Liberando o Eu Convencional da Insegurança

Revisão

Estamos discutindo como desenvolver o self de uma maneira saudável, através dos estágios graduais do lam-rim, e vimos que temos um self convencional, que existimos. Esse self convencional é aquilo que pode ser rotulado, representado ou entendido em termos daquilo que estamos vivenciando a cada momento. Mas “eu” não é apenas uma forma de nos referirmos a cada momento de nossa experiência, a questão é: como tomamos conhecimento do “eu”. Como tomamos conhecimento de nós mesmos? Nos conhecemos somente em termos da experiência, da experiência de cada momento de nossa vida. E podemos entender nossa existência correta ou incorretamente. Quando pensamos no self convencional como se existisse de uma maneira impossível, na verdade, estamos pensando em termos de um falso “eu” – esse é o self que temos que refutar. Para que consigamos fazer qualquer coisa em nossa vida, no que diz respeito à nossa situação, para melhorar a qualidade de nossa vida, para superar o sofrimento e os problemas, precisamos de um sentido saudável de “eu” – o “eu” convencional”. Caso contrário, não nos importaremos com aquilo que vivenciamos e não nos esforçaremos para cuidar de nossa vida.

Quando começamos a progressão de entendimentos e insights do lam-rim, que constituem o caminho gradual, começamos a apreciar nossa vida humana preciosa. Quando apreciamos o fato de sermos livres, pelo menos temporariamente, de situações piores que nos impediriam de fazer coisas construtivas com nossa vida, e quando percebemos como nossa vida é enriquecida pelas oportunidades de fazer algo construtivo, passamos a nos apreciar muito, a apreciar esse “eu” convencional. Sendo mais preciso: apreciamos a situação que temos e isso nos leva a ter uma atitude mais positiva conosco. Ao invés de pensar “pobre de mim” e reclamar, sentimos muita gratidão por nossa situação. Em outras palavras, olhamos para as boas características ao invés de olhar para as características negativas. Não negamos os problemas de nossa vida. A vida de todo mundo tem problemas, mas reclamar e ficar remoendo não ajuda.

Nos ensinamentos, existe uma orientação sobre como nos relacionar com o professor espiritual: não negue seus defeitos, mas focar neles também não ajuda. Ao invés de focar nos defeitos, olhamos para as boas qualidades, pois são inspiradoras. Da mesma forma, quando olhamos para as boas características de nossa situação de vida, de nossa vida humana preciosa, nos inspiramos a ter uma atitude mais positiva em relação a nós mesmos.

Também constatamos que temos esta situação agora, esta vida humana preciosa, mas ela não vai durar A morte certamente chegará e, antes disso, se vivermos o bastante, passaremos pela velhice e talvez doença. Portanto, como somos gratos por nossa vida humana preciosa, temos um sentimento bom a nosso respeito, e como queremos ser felizes, não queremos que isso acabe quando morrermos. Queremos ser capazes de continuar. Pois vimos que qualquer que seja nossa crença – renascimento ou em vida após a morte ou em qualquer outra coisa – no final tudo se resume a pensar que vamos continuar para sempre, mesmo quando pensamos em termos de “agora eu estou morto”. Bom, eu estou morto para sempre, então existe um “eu” que está experimentando estar morto, ou ser um Grande Nada. Portanto, obviamente gostaríamos de ser felizes nesse Grande Nada.

E não queremos ser infelizes, ou seja, não queremos ter renascimentos piores em vidas futuras. Já começamos a nos cuidar, e não só em relação a este momento, mas também em relação ao futuro; e não só ao futuro desta vida, mas também de vidas futuras. Essa é uma atitude ainda mais construtiva e saudável no que diz respeito a cuidarmos de nós mesmos. E a atitude mais saudável que podemos ter é buscar alguma maneira de evitar o sofrimento, de evitar os problemas.

Isso diz respeito a buscar uma direção segura, buscar uma maneira de evitar o sofrimento, pois “Tenho medo de sofrer, realmente não quero isso”. Então realmente damos essa direção em nossa vida, a direção indicada pelo Buda, o dharma e a sangha. E, no nível mais profundo, isso seria alcançar o verdadeiro cessar das causas dos problemas;, portanto, o verdadeiro cessar do sofrimento; e também seria obter o entendimento, o verdadeiro caminho que nos levará a isso, o caminho que os budas percorreram em sua totalidade e a Arya Sangha parcialmente.

Vimos que a primeira coisa que precisamos fazer para seguir nessa direção – na direção segura – é evitar as causas da infelicidade, ou do assim chamado “sofrimento do sofrimento”, que é a dor e o sofrimento grosseiro. Era nisso que estávamos pensando quando pensamos nos renascimentos piores; realmente não queremos experimentar isso. Portanto, primeiro tentaremos trabalhar para nos livrar das causas desse tipo de experiência. Se realmente nos preocuparmos conosco, nos levaremos a sério e levaremos o que experimentamos à serio.

Isso significa que precisamos entender que, se estamos experimentando infelicidade, ela é o resultado do comportamento destrutivo. E se estamos experimentando felicidade, ela é o resultado do comportamento construtivo, ou seja, de evitar agir destrutivamente quando sentimos vontade de assim o fazer. Podemos pensar em comportamentos destrutivos como matar, roubar, mentir, nos forçar sexualmente nos outros etc. Isso está sob influência das emoções perturbadoras – desejo sexual, ganância, raiva e ingenuidade. Quando experimentamos essas emoções perturbadoras que nos fazem agir compulsivamente de maneira destrutiva, podemos notar, pela definição de emoção perturbadora, que é um estado mental que nos faz perder a paz. Nos sentimos desconfortáveis – basicamente infelizes – e perdemos o autocontrole. Consequentemente, agimos compulsivamente. Essa é a definição de emoção perturbadora.

Quando agimos destrutivamente, com um estado mental perturbado e basicamente infeliz, onde não há paz, é como levantar uma pedra e colocá-la em um pedestal – para usar o exemplo que meu tradutor usou em nossa conversa vindo para cá.  Quando você executa essa ação, a energia cinética transforma-se em energia potencial na pedra, que agora está no topo do pedestal. Há energia potencial na pedra. Portanto, como na lei da conservação da matéria e da energia da física, a energia cinética transformou-se em energia potencial e, com as várias circunstâncias possíveis, se o pedestal for derrubado, a energia potencial se transformará em cinética novamente, quando a pedra cair – ela produzirá calor ou algo assim quando bater no chão.

Portanto, [quando agimos destrutivamente] o potencial cármico amadurece na forma de mais comportamentos destrutivos – a energia cinética. Se você pensar em termos do processo da energia cinética ser transformada em energia potencial e depois novamente em cinética, verá que a coisa toda é destrutiva, com emoções destrutivas, e infeliz. Começa a fazer sentido sentirmos infelicidade como resultado do comportamento destrutivo, pois o comportamento destrutivo é executado com um estado mental que não é feliz.

Portanto, nesse nível inicial, exercitamos basicamente o autocontrole: quando sentimos vontade de agir de forma destrutiva, quando sentimos a tensão de querer mentir ou machucar alguém ou dizer uma grosseria, nos abstemos, pois percebemos que só vai produzir mais infelicidade e sofrimento.

Se agirmos assim, conseguiremos evitar renascimentos piores e a infelicidade óbvia, pelo menos nas vidas futuras imediatamente subsequentes a esta. Pelo menos provisoriamente, pois ainda não nos livramos completamente da causa. A princípio, o que estamos tentando evitar, neste nível, é que em nossa próxima vida renasçamos em estados piores. Porém, mesmo que consigamos uma vida humana preciosa, ainda teremos momentos de infelicidade. Ainda não conseguimos nos livrar completamente disso, mas pelo menos podemos lutar e conseguir novamente uma vida humana preciosa. É isso que realmente queremos. Queremos conseguir continuar neste caminho espiritual.

A Felicidade Comum e Insatisfatória

Agora, no escopo intermediário, [nos damos conta de que] basicamente temos um renascimento feliz. Porém, temos que nos lembrar o que acontecia em termos do nível inicial, quando agíamos construtivamente. Quando agíamos de forma construtiva estávamos evitando agir compulsivamente de forma destrutiva, apesar de sentirmos vontade. Para isso, foi preciso força de vontade e autocontrole –  portanto, um desenvolvimento saudável do self – como no exemplo simples de acordar de manhã, cuidar dos filhos e ir para o trabalho. Precisamos de autocontrole para não continuarmos deitados na cama e força de vontade para nos levantar. Isso, assumir uma responsabilidade, é ter um sentido saudável de self. Mas, o que está por trás do autocontrole e da força de vontade é um sentimento muito forte de haver um “eu” sólido – de “eu tenho que estar no controle, eu tenho que fazer isso”. Portanto, é um sentimento muito forte de haver um “eu” e de que “eu deveria ter conseguido me controlar”, e sentimos culpa e assim por diante. Isso está na direção do falso “self”.

Esse conceito é o conceito de um self que deveria estar no controle, independente das causas, condições ou qualquer coisa que estivesse acontecendo; um self que deveria agir independente de causas e condições. Mas isso é impossível. Portanto, poderíamos dizer que isso é ter uma “atitude perturbadora” conosco: uma atitude perturbadora no que diz respeito a como nos vemos: Eu deveria estar no controle, independente de qualquer coisa. E apesar desse estado mental ser basicamente um estado de paz, pois não estamos sob influência de uma emoção perturbadora como a raiva ou a desejo sexual – “Ok, agora estou no controle e posso agir controladamente” – ele se torna compulsivo. Ainda existe um carma aqui; é a compulsividade de “Eu tenho que me controlar”. O exemplo que usamos foi de um perfeccionista compulsivo, que limpa a casa compulsivamente; ser compulsivo e muito, muito engessado em termo de ética. 

Que tipo de felicidade vivenciamos como resultado disso? A felicidade que não dura. Por exemplo, você é perfeccionista no que diz respeito a limpar a casa. Você limpa, mas nunca fica satisfeito, então tem de limpar de novo e de novo. Ou, digamos que esteja revisando um artigo, e é perfeccionista – você não sabe quando parar, você nunca está satisfeito. Essa felicidade é chamada de “sofrimento da mudança”.  E podemos estender isso para outras áreas de nossa experiência: nenhuma felicidade que vivenciamos dura. A experiência vai mudando; você come uma refeição e realmente a aprecia, mas, se continuar comendo, sem parar, vai acabar doente. Esse é o sofrimento da mudança, a nossa felicidade comum.

Desconstruindo Concepções Errôneas sobre o Self

Construímos um sentido saudável de self em termos do self convencional: Sou responsável por minhas ações; sou responsável pelo que vivencio; preciso fazer alguma coisa para eliminar as causas da infelicidade. Agora queremos eliminar até mesmo as causas desse tipo de felicidade que não satisfaz. Qual o problema aqui? Qual é a causa do problema? O que vemos é que temos de começar a desconstruir nossas concepções errôneas, com as quais nos concebemos em termos de um falso “eu”.

Deixe-me explicar de uma forma mais simples: concebemos o “eu” convencional (“Eu estou fazendo isso”, “Eu estou fazendo aquilo”; “Eu estou vivenciando isso”, “Eu estou vivenciando aquilo”) como um tipo de entidade sólida, o “eu” dentro de nossa cabeça, que é o autor ou a voz. É aquele que diz: “O que será que devo fazer agora, o que as pessoas estão pensando de mim”? É aquele que se preocupa consigo, aquele que está sentado, como se operando uma máquina, o corpo – “O que será que devo fazer agora? Bom, vou fazer isso”, e pressiona um botão e faz o corpo agir de uma determinada forma ou a voz dizer alguma coisa, e recebe todas as informações nas telas de vídeo e nos autofalantes dos sentidos. É aquele que está sentado na sala de controles dentro do cérebro e falando ao microfone dentro da cabeça, de forma que só você consegue ouvir.  

Isso é uma fantasia, uma ficção. Não há nada que seja assim. Não existimos dessa maneira. Porém, acreditamos que somos assim, que há esse “eu” sentado lá. Então, de que forma vivenciamos isso? Vivenciamos na forma de um sentimento de insegurança. Claro que é inseguro, pois simplesmente não existe. Como poderia sentir-se seguro? Por isso temos todas essas estratégias, para tentar deixar esse “eu” seguro.

“Se “eu” conseguisse apenas adquirir algumas coisas, “eu” me sentiria mais seguro”. Temos desejo, e depois que conseguimos obter o que queríamos, não queremos mais largar – portanto, apego. E quando temos um pouco, queremos mais – portanto, ganância. Achamos que, de alguma forma, isso nos deixará seguros – “Se eu tivesse dinheiro suficiente”. “Se eu tivesse mais curtidas na minha página do facebook”, ou o que quer que seja – “isso “me” deixará seguro”. Mas é claro que não deixa. Nunca deixa.

Uma outra estratégia – estamos falando de emoções perturbadoras aqui – é afastar as coisas que de alguma forma ameaçam a “minha” segurança. Então sentimos raiva, aversão, hostilidade, essas emoções perturbadoras. Ou temos ingenuidade – “Eu simplesmente não quero pensar sobre algo que pode ser uma ameaça”. Negação – erguer um muro. De algum modo, atrás dos muros da negação e da ingenuidade “eu” estarei seguro. E claro que nunca estamos seguros. Sempre nos sentimos inseguros quando estamos atrás do muro, achamos que alguma coisa vai conseguir ultrapassá-lo.

Essas são as emoções perturbadoras que sentimos. Como nos sentimos inseguros, usamos esses mecanismos, e eles, por sua vez, nos levam ao comportamento destrutivo de roubar para conseguir o que queremos, matar para destruir o que não gostamos, ou simplesmente não lidar com as coisas, você sabe, por ingenuidade. Tudo isso tem como base uma concepção errônea a respeito do self – achar que existimos como esse falso “eu”.

Essa crença no falso “eu” também está subjacente ao comportamento construtivo, ao comportamento construtivo obsessivo compulsivo. O comportamento construtivo não precisa ser compulsivo, não precisa estar baseado nessa crença no falso “eu”, porém, aqui estamos falando do comportamento cármico, do comportamento compulsivo. O que está subjacente ao perfeccionismo obsessivo compulsivo – que foi o exemplo que demos de comportamento construtivo – ainda é a crença no falso “eu”.

Atitudes Perturbadoras

Nesse caso, não temos necessariamente emoções perturbadoras; mas temos atitudes perturbadoras. Atitudes perturbadoras podem estar subjacentes às emoções perturbadoras ou podem estar sozinhas. A mais proeminente das atitudes perturbadoras possui um nome técnico difícil: é uma “visão confusa em relação a uma rede transitória”. Explicarei o que isso significa.  

  • “Rede” são os nossos agregados – todas as coisas que perfazem cada momento de nossa experiência.
  • Ela é “transitória”, o que significa que muda com o tempo.
  • E temos uma “visão confusa” dessa rede – uma visão incorreta em relação ao que estamos experimentando; essa rede está mudando o tempo todo.

E o que, afinal, é essa atitude?  Se olharmos para as definições e descrições dos textos, é como – gosto de usar a analogia de uma rede de pescador – é como se você estivesse jogando essa rede do “eu”, simplesmente o “eu”, ou o “eu como possuidor de algo”, “eu como possuidor de algo que é ‘meu’”.

Normalmente, pensamos nisso em termos de um corpo jovem, por exemplo. Jogamos a rede do “eu” identificados com esse corpo jovem – isso sou “eu”. E nos agarramos a isso com a atitude perturbadora da confusão, no sentido de achar que “isso é permanente”. Você se olha no espelho, vê o cabelo branco e diz: “esse não sou eu”. [Essa atitude perturbadora] faz com tenhamos uma imagem fixa do “eu”. Jogamos a rede do “eu” em algum dos agregados – digamos que seja o corpo – e nos identificamos com ele. Você sabe, “eu, eu sou gordo”, e então compulsivamente você começa a fazer regime e tentar perder peso, perde um quilo e fica um pouco feliz. Mas essa felicidade não dura, e você tem que perder outro quilo.  Podemos ter essa mesma atitude no que diz respeito à alimentação saudável. Não há nada de errado em alimentar-se de forma saudável, mas quando isso se torna uma compulsão, com base na ideia de que “eu tenho que ser magro”, fica um tanto neurótico, como diríamos no ocidente.

O mesmo acontece com “meu”: “eu, sou eu quem possui as coisas, sou o controlador das coisas”. Isso tem a ver com o exemplo de que estávamos falando: jogamos a rede do “eu” em uma situação que vivenciamos e achamos que “eu deveria ser capaz de controlá-la”. Esse “eu” sólido que é o chefe dentro da minha cabeça – “eu deveria ser capaz de controlar, e se não conseguir, serei culpado”. Essa é a atitude destrutiva que está por trás de jogar a rede do “eu” – “eu” o controlador, “eu” o que possui – em tudo o que vivenciamos.

Imaginamos que: “Se conseguir ter tudo sob controle, me sentirei seguro”. Bom, você pode sentir-se seguro, e também um pouco feliz, por alguns instantes, mas isso não dura, não é mesmo? Isto porque é impossível ter tudo sob controle. Você joga a rede do “eu” – “Vou corrigir todo mundo, vou corrigir os erros de todo mundo”. Ok, isso é construtivo, isso é positivo, mas é um pouquinho demais, não é? E é impossível ninguém nunca mais errar, não é mesmo? Pois são muito os fatores que fazem com que erros surjam e situações fiquem caóticas. Não somos um Deus todo poderoso. Isso é uma fantasia.

As emoções e atitudes perturbadoras subjacentes ao comportamento compulsivo destrutivo, e ao comportamento compulsivo construtivo, têm como base essa crença, essa concepção errônea de nós mesmos, de acreditar que existimos como esse falso “eu”, como esse controlador sólido dentro de nossa cabeça, para colocar de uma maneira bem simples. Por acreditarmos que somos isso, nos sentimos inseguros. Então, tentamos adquirir coisas para ele, [para esse “eu”], afastar coisas dele, construir  muros a sua volta ou jogar uma rede para tentar controlar tudo. E nenhuma dessas estratégias funciona, tudo o que criam são os altos e baixos incontrolavelmente recorrentes do samsara – nesta vida e em vidas futuras. Isso é o samsara.

Pense nisso por um momento, no que chamamos de “falso self”, o self a ser refutado. Ele está baseado em uma concepção errônea e na projeção de uma absoluta fantasia no self convencional; no que diz respeito a como o self existe. Existe um self, mas não é esse pequeno controlador sentado em sua cabeça atrás da mesa de controles. O “eu” convencional existe, isso é importante. Mas ele não está sentado atrás de uma mesa de controles. Por isso é tão importante que tenhamos desenvolvido os estágios anteriores. Se você for direto para este estágio, sem passar pelos estágios anteriores, sem livrar-se do controlador em sua cabeça, ficará sem nada. Então, “bom, porque fazer as coisas? Eu não existo mesmo”. Isso está errado. Portanto, é muito importante passarmos pelos estágios anteriores, para desenvolvermos um sentido saudável de “eu”, que se responsabiliza por sua vida e por aquilo que vivencia.

Como o Carma e o Renascimento Operam

Ok, agora começamos a desenvolver o que chamamos de “renúncia”, a determinação de nos livrarmos dos altos e baixos do samsara. Para acabarmos com essa síndrome de infelicidade seguida de felicidade que não satisfaz, e também do renascimento que sustenta tudo isso, precisamos nos livrar da base de tudo isso. Por que isso se perpetua? Por que temos esses – se pensarmos em termos do lam-rim – renascimentos que são a base para vivenciarmos esses altos e baixos da infelicidade e da felicidade que não satisfaz? Para [respondermos a essa pergunta], precisamos analisar o mecanismo através do qual o renascimento e essa síndrome recorrente operam; e isso está descrito nos “doze elos de originação dependente”.

Não é necessário agora repassarmos todos os doze elos. O que importa aqui são os elos que ativam os potenciais cármicos. Temos o que é normalmente traduzido como “anseio”; mas a palavra sânscrita quer dizer “ter sede”. Agora, o que acontece em nossa vida cotidiana, e vida após vida com o renascimento, é que vivenciamos essa infelicidade e a felicidade que não satisfaz e nos concebemos como sendo esse “eu” sólido dentro de nossa cabeça. Estamos morrendo de sede; essa é uma expressão em inglês – realmente estamos muito sedentos. 

A infelicidade é como estar realmente com sede e querer muito livrar-se dela; é uma sede de estar livre da infelicidade.  Quer dizer, obviamente há intensidades de sede e de vontade de livrar-se da infelicidade, como da sensação desagradável da sede. Mas esta é nossa mentalidade quando estamos infelizes, pois todo mundo quer ser feliz e ninguém quer ser infeliz.

E quando estamos com muita sede, se bebermos apenas um pouquinho, não é suficiente, certo? Você não quer se separar desse pouquinho de água, da garrafa d’água. Você quer ficar com ela. Esse é o nosso estado mental – realmente é uma emoção perturbadora – na felicidade e na infelicidade que experimentamos. Estamos constantemente sedentos.

E então temos o que às vezes é chamado de “apego”, mas que literalmente quer dizer uma atitude de obter – é aquilo que obtém o renascimento – jogamos ou lançamos [a atitude perturbadora]. Existe toda uma lista, mas o principal é que lançamos essa rede do “eu”, “De alguma maneira eu tenho que controlar e lidar com essa situação; tenho que me livrar disso”. Nos identificamos com esse “eu”; “eu” – “eu sou tão infeliz”, “eu sou extremamente infeliz”; “pobre de mim”, e a isso segue a depressão e tudo mais. Ou, “não consigo ser feliz, a felicidade sempre me escapa” – essas coisas que surgem quando lançamos essa rede do “eu” e do “eu que possui, que vivencia, o controlador dessa felicidade e infelicidade”.  

Essas duas coisas – ser sedento e ter a atitude de obter, lançar essa rede do “eu” em tudo – isso é o que ativa os potenciais cármicos. Como resultado desse processo de ativação, [conforme descrito pelo mecanismo] dos doze elos, renascemos compulsivamente. Mas você também pode pensar em termos desta vida: agimos compulsivamente para nos livrar da sede; tentamos satisfazê-la de uma maneira ou de outra, mas nunca conseguimos. Obviamente, a raiz de tudo isso é nossa falta de consciência do primeiro elo da originação dependente: nossa falta de consciência em relação a como existimos. Portanto, de alguma maneira temos que nos livrar dessa crença de que existimos como o falso self – esse pequeno “eu” sentado dentro de nossa cabeça e que tem muita sede; sedento e inseguro. Pense nisso.

É muito interessante analisarmos qual é a nossa atitude em relação à felicidade e à infelicidade. Realmente é muito interessante. Como lido com isso? Será que sou como uma pessoa sedenta no deserto? Lógico, primeiro você precisa importar-se com isso. Se não se importar, não fará coisa alguma. Mas já desenvolvemos um sentido saudável de self, como o qual nos importamos com aquilo que vivenciamos. Porém, será que nos importamos demais, como uma pessoa sedenta no deserto? Essa é a questão. Você sabe, uma pessoa desesperada e que está com tanta sede que pega qualquer coisa para beber na esperança de que isso a fará feliz. É muito interessante. E quanto mais você explora essa imagem, mais interessante fica. Talvez esse filme me faça feliz; talvez esse site me faça feliz; talvez essa pessoa me faça feliz; talvez essa comida me faça feliz. Estamos sempre com sede.

Ou será que erguemos o muro da música constante no nosso iPod, para que não tenhamos que pensar em mais nada? Isto é de uma ingenuidade tremenda: erguer um muro para não ter que lidar como as questões da vida, achar que talvez isso nos faça feliz. “Talvez isso me faça feliz e nunca mais terei que pensar sobre minha situação, e se eu negar tudo e suprimir com música constante, talvez isso me faça feliz” – claro que não fará. Você sempre precisará de outra música; uma só não é suficiente.

Perguntas

Negando Apenas o Falso “Eu”

Considerando esse termo sede literalmente, realmente ficamos com sede. Somos seres humanos e precisamos beber líquidos. Então do que estamos falando, de uma atitude neurótica obsessiva ou o que?

Por isso é tão importante não negar o “eu” convencional, negar apenas o falso “eu”. A maneira provisória de lidarmos com essa síndrome de felicidade/infelicidade, essa sede e assim por diante, é a atitude de “nada especial”. “Estou infeliz” – nada especial; já devia esperar isso da vida. “Estou feliz, mas a felicidade não durará” – bom, nada especial; afinal, o que eu esperava?

Assim, você não transforma o fato de estar feliz ou infeliz em um grande evento. Você não transforma o fato de estar com sede em um grande evento; se estiver com sede e tiver algo para beber, ótimo, beba. Mas não espere nunca mais ter sede. É claro que terá. Então não há nada de especial em beber; não há nada de especial em estar com sede, em termos do “eu” convencional. Você simplesmente lida com isso; mas não com o “eu” falso – “oh, se eu beber essa bebida perfeita, tudo ficará maravilhoso. E não a tire de mim!” – como um cachorro que fica olhando envolta para garantir que ninguém irá tomar sua comida. Não se deixe enganar pelos comerciais de televisão que mostram uma garrafa de refrigerante ou outra coisa qualquer: “Eliminador de sede! Isso acabará com todos os seus problemas”. Por favor!

Obtendo um Entendimento Profundo

No que diz respeito a esse self convencional; você disse que precisamos saber como ele existe, mas eu acho que saber não é suficiente. Como obter um entendimento que seja realmente profundo, do tipo que nos transforma? Como fazer isso?

Acho que o problema aqui é a forma como conceitualizamos isso. Existe um entendimento intelectual e existe um entendimento emocional, mais profundo. Mas quais são os parâmetros envolvidos nesse entendimento? É isso que precisamos analisar. Acho que um dos parâmetros envolvidos é a “certeza”. Qual o nosso nível de certeza? Quão convencidos estamos de que esse é o “eu” convencional e de que é assim que ele existe ou é assim que ele não existe?  Primeiro temos que estar realmente convencidos de que isso está correto.

Existe toda uma progressão de fatores mentais envolvidos. Precisamos distinguir entre como é e como não é; e então desenvolver consciência discriminativa – ter realmente certeza; e a seguir firme convicção – nada irá lhe dissuadir. Portanto, existe uma progressão.

  • Primeiro você distingue entre como é e como não é.
  • A seguir, consciência discriminativa – você discrimina. Isso dá mais certeza.
  • E depois, firme convicção – nada lhe fará mudar de ideia: “Estou realmente convencido”.

Agora, você pode dizer: “Isso ainda é intelectual”. Então, o que está faltando? Você precisa agir segundo esse entendimento; isso é parte do processo de se convencer. Uma parte de toda essa discussão [é convencer-se] de que, se agir com base na crença de que você é um falso self, isso produzirá infelicidade e sofrimento; porém, se conseguir livrar-se dessa crença e agir somente com base no eu convencional, não produzirá esse tipo de sofrimento. Então, para realmente convencer-se, você precisa colocar isso em prática, e então verá que os resultados seguirão o que diz os ensinamentos. Assim você realmente se convencerá.

Se você possui a compreensão correta, por que não tenta colocá-la em prática? Analise: “Bom, talvez eu ainda esteja em dúvida. Não estou muito certo. Tenho minhas dúvidas”. Então, você não está realmente convencido. Agora, você pode tentar com base em uma suposição: “eu presumo que seja verdade, então tentarei e verei se realmente é”. Por que não fazemos isso? Preguiça. Então você olha para todas as formas de preguiça e razões para ter preguiça: medo, má influência dos que dizem, “Isso é uma idiotice”; e assim por diante.

Esse tipo de entendimento transformador surge de muitas, muitas causas e condições. Não mistifique – acho que essa é a palavra – não faça com que seja algo místico: “oh, agora sofrerei uma profunda transformação emocional”. Não é uma experiência mística. Chegamos a esse ponto através de uma progressão muito racional, e acho que o parâmetro principal aqui é  o quão convencido você está, o quanto tem certeza de que isso é assim.

Renúncia, Consciência Discriminativa e Autodisciplina Ética

A seguir desenvolvemos renúncia. Já entendemos todo o mecanismo do renascimento incontrolavelmente recorrente e até mesmo dos altos e baixos de felicidade e infelicidade incontrolavelmente recorrente dentro de um renascimento. Renúncia é: “estou cansado disso; estou entediado, realmente entediado com isso; quero que pare, quero sair”. Isso requer um “eu” convencional muito forte, que tem essa força de vontade e determinação de realmente fazer alguma coisa para se liberar. Sem esse sentido saudável e forte de um “eu” convencional, você não conseguirá fazer nada. Por favor apreciem esse ponto. É preciso uma tremenda força de vontade para trabalhar rumo à liberação. “Eu vou fazer isso” – esse tipo de coisa; e ter confiança de que pode fazer.

Agora, para obter a liberação, entendemos que precisamos ter essa consciência discriminativa com a qual obtemos a convicção de que esse falso self – essa maneira de existir do self, do “eu” – não se refere a nada que seja real. Há o “eu” convencional: é o que pode ser rotulado ou imputado em um [contínuo mental individual] de momentos sempre mutantes dos agregados. Ele continua eternamente; e isso não é um problema. Mas ele não existe de uma maneira impossível. Então temos que refutar isso. Temos que nos livrar dessa crença.

Precisamos de uma concentração elevada a fim de permanecermos focados nesse discernimento e entendimento. Além disso precisamos ter disciplina ética a fim de desenvolver presença mental – presença mental é a cola mental –, para nos mantermos nesse estado, e vigilância, para verificar: será que estou desviando [a atenção]? Para desenvolver isso, precisamos de disciplina ética em relação ao comportamento grosseiro do corpo e da fala. Então podemos usar a força da disciplina ética para que a mente desenvolva concentração; e usamos essa concentração para permanecermos focados em como existimos realmente – na vacuidade, a ausência de formas impossíveis de existir. Portanto, para [desenvolvermos] uma disciplina ética elevada, concentração elevada e consciência discriminativa elevada, precisamos de um “eu” forte e saudável.

Qual é o “Eu” Que Estamos Tentando Liberar?

A questão central aqui é: qual é o “eu” que estamos tentando liberar? Precisamos entender como esse “eu”, que estamos tentando liberar, existe. Não queremos liberar o falso “eu”. Queremos liberar o “eu” convencional. Por isso, o primeiro nível de entendimento que precisamos ter é do self conforme definido pelas tradições indianas não budistas, pois é esse self que queremos refutar. Essas tradições também ensinam métodos para atingirmos a liberação. Porém, o que elas estão visando liberar é o falso “eu”.

Um “eu”, um self, que está separado de todo o sistema – é isso que essas tradições buscam: a liberação de um self que está separado de todo o sistema de altos e baixos do samsara e que está no controle para liberar a si mesmo. Se pensarmos bem, é muito interessante: existe um “eu” que está no controle de tudo; agora vou me liberar dessa infelicidade e da felicidade que não satisfaz e então ficarei fora de minha cabeça, pois quem quer sentar em frente a esse painel de controles idiota? E estarei liberto.

Não é engraçado, pois, na verdade, se analisarmos, esse é o conceito que temos sobre aquilo que estamos tentando liberar, não é? Estamos tentando liberar o falso “eu”, o falso self.

Vejamos as características desse falso eu. Queremos ter um self que não esteja sujeito às emoções perturbadoras e à compulsividade do carma. Isso está bem. Mas, se pensarmos em termos do falso “eu”, o que queremos obter é um “eu” que não é afetado por nada.

Estamos falando das três características da visão incorreta do self com base em alguma doutrina. A primeira é que é estático. Dizem ser “permanente”, mas vimos que mesmo no budismo pensamos em termos de um self eterno. “Permanente”, aqui, não significa eterno. Significa “estático”, algo que não é afetado por nada. O importante é que não é afetado por coisa alguma: é um fenômeno não condicionado.

Aqui está a confusão: não é que você tenha que perceber que o self não é afetado por nada; o que queremos é que esse self não seja afetado por emoções e atitudes perturbadoras. Mas claro que ainda seremos afetados pela compaixão e interesse pelos outros; ainda podemos ser afetados por muitas coisas. A concepção errônea é de que o falso self pode não ser afetado por coisa alguma. E esse é o self que os sistemas não budistas pensam em liberar; um self que não é afetado por nada, que [quando liberado] estará totalmente separado de todo o sistema, totalmente separado de tudo mais.

O que estamos observando, o que estamos inicialmente refutando é o self que é normalmente traduzido como (1) “permanente”, (2) “um” e (3) “independente”. Observando melhor:

(1) “Permanente” significa estático, que não é afetado por coisa alguma. [No budismo], basicamente só queremos que não seja afetado pela ignorância e pelas emoções perturbadoras, falta de consciência. Mas não há como ele ser algo que não possa ser afetado por nada.

(2) A segunda característica é “um”. O que isso significa? “Um” significa que não tem partes, uma mônada. Portanto, os principais sistemas que estamos refutando, os sistemas não budistas, são o Samkhya e o Nyaya Vaisheshika. O Samkhya e o Nyaya afirmam que que o self é inteiriço, uma mônada, e que permeia todo o universo; portanto, é do tamanho de todo o universo. E o Vaisheshika diz que o self é uma mônada sem partes, mas do tamanho de uma minúscula partícula, como a partícula da vida. O self não tem partes. Agora você precisa entender qual é a conotação de sem partes, de ser uma mônada. O que é relevante aqui?

Colocamos “sem partes” em nosso sistema interno de buscas e aparece a definição Vaibhashika do que é o um fenômeno verdadeiro mais profundo e um fenômeno verdadeiro convencional. Lá eles discutem “sem partes”, portanto essa é a conotação budista de “sem partes”. Vaibhashika é um dos sistemas filosóficos budistas.  A definição diz que quando analisamos algo que não tem partes, vemos que esse algo retém sua identidade individual verdadeiramente encontrável. Quando você analisa algo que tem partes, esse algo não retém sua identidade. Aqui está a mesa e suas partes. Quando a desmonto e separo suas partes, se eu olhar para todas as partes, nenhuma é a mesa. Portanto, as partes não retêm a identidade de mesa.

Mas, algo que não tem partes – e podemos usar o exemplo da menor partícula, da derradeira partícula – não pode ser dividido. Você tenta examinar, mas não importa o quanto examine, é sempre a mesma partícula, pois não possui partes. Portanto, retém sua identidade. Agora, se você aplicar isso ao self, ao self liberado, onde estará o erro? O erro estará no que isso implica, que o self não seria algo imputado em uma base que possui partes. O self, o self convencional, é imputado no corpo, mente, emoções e todas essas coisas que mudam o tempo todo. Portanto, nesse sentido, possui partes, como uma mesa, que é imputada em todas as suas partes. Possuímos todas essas partes: corpo, mente, emoções, etc.

Se o self fosse algo sem partes, não poderia ter uma base de imputação que tivesse partes. Não poderia haver um “eu” com seis anos, um eu com dezesseis anos, um eu com vinte anos, etc. Não poderia haver um “eu” em termos do corpo, mente, emoções, o que sinto e assim por diante. Teria de haver uma mônada sem partes. Isso é impossível; o que estão tentando fazer é liberar algo que não possui partes, que não é feito de nenhum desses constituintes (no sistema Samkhya seria os três constituintes: rajas, tamas e satva). Portanto, não é isso. No sistema budista diz-se que o self é imputado, mas não nesses três gunas, nesses três constituintes, e sim nos agregados.

Usando uma linguagem mais simples: os outros sistemas dizem que o self não é feito de coisa alguma; portanto não tem partes. Mas não pense que esse é o self que estamos tentando liberar, que não é feito de nada. O self é feito de corpo, mente e emoções e muda com a idade e assim por diante. É feito de coisas. Então, se analisarmos, será o corpo o self? Será a mente o self? O self não retém sua identidade em termos de suas partes.

(3) A terceira característica que queremos refutar é de um self que é independente de um corpo e uma mente, portanto, um self que possa existir separadamente de um corpo e uma mente, de uma base de imputação – isso é o que o Samkhya e o Nyaya Vaisheshika querem liberar. Então você teria um self totalmente separado do universo, separado de corpo e mente, separado de tudo – não teria uma base de imputação. Só para esclarecer, a segunda parte da definição desse falso self nega que ele tenha uma base de imputação; aqui, afirma-se que está totalmente separado de tudo o mais.

Now it becomes very interesting if you actually look at what these non-Buddhist systems say. Samkhya says that the self is a passive consciousness not made up of matter – the primal matter that they talk about. So it’s not the same as the physical faculty for sentience, which in our Western terms would be the brain. It’s not the same as the brain. The brain experiences happiness and unhappiness, this samsara. It’s the brain; it’s the physical basis that has that. But the self, just liberate the self. The self is this passive consciousness not connected with any brain, so that’s how I will become liberated from suffering and this unsatisfying happiness. Just realize that I’m separate from the brain; it’s the body that’s doing all of this, so who wants that? And that is how I will become what the liberated self will be; it doesn’t feel anything. A liberated self is this passive consciousness, but it doesn’t really know anything. It’s just, there it is.

Começa a ficar muito interessante se você observar o que dizem esses sistemas não budistas. O Samkhya diz que o self não é algo material e, portanto, não é parte do corpo. O self é consciente, mas essa consciência não toma conhecimento de coisa alguma, não sente felicidade ou infelicidade, prazer ou dor. O self é uma consciência passiva. Apenas o corpo sente prazer, dor, etc. A consciência entra no corpo e, em certo sentido, o ativa. Assim, o cérebro e o corpo passam a tomar conhecimento de felicidade, infelicidade, etc.; mas não o self. No Samkhya, a liberação serve para fazer com que o self pare de entrar em um corpo e, assim, libere-se completamente do mundo material. No estado de liberação, o self é pura consciência, mas é uma consciência passiva, ela não sabe nada. Simplesmente está lá.

Tomado por Êxtase.

Mas não está tomada por êxtase, porque isso é um sentimento. [E tal consciência] não possui sentimentos. É o cérebro que possui sentimentos. Isso é interessante, porque, de fato, muitos de nós gostaríamos disso, de simplesmente sermos tomados por êxtase. Mas sentimentos são físicos. Do ponto de vista Samkhya, sentimentos são apenas a atividade de elétrons ou neurônios; são apenas um processo químico que ocorre no cérebro. É algo físico. E, [para eles], o self não é físico, portanto, está separado de tudo isso.

O ponto de vista Nyaya Vaisheshika é de que o self não possui consciência. O Samkhya diz que possui uma consciência passiva; mas o Nyaya diz que não possui consciência, que não possui nenhuma característica. Que, na verdade, o que possui consciência é algo chamado “partícula da mente” e, portanto, o self não está associado a uma partícula da mente. Nos Estados Unidos, temos um brinquedo de montar com varetas e bolas. As bolas têm pequenos furos onde encaixamos as varetas e montamos várias coisas diferentes.  Eu sempre penso no sistema Nyaya Vaisheshika com algo assim. Essa é a maneira como o Nyaya Vaisheshika vê as coisas: existe o self, existe a partícula mental e existe um corpo e os sentimentos; as coisas são as pequenas bolas conectadas pelas varetas, sendo as varetas os diferentes tipos de relações – de posse ou aquisição, esse tipo de coisa. É uma visão muito física de como as coisas são conectadas. E simplesmente diz: “Bom, o self é algo que não está conectado a nada, tudo o que você precisa fazer é desconectá-lo”. Portanto, o desconecte da partícula da mente, o desconecte de tudo – arranque todas as conexões – e estará liberado. Você arranca tudo, de forma a não haver consciência; é assim que você para de sentir infelicidade e felicidade que não satisfaz. Você arranca todas as conexões.

Portanto, não é isso que queremos liberar, esse falso self. O self que queremos liberar, o self convencional, é um self que é afetado pelas coisas. Ele não será mais afetado por emoções perturbadoras, mas será afetado por emoções positivas, e poderá interagir com os outros. Não é “sem partes”; portanto não é destituído de corpo e mente, e assim por diante. Ainda terá corpo e mente e sentimentos – emoções, sentimentos positivos. E é um self que vivencia coisas; não vivencia infelicidade ou felicidade que não satisfaz, mas vivencia um tipo puro de felicidade ou, se estivermos falando simplesmente de liberação, um tipo neutro de sentimento, de quando se está profundamente absorvido em meditação. Portanto, ainda há a experiência de sentimentos, de sentimentos puros.

Quando estamos buscando a liberação, é muito importante buscarmos a liberação do “eu” convencional e não do “eu” falso, que sequer existe. E o nível mais profundo do que temos que refutar aqui é a existência de um self que pode ser conhecido sem que apareça uma base ao mesmo tempo. O termo técnico para isso é um “self autosuficiente em conhecer-se”. Não há nada que seja assim.

O exemplo que sempre uso é: quero que as pessoas me amem pelo que sou, quero que amem a mim; não ao meu corpo, ao meu dinheiro, não por isso ou por aquilo – quero que amem a “mim”. Como se o “eu” fosse um objeto que pudesse ser amado por si só. Não é possível conhecer o “eu” por si só. Não é possível amá-lo por si só. É sempre necessário que haja uma base.

Quando pensamos “eu me conheço” ou “eu quero me conhecer” – como é possível conhecer-se independente de qualquer coisa? Você só pode se conhecer em termos de sua experiência, sua mente, seu corpo, todas essas coisas. É assim que pode se conhecer. O self é imputado nisso. Da mesma forma, como posso me liberar? Não se conceba como um self que pode ser conhecido independentemente de todas essas coisas. Sempre é preciso haver uma base. Lembre-se, comecei este curso pedindo que pensasse sobre si mesmo, e a única maneira de pensar sobre si mesmo é através do som mental da palavra “eu”, de uma imagem mental ou de um sentimento. Você não consegue pensar em si sem uma base. Da mesma forma, você não consegue liberar o “eu” sem trabalhar no “eu” imputado sobre uma base e conhecido ao mesmo tempo que a base.

Quais são as implicações disso? Quando estou trabalhando para conseguir a liberação, preciso pensar em termos de minha experiência diária; dos problemas que estou enfrentando, das emoções perturbadoras que estou enfrentando e do “eu” imputado nisso. É assim que trabalhamos para obter a liberação do self. Não é pensando em um self abstrato, sem que nada mais apareça, o que é impossível, e liberando isso. Assim você não estará conectando suas meditações com a vida diária.

Isso é muito importante quando praticamos os três treinamentos elevados para obter a liberação. Apesar de precisarmos desse sentido convencional do self, que tem força de vontade e determinação de se liberar, precisamos cuidar para que não seja “Eu vou controlar minha mente”, “Eu vou controlar meu comportamento” ou “Eu vou me liberar”, como se existisse um “eu” sólido que estivesse fazendo tudo isso e se liberando. Como se houvesse um “eu” sólido e separado.

Tomemos um momento para digerir tudo isso. Claro, é muita coisa. E depois podemos tentar almoçar e digerir o almoço. Mas podemos resumir tudo em uma pequena frase: não tente liberar o falso self, pois ele sequer existe. Precisamos trabalhar para liberar o “eu” convencional.

Ok, vamos terminar por hoje. Qualquer força positiva ou entendimento que tenha sido gerado, que se aprofunde e aja como causa para a liberação e iluminação de todos os seres – “todos os seres” convencionais, e não “todos os seres” impossíveis.

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