A Ilusão nos Quatro Sistemas Filosóficos Budistas

Histórico

Nos mosteiros budistas indianos Mahayana, como o Nalanda, os monges estudavam quatro sistemas filosóficos budistas. Dois deles – o Vaibhashika e o Sautrantika - eram subdivisões da escola Sarvastivada, do Hinayana. Os outros dois - Chittamatra e Madhyamaka - eram subdivisões do próprio Mahayana. Os tibetanos seguiram este costume, mas fizeram mais subdivisões dentro desses quatro sistemas. Por exemplo, dentro do Madhyamaka, eles diferenciaram o Svatantrika Madhyamaka do Prasangika Madhyamaka. Dentro do Svatantrika Madhyamaka, a escola Gelug classificou depois os autores indianos, como Yogachara Svatantrika e Sautrantika Svatantrika. As várias escolas não-Gelug subdividiram o Madhyamaka de outras formas.

Além disso, vários mestres de cada linhagem tibetana interpretaram os diversos sistemas filosóficos budistas indianos de formas diferentes. Em geral, Sakya, Kagyu e Nyingma compartilham uma interpretação mais antiga. No que diz respeito ao Madhyamaka, essa interpretação mais antiga baseia-se especialmente na visão Yogachara Svatantrika dos dois mestres de Nalanda que introduziram o budismo indiano no Tibete: Shantarakshita e Kamalashila. Por isso, as escolas não-Gelug têm muitos termos Chittamatra em sua apresentação do tantra. Tsongkhapa, com base nos trabalhos de outro mestre de Nalanda, Buddhapalita, reinterpretou radicalmente os sistemas filosóficos, especialmente o Svatantrika e o Prasangika. A escola Gelug segue sua interpretação.

Podemos ver algumas das diferenças que existem nestas duas principais linhas de interpretação usando apenas alguns exemplos. As escolas não-Gelug, por exemplo, afirmam que os sistemas Svatantrika e Prasangika não diferem em suas explicações sobre os objetos anulados pela vacuidade, os obscurecimentos emocionais e cognitivos e as etapas para nos livrarmos deles. As diferenças entre estas duas divisões do Madhyamaka residem principalmente em como usam a lógica e se consideram possível ou não fazer afirmações positivas sobre qualquer coisa. A Gelug afirma que estas duas divisões do Madhyamaka afirmam coisas diferentes no que diz respeito aos objetos anulados pela vacuidade, aos obscurecimentos emocionais e cognitivos e às etapas para nos livrarmos deles. Da mesma forma, as escolas não-Gelug aceitam as etapas do caminho apresentadas no texto Filigrana das Realizações (mNgon-rtogs rgyan, Skt. Abhisamaya-alamkara) para todo o sistema Madhyamaka, enquanto a Gelug aceita apenas para o Svatantrika e identifica uma apresentação do Prasangika extremamente diferente. Da mesma forma, as escolas não-Gelug aceitam a apresentação Sautrantika básica da teoria da cognição, enquanto a Gelug defende uma apresentação Prasangika diferente [da teoria da cognição] como sendo a explicação mais profunda.

Mas mesmo dentro da Gelug, vários mestres apresentaram vários detalhes de formas diferentes.  Temos que restringir nossa discussão aqui à apresentação geral da Gelug.

Os Sistemas Filosóficos Como um Caminho Gradual na Meditação

Independentemente da interpretação das características de cada sistema filosófico, os mestres tibetanos ensinaram os sistemas indianos como passos graduais na meditação, que devem depois ser aplicados ao cotidiano. Portanto, ao estudarmos as seções sobre consciência discriminativa no texto de Chandrakirti Suplemento para o Caminho do Meio (dBu-ma-la 'jug-pa, Skt. Madhyamaka-avatara) e no texto Engajando-se no Comportamento do Bodhisattva (sPyod-'jug, Skt. Bodhisattvacarya-avatara), de Shantideva, é importante não ver as refutações dos sistemas não-Prasangika [que existem nesses textos] como algo dirigido principalmente para se ganhar debates contra proponentes de outros sistemas. Elas se destinam a nos ajudar a ir mais fundo em nosso próprio entendimento.

A metodologia é ir chegando na explicação mais sofisticada, como quando primeiro aprendemos física newtoniana, depois refinamos com a teoria da relatividade de Einstein, e depois refinamos com a teoria das supercordas. Cada teoria é relativamente verdadeira, e é funcional; as teorias diferem apenas na precisão.

Portanto, é importante tentar compreender cada conjunto de princípios filosóficos de uma vez e tentar enxergar a realidade através do ponto de vista de cada um deles. Devemos evitar pensar que algum é uma idiotice. Afinal, o Buda passou os princípios gerais de cada um deles, e os grandes mestres indianos elaboraram seus detalhes. Assim, todos têm fontes válidas e todos foram destinados a ajudar as pessoas a superar o sofrimento. Além disso, precisamos seguir as teorias na ordem correta, sem pular nenhuma. Pular os sistemas menos sofisticados, e ir direto para os mais profundos, geralmente faz com que as teorias mais profundas pareçam triviais.

O método para nos aprofundarmos na nossa compreensão vem de Shantideva. Ele escreveu que um debate só é possível quando os dois proponentes aceitam um exemplo em comum, como o de que todas as coisas são como uma ilusão, e ambos aceitam também o funcionamento convencional de causa e efeito apesar de todas as coisas serem como uma ilusão. Isto também se aplica à meditação, uma vez que tentamos obter entendimentos cada vez mais profundos. Vamos tomar este exemplo de que todas as coisas são como uma ilusão e discuti-lo em um nível introdutório.

A Analogia da Ilusão

O ponto, quando usamos a analogia das coisas serem como uma ilusão, é que a ilusão é algo que parece ser real, mas não existe da forma como parece existir. Por exemplo, uma corda listrada pode ser a base para a ilusão de que ela existe como uma cobra. A corda parece existir como uma cobra, mas ela não existe realmente dessa forma. No entanto, a base da ilusão, ou seja, a corda que aparece enganosamente como uma cobra, funciona para nos assustar. Você não pode dizer que aquilo que a ilusão parece ser, ou seja, uma serpente, nos assusta, porque a serpente não existe de verdade, mas a aparência de algo que se assemelha a uma serpente ocorre e, portanto, existe. A ilusão é a aparência da serpente que surge com base na corda. A corda em si não é a ilusão; a corda, conforme ela parece para uma mente ludibriada, é meramente como uma ilusão.

Resumindo, as bases para a ilusão e para a aparência da ilusão existem, e funcionam. Mas aquilo que a ilusão parece ser não existe, e não funciona.

A mesma análise aplica-se a uma situação difícil na vida que parece existir como um problema insolúvel. A situação difícil pode levar-nos a perder o emprego, por exemplo; mas a sua aparência de existir como um problema insolúvel é como uma ilusão. A situação difícil e sua aparência de ser um problema insolúvel existem, mas não existem problemas insolúveis. Há sempre alguma solução para uma situação difícil, ainda que possa não ser a ideal.

Metodologia: Reconhecendo Exemplos do Cotidiano

Para trabalhar com o exemplo de que as coisas são como uma ilusão, precisamos reconhecer algo em nossas vidas cotidianas que de alguma forma é como uma ilusão, e ainda assim funciona. Precisamos encontrar um exemplo. Uma vez que podemos reconhecer e realmente aceitar este exemplo pessoal, podemos então aprofundar nossa compreensão do que é a ilusão. Como aprofundar nossa compreensão? Tomemos o exemplo do amor. Temos uma ideia do que significa o amor. Aprendemos uma nova definição e depois vemos como ela funciona. Se funcionar melhor, talvez nos convençamos a aceitar a nova definição.

O exemplo de que as coisas existem como uma ilusão pode ser aplicado tanto para indivíduos (pessoas) como para os fenômenos em geral. Vejamos primeiro como ele é aplicada aos indivíduos.

A Ausência de uma “Alma” Impossível nas Pessoas

Todos os sistemas filosóficos budistas aceitam a existência convencional de um “eu”. O "eu" convencional, no entanto, parece existir de uma forma que não corresponde à forma como ele realmente existe. O "eu" convencional parece existir na forma de uma "alma" impossível (bdag, Skt. atman). O eu que existe dessa forma falsa é conhecido como o falso "eu", o "eu" que deve ser refutado. Assim:

  • O “eu” convencional é como uma ilusão, e existe.
  • A aparência de um “eu” falso é a ilusão, e existe.
  • Aquilo que corresponderia à ilusão – um falso “eu” – não existe.

Se tivéssemos sido ensinados e acreditássemos em um dos sistemas filosóficos indianos não-budistas, nós teríamos apego a um "eu" falso com base na doutrina. Assim como uma ilusão, o “eu” convencional apareceria para nós como uma "alma", uma verdadeira identidade, uma entidade monolítica não afetada (permanente) que pode existir separadamente do corpo e da mente (os cinco agregados) quando liberada e que entra neles como o chefe, o controlador, o observador ou o habitante. Mesmo que não tenhamos estudado tais teorias não-budistas nesta vida, com base no estudo em vidas anteriores, o eu nos parece existir dessa forma, e sentimos que é assim. Afinal, não parece que o dono da voz em nossas cabeças é um "eu" que está separado de nosso corpo e mente? No entanto, isso é como uma ilusão, no sentido de que o “eu” não existe da maneira que parece existir. Mas apesar de ser como uma ilusão, o self convencional funciona. Eu consigo comer; consigo vivenciar o sofrimento; posso obter a libertação do sofrimento.

Uma vez que tenhamos eliminado essa maneira impossível de existência, que deve ser anulada (refutada), precisamos identificar o que fica em seu lugar. Neste caso, fica um “eu” que:

  • Não é não-afetável pelas coisas, é afetado por elas e, portanto, muda de momento a momento.
  • Não é monolítico, tem facetas ou partes.
  • Não é separado do corpo e da mente, mas imputado (meramente rotulado) neles.

Todos os sistemas de princípios filosóficos, exceto o Vaibhashika, aceitam que mais uma anulação, de uma forma mais sutil e impossível de existir, é necessária. O que agora precisa ser anulado é que tal eu (uma entidade afetada, em constante mudança e não-monolítica imputada aos agregados) existe como algo que é autossuficientemente conhecível. Isto porque, mesmo depois de anularmos o objeto a ser refutado, o “eu” ainda parece automaticamente ser autossuficientemente conhecível. Em outras palavras, parece ser algo que pode ser conhecido por si mesmo, sem que uma base para sua imputação seja conhecida simultaneamente. Ninguém tem que nos ensinar isso. Por exemplo, queremos que alguém ame "a mim", e não apenas ao meu corpo, minha inteligência ou meu dinheiro. Esse "eu", imaginamos, poderia ser conhecido com o amor, por si só, sem que fosse necessário conhecer, simultaneamente, o corpo, a mente ou as posses. A sensação de que existe tal “eu” é automática, embora isso seja como uma ilusão, e nós desejamos que esse “eu” seja amado.

[Veja: Aplicar o Vazio Quando Estiver Preso no Tráfego]

Note que automaticamente sentimos que existe um "eu" que pode ser conhecido de forma autossuficiente, mesmo quando também imaginamos que esse "eu" existe como uma entidade monolítica não afetada, separada do corpo e da mente, controlando-os como seu habitante e chefe. Tal "eu", claro, é como uma ilusão. Muito mais sutil e difícil de perceber, no entanto, é que um "eu" afetado, em constante mudança, não-monolítico e imputável a um corpo e mente também não pode ser conhecido por si só.

Uma vez que refutamos e eliminamos esta maneira mais sutil e impossível de existir, percebemos que o "eu" convencional só pode ser conhecido por imputação. Ficamos agora com um eu convencionalmente existente, um "eu" que é um fenômeno afetado, em constante mudança, validamente conhecido, imputável a um corpo e mente, mas que não pode ser conhecido sem que alguma faceta de sua base de imputação também seja simultaneamente conhecida. No entanto, ainda sentimos como se esse "eu" fosse verdadeiro e encontrável (inerentemente existente). Em outras palavras, ainda sentimos como se houvesse alguma característica encontrável nesse "eu" conhecível por imputação, e que por seu próprio poder tornasse essa pessoa verdadeira e unicamente "eu", e não outra pessoa. Nos parece que há algo encontrável que permite um correto rotulamento desse fluxo individual de continuidade dos agregados como sendo o "eu". Todos os sistemas filosóficos aceitam esse "eu" inerentemente existente, exceto o Prasangika.

O sistema Prasangika afirma que este modo de existência também é impossível e que tal "eu" também é como uma ilusão. Uma vez que este modo impossível de existência é anulado, ficamos com um "eu" convencional que surge apenas de forma dependente, no que diz respeito ao rotulamento mental. Esse “eu” é apenas aquilo a que o rótulo "eu" se refere quando rotulado com base em um fluxo individual contínuo e em constante mudança de cinco agregados. Em outras palavras, o "eu" convencional é meramente um fenômeno afetado, em constante mudança, não-monolítico, imputável a um contínuo individual de agregados. Ele não pode existir separadamente desses agregados (separadamente do corpo e da mente); não é um chefe, controlador ou habitante desses agregados; e não pode ser conhecido por si só, separadamente desses agregados. Além disso, sua existência não é estabelecida por algumas características inerentemente encontradas por parte dos agregados que permitem que o "eu" seja corretamente imputado (rotulado) neles. Pelo contrário, o "eu" é estabelecido (provado) como algo convencionalmente existente apenas pelo fato de ser validamente imputável aos agregados. Assim como uma ilusão, o “eu” parece existir de uma maneira diferente dessa. No entanto, apesar de sua aparência enganosa e de ser desprovido da maneira impossível de existência que parece ter, o "eu" ainda funciona.

Entendendo Primeiro que o “Eu” é Como uma Ilusão

Mesmo antes de compreendermos a posição Prasangika sobre o “eu” ser como uma ilusão, se conseguirmos entender a visão não-Prasangika, podemos começar a aplicar a analogia de uma ilusão a outros fenômenos também. Isto é importante, porque o “eu” não existe isolado de outros fenômenos. O “eu” vivencia os fenômenos. Ele é afetado pela inconsciência (ignorância) e, portanto, vivencia as aparências enganosas dos fenômenos do samsara. Ele também pode ser afetado pela consciência discriminativa ou compreensão, e assim, o eu pode vivenciar a libertação. Portanto, é importante entender como os fenômenos existem. Embora, com exceção do sistema Prasangika, os vários sistemas filosóficos não defendam a inconsciência sobre como os fenômenos existem como sendo a verdadeira causa do samsara, ainda assim os seres samsáricos são inconscientes ou confusos nos que diz respeito a isso. (Note que todos os sistemas filosóficos Mahayana, com exceção do Prasangika, defendem que a inconsciência, no que diz respeito como os fenômenos existem, é um obscurecimento cognitivo que impede a onisciência, e não um obscurecimento emocional que impede a libertação. Os sistemas filosóficos Hinayana nem sequer defendem que há um conjunto de obscurecimentos que impedem a onisciência.)

Conforme vimos, quando focamos no "eu" que é imputado nos agregados, estes precisam aparecer à consciência. Portanto, embora o foco principal para obter a libertação esteja em nos livrarmos da inconsciência de como o “eu” existe, se houver confusão sobre a aparência dos agregados que devem aparecer ao focarmos no "eu", essa confusão causará problemas. Por esta razão, devemos também obter uma compreensão correta das duas verdades a respeito de todos os fenômenos que possam aparecer entre os fatores agregados de cada momento de nossa experiência. Este é o caso mesmo nos sistemas Hinayana, que não defendem a vacuidade de todos os fenômenos.

Se entendermos que os agregados que aparecem simultaneamente quando temos a cognição do "eu" são como uma ilusão, podemos ainda pensar que existe um "eu" "sólido", que existe e é conhecido separadamente destes agregados que estão aparecendo. Isso poderia acontecer se já não tivéssemos entendido que o “eu” é como uma ilusão. Portanto, precisamos entender primeiro a vacuidade do eu, antes de começarmos desconstruir com muita força as aparências enganadoras dos fenômenos.

Por outro lado, uma vez que temos uma compreensão inicial de que o eu é como uma ilusão, que é desprovido de formas impossíveis de existir, nossa compreensão de que os agregados também são como uma ilusão reforça nossa compreensão a respeito do eu. Afinal, se a base para rotular algo não é sólida, e sim como uma ilusão, como pode algo rotulado nela ser sólido? Também deve ser como uma ilusão.

Metodologia: Análise das Afirmações dos Sistemas Filosóficos

Uma forma de compreender os aspectos ilusórios dos fenômenos é através dos estágios indicados pelas afirmações progressivamente mais sutis das escolas filosóficas budistas indianas. Embora esta abordagem não seja tradicionalmente encontrada, eu sugeriria que seguíssemos a mesma estrutura acima, no que diz respeito aos aspectos ilusórios do eu. Com esta abordagem, podemos obter uma compreensão cada vez mais sofisticada dos aspectos ilusórios dos fenômenos, através da refutação e anulação de modos de existência impossíveis cada vez mais refinados.

Esta abordagem se baseia na afirmação de duas verdades – a superficial e a mais profunda - em cada sistema de princípios filosóficos. Nos sistemas Hinayana, as duas verdades são dois conjuntos de fenômenos verdadeiros. Embora os fenômenos verdadeiros superficiais (convencionais, relativos) escondam fenômenos verdadeiros mais profundos, no Hinayana os fenômenos superficiais não são tradicionalmente considerados como uma ilusão. Mas nos sistemas Mahayana, as duas verdades são dois fatos que dizem respeito a todos os fenômenos; e como a verdade superficial oculta a verdade mais profunda, as verdades superficiais são consideradas como uma ilusão. A fim de fazer um sistema de análise que abranja Hinayana e Mahayana, a abordagem não-tradicional sugerida aqui olha com uma visão Mahayana para as duas verdades do Hinayana. Em outras palavras, olha para os dois fenômenos verdadeiros defendidos no Hinayana como se fossem duas verdades sobre um único fenômeno - os agregados – com o objetivo de compreendermos que todos os níveis de verdade superficial sobre os agregados são como uma ilusão.

Vaibhashika

Os cinco agregados referem-se aos fatores mutantes que compõem cada momento de nossa experiência diária. Eles consistem em formas de fenômenos físicos, formas de se estar consciente das coisas e certas abstrações funcionais (como a impermanência) imputáveis nelas.

As formas de fenômenos físicos que experimentamos, tais como objetos que vemos ou sentimos, parecem ser concretas. No entanto, são como uma ilusão, porque [os objetos] são na verdade uma coleção de partículas minúsculas. A sua aparência como uma entidade concreta é apenas a sua verdade superficial (convencional). Sua verdade mais profunda (absoluta) é o conjunto de partículas que as compõem.

Esta compreensão pode ajudar-nos enormemente. Embora o Vaibhashika não afirme que a verdade superficial de algo seja como uma ilusão, podemos aplicar esta analogia para nos ajudar a superar o sofrimento.

Por exemplo, quando vemos uma marca de arranhão no nosso carro e ficamos chateados e com raiva, podemos desconstruir o carro e a marca de arranhão nos átomos que os compõem. O que então é o objeto de nossa raiva? A solidez do carro e da marca de arranhão é como uma ilusão. No nível mais profundo, o carro e a marca de arranhão são apenas conjuntos de átomos. Estamos com raiva de átomos? Quando sentimos uma dor nas costas, são os átomos das costas que nos causam a dor?

Quando os objetos que aparecem para focarmos no "eu" são os fatores agregados da experiência de ver um conjunto de átomos, a raiva que acompanha aquele momento diminui, e torna-se mais fácil entender a ausência de um "eu" que existe como uma "alma" concreta.

Da mesma forma, a fala que ouvimos é constituída pelos sons de cada sílaba. O som de cada sílaba que ouvimos existe apenas por um momento e depois não existe mais. Assim, o som de uma frase completa existindo de uma só vez, como uma entidade concreta, é como uma ilusão. Só existe o som de uma sílaba de cada vez. Assim, quando ouvimos uma frase de insulto dirigida a nós, qual das sílabas que a compõem é o objeto que nos causa raiva?

O primeiro insight importante do Vaibhashika, sobre os fenômenos que experimentamos no samsara, é que eles são feitos de partes minúsculas. O segundo diz respeito à impermanência.

As situações que encontramos - sejam agradáveis, desagradáveis ou neutras - parecem ser permanentes, no sentido de serem estáticas, imutáveis. É como se ao passarmos por uma situação (como sentir mágoa por ser rejeitado por alguém), tirássemos uma fotografia dela, e a imagem estática daquele momento, captada na fotografia, fosse a situação em si. Isto é como uma ilusão. Não existe nenhuma situação nessa forma impossível, de ser como uma fotografia estática. Compreender isto ajuda-nos a superar o sofrimento.

Podemos compreender essa ilusão em dois níveis. O primeiro é a ilusão de que a situação vai durar para sempre da maneira que aparece na foto. Quando refutamos isso, ainda ficamos com a fotografia estática, e meramente com a compreensão de que em algum tempo no futuro a situação vai acabar. No entanto, até lá, parece que a situação permanecerá basicamente a mesma. Isso, também, é como uma ilusão. A cada momento, a situação está mudando e a aproximando-se do fim. Esta é a sua impermanência sutil.

Além disso, o evento que marca o fim da situação, como o encontro com outra pessoa, parece ser a causa do fim da situação de estar magoado. Isso, no entanto, também é como uma ilusão. A causa real para o fim da situação de estar magoado é, em primeiro lugar, o fato de que a situação surgiu; e seu surgimento se deve a um conjunto de muitas causas.

Sautrantika

Uma vez que consigamos desconstruir a aparência do que experimentamos, no que diz respeito à ilusão de que isso é concreto, de que durará para sempre, de que não muda momento a momento, a visão Sautrantika nos ajuda a ir além.

Por que os fenômenos que são como uma ilusão nos causam problemas? Nem todos têm problemas com os mesmos objetos ou situações, por isso deve ter algo a ver com as nossas mentes. A verdade superficial sobre esses objetos são as projeções que fazemos sobre eles. Por exemplo, projetamos no risco (do carro) a imagem de ser um desastre - a pior coisa do mundo, o maior crime do século. Esse modo de existência, no entanto, é como uma ilusão.

A verdade mais profunda é simplesmente a realidade objetiva do objeto. É apenas uma marca de arranhão, constituída de um conjunto de átomos, e é impermanente. A causa de o carro ter se danificado foi o fato dele ter sido fabricado. O fato do outro carro ter colidido com ele foi apenas a circunstância para o dano aparecer. O insight do Sautrantika de separar as projeções da realidade objetiva, portanto, nos aproxima mais da compreensão da relação entre nossa percepção, nossos problemas e os fatos objetivos.

Chittamatra

Os insights do Vaibhashika e do Sautrantika dizem respeito aos fenômenos que vivenciamos, que são a base para rotularmos "eu" – eu os estou experimentando em cinco agregados. Mesmo tendo essa percepção, ainda corremos o perigo de culpar a realidade objetiva por nossos problemas. Com a compreensão do Vaibhashika, nos livramos de nosso conceito equivocado de que as coisas são concretas e permanentes. Com a compreensão do Sautrantika, vamos mais longe e nos livramos de todas as outras projeções. No entanto, ainda ficamos com a realidade objetiva, "lá fora", esperando por nós, para nos causar problemas. Mesmo que compreendamos que é o nosso carma que nos faz encontrar esses fenômenos da realidade objetiva, podemos ainda sentir que os fenômenos objetivamente reais são as causas dos nossos problemas.

O Chittamatra nos ajuda a olhar para na nossa própria mente e para a confusão que existe nela como causa de todos os nossos problemas. Assim, é como uma ilusão que os objetos que encontramos estejam "lá fora", na próxima esquina, esperando que tomemos consciência deles. Temos que entender que o que percebemos são aparências cognitivas.

As apresentações do Vaibhashika e do Sautrantika preparam o caminho para compreendermos isso. De acordo com o Vaibhashika, vemos os objetos externos diretamente, não através de uma aparência cognitiva. De acordo com o Gelug Sautrantika, vemos objetos externos através de aparências cognitivas transparentes, que são representações cognitivas dos objetos. De acordo com o não-Gelug Sautrantika, nunca vemos objetos externos, porque o momento A do objeto faz com que a aparência cognitiva dele surja no momento B. E no momento B, o momento A já não existe mais. Assim, embora existam objetos externos, o que vemos é apenas a aparências cognitivas deles.

O Chittamatra enfatiza o fato de que as aparências cognitivas que vemos e a consciência sensorial que as vê vêm da mesma fonte natal, ou seja, da mesma semente de potencial cármico em nossos contínuos mentais. De fato, tudo o que vemos são aparências cognitivas, e são como uma ilusão, na medida em que parecem surgir de objetos reais objetivamente existentes lá fora, esperando para nos dar prazer ou dor. No entanto, eles não existem dessa forma impossível. O ônus ou culpa por todas as aparências que experimentamos está em nosso próprio carma, individual e compartilhado. Nós não podemos colocar a culpa de nosso sofrimento em situações externas ou em outras pessoas.

Embora a aparência da realidade objetiva externa seja como uma ilusão, os objetos do sentido que tomamos cognitivamente e que são como uma ilusão, funcionam. Sabemos que funcionam, porque os momentos de vivenciarmos os resultados deles surgem, como comer e depois sentir-se cheio. Causa e efeito funcionam, mas como uma ilusão.

Svatantrika Madhyamaka

A visão Chittamatra nos ajuda a compreender que o modo de aparecimento dos objetos sensoriais não é estabelecido pelos próprios objetos, mas pela mente que tem a cognição deles. As aparências dos objetos sensoriais dos quais tomamos consciência são estabelecidas a partir da mente. Este é o caso mesmo depois de termos eliminado falsas noções de que estas aparências são concretas (não são feitas de átomos ou partes) e que são permanentes, e depois de termos também eliminado todas as outras projeções conceptuais. Portanto, não há desculpa para colocarmos a culpa de nossos problemas em algo ou alguém "lá fora".

O Chittamatra, no entanto, afirma que apenas os objetos sensoriais que experimentamos são como ilusões. É como o exemplo de perceber que um filme é como uma ilusão, mas insistir que o projetor do filme deve ser real para que o filme possa ser projetado. Portanto, o Chittamatra não aplica a analogia de uma ilusão à consciência que vê os objetos sensoriais - embora essa consciência possa parecer não ter partes e identidades projetadas, como ser "muito inteligente" ou "muito ruim". Assim, se tivermos apenas a compreensão Chittamatra, ainda podemos ficar apegados à nossa mente, ou com raiva dela.

Precisamos ir mais fundo para entender que não apenas o modo como os objetos aparecem, mas também o modo como eles existem, é estabelecido pela mente. Além disso, precisamos entender isso em relação não só aos objetos dos sentidos, mas também à consciência que os percebe e a todos os outros fenômenos.

Isto nos leva ao insight do rotulamento mental (imputação). Todos os sistemas filosóficos, exceto o Prasangika, afirmam que a existência de todos os fenômenos é estabelecida por suas próprias características individuais e que estas não são meramente imputadas. O Svatantrika concorda que há algo por parte dos fenômenos validamente conhecíveis que estabelece a sua existência. No entanto, estas características definidoras encontráveis não podem estabelecer a existência de fenômenos validamente conhecíveis apenas pelo seu próprio poder. Pode parecer que essas características encontradas nos fenômenos estabelecem, por elas mesmas, a existência dos fenômenos, mas essa aparência é como uma ilusão. É apenas o fato de que fenômenos validamente conhecíveis podem ser validamente rotulados (imputados) com base nessas características encontráveis que estabelece a existência de fenômenos validamente conhecíveis.

Considere o seguinte. Se pensarmos que um cão é um gato e o rotularmos como "gato", isso faz do cão um gato? O Svatantrika explica que é apenas pelo fato de certos animais possuírem as características definidoras de um gato, encontrada em algum lugar no gato, que estes animais podem servir como base válida para o rotularmos "gato". Caso contrário, o rotulamento de qualquer coisa como qualquer coisa poderia ser válido. Como um cão não possui as características definidoras encontráveis de um gato, rotulá-lo de gato não é um rótulo mental válido.

Assim, com o insight do Svatantrika, entendemos que uma combinação de fatores externos e internos estabelece a existência de fenômenos. Este insight permite que a analogia de ser como uma ilusão se aplique a todos os fenômenos, tanto não-estáticos como estáticos (permanentes e impermanentes), e não apenas aos objetos dos sentidos.

Prasangika Madhyamaka

Com o entendimento do Vaibhashika, desconstruímos a aparência ilusória dos objetos sensoriais e da consciência como sendo concretos e permanentes. Com a compreensão do Sautrantika, nós eliminamos outras projeções que também fazemos sobre eles. E com a compreensão do Chittamatra, eliminamos o equívoco de que as aparências dos objetos sensoriais são estabelecidas a partir deles mesmos. Elas são estabelecidas pelos potenciais cármicos das mentes que os tomam cognitivamente. Com o entendimento Svatantrika, nós eliminamos o equívoco adicional de que a existência de um fenômeno validamente conhecido é estabelecida exclusivamente por ele. A existência de um fenômeno validamente conhecível é estabelecida por uma combinação de algo encontrável nele e de um rotulamento mental.

Mas segundo o Prasangika, embora todos os fenômenos pareçam ter características encontráveis neles mesmos, que estabelecem sua existência como "isto" ou "aquilo" juntamente com o rótulo "isto" ou "aquilo", isso é como uma ilusão. Se existissem tais características encontráveis, elas poderiam nos levar ao apego. E ainda poderíamos colocar a culpa por nossos problemas em objetos externos ou em um "eu" - deve haver algo inerentemente errado em mim, fazendo com que eu não seja bom. A verdadeira causa de nossos problemas, no entanto, é a mente criar aparições enganosas de modos impossíveis de existência, e a inconsciência e o apego que derivam disso.

Uma vez que as aparências enganosas dos modos impossíveis de existência são produzidas pela mente, ela precisa parar de projetá-las. Se a existência dos objetos como sendo "isto" ou "aquilo" fosse estabelecida por algo nos próprios objetos - mesmo que em conjunto com o rotulamento mental - isso poderia tirar o foco da nossa atenção do fato de que a confusão da mente é a fonte de nossos problemas. Poderia levar-nos a analisar apenas externamente os objetos para encontrar as características inerentes que fazem deles o que são, para que possamos rotulá-los mentalmente de forma correta. Portanto, precisamos entender a existência estabelecida apenas pelo rotulamento mental.

A existência de um fenômeno, segundo o Prasangika, é estabelecida apenas pelo fato dele poder ser validamente imputado (rotulado) numa base de imputação (base de rotulamento). Aquilo a que o rótulo se refere não se encontra na base de imputação. Nem mesmo as características definidoras as quais o rótulo se refere. O que estabelece o rotulamento de um fenômeno como sendo um rotulamento válido – consequentemente, o que estabelece que o fenômeno ao qual o rótulo se refere é um fenômeno existente que é validamente conhecível - são meramente critérios por parte da mente:

  • O rótulo tem de ser uma convenção bem conhecida.
  • O rótulo precisa não ser contradito por uma mente que conhece validamente a verdade superficial do fenômeno.
  • O rótulo precisa não ser contradito por uma mente que conhece validamente a verdade mais profunda do fenômeno.

Conclusão

Os sistemas indianos budistas de princípios filosóficos apresentam níveis graduais de compreensão, não apenas sobre a existência das coisas como uma ilusão, mas também sobre como a cognição funciona e sobre muitos outros aspectos importantes da vida. Ao estudar esses sistemas, é importante evitar pensar que são apenas teorias e nada mais. Eles fornecem um material essencial para que na meditação obtenhamos entendimentos cada vez mais profundos. O propósito de obter essas compreensões não é adquirir conhecimento intelectual, é aplicá-las na vida cotidiana, a fim de superar nossos problemas e nos capacitar a ajudar os outros da forma mais eficaz, levando-os à iluminação.

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