência profunda, para a mente de um buda. E todas as outras, incluindo a consciência discriminativa do que é benéfico e do que é prejudicial, contribuem para a rede de força positiva, para os Corpos de Forma de um buda. Portanto, trata-se apenas de outra forma de classificação, de acordo com as duas verdades.