Uma abordagem equilibrada do budismo

No ocidente, as pessoas têm vários interesses e motivações para procurar um centro budista. Algumas, claro, estão realmente buscando um caminho espiritual, e com muita seriedade, mas outras só querem satisfazer um desejo por coisas exóticas ou conseguir alguma cura milagrosa quando estão sofrendo dificuldades físicas ou emocionais, ou então querem simplesmente estar na moda ou mesmo entreter-se com um professor carismático.  

Porém, mesmo chegando dessa maneira, essas pessoas podem eventualmente desenvolver um interesse sincero por aquilo que o dharma tem a oferecer. A primeira coisa que as pessoas fazem quando chegam a um centro budista é tentar descobrir do que se trata.  Talvez já tenham lido um pouco a respeito, mas é sempre melhor aprender diretamente com uma pessoa, seja um professor ou alguém do grupo.

Percebemos que costumam abordar o dharma de três maneiras: intelectual, emocional ou devocional.  Claro que vai muito do professor, de como ele apresenta o conteúdo e da inclinação da própria pessoa. E essas abordagens podem ser feitas de duas formas: madura ou imatura. Então, o que eu quero fazer aqui é discutir e ver como são essas duas possibilidades de abordar o dharma.

A Abordagem Intelectual

Uma abordagem intelectual imatura é uma abordagem baseada apenas na fascinação com a beleza do sistema. Os ensinamentos do dharma são realmente muito elaborados, complexos, e lindamente sofisticados. Podemos ficar completamente fascinados e só querermos aprender mais e mais coisas, saber mais e mais como funcionam a psicologia e a filosofia, e nunca realmente integrar. Não digerimos nada, não sentimos nada. Essa é uma abordagem extrema, que nos leva ao extremo da insensibilidade, por bloquearmos nossos sentimentos. 

Claro, a mente tem muitas artimanhas, especialmente se você tiver uma mente inteligente. Uma mente inteligente é muito boa em juntar informações e elaborar teorias. Essa capacidade de enxergar padrões, é chamada, no budismo, de consciência profunda equalizadora, e é a capacidade de enxergar o que as coisas tem em comum e organizá-las em categorias. A consciência profunda equalizadora é um dos cinco tipos de consciências profundas, ou “sabedorias búdicas”.

Mas o problema é que podemos encontrar muitos padrões, e a maioria não tem muito sentido. A mente cria tudo que é tipo de coisa; podemos elaborar inúmeras teorias sem sentido e lindas formas de organizar e categorizar os ensinamentos. E tudo isso pode não servir de nada; pode até nos tirar do caminho. Além disso, podemos ficar um pouco arrogantes por conta disso.  Costumo dizer que podemos ficar intoxicados com a beleza dos padrões e esquemas que percebemos. Esta seria uma abordagem intelectual imatura, ficar buscando mais e mais fatos, organizando-os e depois buscando ainda mais fatos.

Obviamente, existe também a abordagem intelectual madura, que seria tentar aprender os vários aspectos dos ensinamentos, no que diz respeito aos fatos, materiais, sistemas e assim por diante, para conseguirmos entender, integrar e aplicá-los. Como se diz, precisamos apreender os ensinamentos.  Mas são ensinamentos muito complexos. Às vezes essa complexidade acaba afastando as pessoas do budismo, principalmente no budismo tibetano.

Eu gosto de abordar essa complexidade como uma teoria de redes — eu gosto muito de redes. Estudar o dharma é muito parecido com a resolução de um quebra-cabeças. Temos várias partes, e a forma como podemos encaixá-las não é muito óbvia. Às vezes parece que uma peça é de uma outra parte do quebra-cabeças e outras vezes parece que nem pertence ao quebra-cabeças que estamos montando. Este é um grande desafio, tentar encaixá-las. E elas sempre se encaixam de uma forma multidimensional. 

É como estudar o lam-rim, o caminho de estágios graduais. Primeiro você passa por todos os passos, em sequência. Aprender na sequência correta é muito importante. Mas esse é apenas o primeiro passo do processo. Depois voltamos e tentamos ver como os ensinamentos mais avançados se encaixam nos mais básicos. E também tentamos encaixar todos os demais ensinamentos que obtivemos. E eles se encaixam, de muitas maneiras diferentes.

Costumo dizer que o perigo é fazer isso apenas porque é bonito; porque ficamos fascinados ao observar como as coisas se encaixam. Mas se fizermos com maturidade, nossa rede vai se ampliando à medida que progredimos nos diversos níveis. O importante é lembrarmos que, por mais diferentes que sejam as peças, todas se encaixam no grande quebra-cabeças. Às vezes parecem que não vão se encaixar, mas todas as peças se encaixam, de uma maneira ou de outra. 

Isso acontece quando estudamos os sistemas filosóficos budistas, as quatro escolas filosóficas indianas. Às vezes elas parecem muito estranhas, pois, no que diz respeito a como as teorias e tópicos são explicados, é tudo muito complexo, e quase contraditório. Mas tudo isso também se encaixa, em uma rede. Se a intenção original era essa, não se sabe; mas os tibetanos abordam esses diferentes sistemas filosóficos como se fossem estágios progressivos de compreensão e formação de ideias, que foram se desenvolvendo ao longo da história e ficando cada vez mais sofisticados e sutis em sua maneira de explicar as coisas. 

Meu professor, Serkong Rinpoche, costumava dizer que, à medida que progredimos no estudo, precisamos lembrar que as pessoas que pensavam conforme a escola Chittamatra (Mente Apenas), Vaibhashika ou Sautrantika, qualquer um desses sistemas filosóficos, não eram idiotas. Cada um deles é extremamente viável e útil, e todos foram ensinados pelo Buda, de uma forma ou de outra. Mas, claro que isso depende de como você define um buda; se você vê o Buda como uma figura histórica ou se vê através da visão Mahayana, onde um buda manifesta-se em zilhões de formas e em zilhões de lugares através dos tempos. De qualquer forma, todos esses sistemas foram ensinados para beneficiar os seres. 

Precisamos procurar entender, ver o mundo através de cada uma dessas visões. Assim, conseguiremos compreender o funcionamento e o motivo pelo qual a visão da realidade de cada uma das escolas pode ser necessária — estamos nos limitando aqui apenas ao tópico da realidade. Na escola Vaibhashika, por exemplo, que é considerada a escola mais básica, vemos que as coisas, apesar de parecerem totalmente sólidas, são feitas de átomos, que são constituídos de partículas, que são constituídas de momentos. Assim, desconstruímos nossa visão sólida da realidade, e isso tem um impacto muito profundo. 

Se conseguirmos realmente entender e trabalhar com essa ideia, teremos uma base para começarmos a estudar a visão Sautrantika, que começa a diferenciar as projeções mentais da realidade, daquilo que chamamos “realidade objetiva”. “Ok, entendo que meu corpo e tudo mais ao meu redor é constituído apenas de átomos e campos de energia, mas, e as minhas fantasias? Eu as projeto.” E então começamos a ver que: “Ok, existe uma realidade objetiva”. Isso nos trás de volta à Terra. Esse é o segundo passo.

Então você chega à visão Chittamatra, que acrescenta a relação com a mente. Não é que a mente projete apenas pensamentos conceituais; tudo está associado à mente. Não dá para falarmos em uma realidade objetiva, independente do karma. São os impulsos kármicos, as forças kármicas de cada pessoa, que criam as aparências que percebemos. Uma vez que compreendemos esse relacionamento da mente com tudo o que existe, podemos começar a modificar isso. E no Chittamatra começamos com as formas, mas então podemos modificar isso e aplicar à: “Bom, e como a mente em si existe?”

Então você começa a entrar na visão Madhyamaka e no relacionamento da mente com as aparências, com aquilo que experienciamos, e depois tem a questão dos rótulos mentais. Portanto, vemos que é uma progressão, e que tudo forma uma rede. Todas essas visões são válidas e nos ajudam. E quanto mais percebemos esse processo de desenvolvimento, mais conseguimos aplicá-lo e assimilá-lo. Assim, não ficamos só no aprendizado desses belos e complexos sistemas, só tentando obter mais informação e nos fascinando com sua sofisticação. 

Uma abordagem intelectual madura é olhar para esses ensinamentos extremamente complexos que encontramos no budismo e tentar integrá-los, e não só porque são belos, mas para assimilá-los, para ver como isso se aplica, como podemos aplicar esses ensinamentos. Acho que essa é uma importante consequência de tomarmos refúgio. Eu não gosto muito do termo “refúgio”, é muito passivo. Seria mais um processo de tomar uma “direção segura” na vida, seguindo o exemplo do Buda, do Dharma e da Sangha. 

Mas o que é a direção do dharma? É a direção da terceira e quarta nobre verdade, ou seja, o verdadeiro cessar e o verdadeiro caminho que leva a esse estado, um estado em que o sofrimento e suas causas cessam para sempre. Não é apenas um cessar momentâneo, porque um momento acaba, por conta da impermanência. O ponto é obter um cessar definitivo, de forma que não haja mais sofrimento, porque as causas do sofrimento cessaram; elas não voltarão a ocorrer. 

Esse é o nosso objetivo, é nisso que estamos mirando. E também no entendimento que nos levará a isso e que resultará disso. Essa é a nossa direção: a direção do verdadeiro cessar da confusão e de todo sofrimento que ela gera; e a obtenção de um estado mental realmente estável, que possua uma consciência profunda da realidade e seja capaz de sustentá-la o tempo todo. É isso que objetivamos, essa é a nossa direção segura. Os Budas são aqueles que alcançaram plenamente esse estado, e a sangha são os que alcançaram parcialmente. 

Os budas são os que indicaram essa direção através de seus ensinamentos verbais e suas próprias realizações; a sangha são os que nos ajudam, nos proporcionando sua “influência iluminada”. São pessoas que nos influenciam positivamente e estão seguindo a mesma direção que nós. Se realmente tomarmos essa direção, veremos que todos os ensinamentos do Buda tinham a intenção de nos guiar nessa direção. Não importa o quão estranho pareça um ensinamento, e às vezes parecem bem estranhos, se tivermos uma confiança realmente forte nessa direção segura, pensaremos: “Bom, o que isso realmente significa”? E não tomaremos o ensinamento literalmente. 

Do ponto de vista Mahayana, existem os significados que podem ser interpretados e os que são definitivos. Se algo pode ser interpretado, é necessário que seja, que não seja tomado literalmente, pois é um ensinamento cuja a intenção é aprofundar nossa compreensão. Então procuramos o significado mais profundo. Tentamos ver: “Para onde isso nos leva?” E confiamos que isso certamente nos leva ao verdadeiro cessar e ao verdadeiro caminho, o verdadeiro caminho da mente. Isso é muito importante, pois às vezes abordamos uma questão apenas intelectualmente e não percebemos para onde ela deveria nos levar. 

Mas, se mantivermos em mente que tudo aquilo com que nos envolvemos, mesmo que seja intelectualmente, é para nos levar ao verdadeiro cessar e ao verdadeiro caminho que conduzirá a nossa própria mente, o nosso próprio contínuo mental – e não só o do Buda –, ao verdadeiro cessar, buscaremos um significado mais profundo.  Não importa quão estranho um ensinamento pareça, não o iremos ignorar. O Buda deve tê-lo ensinado por algum motivo. E tentaremos associá-lo aos demais ensinamentos. Essa é uma abordagem intelectual madura, não fria.  

A Abordagem Emocional

A abordagem emocional também pode ser madura ou imatura. A forma emocionalmente imatura seria meditar e fazer vária práticas só para se acalmar e sentir-se bem. Há pessoas que meditam no amor a todos os seres e acham tudo maravilhoso “Que todos sejam felizes!”, e adoram sentir esse amor e essa emoção, mas não usam esse desenvolvimento emocional para superar suas próprias emoções e atitudes perturbadoras. Elas só querem aproveitar o bem-estar e o sentimento de amor por todos: “Tudo é tão bonito, tão maravilhoso”.

Enquanto a abordagem intelectual imatura pode degenerar em insensibilidade, a abordagem emocional imatura pode degenerar em uma sensibilidade excessiva ao lidar como os ensinamentos. As pessoas que lidam com o dharma de uma forma emocionalmente imatura, só querem saber das coisas boas, não querem saber dos infernos ou fantasmas, porque isso é muito ruim, não é agradável. Elas só querem a parte agradável, que as faz sentir bem. Essa abordagem, quando levada ao extremo, indica uma falta de compreensão do que está acontecendo; é só uma emoção forte. 

A forma madura de abordar emocionalmente o dharma é trabalhar nossas emoções para nos livrarmos das emoções perturbadoras e desenvolvermos emoções positivas. Isso é fundamental. Quando trabalhamos com emoções, temos que lidar com todas elas; temos que distinguir as positivas das negativas, as que ajudam e as que prejudicam, e aplicar vários métodos para aumentar as emoções positivas e diminuir as negativas, ao invés de simplesmente aproveitar as que gostamos, que nos fazem sentir bem.

O que eu acho que pode nos ajudar muito a ancorar nossas emoções na realidade é estender nossa meditação para além do reino da visualização. Quando nos restringimos às visualizações, podemos não nos conectar verdadeiramente às pessoas e situações. Sentamos e imaginamos que amamos todos os seres, mas isso é muito vago, não significa nada na verdade. Podemos tentar trabalhar nosso amor pelas criaturas dos infernos, nossa forma de lidar com as criaturas dos infernos, mas, na verdade, não estamos trabalhando com ninguém. Estamos em uma espécie de mundo dos sonhos, nos sentindo bem. 

O que eu acho muito eficaz é fazer essas meditações sentado em um círculo com outras pessoas, com os olhos abertos, como faço no meu programa de treinamento de sensibilidade, que está no meu livro Desenvolvendo uma Sensibilidade Equilibrada. Nesse treinamento, sentamos em um círculo com outras pessoas e tentamos desenvolver atitudes positivas em relação a essas pessoas, pessoas reais. E o que fazemos nesse programa é trabalhar em três níveis. Primeiro trabalhamos com as pessoas que não estão presentes, mas, ao invés de visualizá-las, o que para muitos é difícil, trabalhamos com fotos – não há nada de errado em trabalhar com fotos. 

Trabalhamos com fotos de pessoas com quem temos um relacionamento afetuoso, usando os exercícios do programa para desenvolver uma atitude zelosa, e tentamos ver essas pessoas como “Você é um ser humano que tem sentimentos, assim como eu. Um ser humano cujo estado de humor afeta a forma como se sente, assim como acontece comigo. E a forma com eu lhe tratar afetará seu humor e sentimentos, assim como a forma que você me tratar afetará o meu humor e sentimentos. Portanto, eu o respeito como ser humano, levo à sério seus sentimentos e zelo pelo seu bem-estar. Me preocupo com a forma como lhe trato”.

Isso é muito importante, é uma base para a disciplina ética. É o nome de todo um capítulo de Shantideva, e ele dedicou dois capítulos à autodisciplina ética. No tibetano, o título do primeiro capítulo significa ter uma atitude zelosa. Assim, evitamos ferir os outros, porque os levamos à sério, levamos seus sentimentos à sério e também o fato de que o nosso comportamento os afeta. Portanto, procuramos tratá-los da melhor maneira possível. 

Portanto, primeiro trabalhamos com as pessoas com quem temos um relacionamento afetuoso, usando a foto delas, e repetimos “Você é um ser humano, você tem sentimos, assim como eu” e assim por diante. Depois trabalhamos com fotos de estranhos, fotos de uma revista, e repetimos: “Você é um ser humano, você tem sentimos como eu” e assim por diante. Essa é uma prática muito importante quando trabalhamos com clientes, quer seja em uma loja ou em qualquer profissão que lide com pessoas. Sempre que uma pessoa nos abordar: “Você é um ser humano, você tem sentimentos e pode se magoar, dependendo da forma como eu lhe tratar, assim como a forma como você me trata pode afetar meus sentimentos”. Assim trabalhamos com fotos de estranhos

A seguir, trabalhamos com alguém com quem temos um relacionamento difícil, alguém de quem não gostamos: “Você também é um ser humano que tem sentimentos, assim como eu”. E depois trabalhamos com as pessoas do círculo, olhamos umas para as outras: “Você é um ser humano, você tem sentimentos assim como eu”. Olhamos para cada um, sentindo de verdade que ele ou ela é um ser humano e tem sentimentos e “se eu for rude com você, se o ignorar, se for bruto, você não se sentirá bem, você se sentirá mal, assim com eu me sentiria mal”.

Trabalhamos um a um, e isso é muito mais poderoso. Essa é a segunda fase. A terceira fase é trabalharmos conosco. Olhamos no espelho: “Sou um ser humano, tenho sentimentos como todo mundo e a forma como eu me trato vai me afetar. Se eu trabalhar demais, se não souber quando descansar, isso afetará minha interação com os outros, assim como o faria com qualquer pessoa”. Essa é uma forma de nos levarmos a sério e também de levarmos a sério o efeito que nosso comportamento tem sobre nós. 

A seguir, tentamos fazer isso sem o espelho; trabalhamos com nossas fotos antigas, especialmente de períodos difíceis: “eu era um ser humano, tinha sentimentos e estava tentando fazer o melhor que conseguia. Se, a pessoa que me tornarei daqui a dez anos olhasse para mim agora e sentisse vergonha de mim e de meus pensamentos, isso me machucaria muito; afinal, estou dando o melhor de mim. Da mesma forma, a pessoa que eu era há dez anos atrás não gostaria que eu tivesse vergonha dela, ou que me sentisse desconfortável ou incapaz de lidar com a pessoa que eu era naquela época”. 

Assim, aplicamos esse tipo de meditação – que lida com emoções, que lida com as atitudes que temos conosco e com os outros – de uma forma mais conectada. Essa é uma forma construtiva de trabalharmos com emoções, ao invés de apenas sentar e aproveitar as boas emoções: “Ah, isso é tão bom, que todos sejam felizes, lá-lá-lá”, esse tipo de coisa. 

E tem as pessoas que gostam de trabalhar com a ideia das terras puras: “Ah, eu adoraria ir para uma terra pura. Tudo seria maravilhoso. Lá é o paraíso, é muito agradável. O Bambi e todo mundo está lá”. Você se sente bem em pensar nisso e imaginar isso, e então faz várias práticas complexas para chegar na terra pura. Isso pode ser uma forma muito imatura de lidar com os ensinamentos das terras puras, pensar nelas como se fossem um paraíso, um ideal de contos de fadas ou algo do gênero. 

Uma forma madura de lidar com esses ensinamentos seria: “Bom, o que eu faria em uma terra pura?” Você não ficaria só na piscina jogando cartas com seus amigos. A grande qualidade da terra pura é que lá você não precisa lidar com todos os contratempos do samsara, de um corpo samsárico e de uma vida samsárica. Você não precisa se preocupar com comida, com um lugar para morar, com trabalho, com impostos, com ficar doente, e todas essas coisas que nos tomam muito tempo, que não nos permitem dedicar todo nosso tempo às atividades do dharma. 

Essas terras são puras no sentido de que são livres de tudo isso. Então a única coisa que você precisa fazer é praticar o tempo todo e se empenhar bastante na prática sem ter que lidar com essas outras distrações. E então você pensa: “uau, isso seria fantástico, seria maravilhoso não ter que trabalhar, cozinhar, limpar a casa e todas essas coisas. E não é por preguiça que não quero fazer isso. É que seria maravilhoso poder dedicar todo meu tempo e energia ao dharma, sem ter que ficar lidando o tempo todo como essas coisas samsáricas: cuidar do corpo e de tudo que diz respeito ao corpo”.

Assim, desenvolvemos uma abordagem mais emocional – que também entra um pouco na abordagem devocional, eu acho – das práticas de terra pura. Mas ao invés de “ lá-lá-lá, que maravilha seria ir para o paraíso”, podemos ter uma abordagem muito mais madura dos vários aspectos envolvidos em lidar com as emoções no dharma. 

A palavra emoção é interessante, envolve sentimentos também. E quando falamos de sentimentos, pelo menos no português, estamos incluindo tanto o espectro que vai da felicidade à infelicidade quanto os sentimentos gerados pelas emoções. E acho que os sentimentos do espectro da felicidade e infelicidade também podem ser tratados de uma forma madura ou imatura. A forma imatura é simplesmente querer sentir-se feliz.  Você vai ao centro budista, sente-se feliz, canta, medita no amor, todo mundo é amoroso, é tudo maravilhoso e todos sentem-se felizes. 

Mas normalmente bloqueamos os sentimentos de tristeza e sofrimento, especialmente no que diz respeito à prática do tonglen, de dar e receber. Podemos praticar bloqueando nossos sentimentos. Você pode até desenvolver amor e compaixão com sinceridade, “que todos sejam felizes e se livrem dos problemas”, e realmente sentir isso em um nível emocional. Mas, e quando é hora de tomarmos para nós o sofrimento do outro? Será que conseguimos sentir o sofrimento da mesma forma?

E quanto a sentir alegria quando damos alegria ao outro? Isso pode ser até mais desafiador, mas é muito importante sentirmos a alegria. Caso contrário, vira um exercício de visualização ao invés de todo um processo de total envolvimento emocional e sentimental.

No treinamento de sensibilidade, ensino que, para trabalhar com sentimentos e emoções sem bloqueá-los ou reprimi-los, precisamos de um ambiente adequado, uma atitude mental adequada.  A palavra que sugere o tipo de ambiente que precisamos é “equanimidade”, tanto na definição Teravada quanto na Mahayana. A definição Teravada é de um estado mental livre de agitação e torpor. 

Se nossa mente é muito agitada, cheia de pensamentos de preocupação, aversão, atração, cheia de tensões, muito ocupada, ansiosa, super protetora, com medos, etc, se a mente fica distraída com essas coisas, não conseguimos relaxar e nos abrir para os sentimentos. Em certo sentido, esses pensamentos e preocupações funcionam como uma barreira; deixam nossa mente ocupada para que não sintamos nada.
O outro aspecto é o torpor. Se você relaxa demais, é tomado pelo torpor e não consegue sentir nada, ou então fica sonolento. Mas se tivermos uma mente quieta, relaxada e fresca, ela cria um ambiente, uma parte do ambiente, onde conseguimos sentir as coisas. Eu chamo isso de “serenidade”, na falta de uma palavra melhor. 

O outro aspecto da equanimidade é um estado livre do apego, aversão e indiferença, que vem da definição Mahayana. Se você quer alguma coisa da outra pessoa, ou, se ao lidar com seus problemas fica obcecado com eles, fica muito difícil sentir alguma coisa, pois ficamos muito envolvidos com as emoções relacionadas ao apego e à obsessão com problemas que não conseguimos resolver.

E há também a aversão: “não quero lidar com isso, é muito difícil” ou “tenho medo”. E a indiferença, que seria “estou muito ocupado” ou “não estou nem aí”. Isso também precisa ser deixado de lado. Se você conseguir permanecer aberto nessas ocasiões, essa combinação de serenidade e equanimidade permite que as emoções fluam. Assim, podemos trabalhar com elas, com emoções como alegria e tristeza.

Portanto, você imagina o problema da pessoa e se “solidariza” com ela. Solidarizar-se é uma combinação de coisas. Envolve empatia – pois você tem que empatizar com o que a outra pessoa está sentindo, precisa interessar-se pelo o que a outra pessoa está sentindo. Se você não se interessar, não se importará com ela. Você tem que se interessar para ser capaz de sentir empatia.  Mesmo não conseguindo imaginar como é a dor de um câncer, a maioria de nós já teve alguma dor intensa, então podemos ter uma ideia de como deve ser. 

Solidarizar-se também envolve compaixão: “Que você se livre disso”, e uma disposição em envolver-se, em sentir o que a pessoa está sentindo. Então você imagina-se tomando o sofrimento para si e realmente sentindo o que a outra pessoa sente, ou então tenta imaginar o que ele sente. Quando sentir, você simplesmente deixa o sentimento estabelecer-se. É como se você fosse um grande oceano e o medo e a dor apenas uma pequena onda no meio desse oceano, uma onda que não perturba as profundezas do oceano, mas que sentimos.  

Depois de sentir isso por um tempinho, deixamos que lentamente e naturalmente se acalme. Quando conseguimos deixar que se acalme, vamos nos aprofundando cada vez mais, e conseguimos acessar – principalmente por termos esse ambiente seguro – um nível muito profundo da alegria sutil da mente aberta e relaxada. Não é uma alegria do tipo “eba, vamos pular e dançar”, mas uma alegria quieta e calma. E essa é a base para sentirmos felicidade e a doarmos aos outros. 

A alegria interna da paz mental não tem medo de sentir o sofrimento e não é destruída pelo sofrimento. E quando você deseja felicidade à outra pessoa, pensando “Que você seja feliz”, você está pensando em felicidade. Você tenta sentir felicidade, e isso aumenta essa alegria que é interna e quieta. E então surge um sentimento natural de felicidade, e é isso que damos aos outros, não é só uma felicidade imaginária.

Acho que esse é um bom exemplo de como podemos juntar muitas facetas dos ensinamentos e aplicá-las em uma prática como o tonglen, que talvez tenhamos aprendido em um nível muito introdutório. Mas é necessário aprofundarmos. Se realmente formos uma pessoa mais emocional, esse é um caminho muito propício para o nosso desenvolvimento, e podemos trabalhar nele com maturidade, ao invés de ficarmos apenas aproveitando os sentimentos. Temos que realmente trabalhar com eles, de uma forma estruturada. Essa é a abordagem emocional.

A Abordagem Devocional

Temos a abordagem intelectual, a abordagem emocional e a abordagem devocional. Assim como as demais, a abordagem devocional também pode ser madura ou imatura. Uma forma imatura de abordar seria: “Oh, como o Buda é maravilhoso, como as figuras búdicas, os yidams são maravilhosas, como Tara é maravilhosa! Como o professor é maravilhoso!  E como eu não sou nada comparado a ele.” Nos sentimos um verme, e lá em cima estão os budas, os gurus e todas as várias figuras. E vamos idolatrá-las e pedir sua ajuda, como se pede aos santos: “Santa Tara, Mãe Sagrada, me ajude!”

E o aspecto imaturo disso é que não nos responsabilizamos por nós mesmos, apenas rezamos para os vários budas e fazemos rituais. E se conseguirmos fazer nossos rituais com perfeição, se soubermos quando tocar o sino, quando bater no tamborzinho, quando fazer um mudra, quando fazer outro, como arrumar um altar perfeito com exatamente um grão de arroz de distância entre uma tigela de água e outra – “porque se a distância for de dois grãos vamos para o inferno” – e, “se fizermos isso com bastante devoção, seremos salvos”. Essa é uma forma um tanto imatura de abordar o dharma se formos devocionais. 

Uma abordagem devocional madura seria obter inspiração através do ritual. Rituais podem ser muito edificantes, muito inspiradores, se feitos com algum entendimento do que estamos fazendo. Podemos seguir uma prática ritualística todos os dias e nos beneficiar muito com ela, no sentido de que ela nos proporciona uma certa estabilidade na vida. Não importa o quão caótico seja o nosso dia ou a nossa agenda, não importa quão ocupados estejamos e quantas coisas tenhamos que fazer, sempre teremos uma parte do dia que é sagrada, em um certo sentido. Essa parte do dia funciona como um fator estabilizante, ela nos proporciona uma continuidade através dos altos de baixos do dia a dia. Isso pode ser muito inspirador.

Também pode ser muito inspirador seguir rituais que vem sendo feitos há séculos. Temos um sentimento de conexão com a tradição – isso encontramos em todas as religiões. Quando você segue um ritual, você se sente parte de uma comunidade de pessoas que fazem a mesma coisa. Esses são benefícios que se obtém com a prática devocional ou ritualística. A questão é que devemos ver esses rituais como instrumentos; eles não têm um fim em si mesmo.

O propósito do ritual é nos inspirar. O usamos como contexto para fazer várias práticas meditativas. Não fazemos os rituais apenas para mostrar como somos bons, porque nosso professor nos disse para o fazermos todos os dias e fazemos todos os dias com muita devoção, mas de uma forma meio mecânica, mantendo a tradição porque, em certo sentido, é nossa responsabilidade, porque se não fizéssemos o ritual, seríamos maus estudantes, más pessoas. Portanto, a parte devocional também tem dois aspectos, o maduro e o imaturo.

Equilibrando as Três Abordagens

Apesar de podermos falar dessas três abordagens separadamente, e reconhecer qual delas predomina em nós, acho que é muito importante buscarmos uma combinação ou um equilíbrio das três. Com isso, voltamos ao conceito de rede, de que todos os diferentes aspectos dos ensinamentos se encaixam. O mesmo acontece com diferentes abordagens, elas também se encaixam, se complementam.

Se utilizarmos uma única abordagem, sem incluir um pouco das demais, nossa prática ficará deficiente; deixaremos de obter os benefícios que poderíamos obter. Precisamos compreender com o lado intelectual, precisamos sentir em um nível emocional e precisamos obter inspiração, sentir-nos inspirados; isso é o que nos dá energia – isso é inspiração, essa energia que nos empurra, que nos mantém no caminho. 

Agora, você pode perguntar: “Qual a necessidade disso? Poderia explicar um pouco melhor?” Para uma pessoa mais emotiva, é importante aprender intelectualmente, pois às vezes você não se sente amoroso, você simplesmente não está amoroso. Então, o que acontece é que você só consegue praticar, praticar amor, por exemplo, quando está inspirado. Ao passo que, se tiver também uma abordagem intelectual, poderá utilizar-se de uma linha de raciocínio para cultivar esse amor.

É como as duas formas de abordar a meditação: intelectualmente ou intuitivamente. A abordagem intelectual utiliza uma linha de raciocínio para gerar um determinado estado mental. Para gerarmos equanimidade, por exemplo, usamos a meditação da causa e efeito em sete partes. Pensamos que todos já foram nossas mães em vidas passadas, que todos já foram gentis conosco e assim por diante, e tentamos gerar assim o sentimento.  A outra maneira de fazermos isso é nos aquietando. Se conseguirmos nos aquietar o suficiente – e essa é uma abordagem mais Mahamudra ou mais Zen – entraremos em contato com o amor que faz parte da natureza búdica.

Portanto, temos essas duas abordagens. Mas, às vezes, você não consegue se acalmar, ou não tem vontade, então você precisa desenvolver o sentimento utilizando uma linha de raciocínio: “Você é um ser humano assim como eu, tem sentimentos assim como eu...” esse é um processo intelectual, uma linha de raciocínio. É importante conseguirmos complementar o que já temos. Mas, por outro lado, é muito fácil seguir uma linha de raciocínio e não sentir nada. Precisamos ter o cuidado de complementar essa abordagem com uma meditação de quietude, assim a experiência surgirá com um pouco mais de naturalidade, para não ficar muito artificial. 

E para as pessoas mais emotivas, é importante perceber que mesmo que um sentimento seja gerado de uma forma artificial, isso não significa que ele não pode ajudar. Não é realista imaginar que os sentimentos de amor, compaixão e assim por diante são cem por cento sinceros. Não são. Isso é muito interessante. Sua Santidade diz que nossa motivação será sempre misturada. Sempre será um pouco autocentrada, sempre haverá um pouco de egoísmo. 

Do ponto de vista do dharma, podemos perguntar: “Bom, e qual é o limite? Quando esse egoísmo acaba? Quando o sentimento torna-se puro”? Bom, só quando você atingir a liberação do samsara, quando se tornar um arhat, quando atingir o oitavo bhumi do bodhisattva. Só então você se livrará do apego ao “eu”. Antes disso, a motivação sempre estará misturada a algum grau de apego ao “eu”. É muito bom percebermos isso, pois assim podemos ser mais realistas, não precisamos ficar nos martirizando, “Eu tenho que ser perfeito”, uma vez que isso realmente está além de nossa capacidade atual.

Trabalhamos com uma linha de raciocínio: “Por que deveríamos amar a todos? Ok, é por isto.” E trabalhamos com isso. No começo, não conseguimos sentir nada. Isso acontece. Há um bloqueio nos sentimentos. Por isso, precisamos nos aquietar, com serenidade e equanimidade, nos livrar da agitação, do torpor, da atração, da aversão e da indiferença, e também do medo e de estar sempre ocupado. Então combinamos a quietude com o pensamento lógico. Trabalhamos assim. Os intelectuais precisam desse lado emocional, porque a rigidez mental, a rigidez emocional, precisa diminuir.

E para as pessoas não devocionais, bem, às vezes precisamos dessa energia para nos resgatar, para nos inspirar quando não temos muita energia para praticar. Mesmo quando tendemos a ser predominantemente intelectuais e dizermos: “Ah, rituais, são só rituais e nada mais, não são o que há de mais profundo. Eu não quero gastar todo o meu tempo tocando um sino, balançando um Dordje e cantando. Não venho ao centro budista para praticar canto coral, eu quero praticar de verdade”. E, logicamente, o outro extremo é pensar que os rituais é que são a verdadeira prática, e os ensinamentos e o trabalho com as emoções não são. O fato é que as pessoas que não são devocionais precisam de uma fonte de inspiração.

Por um lado, essa fonte de inspiração pode ser o professor. O principal objetivo do relacionamento com um professor espiritual é a inspiração que ele nos proporciona. Um professor normal pode responder perguntas, por exemplo, e um terapeuta pode trabalhar com nossas emoções; mas a inspiração que vem de um exemplo vivo, isso é o professor espiritual que nos dá. Isso é o que nos dá energia. 

De acordo com o lam-rim, o professor espiritual é a raiz do caminho. Às vezes as pessoas se confundem com essa imagem, já que uma planta não começa com uma raiz; ela começa com uma semente. No entanto, a raiz é o que a prende ao chão e a alimenta. O relacionamento com um professor espiritual, um relacionamento profundo, não é o início do caminho, mas é aquilo que o ancora e lhe dá inspiração para crescer.

Essa inspiração também pode vir dos rituais, se os fizermos com o estado mental apropriado, claro. Portanto, essa é uma forma de nos equilibrarmos. 

Da mesma forma, podemos sentir um tremendo amor e apreciação pelo professor espiritual, mas só quando fazemos o Lama Chopa, o Guru Puja, é que pensamos em suas qualidades, no quanto ele nos ajudou, etc. Assim, esse tipo de prática nos dá algo para trabalhar esses sentimentos de uma forma positiva e construtiva, ao invés de apenas senti-los e nada mais. 

E para as pessoas devocionais, quando não conseguimos entender o que está acontecendo na vida, precisamos de mais do que apenas o conforto e a energia de um ritual. Precisamos entender o que está acontecendo, então uma abordagem intelectual pode nos ajudar muito. 

Para o intelectual, o ritual proporciona uma regularidade, um senso de continuidade. Além disso, fazer um ritual antes de começar a estudar intensamente diminui a nossa arrogância. Isso é muito importante para que nossa mente esteja mais aberta para entender com clareza, ao invés de: “Eu já sei tudo” ou “Eu tenho que aprender tudo, eu paguei, então me dá o máximo de informação”. 

Eu sei que eu isso me ajudou muito. Quando cheguei à Índia, em 1969, vinha de um ambiente extremamente intelectual, da Universidade de Harvard. Depois de um tempo me envolvi com as práticas do tantra. Tomei algumas iniciações e passei a fazer a recitação diária de algumas práticas em tibetano. Naquela época, não havia nenhum material traduzido, e o meu nível de entendimento do idioma tibetano, bem como minha experiência, não me permitiam traduzir as sadhanas ou mesmo entendê-las. Achei que essas recitações me ajudaram muito a diminuir minha arrogância. 

Eu era muito arrogante quando cheguei à Índia: “Eu não vou fazer algo que não entendo”. Isso poderia ter sido um grande obstáculo. Afinal, qual o entendimento mínimo que preciso para me dignar a fazer um ritual primitivo? Mas eu simplesmente fazia, e fazia com uma certa confiança de que eventualmente iria entender: “Quando eu estiver pronto e tiver algum domínio do idioma, conseguirei entender. Quando eu tiver algum domínio do dharma, meus professores me explicarão a sadhana”. 

Isso foi muito importante para o meu desenvolvimento. É nessas horas que realmente começamos a trabalhar a paciência e a perseverança. Pois mesmo que tenhamos uma tradução, normalmente ela é um tanto confusa. E mesmo que obtenhamos alguma explicação, isso também pode nos confundir um pouco. Na verdade, esse é o método. O método é dar uma explicação vaga, de propósito. 

É engraçado ler os textos raíz, os textos de Nagarjuna e dos vários grandes mestres, eles são completamente vagos. São cheios de pronomes que parecem não se referir a nada. Meu professor de inglês da faculdade diria: “Aquilo a que você se refere não está claro”. Esses textos são cheios de “isso” e “aquilo”. Serkong Rinpoche costumava dizer: “Não pense que Nagarjuna era incapaz de escrever com clareza, que não era um bom escritor. Ele, e os outros grandes mestres, escreveram assim de propósito”.

São vários os propósitos. Um deles é que, quando o texto é cheio de “isso” e “aquilo”, significa que cada um desses pronomes tem muitos significados, muitos níveis em que podem ser interpretados. A medida que você vai aprendendo, vai adicionando esses significados. Por isso, esses textos são chamados de raíz, de textos raíz, porque a raíz é de onde tudo cresce. Neles, todo o seu conhecimento caberá, em um certo sentido. Quando os recita, você vai preenchendo o significado.

Esse é um dos grandes problemas dos tradutores ocidentais; nos sentimos muito desconfortáveis, pelo menos alguns de nós, em escrever um texto cheio de “isso” e “aquilo”, queremos indicar o objeto a que esses pronomes se referem. Então indicamos, mas seguindo uma única tradição de comentários.  Com isso, o texto deixa de funcionar como um texto raíz, pois os demais comentários não se encaixam mais no texto. E os comentários e suas interpretações são extremamente diferentes uns dos outros. Então, tínhamos um texto que podia ser compreendido no nível Chittamatra, no nível Svatantrika e no nível Prasangika – que são diferentes sistemas filosóficos indianos – mas como não o deixamos vago e aberto, isso se torna um problema. 

Essa é uma das razões para o texto ser assim. A outra, que é particularmente válida para o tantra, é que isso funciona como um filtro automático. Você não quer explicar com muita clareza, caso contrário, as pessoas não valorizarão os ensinamentos. Assim, os que se contentarem com um ensinamento vago, ótimo. Mas os que realmente se interessam, esses irão voltar e pedir mais: “Será que você poderia explicar melhor”? E então você explica mais um pouquinho. E para algumas pessoas isso será suficiente...  Portanto, esse é um método que desenvolve paciência e perseverança

O treinamento no dharma não é só uma transferência de informações, é também um processo de desenvolvimento emocional, no que diz respeito à nossa personalidade. Fazer um ritual ou recitar um texto sem entender direito o significado, tendo apenas uma noção ou uma ideia, pode ser muito útil no processo de desenvolvimento da personalidade. Precisamos entender isso. 

Além disso, se tivermos maturidade, o relacionamento com um professor espiritual pode nos ajudar a desenvolver as três áreas. Um professor é desafiador intelectualmente, nos move emocionalmente (nossas emoções se movimentam ao estar com o professor) e é inspirador. Portanto, um professor, um professor espiritual, um professor espiritual muito bem qualificado, pode nos ajudar a desenvolver as três abordagens de uma forma equilibrada. 

Mas temos que cuidar para que esse relacionamento não seja apenas um duelo intelectual, para não ficarmos só argumentando e debatendo. Ficar só no duelo seria uma abordagem intelectual imatura. Ou, digamos que se apaixone pelo professor; isso seria uma abordagem emocional imatura. Ou digamos que tenha uma devoção cega: “Oh guru, guru, me diga o que fazer”.  Abandonamos toda e qualquer responsabilidade. Temos que evitar essas coisas. 

Logicamente, o professor precisa nos guiar; é preciso que haja uma interação, mas ele não pode permitir uma devoção cega. O professor não pode se colocar em um trono. No ocidente, principalmente, vejo gurus entrando na onda do “grande guru branco”. Isso é muito perigoso, isso encoraja uma devoção cega. Há os que flertam com os alunos, isso encoraja a paixão. E há os que são apenas afiados intelectualmente e frios, não tem nenhum tipo de relacionamento pessoal com os alunos; só chegam, ensinam e depois “tchau”, vão para o quarto. Isso tende a nos levar a um relacionamento de duelo intelectual. 

Porém, se o professor for capaz de sustentar um relacionamento adequado, esse relacionamento saudável com um professor espiritual nos levará a um equilíbrio das três abordagens.

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