O Que Significa Compreender Algo?

Introdução

A compreensão é crucial não apenas no estudo e na prática do Dharma, mas também na vida cotidiana. Precisamos compreender não apenas vários pontos do Dharma, como a vacuidade, mas também as pessoas, seus problemas, o que dizem, o que querem dizer quando falam e assim por diante. Precisamos entender a nós mesmos e nossos próprios problemas. Mas o que significa compreender algo, em vez de sabê-lo ou simplesmente apreendê-lo de forma exata e decisiva? Nossas palavras para essas coisas têm vários significados e não são precisas. “Eu sei francês” e "eu entendo francês" têm praticamente o mesmo significado. Mas “eu captei o que você disse”, “eu sei o que você disse”, “eu entendo o que você disse” - são diferentes. Por outro lado, “Eu sei o que li” e “Eu compreendo o que li” podem ter significados ligeiramente diferentes, dependendo do que o falante quer dizer com essas declarações.

Em tibetano, nós diferenciamos:

  • sems - atividade mental, mera clareza e consciência (gsal-rig-tsam). Isso significa dar origem (shar-ba) a um objeto mental (um holograma mental, um “aspecto mental” de algo - rnam-pa) e se envolver mentalmente ('jug-pa) com ele, sem um “eu” ou uma mente separada fazendo isso, observando ou controlando.
  • shes-pa - identificar um objeto, rig-pa - estar ciente de um objeto, e 'dzin-pa - perceber um objeto. Todos são sinônimos. Cada um deles significa manter contínua e ativamente um objeto validamente cognoscível no campo da cognição, sempre e enquanto o objeto validamente cognoscível servir como objeto de cognição. Há muitas maneiras de identificar um objeto. Algumas são válidas, ou seja, não-fraudulentas (mi-bslu-ba), e outras não.
  • rtogs-pa - apreender algo. Significa identificar um objeto validamente cognoscível de forma exata e determinante.
  • go-ba - compreender algo. Esse termo não está claramente definido em tibetano.

“Apreender" e “compreender" não são sinônimos. Se compreedemos algo, também o apreendemos. Mas se o apreendemos, não necessariamente o compreendemos. Para descobrir a diferença entre apreender e compreender, vamos primeiro investigar o que é “apreender”.

Apreensão

Apreender algo significa identificá-lo de forma exata (yang-dag-pa) e determinante (nges-pa). Há quatro possibilidades de uma cognição ser exata e determinante:

  • Exata e determinante - a pessoa disse “sim” e você ouviu “sim” e tem a certeza disso
  • Impreciso e determinante - a pessoa disse “sim” e você ouviu “não” e tem a certeza disso
  • Exato e indeterminado - a pessoa disse “sim” e você ouviu “sim”, mas não tem a certeza
  • Impreciso e indeterminado - a pessoa disse “sim”, você ouviu “não”, mas não tem a certeza.

No entanto, mesmo que apreendamos de forma correta e determinante, podemos não compreender realmente o que a pessoa quis dizer com o “sim”.

Apreensão Explícita e Implícita

A apreensão pode ser explícita (dngos-su rtogs-pa) ou implícita (shugs-la rtogs-pa). A diferença é se surge ou não um holograma mental do objeto envolvido ('jug-yul). Por exemplo, quando apreendemos explicitamente o som de passos nas escadas, apreendemos implicitamente a presença de alguém lá. Um holograma mental da pessoa nas escadas não surge na cognição, mas sabemos que alguém está lá de forma exata e determinante.

Exatidão e Determinação

O que significam realmente “exato” e “determinante” na definição de apreensão, por exemplo, apreender com cognição auditiva o som do choro do nosso bebê?

“Exato” significa que reúne os três critérios de Dharmakirti para que uma cognição seja válida:

  • Está de acordo com a convenção: os bebês choram
  • Não é refutado por uma mente que identifica validamente a verdade convencional: os outros também conseguem ouvir o som.
  • Não é refutado por uma mente que identifica validamente a verdade mais profunda: os aryas não percebem o som de um bebê chorando independentemente de causas e condições e daquilo a que o rótulo mental “chorar” se refere.

No entanto, o fato de ouvirmos com exatidão o som do bebê que chora não significa necessariamente que compreendamos o que isso significa. O cachorro também consegue ouvir com exatidão o som do bebê chorando.

“Determinante” significa distinguir ('du-shes) um traço caraterístico (mtshan-nyid) do objeto que aparece (snang-yul) numa cognição e, com consciência discriminativa (shes-rab), não ter nenhuma hesitação indecisa (the-tshoms) sobre ele, para que mais tarde não surjam dúvidas. Isto significa que, quando apreendemos explicitamente o objeto, tal como quando ouvimos o som do bebê chorando e distinguimos a caraterística definidora do som como a caraterística do choro, apreendemos implicitamente o que é conhecido como “exclusões de objeto” (don rang-mtshan-gyi gzhan-sel). Estas excluem tudo o que não seja este item específico. Por exemplo, “não é o som do bebê que dorme” é a exclusão da caraterística do som do bebê que dorme. Outras exclusões de objectos incluem “nada além (ma-yin-pa-las log-pa) do som de um bebê que chora”, “nada além do som do meu bebê chorando”, etc.

Ser uma apreensão determinante significa que não é uma cognição não-determinante (snang-la ma-nges-pa), que seria quando não temos a certeza de que ouvimos algo, ou não temos a certeza de que o que ouvimos foi o som de um bebê chorando ou o som do meu bebê chorando. Também não é uma hesitação indecisa: “Talvez tenha ouvido ou talvez não tenha ouvido”. Mas mesmo que ouçamos, de forma determinante, o som do choro do nosso bebê, isso não significa necessariamente que compreendemos o seu significado.

Cognição Direta e Cognição Inferencial

A apreensão ocorre ou com cognição direta válida (mngon-sum tshad-ma) ou com cognição inferencial válida (rjes-dpag tshad-ma). “Válido” (tshad-ma) significa não-fraudulento. O Sautrantika acrescenta fresco (gsar) à definição de válido, mas o Prasangika afirma que todos os momentos de cognição são frescos.

“Direta”, de acordo com a Gelug Prasangika, significa que não depende diretamente de uma linha de raciocínio. A cognição direta pode ser conceitual (rtog-bcas) ou não conceitual (rtog-med). Conceitual significa que ela conhece seu objeto por meio de uma categoria (spyi) como seu objeto aparente.

  • No sistema Sautrantika, o mesmo termo (mngon-sum tshad-ma) é definido como “cognição pura”, que significa cognição que não é feita através de uma categoria. Neste sistema de princípios, portanto, a cognição pura é sempre não conceitual.

A cognição inferencial é sempre conceitual e se baseia em uma linha de raciocínio (rtags). Pode ser:

  • Inferência baseada no poder de como as coisas são de fato (dngos-stobs rjes-dpag) - lógica dedutiva baseada na natureza das coisas. Por exemplo, com base no fato de que “onde há fumaça, há fogo”, deduzimos a presença do fogo quando, especificamente, vemos fumaça.
  • Inferência baseada no reconhecimento convencional (grags-pa'i rjes-dpag) - por exemplo, ouvimos um som e, com base no fato de ser conhecido por convenção como sendo o som de uma palavra, inferimos que é o som de uma palavra específica e inferimos o significado específico atribuído também por convenção a essa palavra.
  • Inferência baseada na confiança (yid-ches rjes-dpag) - porque a fonte de informação é fiável, inferimos que o que ele ou ela diz ou escreve é verdade. Por exemplo, inferimos a exatidão da data e hora do nosso nascimento com base na confiança de que a nossa mãe é uma fonte de informação válida para este fato.

Apreensão na Cognição Conceitual

O exemplo da apreensão do som do choro do nosso bebê é um exemplo de apreensão na categoria de cognição direta não conceitual. Discutiremos como isso funciona a seguir. Mas, primeiro, como funciona a apreensão em uma cognição conceitual, por exemplo, a inferência baseada em reconhecimento convencional, como quando ouvimos ou lemos a palavra “vacuidade”?

Conceitual significa conhecer por meio de uma categoria, seja uma categoria auditiva (sgra-spyi) ou uma categoria de significado (don-spyi). Isso ocorre em etapas:

  1. Primeiro, apreendemos o som “vacuidade” que ouvimos de forma não conceitual. Ouvimos o som corretamente e temos certeza absoluta de que ouvimos esse som e não outro qualquer.
  2.  Por meio da categoria auditiva da “vacuidade”, reconhecemos esse som como sendo o som da palavra “vacuidade”. Por meio dessa categoria auditiva, não importa como esse som tenha sido pronunciado, em qualquer volume e em qualquer voz, reconhecemos todos eles como sendo o som da palavra “vacuidade”. Quando apreendemos conceitualmente esse som como sendo o som da palavra “vacuidade”, também o percebemos de forma exata e determinante. Não é o som de nenhuma outra palavra. Temos certeza absoluta de que não era o som de nada além da palavra “vacuidade”. Se acharmos que ouvimos uma palavra diferente ou não tivermos certeza de qual palavra ouvimos, então não apreendemos a palavra.
  3.  Por meio da categoria de significado de “vacuidade”, reconhecemos a palavra “vacuidade” como tendo o significado de “a ausência total de uma forma impossível de existir”. Não importa se ouvimos a palavra “vazio”, “vacuidade”, “shunyata”, “tongpa-nyi”, “Leerheit” ou “vacuité”, nós as reconhecemos como tendo o mesmo significado.

Podemos aplicar os mesmos três critérios para a validade desse significado que aplicamos para o som do choro.

  • Está de acordo com a convenção que um grupo de pessoas atribuiu esse som como sendo o som da palavra “vacuidade” e que essa palavra tem essa definição.
  • Não é refutado por textos clássicos e professores qualificados.
  • Não é refutado pelos aryas que sabem que as palavras não têm significados estabelecidos inerentemente que sejam independentes da rotulagem mental.

Se aplicarmos um significado incorreto à palavra “vacuidade” ou não tivermos certeza do que ela significa, então não apreendemos o significado da palavra “vacuidade”. Entretanto, só porque apreendemos de forma correta e determinante o som que ouvimos como sendo o som da palavra “vacuidade” e só porque apreendemos de forma correta e determinante o significado da palavra “vacuidade” como sendo “a total ausência de formas impossíveis de existir”, isso ainda não significa que necessariamente compreendemos a vacuidade. Considere o exemplo da leitura de uma frase complexa em um texto de Tsongkhapa sobre a vacuidade: poderíamos apreender cada palavra e o significado de cada palavra de forma correta e determinante, mas não compreenderíamos a frase de forma alguma. Poderíamos até mesmo apreender diferentes níveis do significado da palavra “vacuidade”, como se significasse isso para Chittamatra, aquilo para Svatantrika e aquilo outro para Prasangika, e ainda assim não compreenderíamos realmente a vacuidade.

Compreendendo Algo Conceitualmente

Quando compreendemos algo, como a vacuidade, não apenas o apreendemos, mas também somos capazes de inferir suas implicações. Quanto mais implicações tivermos, maior será nossa compreensão. Somos capazes de juntar a vacuidade com muitos outros ensinamentos que recebemos, como, por exemplo, a cognição da vacuidade nos livra das emoções perturbadoras e do carma. Podemos aplicar nosso entendimento da vacuidade para analisar outros tópicos. Essa compreensão também precisa ser exata e determinante.

Quando temos uma compreensão correta da vacuidade e nos concentramos conceitualmente na vacuidade, embora a apreendamos de forma correta e determinante, não trazemos simultaneamente à mente todas as implicações. No entanto, nossa apreensão da vacuidade é mantida pela força das latências (sa-bon) de termos elaborado as implicações previamente por meio de inferência e deduções.

Apreensão e Compreensão de Algo de forma Não Conceitual

Para explicar como apreendemos e compreendemos algo de forma não conceitual, precisamos descrever estágios progressivos. Primeiro, vamos usar um exemplo simples:

Quando apreendemos algo de forma não conceitual, por exemplo, quando um cachorro está na frente de um bebê e este vê formas coloridas, que é a cognição não conceitual, então, de acordo com a Gelugpa, o bebê não está vendo apenas formas coloridas desconexas ou imagens desconexas que duram um segundo. Ele vê o todo que elas constituem, tanto espacial quanto temporalmente. Itens inteiros são chamados de “sínteses mentais de coleção” (tshogs-spyi). Em outras palavras, quando formas coloridas aparecem no campo sensorial visual, o bebê consegue distinguir as características incomuns de um conjunto delas que, juntas, constituem um item individual. Essa distinção é chamada de “distinção que usa um traço característico relativo a um item” (don-la mtshan-mar 'dzin-pa'i 'du-shes). Esses traços característicos que essa distinção assume não são compartilhados com as formas coloridas que constituem o plano de fundo, por exemplo, a parede atrás do cachorro. O item convencional individual que é distinguido é uma síntese de formas coloridas, partes como pernas, cabeça, cauda etc. e também uma síntese de pelo menos vários momentos de percepção. Isso acontece mesmo quando o animal está se movendo, caso em que o bebê vê formas coloridas diferentes.

Além disso, quando o bebê vê essas formas coloridas, ele distingue os traços característicos incomuns do tipo de item com que está lidando - nesse caso, os traços característicos de um cachorro. Em termos técnicos, ele vê uma “espécie de síntese mental” (rigs-spyi).

  • Mais tecnicamente, ele distingue os traços característicos (mtshan-nyid, as marcas características) de um cachorro e algo que tem esses traços característicos (mtshon-bya), ou seja, um cachorro, e distingue o cachorro como um objeto convencionalmente existente. Os traços característicos e algo que tem esses traços característicos não podem existir independentemente um do outro. Tampouco podem aparecer separadamente um do outro.
  • Embora, convencionalmente, os objetos validamente cognoscíveis tenham características, estas não podem ser encontradas no objeto e não têm o poder de estabelecer a existência geral do objeto ou a existência do fenômeno especificamente como isto e não aquilo. A existência estabelecida por marcas características individuais (rang-gi mtshan-nyid-kyis grub-pa) é uma forma impossível de estabelecer a existência de algo.

Em suma, quando o bebê vê essas formas coloridas dentro de um campo sensorial visual, ele também vê, de forma não conceitual, um cachorro como um item individual inteiro. Entretanto, o bebê não precisa saber o que é esse item para ver um cachorro.

Mais tecnicamente, as formas coloridas, as partes e os traços característicos são a base para a rotulação de “cachorro” e um cachorro é aquilo a que o rótulo “cachorro” se refere em relação a essa base. Embora uma base para rotular (gdags-gzhi) e aquilo a que um rótulo se refere (btags-chos) não existam independentemente de um rótulo mental (btags), o bebê não conhece o rótulo mental “cachorro”. Ele vê a que o rótulo “cachorro” se refere e a base para esse rótulo, mas não conhece o rótulo mental. Portanto, o bebê não precisa saber que essa base é chamada de “cachorro” ou como é chamada para que veja um cachorro. Em outras palavras, o bebê não precisa rotular mentalmente “cachorro” ou dizer a palavra “cachorro” em sua mente ou mesmo saber o que a palavra “cachorro” significa para ver um cachorro.

Quando éramos bebês, tivemos que aprender a categoria “cachorro”, o nome “cachorro” e seu significado. Esse foi um processo conceitual. Agora, quando vemos um cachorro de forma exata e determinante, nós o identificamos conceitualmente no momento seguinte, tanto de forma exata quanto determinante, por meio da categoria de significado “cachorro” - embora, mesmo assim, não necessariamente pensando no som da palavra “cachorro”. Nessa cognição conceitual, distinguimos uma característica composta (bkra-ba) do objeto que aparece, ou seja, a característica composta da categoria de significado “cachorro”, e atribuimos a essa categoria a convenção de que ela é o significado da palavra “cachorro”. Isso é conhecido como a distinção que assume um traço característico relativo a uma convenção (tha-snyad-la mtshan-mar 'dzin-pa'i 'du-shes).

Então, a cognição conceitual de um cão é como se, em nossa mente, colocássemos de forma exata e determinante o que vemos na caixa “cachorros”, como se ele realmente existisse em uma caixa - a categoria “cachorro” - independentemente de ser apenas aquilo a que o rótulo “cachorro” se refere. Essa compartimentalização ocorre por meio de um filtro adicional que aparece na cognição além da categoria de significado “cachorro”, ou seja, a distinção conceitual (ldog-pa) “nada além de um cachorro”. A distinção conceitual é uma exclusão mental de tudo o que é diferente (blo'i gzhan-sel) de cachorro e é um fenômeno conhecido de negação (dgag-pa).

Mas também poderíamos saber de forma exata e determinante que se trata de um cachorro de forma não conceitual quando o vemos com exatidão e determinação. Nesse caso, apreendemos explicitamente as formas coloridas, as partes e assim por diante como base para rotular “cachorro” e também apreendemos explicitamente a que o rótulo “cachorro” se refere. Esses são os hologramas mentais que aparecem para a cognição visual. Ao mesmo tempo, apreendemos implicitamente o rótulo mental “cachorro”. Nesse caso, o rótulo mental e a categoria “cachorro” não são os objetos que aparecem em nossa cognição visual. Embora saibamos implicitamente que se trata de um cachorro, não o estamos identificando conceitualmente de forma explícita por meio da categoria e do rótulo “cachorro”. Não o estamos identificando por meio do filtro da caixa “cachorros” na qual o encaixamos.

  • Com a apreensão explícita não conceitual de um cachorro, implicitamente também apreendemos a exclusão de objeto “nada além de um cachorro”. Mas, diferente da distinção conceitual por meio da qual ocorre a cognição conceitual de um cachorro, a exclusão de objeto não aparece na cognição não conceitual. Ainda que, como uma distinção conceitual, a exclusão de objeto também seja um fenômeno conhecido de negação, a cognição não conceitual do cão conhece o objeto envolvido simplesmente como um fenômeno de afirmação (sgrub-pa). Ela conhece seu objeto de forma afirmativa e não por meio da exclusão de tudo que não seja ele. Essa é outra grande diferença entre a cognição não conceitual e a cognição conceitual de um cachorro.

Quando temos uma compreensão não-conceitual de um cão, o que temos é uma apreensão não-conceitual de um cão, de forma exata e determinante, que implicitamente sabe que se trata de um cachorro e que é mantida com a força das latências de ter esclarecido previamente as implicações do que é um cão: ele pode morder, precisa ser levado para passear e, portanto, não pode ser deixado sozinho quando saímos de férias, e assim por diante.

Apreensão e Compreensão Conceituais e Não-conceituais da Vacuidade

A maneira pela qual a apreensão conceitual e não-conceitual da vacuidade também seria acompanhada pela compreensão é semelhante. A base para a vacuidade (stong-gzhi) aparece na primeira fase da meditação, por exemplo, os cinco fatores agregados que incluem o momento presente da experiência e o “eu” convencional imputado a eles. Na segunda fase, surge uma ausência dessas aparências, que aparece como um espaço em branco, como um espaço vazio.

No caso da cognição inferencial, essa ausência surge por meio da força da linha de raciocínio da refutação da existência verdadeiramente estabelecida e é enfocada por meio da categoria de significado “vacuidade”. No caso da cognição direta da vacuidade, ela surge sem a dependência direta de uma linha de raciocínio, embora no passado tenhamos trabalhado com as linhas de raciocínio. Essa cognição direta pode ou não ser feita por meio da categoria de significado “vacuidade”.

No caso da cognição não conceitual, entre as características desse espaço em branco que surge, a apreensão explícita da vacuidade distingue de forma exata e determinante não apenas as características de uma ausência de todas as aparências e uma ausência de todas as aparências de existência verdadeiramente estabelecida, como também os traços característicos de uma ausência total da própria existência verdadeiramente estabelecida - não existe tal coisa.

Compreensão Intelectual Versus Intuitiva

O que significa ter apenas uma compreensão intelectual versus uma compreensão intuitiva de algo? A epistemologia budista não diferencia essa divisão.

De acordo com a maioria das definições ocidentais, a compreensão intelectual é uma compreensão de algo que procede diretamente da força do raciocínio lógico. Pode ou não contar com o conhecimento empírico da experiência pessoal anterior (cognição direta).

A compreensão intuitiva não se baseia diretamente no raciocínio lógico. Alguns sistemas espirituais não budistas explicam que a compreensão intuitiva pode ser mística e derivar de uma fonte transcendente, como Deus. No budismo, falamos que a compreensão deriva da inspiração (byin-rlabs, “bênçãos”) dos budas ou de nossos professores espirituais, ou deriva do amadurecimento de nossa rede de força positiva (“coleção de méritos”). Isso é mais relevante na prática de mahamudra e dzogchen, na qual nosso professor nos ajuda literalmente a encarar de frente (ngo-sprod) a natureza de nossa mente.

Dzogchen também fala da “consciência profunda que surge por si só” (rang-byung ye-shes), que é primordial (gnyug-ma) e surge simultaneamente (lhan-skyes, inata) em cada momento de cognição. Essa consciência profunda faz parte da natureza da consciência pura (rig-pa), o nível mais sutil da atividade mental, desprovido de todas as manchas fugazes, como as da falta de consciência (ignorância). Quando acessamos esse nível mais profundo, a consciência profunda das duas verdades é revelada. Em termos ocidentais, classificaríamos essa consciência profunda como intuitiva.

No que se refere à compreensão intuitiva mais comum de algo, embora geralmente não tenhamos consciência da razão que nos leva a tê-la, na maioria dos casos ela surge do raciocínio inconsciente por analogia. Ela pode se basear meramente no conhecimento empírico que vem da experiência pessoal atual ou prévia, nesta vida ou em vidas passadas. Ou pode se basear na força do hábito persistente da cognição inferencial prévia, desenvolvido nesta vida ou em vidas passadas. Um exemplo é a capacidade intuitiva de operar um novo programa ou aplicativo de computador sem precisar ler as instruções. Mas o que dizer de uma compreensão intuitiva da impermanência, vacuidade, compaixão ou bodhichitta?

No uso ocidental desses dois termos - compreensão intuitiva e intelectual - precisamos diferenciar as categorias epistemológicas budistas de apreensão e compreensão. No que se refere à apreensão:

  • O que chamamos de “compreensão intelectual” inclui uma apreensão exata e determinante de algo, por exemplo, o que é vacuidade, compaixão ou bodhichitta
  • Uma compreensão intuitiva da impermanência, vacuidade, compaixão ou bodhichitta pode ou não apreender seu objeto. Às vezes, não é muito precisa não que diz respeito à exatidão ou determinação, ou a ambos. Podemos estar convencidos da exatidão de nossa concentração, por exemplo, na impermanência ou na vacuidade, desenvolvida a partir da intuição baseada na experiência pessoal, mas isso muitas vezes é apenas presunção (yid-dpyod): só estamos presumindo que é exato, embora seja bastante vago. Podemos ou não ser capazes de expressar nossa compreensão intuitiva de algo em palavras e isso é possível com ou sem a apreensão do objeto de forma exata e determinante pela nossa compreensão intuitiva.

No que se refere à compreensão das implicações da impermanência, da vacuidade, da compaixão ou da bodhichitta, podemos alcançar as implicações intelectualmente, o que significa elaborá-las por meio de raciocínio lógico e da impermanência logicamente coerente, da vacuidade e assim por diante, com outras facetas do Dharma. Ou podemos entender intuitivamente as implicações e como elas se encaixam em outras facetas do Dharma sem ter que elaborá-las; mas isso também pode ou não ser muito preciso ou determinante. Em geral, sentimos como se tudo se encaixasse automaticamente, “tudo se alinha”.

No entanto, o processo habitual é que nos concentremos em um tópico específico, como as características definidoras da atividade mental, e também em outros tópicos, como a natureza búdica e a bodhichitta, e depois juntemos todos eles, provavelmente usando a consciência profunda igualadora (mnyam-nyid ye-shes). Logo, sem usar uma linha formal de raciocínio, entendemos como esses três se encaixam. É difícil dizer se essa é uma compreensão intelectual ou intuitivo.

Compreensão Emocional

Quer obtenhamos nossa apreensão e compreensão de algo, por exemplo, da impermanência, da vacuidade, da compaixão ou da bodhichitta, confiando intelectualmente em linhas de raciocínio ou intuitivamente em outros meios, ambos são fenômenos não estáticos (mi-rtag-pa). Isso significa que ambos têm a capacidade de produzir efeitos (don-byed nus-pa) - nesse caso, efeitos transformadores. Sua Santidade o Dalai Lama menciona isso em relação ao desenvolvimento da compaixão, quando explica que a compaixão baseada na razão - “todos querem ser felizes e ninguém quer ser infeliz” - é mais estável do que a compaixão baseada apenas na emoção. Significa que podemos desenvolver a emoção construtiva da compaixão com base na razão.

Como sabemos que desenvolvemos uma emoção construtiva, como a compaixão? Se a definição de uma emoção perturbadora (nyon-mongs) é um estado mental que, quando surge, nos faz perder a paz mental e o autocontrole, então podemos inferir a definição de uma emoção construtiva. É um estado mental que, quando surge, nos dá paz de espírito e nos permite ter autocontrole. Quer desenvolvamos a compaixão intelectualmente ou intuitivamente, a compaixão que desenvolvemos em ambos os casos afeta positivamente nosso estado mental.

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Compreensão Profunda

No entanto, se aplicamos ou não nossa compreensão em nosso comportamento é outra questão e, mais uma vez, não há diferença se a nossa compreensão surgiu através da confiança direta em uma linha de raciocínio ou por outros meios. Quando ela impacta nosso comportamento de forma positiva, podemos dizer que temos uma compreensão profunda da compaixão.

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