Como é Possível Tomar uma Decisão?
Chegamos ao ponto de como tomamos uma decisão. Como surge uma decisão? Temos duas vontades, dois sentimentos, que surgem por conta de várias circunstâncias - gritar ou não gritar. Não é livre-arbítrio, pois não há um "eu" independente e verdadeiramente existente, encapsulado em plástico, sentado separadamente desses dois sentimentos que estão surgindo e existindo separadamente dessa dúvida aflitiva. Lembre-se, tudo isso está incluído nos cinco agregados. Dentre cinco agregados que compõem nossa experiência, esses dois desejos estão surgindo - a cognição, a cognição mental, a dúvida aflitiva, e depois o "eu" é rotulado nisso.
Não há nada de errado nisso. Está absolutamente correto, os cinco fatores agregados existem. Estamos apenas falando sobre o que compõe cada momento de nossa experiência. Não pense neles como caixas no céu categorizando as coisas. Não é disso que estamos falando. (Os cinco agregados) são apenas uma ferramenta esquemática para analisarmos cada momento de nossa experiência. Em cada momento, muitas e muitas coisas estão se interligando para formar a experiência:
- consciência, seja vendo ou ouvindo ou pensando,
- algum nível de felicidade ou infelicidade,
- algum nível de distinção de algo; caso contrário, seria um campo sensorial indiferenciado. Tenho de ser capaz de distinguir a forma colorida da sua cabeça da forma colorida do suéter da senhora atrás de você; caso contrário, não conseguiria lidar com o que está acontecendo. Isso geralmente é traduzido como reconhecimento, mas não é isso o que se quer dizer. Trata-se apenas de distinguir uma coisa da outra, do plano de fundo.
- Além disso, temos todas as emoções e a concentração.
E todas essas coisas estão acontecendo ao mesmo tempo. Esses são os cinco agregados - uma forma que estamos vendo, um som que estamos ouvindo, nosso corpo, etc. E podemos rotular isso como "eu". Eu. Eu não sou a palavra "eu". Não sou uma palavra. Sou aquilo a que a palavra se refere. A palavra refere-se a mim com base em todas essas coisas.
É muito importante entender isso. Eu não queria falar sobre isso, mas é importante, então vou dar meu exemplo clássico. Meu clássico exemplo do filme Guerra nas Estrelas. Temos o nome, o título do filme, "Guerra nas Estrelas". Guerra nas Estrelas não é apenas um título; não é o nome. A base não são apenas os quadros de plástico, mas cada momento do filme. Guerra nas Estrelas não é apenas um momento do filme, não é mesmo? Portanto, a palavra "Guerra nas Estrelas", o rótulo "Guerra nas Estrelas" - o título - se refere ao filme, o filme Guerra nas Estrelas de fato, com base em todos os momentos dele. Você está entendendo?
Então, isso sou eu. Eu não sou apenas um momento da minha experiência - eu - desde bebê até agora. Não sou nenhum desses momentos, e não sou o nome "eu" ou "Alex", esse nome se refere a algo com base em uma vida inteira. Esse é o "eu" convencional. Portanto, há uma grande diferença entre aquilo a que um rótulo ou palavra se refere e aquilo que corresponde à palavra. O que corresponde à palavra é algo encapsulado em plástico, como em um dicionário. Mas as coisas não existem assim, nessas pequenas categorias, como no dicionário: bom, ruim, etc. É isso que está ausente quando falamos em vacuidade, o fato de as coisas realmente corresponderem às nossas palavras e conceitos. Mas as palavras e os conceitos se referem - porque a linguagem é isso - a coisas. Há uma grande diferença. Essa é a chave para entendermos a diferença entre o "eu" convencional e o falso "eu".
O que é válido é o fato de as palavras se referirem a algo. O que não é válido é que as coisas correspondam ao que as palavras sugerem, que são categorias fixas com uma grande linha ao redor delas, (o que não é válido é) que as coisas existem em caixas: amor, ódio, calor, caixa. As coisas não existem em caixas. O que é o amor? Qual é o sentimento amor? Todo mundo tem muitas experiências diferentes de amor, e podemos dizer: "Sim, eu tenho amor por você". Portanto, amor se refere a algo. De fato, sentimos algo. Mas não há uma espécie de caixa aqui, amor, que corresponda à palavra, e não tiramos algo dela e então sentimos. É muito importante entender isso. Essa é realmente a essência.
Não existe um eu separado do que está surgindo aqui – a vontade de gritar, a vontade de não gritar e a dúvida aflitiva entre as duas. O eu é apenas rotulado nisso. Portanto, não há livre-arbítrio. O livre-arbítrio implicaria um eu separado de tudo isso.
Por outro lado, não é algo determinado, pois quando falamos de uma decisão que ainda não está acontecendo, podemos saber que a decisão ainda não está acontecendo. Sabemos que ela ainda não está acontecendo. O “ainda-não-acontecendo” é o que entendemos. O ainda-não-acontecendo de amanhã - qual é a base para o ainda-não-acontecendo de amanhã? A ausência de amanhã que está acontecendo no presente. Com base na ausência de amanhã que está acontecendo no presente, podemos imputar o ainda-não-acontecendo do amanhã. Está me acompanhando? Então, isso nós podemos fazer, imputar a não ocorrência da decisão com base na ausência da ocorrência da decisão, mas não podemos imputar validamente uma decisão ocorrendo no momento com base na ausência de uma decisão ocorrendo no momento.
Não sei se isso saiu direito. Vou dar um exemplo simples. O dia de hoje está acontecendo, portanto, há uma ausência do dia de amanhã. Podemos saber que dia de amanhã ainda não está acontecendo. Mas, com base na ausência do dia de amanhã hoje, não podemos imputar a ocorrência do dia de amanhã no momento presente, pois ele ainda não está acontecendo. É por isso que não é determinado. Essa é a verdadeira razão pela qual não é determinado. Na ausência de algo, você não pode dizer que há a presença de algo. Você só pode, na ausência de algo, dizer que algo ainda não aconteceu. Mas quando ainda não está acontecendo, você não pode dizer que já está, que está apenas esperando para aparecer? OK? Essa é a análise.
Posso dizer que há uma ausência e um potencial, mas não posso dizer nada sobre as qualidades que estão ligadas a ele, porque ainda é apenas um potencial?
Isso mesmo. É exatamente assim que entendemos o carma: há uma tendência para que algo aconteça, para que gritemos. Mas uma parte (do carma) é o resultado que ainda-não-está-amadurecendo que amadurecerá quando as circunstâncias estiverem completas. É por isso que podemos nos livrar das tendências, porque quando não há mais nenhuma circunstância que permita o amadurecimento do carma, não podemos dizer que há um potencial para ele amadurecer. E como essas tendências podem ser afetadas por muitas, muitas circunstâncias diferentes, há muitas possibilidades de formas em que o carma pode amadurecer.
Isso entra na mecânica quântica e na probabilidade. Se estiver interessado, tenho um artigo bastante complexo em meu site: O Que um Buda Sabe Quando Sabe do Passado, do Presente e do Futuro? Lá entramos em uma explicação usando a física quântica de todas as diferentes possibilidades do que um buda sabe. Mas você está avisado: esse é o artigo mais difícil do site. Porém, é importante, pois, caso contrário, entramos novamente em uma questão: Está determinado? O buda já sabe (o que vai acontecer)? De qualquer forma, vamos continuar.
[Veja: O Conhecimento de um Buda sobre o Passado, o Presente e o Futuro]
Portanto, nenhum dos dois extremos: nem livre-arbítrio nem determinismo. Quando ocorre uma decisão no presente - é assim que você deve entendê-la, ela está acontecendo - significa que estamos percebendo uma escolha (digamos, abster-se de gritar) e estamos percebendo com a consciência discriminativa correta de que esse curso de ação é benéfico. Isso é o que está acontecendo no momento da decisão. O ideal é que essa discriminação esteja baseada na análise das escolhas. E temos fatores mentais envolvidos nisso, que investigam a situação de forma detalhada e examinam os detalhes. Não preciso falar sobre tudo isso. E é claro que isso só pode acontecer se tivermos criado o hábito de analisar, de modo que a tendência de analisar dê origem a essa análise, e temos que ter uma motivação para querer analisar.
É possível ser muito mais complexo, pois também podemos analisar aqui o que tenho vontade de fazer, o que quero fazer e o que preciso fazer. Por exemplo, estou fazendo dieta. Passo em frente à padaria. Tenho vontade de comer um pedaço de bolo de chocolate, mas quero seguir minha dieta, e preciso seguir a dieta porque tenho pressão alta e preciso perder peso. Assim, você analisa todos os motivos: Por que estou me sentindo assim? Por que quero isso? Por que preciso disso? E então analisa a validade de cada um dos motivos. "Preciso perder peso para ser mais atraente e conquistar um parceiro." Isso se baseia em vaidade ou... Quais são os motivos pelos quais preciso fazer a dieta? Por que tenho vontade de fazer isso? "Porque tenho um grande apego ao bolo de chocolate." Você analisa quais são os motivos válidos. Ok. Então, com base nessa deliberação, o que devo fazer?
Você chega a uma conclusão. Decisiva. Você foca em uma decisão com a intenção de executá-la e com a consciência discriminativa correta de que isso será benéfico. E com todos os outros fatores mentais que darão suporte a isso: atenção plena ao Dharma, a concentração, a paciência, todas essas coisas.
O Papel da Força de Vontade
E onde entra a força de vontade na análise da tomada de decisão? A força de vontade faz parte da perseverança, uma das seis atitudes de longo alcance (seis perfeições): a perseverança que é como uma armadura. Essa é a perseverança para suportar quaisquer dificuldades que possam surgir na implementação de nossa decisão. "Não importa o quanto seja difícil, vou me abster de gritar." Isso é força de vontade, não é? Isso é principalmente o que sentimos como "eu escolhi". Mas a perseverança é um complexo de muitos componentes. Agora trazemos mais ensinamentos.
Shantideva - Bodhicharyavatara (Engajando-se no Comportamento do Bodhisattva) - explica seis fatores que estão envolvidos na perseverança:
- Força e vigor, acompanhados de uma forte intenção de implementar a decisão. Portanto, força: "Rrrr. Eu vou fazer isso".
- Depois, a firmeza para não voltar atrás na decisão e o orgulho próprio com o qual pensamos: "Eu serei capaz de cumprir minha decisão".
- Depois, ficar satisfeito e feliz com a decisão que estamos tomando. Caso contrário, mais tarde seremos atormentados por arrependimentos e voltaremos atrás - gritaremos depois de trinta segundos.
- Em seguida, deixar pra lá, o que, no caso de tomar uma decisão, significa não ficar remoendo a decisão que tomamos depois de tê-la tomado, mas continuar com o que vem a seguir. ok? "Decidi não gritar", "Decidi não ir ao cinema", "Decidi não ir à festa", o que quer que seja, e depois continuar com o que vem a seguir. Não fique pensando nisso. Deixe para lá.
- Em seguida, aceitar prontamente as dificuldades que podem estar envolvidas na decisão. Portanto, "Aceito que será difícil não gritar. Eu aceito isso". Você tem de estar disposto a aceitar isso. Não seja ingênuo.
- E, por fim, assumir o controle de nós mesmos para superar a preguiça e resolver "eu vou fazer isso".
Uma fantástica análise de Shantideva sobre o que está envolvido na perseverança, de realmente fazer uma coisa. Tudo bem? Tudo isso é necessário para tomar uma decisão. Não estamos analisando aqui a escolha do que devo comer no jantar. Quero dizer, isso é trivial. Estamos realmente tomando uma decisão: "Devo ou não agir de forma destrutiva?" A nossa iluminação será consequência de conseguirmos tomar essa decisão, discriminar. Toda a nossa iluminação depende disso. Se não conseguirmos tomar essa decisão, não haverá esperança. É aí que tudo começa.
Depois, no Abhidharmasamuccaya, Asanga explica outros cinco aspectos da perseverança:
- A coragem que é como uma armadura - precisamos da coragem que é como uma armadura para suportar as dificuldades – ela vem de nos lembrarmos da alegria com que tomamos nossa decisão. "Decidi me abster e estou feliz com isso." Isso requer muita coragem. Portanto, esse é outro fator.
- Em seguida, aplicamo-nos constante e respeitosamente à tarefa de implementar nossa decisão. Respeitosamente. Isso significa que respeito o que estou fazendo. Não é que eu pense "Oh, é terrível o que estou fazendo". Eu o honro (minha decisão): "Isso realmente vale a pena, pois estou me abstendo de gritar". Isso é muito profundo. Se tivermos uma autoimagem negativa - "Não sou bom", "Não consigo fazer isso", etc. - não vai funcionar. Temos que ter respeito por nós mesmos, saber que conseguimos agir de uma forma mais saudável.
- E nunca ficar desanimado ou deprimido com a decisão que tomou.
- E nunca voltar atrás.
- E nunca se tornar complacente. Por exemplo: "Bem, eu me abstive de gritar uma vez. Isso é o suficiente".
Essa é a análise de Asanga sobre o que precisamos. Ter uma forte perseverança significa suportar as dificuldades. Fazer o que tem que ser feito. "Eu vou fazer isso." Isso é o que está envolvido em uma decisão. Simplesmente tomar a decisão e depois não implementá-la não nos leva a lugar algum.
Portanto, todos esses fatores e aspectos da perseverança se interligam para dar força e energia ao processo de tomada de decisão. E como chamamos tudo isso? Chamamos de "força de vontade". Pense nisso. O que é força de vontade? Para a maioria das pessoas, é o que está envolvido em uma escolha: "É minha vontade fazer isso". Portanto, esta é a análise do que está envolvido nisso. Obviamente, você terá de ler essa lista mais tarde. Não espero que alguém consiga se lembrar dela. Coragem, força - "Não vou voltar atrás. Não vou ficar desanimado. Não estou cheio de dúvidas e arrependimentos", e tudo isso, e "Estou feliz e satisfeito com minha decisão".
Agora, quando todos esses fatores que podemos rotular de força de vontade estão presentes no momento de nossa experiência em que ocorre a tomada de decisão – eles são parte dos cinco agregados que compõem esse momento de experiência em que ocorre a tomada de decisão -, então imputamos o "eu" convencional em cima disso. Tudo bem? Nós imputamos, ou rotulamos, - há muitas palavras diferentes para isso - e isso nos permite vivenciar a ocorrência dessa decisão de não gritar como "eu tomei a decisão". Esse é o eu convencional - "Eu tomei a decisão" - rotulado no que está ocorrendo agora, e essa é uma imputação correta, um rótulo mental correto. Eu tomei a decisão; não foi outra pessoa. Isso é válido, mas não há um eu "separado" que está tomando a decisão, e a decisão também já não estava lá.
Agora poderíamos imputar coisas diferentes a esse conjunto do que está acontecendo neste momento, a ocorrência da tomada de decisão, a decisão que está ocorrendo. Se rotularmos o eu "convencional" nisso, estará correto. Se imputarmos um eu " verdadeiramente existente", um falso"eu", parecerá que foi livre-arbítrio - "eu tomei a decisão", um "eu” separado de tudo isso - porque rotulamos esse "eu” separado no que aconteceu e então dizemos – com um grande ego - "eu fiz isso". Está vendo a diferença? É tudo uma questão de como conceitualizamos.
Como você conceitua o que ocorreu? Ou com um eu convencional ("Eu fiz isso. Não foi outra pessoa.") ou com um eu separado com um grande ego ("Eu tomei a decisão", livre-arbítrio). E você vê o que acontece quando imputa o falso eu a esse acontecimento. Surge o orgulho: "Nossa, eu sou muito bom. Sou muito maravilhoso. Eu fiz isso". Ou "Nossa, eu fui um idiota em fazer isso. Isso é ridículo". Assim, as emoções perturbadoras surgem com base na rotulação de um "eu" realmente existente na tomada de decisão.
Se você rotular o eu convencional – sim, "Eu tomei a decisão", e daí? Você simplesmente segue, o que significa que está relaxado, relaxado em relação à disciplina ética, não tenso: "Ah, eu tenho que ser bom. O eu tem de ser bom e decidir isso" ou "Eu fiz isso, então sou muito bom". Isso seria ser muito rígido em relação à ética e a fazer escolhas. "Eu tenho que ser bom", esse tipo de sentimento. Tudo isso está envolvido no falso eu.
O mais terrível é que, se imputarmos o falso eu a esse processo de tomada de decisão, parecerá que o grande eu, o ego, tomou a decisão. Isso seria uma cognição enganosa ('khrul-shes), esse é o termo técnico. Ela nos engana, porque parece ser assim. É como se houvesse um "eu" separado, como se ele estivesse sentado à escrivaninha atrás de um painel de controle em minha cabeça, um pequeno "eu", e as decisões aparecessem no painel e eu decidisse e pressionasse o botão. É essa a sensação. Mas, isso é totalmente absurdo, não é? Porém, parece que é assim, não é? Isso é enganoso, e nós acreditamos. Acreditamos nisso. É daí que decorrem as emoções perturbadoras e todo tipo de coisas. Portanto, os estágios para superar isso são, é claro, quando esse sentimento surge, dizer: "Isso é ridículo. Isso não corresponde à realidade" e, por fim, quanto mais acostumados estivermos com isso, nem sequer surgirá a sensação de um eu separado tomando a decisão
E se imputarmos uma decisão verdadeiramente existente à decisão que surge de forma dependente, parecerá que ela foi determinada. Esse é o erro. Como rotulamos a decisão que surgiu? Apenas uma decisão convencional que surgiu na dependência (de várias causas e condições) ou uma decisão verdadeiramente existente? Se imputarmos uma decisão verdadeiramente existente, então ela já estava lá; foi determinada. E se sentirmos como se realmente fosse assim, acreditamos nisso. "Eu não tive escolha", é o que diríamos. "Não consegui me conter". Damos todo tipo de desculpas. O que está por trás disso? Acharmos que já estava determinado e que existe um "eu" realmente existente, separado de tudo, que não consegue agir diferente: "Pobre de mim". Portanto, rotulagem mental - muito importante.
Surgimento Dependente
Vimos que tudo o que discutimos... Desenvolver bodichita pela primeira vez surge na dependência de tudo o que discutimos e analisamos: renascimento humano precioso, abster-se de comportamentos destrutivos e todas as causas e condições necessárias para isso. E todos esses fatores e condições podem ser condensados em dois: força positiva e consciência discriminativa, nossas duas redes. Ou seja, básico, básico. E as oportunidades de desenvolvê-las só estão disponíveis nas raras ocasiões em que alcançamos um renascimento humano precioso.
Portanto, você pode ver que esse tipo de análise, quando aplicamos tudo o que vem depois no lam-rim a esse primeiro passo, (o desejo de) aproveitar o renascimento humano precioso fica muito mais forte: "Tenho que aproveitar esse renascimento humano precioso por causa de todas essas coisas que estamos discutindo. É somente nessa condição que consigo realmente fazer algum progresso".
A inspiração que vem dos budas não consegue superar a compulsão do nosso carma. Está vendo como é importante entender do que estamos falando aqui? Se traduzíssemos de outra forma, o resultado seria: "As bênçãos de um buda não conseguem superar as ações". O que isso quer dizer? Estamos falando de inspiração. Os budas... Há apenas uma quantidade determinada de energia no universo - parece física agora - apenas uma quantidade determinada de energia no universo, a energia da inspiração dos budas e a energia da compulsão de nosso carma, e uma não é mais forte do que a outra. Ok. Se a compulsão fosse mais forte do que a inspiração de um buda, ninguém conseguiria se iluminar. E se a inspiração pudesse negar a compulsão, todos já deveriam estar iluminados. Portanto, essas duas coisas são iguais e a nossa ignorância sem início, a inconsciência, está continuamente cancelando o progresso que fazemos.
O que precisamos é de força de vontade, força de vontade para superar a compulsão do carma negativo, para que consigamos tomar as decisões corretas com a consciência discriminativa correta que, por fim, nos levará a desenvolver bodichita pela primeira vez e, depois, desenvolver a força positiva que constrói a iluminação e que não pode ser esgotada ou destruída. E, como vimos, a força de vontade consiste em uma rede de muitos fatores e surge na dependência de muitos fatores que surgem de outros fatores. Portanto, a força de vontade é desprovida de existência autoestabelecida, precisamente porque surge de forma dependente - muitos fatores que surgem de outros fatores. Essa é, classicamente, a melhor razão para a vacuidade, um surgimento dependente. Não é que a força de vontade surja do nada e nós a utilizemos para tomar a decisão de não gritar; ela surge na dependência de muitos fatores diferentes.
A Importância da Força de Vontade
Tsongkhapa enfatiza a importância da força de vontade no Lam-rim chen-mo. Ele faz isso em sua apresentação das quatro forças com as quais podemos desenvolver bodichita pela primeira vez, quatro forças que são possíveis. Pode ser qualquer uma delas, mas também pode ser uma combinação. Geralmente é uma combinação. Esse é um ensinamento fantástico. Ele o extraiu do Bodhisattvabhumi (Estágios da Mente do Bodisatva) de Asanga.
1. A força de nossa própria força - força de vontade - de nossos próprios esforços e nossa força de vontade. Essa é uma força que podemos usar para desenvolver bodichita pela primeira vez. Tudo bem? "Eu vou fazer."
2. A segunda é a força dos outros, ou seja, contar com a inspiração, o apoio e a ajuda de outras pessoas, como, por exemplo, nossos professores espirituais e a comunidade espiritual.
Ouço isso o tempo todo de meus alunos. Eles estão sempre reclamando: "Não temos uma comunidade espiritual para nos apoiar". Não estou falando de pessoas aqui em Hamburgo; mas de pessoas na Rússia ou na Ucrânia, por exemplo. "Não tenho uma comunidade. Não tenho os professores. Não tenho apoio, então não consigo." Elas sentem que precisam do apoio de outras pessoas para conseguirem seguir o caminho espiritual, para terem força. Elas obtêm força dos outros para não agir de forma negativa, para desenvolver bodichita, etc. É claro que isso ajuda. Quero dizer, temos as Três Joias, portanto, temos a Sangha.
3. A terceira força é a força de uma causa. Isso significa que, pela força de termos nos familiarizado com os ensinamentos Mahayana em vidas anteriores, temos instintos de bodichita. Esses instintos surgem justamente quando simplesmente ouvimos falar do Buda, dos ensinamentos e assim por diante. De repente, muda uma chave dentro de nós e dizemos: "Uau, é isso que eu quero".
Tenho certeza de que muitos de vocês já passaram por isso. Isso é bastante frequente. Como você chegou ao budismo?
4. E a quarta força é a força da aplicação, que significa nos habituarmos a fatores construtivos por um longo tempo nesta vida. Isso significa trabalhar duro, confiar-se a um professor espiritual, pensar sobre o Dharma, meditar, todas essas coisas. Assim, desenvolvemos bodichita por meio da força do que fazemos nesta vida.
Tsongkhapa parafraseia Asanga e diz que se basearmos o desenvolvimento da bodichita em nossa própria força ou na força de uma causa de vidas anteriores, ela será firme, se manterá - será mais forte do que se o basearmos na força dos outros ou no esforço que fizermos nesta vida. Muito, muito interessante. Muito profundo. Pense nisso. Se você se sentir instintivamente atraído pelos ensinamentos Mahayana - "Não me importa o que as outras pessoas estão fazendo. Farei isso sozinho" - isso será muito mais firme do que dizer "Ah, preciso de uma comunidade e tenho que trabalhar muito". Isso faz sentido.
Por isso, fica claro que a força de vontade desempenha um papel importante na decisão de não agir de forma destrutiva. A força de vontade é muito importante. Portanto, a decisão que surge de forma dependente, baseada na força de vontade que surge de forma dependente, não é nem livre-arbítrio nem determinismo.
Adendos
Quanto mais analisamos, mais percebemos que devemos modificar nossa discussão. Isso se deve ao fato de que, uma vez que o tempo não teve um início, nós não só desenvolvemos bodichita inúmeras vezes como também desistimos dela inúmeras vezes. Portanto, devemos modificar nossa pergunta. Em vez de perguntar: "Como é possível alguém desenvolver bodichita pela primeira vez?", a pergunta passa a ser: "Como é possível alguém não desistir da bodichita pela primeira vez?" A resposta para isso é que a pessoa precisa ter tomado os votos de bodisatva e não os ter perdido por ter abandonado a bodichita. Nossa análise anterior ainda é válida, pois todos os fatores necessários para desenvolver a bodichita pela primeira vez também se aplicam a não desistir da bodichita pela primeira vez. O principal acréscimo à análise, então, é a força de vontade para manter os votos de bodisatva "mesmo que isso custe a nossa vida".
Resumo
Em suma, resumo, declaração final: Os seres todos não se iluminaram ainda porque o número incontável de decisões necessárias para desenvolver bodichita e não desistir dela pela primeira vez só ocorre por meio da originação dependente. Se ocorresse por meio do livre-arbítrio ou do determinismo, todos já teriam se iluminado. Portanto, quando fazemos a pergunta "Como desenvolvemos bodichita e não desistimos dela pela primeira vez?", a resposta é "por meio do surgimento dependente".
Essa é a apresentação e, na verdade, nos encaixamos nela. É incrível. Temos mais cinco minutos, então podemos meditar sobre isso. Se eu abrir para perguntas, não acabaremos nunca. Mas tudo isso é alimento para análise, alimento para reflexão. E mesmo que não tenhamos acompanhado tudo ou entendido tudo, espero que pelo menos você tenha aprendido como é o processo de análise.
Meditação analítica, que é pensar sobre os ensinamentos para se convencer deles, para entendê-los. (Chamamos isso de meditação analítica. Na verdade, a meditação analítica é o passo depois disso). Mas a análise está no ato de ouvir, de pensar e de meditar. Na verdade, está em pensar, o segundo passo. A meditação vem depois de já termos entendido e estarmos convencidos; então nos familiarizamos (isso é meditação). Ok? A meditação analítica é quando já estamos convencidos, por isso, percorremos a linha de raciocínio novamente apenas para refrescar nossa convicção, e depois nos concentramos nela. A meditação analítica é uma retomada, passar novamente pela linha de raciocínio. Já entendemos; já estamos convencidos. O processo de pensamento é passar pela análise a fim de entendê-la e se convencer. Essa é a segunda etapa. E é um processo de juntar todas as diferentes peças do quebra-cabeça. Quanto mais peças você junta, maior é o quadro que vê, mais você entende. E quanto mais fizermos isso, mais convicção teremos na mente onisciente de um buda - que é incrível que todas essas peças se encaixem de inúmeras maneiras. Isso também nos ajuda a buscar a iluminação. Isso também é apontado por Tsongkhapa.
Agora só nos resta um minuto, portanto, vamos refletir, e eu controlarei minha compulsão de falar mais.
[meditação]
Dedicação
OK, então terminamos com a dedicação... Agora lembrem-se, esperamos ter acumulado alguma força positiva ao ouvir tudo isso, e se não a dedicarmos, ela irá automaticamente para a pasta de construção do samsara em nosso computador interno. Isso ajudará a melhorar o nosso samsara. Portanto, temos que salvá-la conscientemente na pasta da iluminação, e não deixá-la ir automaticamente para a pasta do samsara. Exemplos absurdos são muito úteis. Esse é o método budista, o método prasanga. Portanto, mesmo que a bodichita aqui não seja sincera - quero dizer, esse é o ponto principal (ela realmente tem que ser sincera) - então temos o que chamamos de passo anterior, que é o fac-símile: é um pouco parecido. Mas não se limite às palavras: "Blá blá blá, que isso vá para a iluminação para o benefício de todos os seres sencientes". Um papagaio poderia dizer isso.
Portanto, seja qual for o entendimento, seja qual for a força positiva que tenha sido construída a partir disso, que ela atue como uma causa para realmente atingirmos a iluminação e, como na oração de Shantideva, não apenas para que nós atinjamos a iluminação (novamente, isso seria um pouco egoísta) - que ela atue como uma causa para que todos os seres atinjam a iluminação.