Revisão
Em nossa discussão sobre como equalizar nossas atitudes em relação a nós mesmos, temos feito vários exercícios para nos ajudar a desenvolver a equanimidade – equanimidade especificamente no que diz respeito a nós e ao que fizemos em nossa vida, como nos vemos e nos tratamos, e aos vários aspectos de nossos corpos e personalidades. Quando falamos sobre equanimidade nesse contexto, estamos nos referindo a um estado mental livre de aversão ou repulsa (de não gostarmos ou termos uma atitude negativa em relação a nós), por outro lado também livre de atração (de estarmos apaixonados por nós, “ah, eu sou tão maravilhoso”) e de ingenuidade (de nos considerarmos um joão-ninguém e ignorarmos nossas próprias necessidades). Mas temos que ter cuidado para não pensar que esse estado mental é um estado livre de emoções. Não se trata absolutamente disso.
O problema aqui é o enquadramento conceitual. Em nossos idiomas ocidentais, temos o conceito de emoções, e incluímos muitas coisas nessa categoria “emoções”. Mas nas tradições ensinadas em sânscrito e tibetano, não há uma categoria conceitual equivalente à essa, das “emoções”. Não há uma palavra para “emoções”. Ao invés disso, elas falam em termos de fatores mentais. Estes incluem fatores quase mecânicos, como a atenção, a concentração e o interesse. Há também estados mentais perturbadores, estados mentais destrutivos, como raiva e cobiça, e estados mentais construtivos, como amor, paciência e perseverança. Há esses tipos de categoria. Alguns elementos dessas categorias – das atitudes construtivas, destrutivas e perturbadoras – nós chamamos de emoções e outros não, como um comportamento indeciso, hesitante, ou a indecisão em si. “Devo fazer isso ou devo fazer aquilo?” Será que isso é uma emoção? Como chamaríamos isso em nosso enquadramento conceitual ocidental? Por termos um esquema diferente para analisar nossas mentes, fica confuso, pois quando ouvimos a palavra “equanimidade”, pensamos que isso significa não ter nenhuma emoção.
Em nossa discussão sobre desenvolver equanimidade em relação a nós mesmos, não estamos falando de nos livrarmos daquilo que chamamos de emoções positivas, como a paciência, o entusiasmo, a compaixão, a generosidade, e assim por diante. Elas não são conflitantes, embora, é claro, possa ser que estejam misturadas com emoções perturbadoras. Com o amor, por exemplo, pode haver apego. Portanto, temos que diferenciar entre emoções construtivas e destrutivas – mais especificamente, aquilo que chamamos de “emoções perturbadoras”. Não é necessário fazer distinções técnicas.
Se olharmos para essas três emoções perturbadoras que mencionei –basicamente, a raiva, o apego e a ingenuidade – quando falamos em raiva e apego, ocorre uma tendência ao exagero. Com a raiva – e aqui estamos falando de quando a dirigimos a nós (“Realmente não gosto de mim”) – estamos exagerando aspectos negativos (por exemplo, os fracassos, as imperfeições de nossa personalidade, ou os nossos momentos de mau humor). Nós os exageramos, os solidificamos, quase como se fossem uma espécie de monstro, e esquecemos completamente dos aspectos positivos que os contrabalançariam – como nossos sucessos, por exemplo, ou os pontos fortes de nossa personalidade.
Quando temos apego – e uma opinião exageradamente elevada a nosso respeito – fazemos o oposto. Solidificamos as nossas boas qualidades e as coisas positivas que ocorreram em nossas vidas, as exageramos e ignoramos os aspectos negativos.
Quando há ingenuidade de nossa parte – pensamos que não temos nenhuma importância e ignoramos nossas necessidades – vamos ao outro extremo e negamos quaisquer qualidades, sejam elas positivas ou negativas. Até mesmo chegamos a negar que somos seres humanos e temos certos direitos.
Com a equanimidade, tentamos ter uma visão mais objetiva em relação a nós, nossas vidas e assim por diante, sem exagerar nem negar nenhum aspecto. Aceitamos que essa é a nossa realidade e nenhum desses aspectos é sólido, congelado no tempo, nem durará para sempre. Podemos trabalhar em nós mesmos, podemos melhorar. Mas primeiro temos que aceitar a situação atual. Ter uma visão mais objetiva de nós mesmos não bloqueia as emoções positivas como amor, gentileza, compaixão, paciência, entusiasmo, etc. Na verdade, fica muito mais fácil ter tais sentimentos positivos, pois quando temos essas emoções perturbadoras, especialmente quando são dirigidas a nós, criamos um bloqueio. Quando temos raiva de nós, quando não gostamos de quem somos, isso pode bloquear um sentimento amoroso em relação a nós e aos outros.
Desenvolvendo uma Atitude Positiva e Saudável em Relação a Nós Mesmos
Vamos para os próximos estágios do treinamento. Agora que temos uma base de equanimidade – estamos mais calmos no que diz respeito às emoções perturbadoras – podemos trabalhar na tentativa de ser mais gentis conosco e ter uma atitude mais positiva e saudável. Para isso, tentaremos equalizar a atitude que temos conosco durante a nossa vida inteira.
Discutimos as diferenças entre o “eu” convencional, que realmente existe – estou aqui, estou fazendo coisas, etc. – e o “eu” falso, essa pessoa horrível de quem não gosto, ou a pessoa maravilhosa pela qual estou apaixonada, ou o joão-ninguém que eu ignoro. Quando desenvolvemos uma atitude mais gentil e positiva em relação a nós mesmos, ela se dirige ao “eu” convencional, não ao falso “eu”. Não quer dizer que “Bem, não gosto de mim, mas tentarei ser um pouco mais gentil comigo mesmo. Vou me tolerar.” Ou “Estou tão apaixonado por mim que serei até mesmo mais gentil comigo e me favorecerei ainda mais.” Não estamos falando disso. Ou “Eu sinto muita pena de mim, pobre de mim, que sou um joão-ninguém. Sinto tanta pena que serei um pouco mais gentil comigo, mas no fundo sei que não mereço essa gentileza.” Todos esses exemplos ainda estão dirigidos ao falso “eu”.
Para desenvolver essa atitude mais positiva em relação ao “eu” convencional, precisamos pensar em termos de nossa vida inteira. De um ponto de vista budista, pensaríamos em muitas vidas, mas podemos, em uma versão mais leve, apenas pensar em termos desta vida. Há alguns pensamentos budistas básicos que podemos aplicar aqui: “Este é um precioso renascimento humano. Tenho a oportunidade de poder melhorar. Mesmo se tivesse nascido em uma família muito pobre, em uma parte muito difícil do mundo, com guerras e coisas do gênero, ainda assim eu seria um ser humano. Tenho uma mente, tenho emoções, tenho todo o necessário para tentar melhorar.” Mesmo estando em situações externas difíceis – no que diz respeito ao meio-ambiente, à sociedade, ou até mesmo a problemas de saúde – ainda assim, estamos vivos. Somos seres humanos; não somos insetos. Temos interesse em conseguir nos desenvolver de uma forma que chamaríamos de mais “espiritual”, e não apenas ganhar mais dinheiro.
Nove Perspectivas
Há nove diferentes pontos de vista através dos quais podemos olhar para nós e equalizar nossa atitude. É ligeiramente diferente da equanimidade sobre a qual falamos antes. A equanimidade, o primeiro passo, é um estado mental livre de emoções perturbadoras dirigidas a nós mesmos. Agora estamos falando sobre como desenvolver uma atitude equânime de gentileza, uma atitude positiva em relação a nós mesmos, em todas as situações. A ênfase é ligeiramente diferente neste caso. Como podemos ser mais gentis conosco? Não estamos falando do tipo de gentileza que nos faz mimar demais uma criança, mas de algo mais saudável, de ser mais positivos, tomar conta de si, comer bem, dormir bem, colocar limites no que se refere a quanto conseguimos fazer e assim por diante.
Aliás, colocar limites tem dois significados aqui. Um deles é ser capaz de dizer “não” quando algo é realmente destrutivo ou prejudicial, quer seja em relação a algo que uma pessoa está fazendo conosco em um relacionamento doentio, ou no que se refere a fazer algo de muito perigoso que não faz nenhum sentido. Quer dizer ser capaz de dizer “não”. A outra variável é colocar limites quando o trabalho ou as obrigações se tornam excessivos, e assim por diante. Saber que é demais e que, se continuarmos dessa forma, isso nos prejudicará. Quer dizer ser capaz de dizer: “Basta! Não posso fazer mais que isso. Tenho que descansar.”
A segunda variável, saber quando temos que descansar, é muito importante para desenvolver entusiasmo. Se nunca descansarmos, se nunca fizermos uma pausa, nosso entusiasmo diminuirá muito, e não teremos vontade de continuar quando voltarmos a trabalhar. Por outro lado, não queremos sempre nos tratar como bebezinhos. Por exemplo, meu próprio professor, Tsenshap Serkong Rinpoche, para quem eu costumava traduzir – sempre me fazia continuar por mais cinco minutos quando eu estava muito cansado e sentia que não conseguia mais continuar. Ele sempre dizia que, não importa quão cansado você está, você sempre pode trabalhar por mais cinco minutos. Não pode trabalhar por mais uma hora, mas consegue por mais cinco minutos, e assim aumentam os seus limites e a sua resistência. Assim, você não será sempre um bebezinho e crescerá. Quer estejamos fazendo traduções ou treinando para um esporte, ou o que quer que estejamos fazendo, acho que é uma forma útil de pensar. Pelo menos, para mim foi.
1. Houve Muitas Vezes nas Quais Tive uma Atitude Positiva em Relação a Mim Mesmo
A primeira das nove perspectivas é pensar que: “Em diferentes fases de minha vida, fui gentil comigo, quando era criança ou adolescente, ou em outras fases. Houve fases nas quais realmente fui gentil comigo, independente do fato de ter tido uma atitude positiva recentemente ou há muito tempo, há quinze minutos ou quinze anos, o que importa é que fui gentil comigo. Só foram diferentes fases, mas ainda assim a minha gentileza era dirigida a ‘mim’. Portanto, é um fato que fui gentil comigo e que me senti bem comigo mesmo. A conclusão é que sou capaz de fazer isso.”
Pensamos sobre isso: que não faz diferença quando tivemos a atitude positiva em relação a nós mesmos ou quando nos tratamos com gentileza. O que importa é que isso ocorreu em uma ou mais ocasiões, e isso significa que somos capazes de agir assim.
[Pausa para prática]
2. Tive Mais Atitudes Positivas em Relação a Mim Mesmo do que Atitudes Negativas
A segunda perspectiva é que podemos alegar que: “Bem, tive uma atitude positiva em relação a mim mesmo apenas umas poucas vezes. Na maior parte do tempo fui bastante negativo e realmente não gostei de mim.” Mas se pensarmos sobre isso, veremos que nossa gentileza foi mais importante e frequente do que as vezes nas quais nos tratamos mal. Afinal, nós nos alimentamos todos os dias de nossas vidas (tirando apenas a época na qual éramos bebês e nossa mãe nos alimentava); escovamos nossos dentes, dormimos – fizemos o que foi necessário para cuidar de nós e nossas necessidades básicas; caso contrário não estaríamos vivos. Embora possamos trivializar essas coisas, elas realmente são bem importantes. Não importa quão negativos tenham sido nossos sentimentos, ainda assim nós continuamos comendo, dormindo, nos vestindo e lidando com o dia a dia, não é mesmo? Se analisarmos esse fato, veremos que se trata de uma demonstração de nossa gentileza. Desse ponto de vista, fomos mais vezes gentis do que nos tratamos mal. “Pode ser que não tenha me alimentado muito bem, mas pelo menos comi. Pode ser que não tenha dormido o suficiente, mas pelo menos dormi.” Por favor, pensem sobre isso.
[Pausa para prática]
É bem interessante analisar por que temos a tendência de enfatizar incidentes ou períodos nos quais nos tratamos mal. Acho que há um forte componente emocional – um componente emocional perturbador – nesses períodos, mais do que quando apenas nos alimentamos e comemos, por exemplo. Não há uma emoção muito forte quando fazemos essas coisas, não é mesmo? Quando a emoção é mais forte, particularmente se for uma emoção perturbadora, tendemos a levá-la mais em conta ou a considerá-la mais real, o que é absurdo. Como é que um incidente em nossas vidas poderia ser mais real do que outro? Todos os incidentes simplesmente ocorreram.
Há muitos exemplos nos quais nos tratamos mal e que nos parecem mais reais do que outros aspectos menos dramáticos de nossas vidas, por causa da forte emoção perturbadora envolvida neles. Por exemplo, estamos em uma relação doentia e abusiva. Nosso parceiro nos trata mal, fala de forma agressiva conosco, e assim por diante. Não é nem mesmo necessário que haja violência física. Mas ficar nesse tipo de relacionamento é baseado, geralmente, em um grande apego e uma forte insegurança. Estamos tão apegados que não queremos dizer “não”, pois temos medo de ser abandonados. “Pobre de mim, se isso ocorrer não terei mais nada.” Quando pensamos em nossas vidas, tais aspectos negativos parecem muito mais importantes do que o fato de que escovamos nossos dentes todos os dias ou fomos para a escola.
Outro exemplo são pessoas que comem tanto até se tornarem obesas. Geralmente, elas têm uma atitude bastante negativa em relação ao próprio “eu” e a ingenuidade de pensar que, de alguma forma, podem superar isso através do prazer da comida. Isso é bem ingênuo e também misturado ao apego, mas é baseado em uma autoestima muito baixa e uma atitude muito negativa. Podemos pensar também na anorexia ou na bulimia – essas síndromes nas quais a pessoa ou morre de fome ou vomita após comer muito. Elas também se baseiam em uma autoestima muito baixa. “Tenho que ser perfeito, mas não sou perfeito.” A pessoa tem uma ideia bastante distorcida do que é ser perfeito, e depois se trata muito mal, com um transtorno alimentar, para combinar a atitude com a ideia distorcida.
Como eu disse, embora os momentos nos quais nos tratamos com gentileza, cuidamos de nós, possam não ter sido emocionalmente muito intensos, não por isso são menos reais do que esses incidentes emocionalmente mais dramáticos. Se olharmos de forma objetiva, eles na verdade são bem mais numerosos do que as vezes nas quais fomos negativos com nós mesmos.
[Pausa para Prática]
Quando comparamos as ocasiões em que fomos gentis conosco com as ocasiões em que nos tratamos mal, será que estamos falando sobre momentos nos quais tomamos drogas, bebemos álcool, fumamos cigarros, coisas desse gênero, e compreendemos o quanto essas atitudes são autodestrutivas? No meu caso, no que se refere a fumar cigarros, tenho um conflito interno. Uma parte me diz: “Não faça isso!” e a outra parte diz: “Okay, faça isso, fume um cigarro. Talvez hoje não seja um bom dia para parar de fumar.” O que é isso?
Em uma situação na qual estamos fazendo algo autodestrutivo como tomar drogas ou álcool, ou fumar, podemos ter duas atitudes conflitivas. De um lado discriminamos que isso é destrutivo e prejudicial. De outro lado, temos apego, o que nos faz exagerar quaisquer qualidades ou efeitos positivos que ganhamos dessas substâncias, ignorando as desvantagens disso. Do ponto de vista budista, analisamos os fatores mentais envolvidos nesse estado mental. Aqui temos a consciência discriminativa de que fumar é nocivo, mas também temos apego. A consciência discriminativa não é mais forte do que o apego neste caso, pelo contrário, o apego parece ser mais forte. Observem que todos esses fatores mentais têm um espectro que varia de muito fraco até muito forte.
Também fazem parte deste estado mental a hesitação e a indecisão: “Será que eu não deveria fumar? Será que devo parar, ou continuar a beber?” Neste caso, há indecisão – você não sabe o que fazer, o que é um estado mental inquieto – e há um autocontrole ou uma disciplina muito fraca, disciplina para dizer “não” ao apego e se posicionar de acordo com a consciência discriminativa que entende que isso é prejudicial.
Precisamos fortalecer a nossa consciência discriminativa, que quer reafirmar, lembrar, manter-se consciente disso. A presença mental é essa cola mental que faz com que nos mantenhamos conectados e nos impede de esquecer. Além disso, temos que colocar uma grande ênfase na disciplina, na autodisciplina, que nos indica que mesmo que tenhamos vontade de fumar mais um cigarro, ou beber mais um drinque, o que importa a vontade? É apenas a força do hábito e não temos que ser escravos dele. Shantideva, um grande mestre budista, disse isso muito bem. Para parafrasear o que ele disse – em nossa mente, devemos dizer para as nossas emoções perturbadoras: “Fui um escravo de vocês por bastante tempo. Vocês me prejudicaram e causaram muitos problemas com o passar dos anos. Aqueles tempos nos quais tinham o poder de me perturbar assim acabou.”
Requer uma grande força de vontade para conseguir dizer: “Agora chega!” Claro que não é tão fácil, mas é realmente a única forma de começar a parar um hábito autodestrutivo, como fumar. É claro que temos que nos aprofundar na questão e descobrir o que está por detrás de nossa emoção perturbadora, mas o primeiro passo é apenas disciplina, autocontrole, e dizer: “Chega! Mesmo se eu quiser mais um drinque, isso não importa. E daí que eu quero isso?” Ou qualquer que seja a situação. “Eu gostaria de comer outro pedaço de bolo, mas compreendo que estou apenas exagerando, pois estou satisfeito. Realmente comi o bastante.” Assim você diz “não” mesmo que, é claro, pode ser que queira outro pedaço de bolo. “Adoraria ficar na cama hoje de manhã, mas tenho que levantar.” Há muitos exemplos aos quais podemos nos referir para reafirmar que temos a habilidade de exercitar o autocontrole – mesmo que queiramos ficar mais tempo na cama.
Na verdade, a questão trata da primeira das nove perspectivas: reafirmar nossa capacidade de sermos gentis conosco. Às vezes pensamos: “Sou incapaz.” Mas não somos incapazes. Apenas trivializamos os exemplos nos quais fomos capazes.
3. Eu Deveria Ter Uma Atitude Positiva Porque Posso Morrer a Qualquer Momento
O terceiro ponto para desenvolver esta atitude equânime em relação a nós mesmos é pensar na morte, especificamente pensar que a morte pode vir a qualquer momento. E isso é verdade: podemos morrer a qualquer momento. Não temos que estar doentes. Podemos ser atropelados por um caminhão.
Então, pensamos: “E se esses fossem meus últimos minutos, ou essa fosse a minha última hora?” Digamos que eu fosse um prisioneiro prestes a ser executado. Não necessariamente por ter cometido um crime; poderia ser em uma guerra, em que fossem atirar em nós. Como gostaríamos de passar a nossa última hora? Será que eu gostaria de passar pensando com auto-ódio em quanto fui e sou horrível? Ou me favorecendo além do necessário? Será que iria me empanturrar de sorvete na última meia hora ou faria o máximo de sexo possível na última hora? Iria ignorar a minha necessidade de ter um estado mental calmo, já que seria executado – continuaria lendo um livro, por exemplo, ou procuraria por uma revista de moda durante esta última hora? Será que seria assim que passaria a última hora de minha vida? Ou assistiria televisão, em um estado de negação, negando que se trata de minha última hora? É óbvio que passar a nossa última hora com uma atitude perturbadora como a raiva, o excesso de apego ou ingenuidade em relação a nós seria um desperdício do tempo precioso que ainda nos resta.
Da mesma forma, ter uma atitude perturbadora em relação a nós mesmos é um desperdício de tempo ao longo de toda a nossa vida: podemos morrer a qualquer momento. Pensar assim nos ajuda a desenvolver sempre uma atitude equânime conosco. Em qualquer situação que estejamos, pensamos: “Serei gentil comigo. Tentarei ter um estado mental calmo e estar em paz comigo mesmo, porque pode ser que daqui a pouco eu morra.” Pensar assim é uma maneira de sermos mais gentis conosco. Pensemos sobre isso.
[Pausa para prática]
4. Quero Ser Feliz
O quarto ponto é que quero ser feliz e não quero ser infeliz. Acho que essa é uma verdade que se aplica a todo mundo.
Pensamos em como os outros nos tratam: “Não gosto quando os outros me rejeitam ou me tratam mal, não é mesmo? E não gosto quando os outros se apegam demasiado e são super protetores, preocupando-se comigo o tempo inteiro. E tampouco gosto de ser ignorado. Fico infeliz quando sou tratado de qualquer uma dessas formas.
Depois pensamos em como nos tratamos: “Quando me trato mal, não me sinto feliz, não é mesmo? E se estou totalmente preocupado comigo, sempre amedrontado e me super protegendo – no que se refere à minha saúde ou algo assim, a hipocondria, por exemplo – tampouco se trata de um estado feliz. E quando ignoro as minhas necessidades, não é um estado mental feliz. Portanto, se não quero que outros me tratem assim, por que eu mesmo me trataria dessa forma? Isso apenas me torna infeliz, não importa se é outra pessoa ou se sou eu que me trato mal. No fundo, quero apenas ser feliz. Não quero ser infeliz. Não gosto de ser infeliz. Então por que me fazer infeliz? Há muitas outras pessoas que podem me fazer infeliz. Por que eu faria isso?” Pensemos nisso.
[Pausa para prática]
5. Tenho o Direito de Ser Feliz
O próximo ponto, a quinta perspectiva: Tenho o direito de ser feliz e me tratar bem durante toda a minha vida, não apenas uma parte do tempo. Pensemos nisso. “Tenho o direito de ser feliz? Será que sinto que tenho que adquirir esse direito ou merecer isso, que é um tipo de recompensa? Ou será que tenho o direito de ser feliz, independente daquilo que faço?
[Pausa para prática]
Esse realmente é um ponto interessante. Será que estamos pensando de forma socialista aqui, ou trata-se apenas dos direitos humanos básicos, o direito de ser feliz? Os direitos humanos básicos não incluem necessariamente um sistema político socialista, não é mesmo?
6. Tenho o Direito de Não Ser Infeliz
O sexto ponto é bastante parecido: Tenho o direito de não ser infeliz e de não ser tratado mal por mim durante toda a minha vida, não apenas uma parte do tempo.
O quinto e o sexto pontos falam de uma atitude equânime durante toda a minha vida. Não tenho o direito de ser feliz e não ser infeliz apenas durante uma parte do tempo; sempre tenho esse direito. Não é apenas uma questão de querer ser feliz e não querer ser infeliz. Esse é um direito básico que eu tenho. Querer isso não é algo despropositado. Não há nada de errado comigo por querer ser feliz.
[Pausa para prática]
7. Os Grandes Mestres Não Me Veem Como Realmente Horrível, Realmente Maravilhoso ou Realmente um João-Ninguém
O próximo ponto, a sétima perspectiva: se eu fosse realmente horrível, ou realmente especial e maravilhoso, ou realmente um joão-ninguém, então os budas e os grandes mestres me veriam dessa forma; mas eles não me veem assim.
Trata-se de um ponto difícil se não tivermos encontrado nenhum buda, e provavelmente não encontramos, ou se não tivermos contato próximo com grandes mestres espirituais. Tive o privilégio de conviver com alguns grandes mestres espirituais – Sua Santidade o Dalai Lama, seus professores, e assim por diante – e posso dizer, pela minha experiência, que ninguém é especial para eles. Todos são iguais. Eles são igualmente disponíveis para todas as pessoas.
Sempre penso no exemplo de meu próprio professor principal, Tsenshap Serkong Rinpoche. Fui intérprete dele por nove anos, viajei o mundo com ele, estava ao seu lado quando ele encontrou o papa e quando encontrávamos bêbados nas ruas. Ele era igual com todo mundo, agia da mesma forma com o papa ou com um bêbado. O mesmo acontece quando Sua Santidade o Dalai Lama encontra presidentes de vários países ou simplesmente pessoas comuns. Quando entra em um evento e cumprimenta as pessoas, sempre demonstra a mesma abertura, a mesma disponibilidade. Ninguém é especial. Isso não significa ser frio e não ter sentimentos em relação a todos da mesma forma. Isso significa ser aberto, disponível, gentil, e feliz por encontrar cada pessoa.
Eu ficava impressionado com Serkong Rinpoche porque, quando viajávamos para tantos centros budistas no mundo inteiro, geralmente havia um professor tibetano que nos esperava. Rinpoche não parecia ter nenhum melhor amigo. Não importava com quem ele estava, ele sempre agia com todos eles – com esses professores tibetanos – como se cada um deles fosse seu melhor amigo. Era realmente extraordinário; ele agia igual com todos eles.
Então, se fôssemos realmente tão horríveis, ou especiais e maravilhosos, ou um joão-ninguém, os budas e grandes professores nos veriam assim, mas eles não nos veem assim. Na verdade, podemos incluir nesse primeiro ponto que, não apenas os gurus, mas todas as outras pessoas, nos veriam assim, porém não é o caso.
[Paus para prática]
É realmente engraçado analisarmos o que dizemos com certa frequência: “Bem, eles realmente não me conhecem. Se me conhecessem, saberiam que sou uma pessoa horrível. Mas eles não conhecem o ‘verdadeiro eu’”. Novamente, trata-se de uma identificação com o falso “eu”. Estamos escolhendo apenas as coisas negativas a nosso respeito e as exagerando, esquecendo de todo o resto que também somos. Como mencionei antes várias vezes, todos têm pontos fortes, todos têm pontos fracos. Não há nada de especial em relação a isso – há um pouco mais dessa qualidade, um pouco menos daquela, mas nada de especial.
8. Tenho Qualidades e Características que Podem Mudar
O próximo ponto, a perspectiva número 8, é que se eu fosse realmente uma pessoa horrível – ou realmente uma pessoa maravilhosa, ou realmente um joão-ninguém, que não vale nada – eu sempre teria que ser assim. Isso nunca poderia mudar e nossas atitudes em relação a nós mesmos nunca poderiam mudar. Mas as coisas não são assim. Se fizermos uma retrospectiva de nossas vidas, veremos que as circunstâncias mudam e as nossas atitudes conosco mudam. Basta pensar em como é a nossa atitude quando estamos bem-humorados e quando estamos de mau humor. Nesse exemplo fica bem claro que as nossas atitudes mudam. A confusão ocorre porque sentimos que, de certa maneira, somos inerentemente boas pessoas – ou más pessoas, ou um joão-ninguém – como se isso fosse a nossa verdadeira natureza, totalmente independente de nosso humor, do que está acontecendo conosco, dos diferentes períodos de nossa vida, ou do que quer que seja.
Há uma grande diferença quando falamos apenas de “mim” como pessoa. Uma pessoa, um indivíduo, é um fenômeno neutro, que não é nem bom nem ruim. Uma mão não é nem boa nem ruim. Uma mão é apenas uma mão. Não obstante, algumas coisas que fizemos podem ter sido destrutivas ou negativas, algumas podem ter sido positivas; algumas coisas que ocorreram conosco foram dolorosas; outras podem ter sido prazerosas. Isso é outra coisa. Mas como pessoa não somos nem bons nem ruins. E faz parte da natureza humana querer ser feliz e não querer ser infeliz. Todo mundo quer isso. Tenho o direito humano básico de ser feliz e de não ser infeliz.
As imperfeições podem ser superadas; não são algo permanente e imutável. Se cometemos erros ao longo da vida – alguns podem ser remediados; há outros erros que fizemos com os quais temos que lidar da melhor maneira possível. Por exemplo, fizemos um investimento ruim e perdemos dinheiro. Tentamos lidar com isso da melhor maneira possível. Se perdemos o dinheiro, nós o perdemos, e não há nada que possa ser feito em relação a isso. Tentamos nos adaptar à situação. A realidade é: “Okay, perdi o dinheiro. O que faço agora?” Pode ser que tenhamos feito um erro estúpido, só isso. Temos que diferenciar aqui entre “eu”, a minha pessoa, e aquilo que fizemos (ou as características e qualidades que tenho e mudam de acordo com as circunstâncias).
[Pausa para prática]
9. A Minha Atitude em Relação a Mim Muda de Acordo com a Situação
Isso nos leva à nona perspectiva. Se eu fosse realmente uma pessoa horrível – ou maravilhosa, ou um joão-ninguém – eu deveria ter sido assim a minha vida inteira e não apenas em uma situação ou quando algo específico aconteceu; mas isso é impossível.
Aqui, não estamos falando sobre ser inerentemente maravilhoso ou terrível. Estamos falando sobre a minha atitude em relação a mim. Se eu fosse definitivamente apenas de uma única forma, a minha atitude comigo deveria ser sempre assim, independente das situações. Na verdade, a minha atitude está sempre mudando, ela mudou no passado, dependendo das diferentes situações – fui bem-sucedido, fracassei, fiz uma boa escolha, uma má escolha.
Não há sentido em ter essa atitude perturbadora: “Sou realmente assim, independente do que acontecer.” Não tem que ser assim. Podemos mudar se entendermos que o nosso sentimento em relação a nós mesmos sempre dependeu das circunstâncias e situações, mas basicamente não há nada de errado conosco; nem nada de especial. Assim podemos ter uma atitude equânime conosco o tempo todo, a mesma gentileza e o mesmo respeito. O autorespeito é muito importante.
Penso que – especialmente como praticantes budistas, mas isso não se limita necessariamente aos praticantes budistas – temos a tendência a pensar que precisamos ser perfeitos. Se não somos perfeitos, pensamos que somos ruins. “Não sou bom. Sou um fracassado.” Mas precisamos nos lembrar que “Ainda não sou um Buda; sou um ser humano comum e os seres humanos comuns cometem erros. Não há nada de especial em relação ao fato de que cometo erros, não é mesmo? Não há razão alguma para eu me odiar, ou pensar mal de mim mesmo, apenas por ter cometido um erro. Trata-se da expectativa irrealista de que nunca cometerei erros e nunca fracassarei quando fizer algo. É claro que algumas vezes eu fracassarei. Acontecimentos lamentáveis são o resultado de várias circunstâncias. Mas, subjacente a tudo que me acontece, existe apenas uma pessoa, um fenômeno neutro.
Tentamos dar o melhor de nós e aprender com nossos erros, sem nos julgarmos: “Sou tão maravilhoso” ou “Sou tão horrível”.
[Pausa para prática]