Os Doze Elos: Carma, Mente & Agregados da Próxima Vida

Revisão

Estávamos falando sobre como, no budismo, a palavra mente se refere a uma atividade que continua indefinidamente, sem início nem fim. É a atividade mental de vivenciar coisas, e é um vivenciar individual e subjetivo. Não estamos falando aqui sobre vivências no sentido de eventos, que se acumulam, um depois do outro. Tampouco estamos falando de vivências no sentido de eventos emocionais, por exemplo: “Vivenciei uma coisa linda ontem.” Esse vivenciar não tem nem mesmo que ser consciente. Quando dormimos, geralmente não estamos conscientes do fato de que estamos dormindo, mas ainda assim estamos vivenciando o sono. Algo está acontecendo. Estamos falando disso. Ver, escutar, cheirar, degustar, sentir, e pensar são formas de vivenciar coisas. Dormir, sonhar, nascer, e morrer, são situações em que vivenciamos coisas. Até mesmo quando estamos em coma, ainda assim estamos vivenciando algo, no caso, o coma.

Esse vivenciar de coisas é individual e subjetivo. O que vivencio ao assistir ao mesmo filme que você é diferente do que você vivencia. O nosso vivenciar tem uma continuidade ininterrupta. Ele não surge simplesmente do nada no momento da concepção, e tampouco acaba no momento da morte, sem que haja um próximo momento de continuidade. Não faz absolutamente nenhum sentido dizer que um “nada” pode se tornar o vivenciar de algo e que o vivenciar de algo pode se tornar um “nada”. Somos levados então à conclusão que esse vivenciar subjetivo e individual não tem início nem fim. Isso significa que há uma continuidade de vidas. Há renascimentos.

O nosso vivenciar das coisas pode estar misturado à confusão ou pode ser livre de confusão. Quando ele é misturado à confusão, vivemos o samsara e o renascimento incontrolavelmente recorrente. A nossa experiência é cheia de problemas de vários tipos. Quando vivenciamos as coisas sem inconsciência, isso quer dizer que estamos livres do samsara. Quando estamos livres da inconsciência, de forma que ela nunca mais volte a ocorrer, a continuidade do nosso vivenciar de coisas ainda perdura, de vida em vida, mas não está mais sob o controle da inconsciência.  Quando estamos trabalhando para nos iluminar ou quando já nos iluminamos, a continuidade é movida pela compaixão. A força motriz que nos impele a continuar vivenciando coisas dentro do samsara é o impulso de tentar fazer com que um “eu” aparentemente sólido exista para que nos sintamos seguros. Queremos continuar a viver. Quando estamos livres da confusão, a força motriz para continuarmos vivendo é o desejo de poder ajudar os outros.

A inconsciência, que é o primeiro elo da originação dependente, é a inconsciência em relação a como os outros e nós existimos – principalmente em relação a como nós existimos. Temos a sensação de existir como uma espécie de “eu” sólido, concreto. Mas não sabemos que se trata apenas de uma aparência, ou de uma sensação que não corresponde à realidade. Ou pensamos que ela corresponde realmente à realidade. Essa inconsciência nos atordoa. A nossa mente não tem clareza em relação a como nós existimos e, por isso, nos sentimos inseguros e indecisos. Por sermos inseguros, insistimos teimosamente em manter as decisões que tomamos para tentar obter segurança. Por sermos inseguros em relação a como existimos, e por nos sentirmos como um “eu” concreto, queremos fazer com que esse “eu” sólido e imaginário esteja seguro. Essa compulsão é mais forte no momento da morte. Queremos desesperadamente e de qualquer maneira que o “eu” sólido continue a existir. Essa é a força motriz que nos leva aos renascimentos contínuos e à perpetuação da inconsciência em relação a como existimos.

Vimos ontem que essa confusão em relação a como existimos tem dois níveis. Há a inconsciência baseada na doutrina e a inconsciência originada automaticamente. A inconsciência baseada na doutrina é algo que aprendemos. A versão original seria a inconsciência adquirida de conceitos que aprendemos e aceitamos de uma das filosofias indianas não-budistas. Uma forma análoga dessa inconsciência vem de condicionamentos originados em nossa famílias, sociedade, pela televisão, por várias ideologias, pela propaganda, por anúncios, e assim por diante. Esse condicionamento leva a neuroses profundamente enraizadas. A inconsciência originada automaticamente não é algo que tem que nos ser ensinado nem é uma influência de alguém. Todos nós a temos o tempo todo, simplesmente pelas aparências geradas pelas limitações de nossa atividade mental. Elas fazem com que sintamos que somos um “eu” sólido, o assim chamado falso “eu”, e temos realmente a sensação de que é assim.

Vimos que, se quisermos descrever essa sensação de termos um “eu” sólido, podemos descrevê-la como tendo três características. A sensação superficial em relação a como existimos é a de que existe um “eu” sólido que não é afetado pelos acontecimentos, que permanece sempre igual, e é uma entidade separada de nossas experiências. Na base dessas três características, há uma característica mais sutil. Embora a explicação dessa forma mais sutil de inconsciência seja bem mais profunda e complexa, ela muitas vezes é explicada de forma simplista. Sentimos que esse tipo de “eu” é o chefe que está controlando os acontecimentos. É o observador, quem toma as decisões, o controlador que tem que estar sempre no controle ou perderia totalmente o controle.

Olhamos para alguns exemplos dessa confusão em relação a como nós existimos. No que se refere à inconsciência baseada em doutrinas, nos foi dito: “Seja você mesmo. Seja sincero consigo mesmo.” E pensamos assim. Isso faz total sentido para nós. “Ser você mesmo” quer dizer: não ser afetado pelas situações, estar separado delas. Da mesma forma, nos dizem que temos que nos encontrar, pois somos únicos – um “eu” não pode mudar, tem que ser sempre o mesmo, independente dos acontecimentos.

Esses três aspectos se sobrepõem. Sentimos, por exemplo: “Sou separado daquilo que vivencio, mas quando tenho experiências, tenho que ser eu mesmo, único no mundo, sempre igual, sempre a mesma pessoa.” Esse “eu” sólido tem que estar no controle. Escutamos: “Tome controle”. “Não deixe que os outros pisem em você.” “Não perca o controle da situação.” Tudo isso está profundamente enraizado em nós. Dizemos: “Tenho que me proteger, não quero que me magoem.” Como se houvesse uma pequena entidade dentro de nós e outra entidade separada, também dentro de nós, mas mais longe, que tem que proteger a primeira entidade e evitar que ela se machuque. Quando olhamos para isso, fica claro que se trata de uma fonte da auto-preocupação, de aflições, de nervosismo, e assim por diante. Tudo isso é multiplicado a partir dessa inconsciência. “Eu tenho que representar bem o meu papel, senão eles verão quem “eu” sou realmente. Isso se baseia na ideia de que existe um verdadeiro “eu”. Ou dizemos: “Você diz que me ama, mas não conhece o meu verdadeiro ‘eu’. Se me conhecesse, não me amaria.” Ou chegamos em casa depois do trabalho, tiramos nossos sapatos e pensamos: “Agora eu posso ser ‘eu mesmo’”. Estranho, não é?

O oposto disso é vivenciar coisas, momento a momento com consciência de nossa motivação e do que está ocorrendo com os outros e evitar, com compaixão, agir de forma prejudicial. Apenas agimos, nos comunicamos, nos relacionamos, sentimos emoções, e vivenciamos coisas a cada momento, sem auto-preocupação e sem elaborar nada em relação às experiências.

O nosso problema é que sentimos como se houvesse um “eu” sólido em nossa experiência. Essa é a inconsciência originada automaticamente. Parece automaticamente que há um “eu” sólido que não pode ser afetado por nada. Comemos um pedaço enorme de bolo de chocolate e por não engordarmos no próximo instante, dizemos: “Não fui afetado por isso. Nada me afeta.” “Eu me machuquei, mas estou aqui. Não fui realmente afetado pelo que fiz.” Vamos dormir e, quando acordamos de manhã, sentimos: “Olha eu aqui de novo!” O mesmo “eu”, sempre o mesmo.

Sentimos como se fôssemos separados do que acontece conosco pois conseguimos nos dissociar das nossas experiências. Lembro-me que certa vez caí em uma calçada de concreto e quebrei algumas costelas. Foi uma experiência muito forte de um “eu” separado da experiência, que não queria se relacionar com o que estava acontecendo. Quando nossos parceiros começam a chorar ou gritar, muitas vezes nos dissociamos completamente da situação. Realmente sentimos como se houvesse um “eu” separado que não quer estar nessa situação. Na manhã seguinte à uma bebedeira, dizemos: “Ontem não fui eu mesmo.” Ou às vezes dizemos automaticamente: “Não estou bem de saúde, hoje não estou sendo eu mesmo.” E há uma pequena voz que fala em nossa cabeça o tempo todo. Sentimos como se essa voz fosse a voz do “eu” sólido, do controlador, que está obviamente separado daquilo que está ocorrendo, pois está sempre comentando a situação. Essa voz faz com que o fenômeno da preocupação se torne ainda mais concreto. Ela reforça nossa confusão. Está automaticamente presente. Não precisamos aprender a tê-la.

Isso é o que há de terrível em relação ao samsara: essa inconsciência em relação a como nós existimos se auto-perpetua por causa do mecanismo de surgimento automático que o reforça. Quanto mais entendemos o que está ocorrendo, mais sentimos repulsa. É como pensar que a empresa onde trabalhamos está indo bem e depois descobrir que nosso chefe estava mentindo. Quando descobrimos a fraude, sentimos repulsa. Desenvolvemos a determinação de nos livrar dessa situação. Geralmente, isso se chama “renúncia”. É a determinação de estar livre do samsara e a plena disposição de renunciar a ele.

Com o “Dharma Light” nossa atitude é pensar: “Quero ser livre.” Mas não pensamos que temos que renunciar a nada. O Dharma Light é como a Coca-Cola Light, é delicioso, mas não é o “Real Sabor” Não há nada de errado com o Dharma Light, ele pode até ser útil, mas temos que ir além dele. Para sairmos de nossos problemas, temos que renunciar a eles. Temos que renunciar à inconsciência que os causa e aos padrões e hábitos que reforçam a nossa inconsciência.

Uma Análise mais Profunda do Elo da Inconsciência 

Quando olhamos com mais atenção para o primeiro elo, vemos que estamos focando no “eu” convencional e o apreendemos incorretamente, como se ele existisse de fato, como um falso “eu” – separado, inabalável, sempre igual, o chefe. É como quando uma criança foca no barulho do gato debaixo da cama e pensa que é um monstro. A criança realmente sente que há um monstro debaixo da cama e tem medo dele. Não é só imaginação. Há uma base. Realmente há um gato debaixo da cama. Da mesma forma, temos um “eu” convencional, mas a forma como o percebemos e sentimos não corresponde à forma como ele realmente existe.

Para usar uma palavra bem simples, o “eu” convencional é uma abstração. A única coisa que está acontecendo é a experiência subjetiva e individual de cada momento, de acordar, escovar os dentes, tomar café da manhã e assim por diante. Se reuníssemos todos esses momentos e nos referíssemos a eles de alguma forma, chamaríamos essas experiências de “eu”. Mas o “eu” convencional não é algo sólido; é só uma abstração para reunir todos os momentos de nossa experiência. Em termos técnicos, é uma imputação rotulada mentalmente na continuidade ininterrupta dos momentos de nossa atividade mental subjetiva e individual.

Por exemplo, o que é uma linha no monitor de um computador? Uma linha é algo que parece sólido, mas quando olhamos de perto, é apenas uma série de pontinhos ou pixels. Uma linha é apenas uma abstração para fazer referência a uma série de pontinhos. Não existe realmente uma linha sólida. O mesmo ocorre com a nossa experiência. Cada momento é como um pontinho. Reunimos todos os momentos e chamamos de “eu” ou “minha vida”. Como a linha no monitor de um computador, que parece sólida, mas não é. A linha existe, mas ela não existe como algo sólido e separado da série de momentos de nossa experiência. Isso leva muito tempo para realmente ser digerido. É muito importante começarmos a trabalhar nisso.

Em todos os momentos de nossas vidas, estamos percebendo o “eu” convencional, não sólido, e o apreendendo como se ele fosse.  Esse é o primeiro passo para os nossos problemas: focamos no “eu” que existe, que apesar de ser uma mera abstração, parece não existir dessa forma. A inconsciência e a confusão que acompanham cada momento de nossa atividade mental faz com que ele pareça existir como algo sólido. Nós o percebemos assim e acreditamos que ele realmente existe como algo sólido. Isso nos confunde ainda mais e nos deixa inseguros. 

Uma Perspectiva Iludida em Relação a uma Rede Transitória 

Então, uma atitude fundamentalmente perturbadora surge e acompanha a nossa experiência. Ela é chamada, no jargão técnico, de uma “perspectiva iludida em relação a uma rede transitória” (‘jig-lta). Essa atitude é dirigida a nossa experiência. Explicando melhor, ela é dirigida a uma configuração específica de cinco agregados que compõem cada momento de nossa experiência, e considera essa configuração como sendo o “eu” sólido, mas que é falso. De uma maneira mais simples, é a atitude enganadora através da qual nos identificamos concretamente com um momento específico de nossa experiência, que pode ser um estado de humor, um incidente ou o que seja. Diferente da inconsciência em relação a como uma pessoa existe, que pode ser uma confusão em relação a como os outros e nós existimos, uma perspectiva iludida em relação à rede transitória diz respeito apenas a como nós existimos.

“Transitória” significa que o conteúdo da nossa experiência muda o tempo todo. Nossa experiência é constituída de muitas partes, que estão sempre mudando.  A perspectiva deludida toma a configuração das diversas partes das quais é constituída uma experiência e considera que elas constituem a identidade sólida do “eu” sólido. E não fazemos isso apenas com as configurações dos elementos que constituem a nossa experiência, também substituímos nossa identidade por outra durante o período de um único dia. Às vezes nos identificamos com algo que dura apenas uns poucos momentos, como o som de palavras insultuosas. Nos sentimos insultados e, ao nos identificarmos com essa experiência, sentimos que “Você acabou de “me” insultar!” Também podemos nos identificar com algo que vivenciamos por um longo período, como a juventude, a velhice, ser homem, mulher, solteiro, etc.

A perspectiva iludida em relação a uma rede transitória tem dois aspectos, e é muitas vezes traduzida como: nos relacionarmos com as experiências em termos de “eu” e “meu”. Sentimos e acreditamos que existimos como um “eu” sólido. Com base nisso, muitas vezes identificamos nossas experiências como sendo componentes do “eu”, e outras vezes, identificamos as experiências como sendo propriedade do “eu” sólido. A experiência é “minha”. Por exemplo, pode ser que acreditemos que existimos solidamente como uma pessoa sexy, e talvez também pensemos que nosso corpo é propriedade desse “eu” sexy. É uma solidificação a mais de nosso assim chamado falso “eu”, já que agora há também objetos que esse “eu” possui, controla e pode usar como quiser. No caso do corpo, há um lugar no qual o “eu” sólido vive. Ou temos a experiência de ter filhos e baseamos nossa identidade na maternidade ou paternidade. Logo, sentimos que “meus filhos são meus”, como se os possuíssemos e, por isso, pudéssemos controlá-los.

De acordo com a interpretação da Gelug Prasangika, a perspectiva iludida em relação a uma rede transitória foca mais no “eu” convencional do que nos agregados. Assim como os agregados, o “eu” convencional também é transitório e também é uma rede de muitos momentos e facetas. Essa perspectiva iludida vê o “eu” que existe convencionalmente ou como um “eu” sólido que tem a identidade sólida dos agregados ou como um proprietário sólido dos agregados que são “meus”.

Mais Emoções e Atitudes Perturbadoras 

Quando começamos a pensar no “eu” como tendo uma identidade sólida e sendo o proprietário sólido de coisas que vemos como sendo solidamente “minhas”, desenvolvemos muitas outras emoções e atitudes perturbadoras. Elas nos motivam a afirmar a nossa identidade, a comprová-la, pois a inconsciência que as acompanha ainda nos deixa inseguros. Muitas vezes, o processo é completamente inconsciente. Por exemplo, pode ser que pensemos inconscientemente: “Sou mãe. Possuo essas crianças, elas são ‘minhas’. Elas me devem atenção e obediência. Elas têm que ser como eu quero, pois são ‘minhas’. Só assim serei uma boa mãe. Tenho que defender a minha identidade de mãe dizendo-lhes o que elas têm a fazer; caso contrário, seja eu pai ou mãe, não tenho um real controle. Essa é toda a minha identidade.”

O apego ou cobiça é buscar algo na esperança de que isso irá concretizar nossa identidade sólida de pai ou mãe, como a obediência, por exemplo. E ficamos com raiva tentando nos livrar de qualquer coisa que possa ameaçar nossa identidade sólida de pai ou mãe, como a desobediência. Se ficarmos com muita raiva, podemos chegar a bater em nossos filhos, porque a desobediência deles nos parece muito ameaçadora.

Tudo isso ocorre junto com a emoção perturbadora que gosto de traduzir como “ingenuidade” (gti-mug, sct. Moha, ignorância). A ingenuidade é uma subcategoria da inconsciência.  A inconsciência pode acompanhar qualquer momento da experiência, enquanto a ingenuidade é o tipo de inconsciência que acompanha somente os momentos de comportamento destrutivo – pensamento, fala ou ação destrutiva. A palavra ingenuidade talvez não seja a melhor tradução para o termo, mas não consigo pensar em nada melhor. No passado eu traduzia isso como “mente fechada”, mas mente fechada enfatiza apenas o aspecto da teimosia da inconsciência. A ingenuidade é um termo mais vasto. Ela também envolve a inocência, o que é adequado, já que no budismo não relacionamos o conceito de maldade ou culpa à ação destrutiva.

Assim como a inconsciência, a ingenuidade pode ter a ver com causa e efeito comportamental e com a questão de como todas as coisas, os outros e nós existimos. Ainda em nosso exemplo, há certa ingenuidade quando os pais pensam que precisam ser obedecidos. Sentimos que nossa autoestima vem de sermos pais. Por exemplo, quando pensamos que bater na criança fará com que ela nos obedeça, há uma ingenuidade em relação à criança e ingenuidade em relação aos efeitos de nosso comportamento. A ingenuidade por detrás de tudo isso nos faz pensar que o valor do “eu” sólido está vinculado apenas ao comportamento da criança que ele “possui”.

Outro exemplo: vemos a criança sentada na frente da televisão. Uma atitude perturbadora surge: “Eu deveria ser mãe ou pai de filhos bem-sucedidos. Esse filho é minha propriedade, eu o possuo, ele é ‘meu’, e minha identidade depende de meu sucesso como pai ou mãe. Tenho que fazer com que meu filho pare de me desobedecer e me obedeça, para que eu me sinta seguro em relação a quem eu sou”. Esses pensamentos podem ser conscientes ou inconscientes. Geralmente, eles são inconscientes.

Aí vem o impulso de dizer algo à criança. Como temos apego à ideia de que ela tem que nos obedecer, temos que ordenar que faça algo, mesmo se não houver nada a fazer. “Pare de assistir televisão e preste atenção em mim!” Também pode haver raiva nisso. “O que você está fazendo? Seu preguiçoso! Vai trabalhar! Case-se!” (Para me deixar mais seguro, pois meus amigos estão me perguntando por que meu filho ainda não se casou). Quando surge o sentimento ou o impulso de falar ou fazer algo, agimos a partir disso. Pode ser que digamos algo rude ou batamos na criança porque nos sentimos ameaçados pelo que ela está fazendo. Além disso, somos ingênuos em relação à reação da criança. 

Recapitulação

O primeiro elo é a inconsciência sobre como nós e os outros existimos. Pensamos que nós existimos como um “eu” sólido e os outros existem como um “você” sólido. Essa inconsciência é baseada na doutrina e/ou originada automaticamente. Ela surge automaticamente porque sentimos que há um “eu” sólido aqui dentro e um “você” sólido lá fora.

Isso ocorre em etapas. Primeiro, há a sensação de um “eu” sólido e um “você” sólido. Depois, há uma visão iludida em relação a uma rede transitória, na qual damos uma identidade sólida ao “eu” sólido com base em nossa experiência. Com base nessa atitude perturbadora, nessa forma distorcida de ver as coisas, a nossa confusão se aprofunda cada vez mais. Isso faz surgir emoções e atitudes perturbadoras. Por causa disso, surge a sensação de que temos que pensar, falar ou agir de determinadas maneiras, o que é seguido por um impulso de agir. Depois, agimos de acordo com o impulso de energia e falamos ou fazemos algo. Isso leva adiante todo o processo do samsara e faz com que cheguemos ao segundo elo de originação dependente.

Temos que reconhecer que todo esse processo ocorre em termos de nossas atitudes perturbadoras, principalmente em relação a nós mesmos. Também temos que reconhecer que outras pessoas têm a mesma inconsciência que temos. Não somos únicos. Além disso trata-se de um processo que geralmente acontece inconscientemente. Sequer sabemos que temos essas atitudes perturbadoras tão enraizadas. E os outros tampouco sabem que as têm.

O primeiro passo para sair disso é estar conscientes do que está acontecendo. Ontem falamos sobre a autoconsciência. Ela é um aspecto muito importante quando tomamos um direcionamento seguro, ou refúgio, no dharma. Precisamos olhar para dentro e ver o que está acontecendo a fim achar as causas de nossos problemas e não culpar os outros por eles. Costumamos culpar os outros por nossos problemas, mas como diz o ditado: “Quando um não quer, dois não brigam.”

Se alguém nos der um presente e não o aceitarmos, a quem ele pertence? Da mesma forma, se dermos um presente a alguém e a pessoa não o aceitar, a quem ele pertence? Se alguém lançar todo o seu lixo sobre nós, suas emoções e atitudes perturbadoras, e agarrarmos todas elas com uma grande luva de baseball, estaremos participando disso, não é mesmo? Aceitamos o lixo. “Sim, sou uma mãe ou um pai ruim.” Em qualquer relação problemática com outra pessoa, é importante perceber que os dois lados estão participando. É muito difícil fazer com que a outra pessoa pare de jogar seu lixo sobre nós. Mas se nós não o aceitarmos, e se soubermos que ele vem da inconsciência profundamente enraizada da outra pessoa, podemos lidar com isso de uma forma mais madura, emocionalmente falando.

Trata-se de um procedimento muito delicado. Estamos sentados ali assistindo a televisão em silêncio e nosso pai entra, nos lança um olhar terrível e diz: “Levanta e vai fazer algo que preste!” Pode ser que comecemos a nos sentir culpados. Com um pouco de entendimento, podemos perceber que não há razão para nos sentirmos culpados. Mesmo que nos sintamos culpados, não devemos acreditar que somos uma má pessoa. Leva muito tempo para que a culpa pare de ser originada automaticamente. Ela está profundamente enraizada na psique e é originada automaticamente. Mas temos que evitar ser ingênuos, evitar negar a realidade do que nosso pai está sentindo ou pensar que não temos nada a ver com isso. Podemos acabar entrando em outra dimensão de confusão se nos identificarmos com a ideia de que tudo está bem e ficarmos com raiva de nosso pai por perturbar nosso bem-estar.

Temos que ter sensibilidade para entender o que os nossos pais sentem. Além de não aceitarmos que somos culpados e maus, podemos reagir de uma forma que ajude o nosso pai. Temos que nos examinar profundamente. “O que estou fazendo sentado diante da TV? Será que estou realmente sendo preguiçoso?” Se estivermos sendo preguiçosos e desperdiçando nosso tempo, temos que ser suficientemente maduros para reconhecer e admitir isso para o nosso pai. Ou podemos ser suficientemente maduros para explicar que estudamos ou trabalhamos duro o dia inteiro e estamos descansando agora. Precisamos levar a sério a outra pessoa e seus sentimentos, e reagir com maturidade, uma forma que leve em consideração os nossos sentimentos e os sentimentos dela. Isso se chama agir com “meios hábeis.”

E precisamos reagir com alguma emoção. Lembro-me de voltar aos EUA para visitar minha família após meus dois primeiros anos na Índia. Minha irmã me disse: “Você está tão calmo que me dá vontade de vomitar!” Eu não estava demonstrando nenhuma reação emocional em relação ao que estava acontecendo ao meu redor. Quando estamos no caminho budista, especialmente no que diz respeito ao aquietar-se, temos que ter cuidado para não ficarmos tão calmos que acabamos reagindo aos outros com impessoalidade.

A nossa introspecção não se limita às nossas motivações e emoções. Temos que nos aprofundar mais e mais para conseguirmos revelar nossa inconsciência básica e fundamental em relação a como nós existimos. Essa é a base sobre a qual toda confusão é originada. Se pudermos nos livrar da inconsciência originada automaticamente, toda confusão irá cessar. Como disse o grande mestre indiano Shantideva: “Se você não vir o alvo com clareza, não conseguirá atirar com precisão.” Embora possa ser um pouco chocante revelar nossa inconsciência, é o primeiro passo necessário para começarmos a trabalhar e nos livrar dela. Não devemos esperar que a nossa inconsciência desapareça instantaneamente, mas seria bom receber sugestões e orientações que nos ajudassem a reconhecê-la quando iniciarmos o processo da introspeção.

Vamos tirar alguns minutos para pensar sobre tudo que falamos. Não pensemos nisso apenas como se fossem teorias. Tentemos identificar essas coisas em nossa experiência pessoal. Acho que todos nós somos capazes de reconhecer a inconsciência e seus padrões em nosso comportamento. Quanto mais nos familiarizarmos com ela, mais perceberemos como ela está presente o tempo inteiro, em nós e nos outros.

O Segundo Elo: Impulsos Influentes 

Isso nos leva ao segundo elo da originação interdependente, que eu chamo de “impulsos influentes” (‘du-byed, Skt. samskara). Isso é traduzido às vezes como “formações cármicas”. Refere-se ao impulso cármico – mais especificamente, ao carma de lançamento (‘phen-byed-kyi las) – que afetará as nossas vidas futuras.

Há duas explicações principais de carma dentro das filosofias budistas indianas e cada uma explica o segundo elo de uma forma ligeiramente diferente. Uma das explicações vem do sistema Vaibhashika, e também é usada nos braços Sautrantika Svatantrika e Prasangika da Madhyamaka. Os braços Sautrantika, Chittamatra e Yogachara Svatantrika da Madhyamaka, defendem a segunda interpretação. Como esse é o sistema menos complicado, vamos vê-lo primeiro.

A Explicação Sautrantika, Chittamatra e Yogachara Svatantrika

De acordo com a visão que compartilham, com apenas algumas variações, nos sistemas Sautrantika, Chittamatra e Yogachara Svatantrika, o carma é exclusivamente um fator mental. É o ímpeto mental (sems-pa) que afeta a consciência e os fatores mentais que a acompanham para que se movam em direção a um objeto focal, juntamente com o fator mental da intenção (‘dun-pa), que é o desejo de pensar, fazer ou dizer algo em relação ao objeto.  Isso ocorre no momento imediatamente anterior a nos engajarmos na ação, e nos leva a iniciar, dar continuidade e depois parar com a ação. O ímpeto pode ser uma ação de mente, corpo ou fala. O carma, no entanto, nunca é uma ação. Chamemos o carma de “impulso cármico”.

Quando uma forte emoção ou atitude perturbadora, ou uma forte emoção positiva, acompanha o impulso cármico antes e depois de uma ação, esse impulso se torna um carma de lançamento. A grosso modo, o impulso tem a força para lançar ou propulsionar nosso contínuo mental a futuros renascimentos em estados específicos de renascimento. Caso contrário, é um carma de finalização (rdzogs-byed-kyi las), com força apenas para finalizar as condições e os detalhes desse renascimento. O segundo elo da originação dependente, os impulsos influentes, refere-se aos impulsos cármicos de lançamento. Embora, conforme a emoção e atitude perturbadora que o acompanha, o impulso cármico pode ser construtivo, destrutivo ou não especificado – não especificado pelo Buda como construtivo ou destrutivo. O carma de lançamento é exclusivamente construtivo ou destrutivo. 

A Explicação Vaibhashika, Sautrantika Svatantrika, Prasangika 

De acordo com os sistemas Vaibhashika, Sautrantika Svatantrika e Prasangika a explicação acima sobre carma é válida apenas para impulsos cármicos para ações da mente. Elas concordam que o anseio mental leva a consciência e os fatores mentais que a acompanham, em direção a um objeto, junto como a intenção de pensar, fazer ou dizer alguma coisa em relação ao objeto. Mas o impulso cármico em si, para ações do corpo ou da fala, é dois tipos de formas de fenômenos físicos, não o fator mental do anseio que os provoca. Eles são chamados de “formas reveladoras” (rnam-par rig-byed-kyi gzugs) e "formas não reveladoras" (rnam-par rig-byed ma-yin-pa’i gzugs) O primeiro revela a emoção motivadora que os faz surgir, enquanto o último não. A distinção entre carma de lançamento e de carma de finalização é a mesma do sistema anterior, menos complexo. A distinção é feita conforme a força da emoção ou atitude perturbadora que acompanha o impulso cármico, para a ação da mente, ou o impulso cármico revelador, da ação do corpo ou da fala.

De acordo com as interpretações da Sautrantika Svatantrika e Prasangika, a forma reveladora de uma ação do corpo é o movimento do corpo como implementação de um método para realizar a ação cármica. A forma reveladora de uma ação da fala é a emissão do som das palavras, também como implementação de um método para realizar a ação cármica. Elas também não são as ações em si. Uma ação, como nas dez ações destrutivas, é na verdade o caminho de um impulso cármico (las-kyi lam). Ele inclui uma base para a qual a ação é dirigida, uma estrutura motivadora de uma intenção, uma emoção que distingue e perturbadora, a implementação de um método para realizar a ação e um final. Assim, o impulso cármico que é a forma reveladora de uma ação de corpo ou fala é apenas parte da ação, não a ação em si. A forma reveladora começa com as ações preliminares que nos levam a cometer uma ação cármica específica, como perseguir um cervo para matá-lo, e termina quando a ação é realmente cometida, o disparo do tiro que mata o cervo ou na conclusão das ações que se seguem, se houver, como esfolar, cozinhar e comer a carne.

A forma não reveladora é uma forma sutil e invisível no contínuo mental do agente da ação de corpo ou de fala que começa com as ações preliminares, mas somente se elas forem motivadas por uma forte emoção destrutiva ou construtiva. Se elas não forem, a forma não reveladora surge no contínuo mental quando a ação é realmente cometida e continua mesmo após a conclusão das ações subsequentes, até que a pessoa decida nunca repetir a mesma ação. Para tornar nossa discussão mais simples, vamos chamá-las de "energia cármica grosseira e sutil". A energia cármica sutil é talvez um pouco parecida com o que chamaríamos de uma] "vibração". Ele continua enquanto tema a intenção, consciente ou inconscientemente, de repetir a ação e não abandoná-la.

Normalmente, pensamos nas vibrações como algo "lá fora". "Eu posso sentir suas vibrações." Mas aqui, estamos falando de vibração como uma formatação de nossa própria energia sutil, que acompanha nosso fluxo contínuo de experiências subjetivas e individuais das coisas. Normalmente, estamos totalmente inconscientes disso. Se nos acalmarmos, talvez possamos ter uma ideia do que estamos falando. Se sentássemos em silêncio depois de brigar e gritar com alguém, poderíamos sentir que nossa energia está inquieta. O coração está batendo mais rápido; o sangue está bombeando com mais força em nossas artérias. Quando ficamos mais sensíveis, podemos sentir isso. A energia sutil do corpo é moldada pelo que fizemos. Mesmo quando não estamos mais sentindo sintomas físicos grosseiros dessa energia, ainda há uma formação da energia que continua e acompanha nossa experiência subjetiva e individual das coisas.

Resumindo, neste conjunto de sistemas de princípios, o segundo elo do surgimento dependente, os impulsos influentes, também se refere apenas são impulsos cármicos de lançamento. Eles incluem impulsos cármicos fortemente motivados para ações da mente e energias cármicas grosseiras fortemente motivadas para ações do corpo e da fala.

O Carma de Lançamento e o “Eu” Convencional

Independente do sistema de explicações que seguimos, quando falamos em carma de lançamento estamos falando do carma que dá forma aos nossos futuros estados de renascimento. Por exemplo, pode ser que ele nos leve a um renascimento como um cachorro. Quando falamos em carma de finalização estamos falando do carma que dá forma ao nosso renascimento como cachorro de rua ou então como um poodle de uma pessoa muito boazinha que nos alimenta bem, coloca uma coleira de strass rosa ao redor de nosso pescoço, e pinta nossas unhas de rosa.

Pode ser que pensemos que nesse renascimento como cachorro somos um ser humano que nasceu como um poodle com as unhas pintadas de esmalte cor-de-rosa, mas isso não está correto. Por exemplo, eu poderia pensar, com inconsciência, que sou verdadeira e solidamente “Alex, o ser humano”. Essa é a “minha” verdadeira identidade. Então, com horror posso pensar: “Não quero ser Alex, o ser humano, que renasceu como Fifi, o poodle”, como se o “eu, Alex o humano” sólido, estivesse no poodle.  “As pessoas não reconheceriam meu ‘verdadeiro eu’. Elas me chamariam de Fifi e pintariam minhas unhas de cor de rosa. Isso é repulsivo”.

Esse é um pensamento completamente equivocado em relação ao mecanismo do renascimento. Não há um “eu” sólido, uma identidade sólida, que reencarna de uma vida para a outra. Embora “eu”, que convencionalmente falando sou o Alex, o humano, vivencie as coisas como sendo “eu”, o mesmo acontece com a continuidade do “eu” convencional convencionalmente chamado de Fifi, o poodle. Fifi vivencia as coisas como “eu” e “eu, o proprietário” – o proprietário do território de uma casa que considero “minha” e o proprietário de algum dono que considero “meu”. É a mesma viagem samsárica. É apenas uma continuação da forma anterior equivocada de apreender as situações. Nesse episódio, desse contínuo mental individual específico, estou me identificando solidamente com Alex, o ser humano. No próximo episódio, eu me identificarei solidamente com outra configuração da experiência, no caso, Fifi, o poodle. Não existe um “eu” sólido, que sempre tem a mesma identidade, sólida e única, ou que tem uma identidade sólida diferente em cada vida. Não há nem mesmo um “eu” que exista convencionalmente e que sempre tenha a mesma identidade.

Precisamos olhar com muita profundidade para isso. Há apenas a continuidade do vivenciar individual e subjetivo. A abstração “eu” se refere à coisa como um todo. O “eu” convencional existe, mas nós o transformamos em algo substancial e depois colamos nele uma identidade sólida, baseada em nossa experiência do que está acontecendo.

O carma de lançamento é o impulso cármico mais forte. Por exemplo, quando pensamos em termos de um “eu” sólido e nos identificamos com a experiência de sermos rejeitados por nossos pais, acreditamos que temos uma identidade baseada nessa experiência. “Não sou bom o suficiente. Há algo de errado comigo.” Como resultado disso, poderíamos ter o anseio recorrente de achar alguém que nos ame e que aprecie o nosso “eu real”, que provaria que não há nada de errado conosco. Mas como nós nos identificamos com a ideia de que não somos bons, sabotamos inconscientemente qualquer relacionamento, e agimos de forma a garantir que o outro nos rejeite e confirme que não somos suficientemente bons. Ter casos frequentes, procurar ou caçar parceiros compulsivamente pode vir de uma forte motivação causada pela insegurança e pelo desejo de ser amado. Os impulsos cármicos associados com tal comportamento têm a força do carma de lançamento.

Se pensarmos somente em termos da forma da energia cármica envolvida nesse tipo de comportamento, talvez consigamos ter uma ideia mais clara do que significa o carma de lançamento. Quando temos o impulso de sair e achar um parceiro e vamos a bares e festas e tentamos desesperadamente encontrar alguém, como estamos agindo? Estamos agindo como um cachorro que fica percorrendo as ruas e cheirando o traseiro de outros cachorros, tendo relações físicas e depois seguindo seu caminho. Quando isso é repetido várias vezes, o impulso se torna cada vez mais forte. Isso é claramente um carma de lançamento para renascer como um cachorro de rua. 

Diferenciando uma Ação de Sua Emoção Motivadora

Precisamos diferenciar a ação da emoção que motiva a ação. Podemos agir de forma destrutiva com uma motivação negativa. Por exemplo, podemos matar um mosquito porque ele está nos irritando e estamos tentando dormir. Ao fazer isso, pensamos em um “eu” sólido e um “você, o mosquito” sólido. Ficamos com raiva do mosquito e vamos à caça dele como em um safari. Quando finalmente o matamos, ficamos muito felizes. Os impulsos cármicos envolvidos tornam-se um carma de lançamento para um renascimento como um animal que é uma presa ou alvo de caça por outros animais.

Também podemos agir de forma destrutiva motivados por uma emoção positiva. Podemos matar o mosquito porque amamos nossos filhos e nos preocupamos com eles e não queremos que sejam picados ou adoeçam com malária. Como a motivação e ação são, de certa maneira, contraditórias, do ponto de vista ético, a força cármica do impulso destrutivo de matar é fraca demais para operar de forma que isso funcione como um carma de lançamento. Nesse caso, será um carma de finalização.

Da mesma forma, podemos agir de forma construtiva motivados por uma emoção negativa. Podemos cozinhar uma refeição saborosa para nossos filhos adultos com a motivação perturbadora do desejo de sermos reconhecidos, amados e necessários. Ou podemos cozinhar uma refeição com uma motivação positiva, por amor, para fazê-los felizes. Apenas o impulso construtivo do segundo caso seria um carma de lançamento. Mas observem que em cada uma dessas possibilidades ainda há a inconsciência subjacente sobre como nós existimos: Pensamos e sentimos como se houvesse um “eu” sólido, único, que não pode ser afetado, e assim por diante.

Quando os impulsos cármicos de nossas ações e as emoções que as motivam são fortes, sem contradições éticas e contêm essa inconsciência sobre como nós existimos, os impulsos cármicos funcionam como carma de lançamento. Em ambos os casos ainda será o samsara, tanto no caso de um impulso cármico destrutivo que origina um dos piores estados de renascimento, quanto no caso de um impulso cármico construtivo que origina um dos melhores estados de renascimento.

Esse é o segundo elo de originação dependente, os milhões e milhões de carmas de lançamento, os impulsos cármicos  com fortes motivações que podem afetar e dar forma aos futuros renascimentos. Sempre que agimos com uma motivação forte e não contraditória, o impulso cármico envolvido terá a força necessária para funcionar como um carma de lançamento. Não agimos como cachorros de rua o tempo todo. Agimos de muitas formas diferentes. Há muitas possibilidades que são fortalecidas pela nossa inconsciência e nosso comportamento. Não estamos apenas começando a acumular carma de lançamento; temos feito isso desde sempre.

O Terceiro Elo: A Consciência Carregada 

Não chamo o terceiro elo da originação dependente simplesmente de “consciência”. Para ser mais claro, eu o chamo de “consciência carregada” (rnam-shes). Esse elo é dividido em duas partes. A primeira parte é, literalmente, a consciência que é carregada no momento da causa (rgyu-dus-kyi rnam-shes). Ela se refere ao nosso contínuo mental – a experiência subjetiva e individual que temos a cada momento – carregado com o resultado cármico do carma de lançamento, o que pode ser a causa de um renascimento futuro. É o resultado cármico do carma de lançamento, e não o carma de lançamento em si, que nos lança ao próximo renascimento. Tecnicamente, o resultado cármico do carma de lançamento “amadurece” (smin-pa) e origina os cinco agregados de nosso próximo estado de renascimento e nossas experiências nesse estado. 

A Repercussão Cármica 

Qual é a repercussão cármica do carma de lançamento, com o qual a nossa consciência é carregada, durante o período que sucede o término da ação associada com o carma de lançamento, e que antecede a sua ativação e o seu amadurecimento em um renascimento futuro? Primeiro, precisamos saber que, de acordo com os sistemas Mahayana, há dois tipos gerais de repercussão cármica: aquelas que amadurecem intermitentemente e aquelas que amadurecem continuamente. O primeiro tipo produz resultados apenas por um tempo. Quando é exaurido e para de dar resultados, ele naturalmente para de existir como algo que está presente em nosso contínuo mental. O segundo produz efeitos em todos os momentos de nossa existência até chegarmos à iluminação. Ele nunca cessa, a não ser que alcancemos um verdadeiro cessar (‘gog-bden, a verdadeira cessação). Esse último conjunto de repercussões cármicos se refere aos hábitos cármicos constantes (bag-chags).

Como os sistemas filosóficos Hinayana não aceitam hábitos constantes, eles não afirmam esse tipo de resultado cármico. Já que a explicação sobre os doze elos de originação dependente é aceita tanto pelo Hinayana quanto pelo Mahayana, a repercussão cármica com a qual o terceiro elo, a consciência carregada, está carregado, inclui apenas a repercussão cármica que amadurece intermitentemente.

Há dois tipos de resultados cármicos amadurecendo intermitentemente: redes de força cármica e tendências cármicas (sa-bon, sementes). Examinemos primeiro a explicação dada nos sistemas Sautrantika, Chittamatra e Yogachara Svatantrika.

A Explicação Sautrantika, Chittamatra e Yogachara Svatantrika

O impulso cármico de lançamento (o anseio mental) e a ação cármica de mente, corpo ou fala que ele desencadeia constituem uma continuidade que poderíamos dizer, por alto, que poderia ser considerada uma continuidade de energia cármica construtiva ou destrutiva. Quando a ação cármica cessa, a continuidade da energia cármica construtiva ou destrutiva passa por uma fase de transição, como o gelo derretendo e virando água. A continuidade da energia assume a natureza essencial (ngo-bo) de uma tendência cármica (sa-bon, semente); ela se torna uma abstração não estática (ldan-min ‘du-byed, variável influente não congruente), um fenômeno imputado com base no contínuo mental do agente da ação.  Vamos chamá-la de “potencial cármico”. As abstrações não estáticas não são formas de fenômenos físicos nem formas de se ter consciência de algo. Elas se originam a partir de causas, mudam de momento a momento, e produzem efeitos. Como fenômenos imputados, elas são “atreladas” às suas bases, e não podem existir ou ser conhecidas separadamente de suas bases.

Vamos usar a expressão força cármica como um termo que engloba o contínuo, como um todo, com suas fases de energia cármica e potencial cármico. Por favor, lembrem-se que eu criei esses termos; não há termos equivalentes para energia cármica, potencial cármico ou força cármica em sânscrito ou tibetano.

A força cármica é sempre construtiva (dge-ba, virtuosa) ou destrutiva (mi-dge-ba, não-virtuosa). As forças envolvidas com o comportamento construtivo são forças cármicas positivas (bsod-nams, sct, punya, mérito), e as envolvidas com os atos destrutivos são forças cármicas negativas (sdig-pa, sct. papa, pecado). Prefiro os termos traduzidos como “construtivo”, “destrutivo”, “força cármica positiva”, e “força cármica negativa” às traduções usadas geralmente, como “virtuoso”, “não virtuoso”, “mérito” e “pecado”. Estes termos muitas vezes levam a mal-entendidos, já que trazem a ideia de um julgamento moral, de recompensa e punição. Esses conceitos são irrelevantes para o budismo e, portanto, acho melhor escolher termos que possam minimizar o mal-entendido que vem de projetar inconsideradamente no budismo conceitos inadequados de outros sistemas filosóficos.

Apenas uma parte da continuidade da força cármica, no caso, o potencial cármico, é a repercussão cármica deixada no contínuo mental do agente da ação após a ação cármica ter sido finalizada. Mas, como um fenômeno imputado com base em toda a continuidade de força cármica ainda presente no contínuo mental, há também uma rede (tshogs, coleção) de força cármica no contínuo mental da pessoa. Assim como o potencial cármico, a rede de força cármica também é uma abstração não estática, e não é nem uma espécie de fenômeno físico nem uma forma de estar consciente de algo. O termo técnico rede de força positiva (bsod-nams-kyi tshogs, coleção de méritos) normalmente refere-se exclusivamente às redes de força positiva construtoras de iluminação: a força positiva acumulada com a bodhichitta e dedicada a alcançarmos a iluminação e ajudarmos os outros. No entanto, acho que podemos estabelecer os termos análogos rede de força cármica positiva que gera samsara e rede de força cármica negativa que gera samsara e associá-los às ações cármicas que não foram acumuladas com renúncia ou bodhichitta e não foram dedicadas à libertação ou iluminação. Para simplificar a discussão, uso os termos redes de força positiva que geram samsara e redes de força cármica.

Além das redes de força cármica, o segundo tipo de resultado cármico que amadurece intermitentemente e com o qual a nossa consciência está “carregada” são as tendências cármicas. Quando a energia cármica positiva ou negativa de uma ação construtiva ou destrutiva – equivalente à ação cármica em si – passa por uma mudança de fase rumo a um potencial cármico, quando a ação cessa, ela também gera uma tendência cármica (uma semente cármica). Assim como o potencial cármico, a tendência cármica também é uma abstração não estática que é um fenômeno imputado no contínuo mental. Porém, ao contrário do potencial cármico ou da energia cármica, uma tendência cármica não é especificada. No entanto, os dois são abstrações não estáticas. A consciência está carregada de ambos, embora não no sentido físico, como sementes plantadas no chão – apesar dessa ser a analogia tradicionalmente usada para explicar isso de uma forma bem simples. A consciência está carregada com tendências cármicas, mas meramente no sentido de que a consciência serve como a base de imputação delas (gdags-gzhi).

Em suma, de acordo com so sistemas Sautrantika, Chittamatra e Yogachara Svatantrika, quando falamos de carma de lançamento trata-se exclusivamente do impulso mental que gera e sustenta uma ação física, verbal ou mental, cuja motivação é muito forte. Não é a ação em si. A repercussão do carma de lançamento e as ações que ele desencadeia têm dois aspectos que amadurecem intermitentemente, ambos são abstrações não estáticas que são fenômenos imputados no contínuo mental – basicamente, no contínuo da consciência mental carregada. Como abstrações não estáticas, eles não são formas de fenômenos físicos nem formas de se estar consciente de algo. O potencial cármico e a rede associada de força cármica podem ser destrutivos ou construtivos, enquanto a tendência cármica é neutra do ponto de vista ético (lung ma-bstan): O Buda não os especificou como sendo positivos ou negativos.

Muitas vezes, nos deparamos com a explicação simples sobre o que está carregando a consciência carregada. Ela está carregada de sementes cármicas (sa-bon), como sementes plantadas no solo. Lembrem-se que “sementes cármicas” é o termo que eu traduzo como “tendências cármicas”. Nesta explicação, as “sementes cármicas” são usadas como um termo genérico para abarcar tanto os potenciais cármicos quanto as tendências cármicas. Mas apenas as tendências cármicas são de fato sementes cármicas, já que, por natureza, as sementes cármicas são fenômenos eticamente neutros. O potencial cármico é meramente a força cármica na natureza de uma semente cármica, mas não chega a ser a semente cármica em si. Isto porque, sendo uma força cármica – também chamada de “mérito” ou “pecado” – é construtiva ou destrutiva. O termo semente é usado de forma figurativa: uma planta produz a semente que depois produz outra planta. Da mesma forma, os impulsos cármicos produzem sementes cármicas, que depois produzem resultados cármicos que levam à originação de mais impulsos cármicos.

Mas ao contrário das sementes reais, essas sementes cármicas não são formas de fenômenos físicos. Elas são potenciais e tendências, que são abstrações não estáticas. Potenciais e tendências também vêm de algo e geram uma recorrência do mesmo tipo de coisa: a diferença é que são fenômenos abstratos, o que descreve o processo cármico com mais precisão. 

A Explicação Vaibhashika, Sautrantika Svatantrika e Prasangika

A explicação Vaibhashika, Sautrantika Svatantrika e Prasangika é um pouco mais complexa. No caso dos impulsos cármicos para ações mentais, a repercussão é a mesma: um potencial destrutivo ou construtivo com sua rede associada de força cármica, e uma tendência cármica não especificada.

No caso dos impulsos cármicos para ações de corpo e fala, apenas a energia grosseira que é a forma reveladora da ação é o carma de lançamento. Mas, tanto a energia grosseira quanto a ação cármica, assim como a energia sutil que é a forma não reveladora da ação, são forças cármicas construtivas ou destrutivas. A tendência cármica e o potencial cármico da energia cármica grosseira começa assim que termina a ação. A energia cármica sutil, no entanto, continua depois que a ação cessa, e perdura enquanto continuamos a ter, consciente ou inconscientemente, a intenção de continuar a agir da mesma forma como na ação que a criou, e não tivermos a intenção de parar. A energia cármica sutil que continua depois que a ação cessou ainda joga o carma. O momento no qual não temos mais a intenção de agir da mesma forma, a energia cármica sutil se transforma em um potencial cármico. A não ser que tenhamos feito o voto de continuar a evitar esse comportamento em nossas vidas futuras – como fazemos, por exemplo, quando tomamos os votos do bodhisattva com a intenção de continuarmos a ter o comportamento de um bodhisattva até alcançarmos a iluminação – as nossas energias cármicas sutis naturalmente se transformarão em potencial cármico no momento de nossa morte.

Portanto, nesta apresentação mais simples do carma, a consciência carregada está carregada com (1) potencial cármico construtivo ou destrutivo e sua rede associada de força cármica, e (2) tendências cármicas não especificadas. O potencial cármico, a rede de força cármica, e as tendências cármicas são fenômenos não estáticos e não um carma de lançamento. 

Os Elos Resultantes Daquilo que Foi Lançado 

O primeiro e segundo elo, e a primeira metade do terceiro elo, são a inconsciência, carmas de lançamento negativos e positivos e nosso contínuo mental carregado com o resultado desses carmas de lançamento. Esses dois elos e meio são chamados de “elos causais que lançam” (‘phen-byed-kyi yan-lag): eles nos lançam em um renascimento. Depois, temos “os elos que resultam do que foi lançado” (‘phangs-pa’i ‘bras-bu’i yan-lag). Estes descrevem o desenvolvimento do estado de renascimento no qual fomos lançados pelo carma de lançamento. Trata de como o mecanismo se desenvolve em um feto ou um ovo de forma a perpetuar o samsara. Vamos falar apenas sobre o feto dentro do ventre.

A segunda parte do terceiro elo é a consciência carregada no momento do resultado (‘bras-dus-kyi rnam-shes). É a experiência individual e subjetiva, que ocorre de momento a momento, e que é lançada em um novo renascimento como resultado do amadurecimento do carma de lançamento. É a base para se vivenciar todos os resultados cármicos que serão originados nessa vida.

Muitos resultados cármicos amadurecerão intermitentemente durante um renascimento futuro. O budismo apresenta uma análise complexa do mecanismo de causa e efeito, com seis tipos de causas e cinco tipos de resultados. Tanto as redes de forças cármicas quando as de tendências cármicas agem como causas umas para as outras, embora sejam tipos diferentes de causas para cada resultado. Da mesma forma, o que amadurece de cada uma delas é um tipo diferente de resultado, embora resultados específicos que amadurecem recebam o nome do tipo de resultado predominante. Tampouco deveríamos pensar que nossa experiência em um futuro renascimento será determinada somente pelos resultados de nosso carma. O budismo não é um sistema solipsista. As circunstâncias internas e externas também têm um papel no processo causal, como muitas outras causas externas, por exemplo, o esperma e o óvulo de nossos pais, incluindo sua espécie e o DNA. Pelo fato de tudo ser interconectado e depender de todo o resto, o tópico da causa e do efeito é o mais complexo que existe.

O resultado cármico principal do qual fala o mecanismo dos doze elos da originação dependente é o resultado amadurecido (rnam-smin-gyi ‘bras-bu). Isso se refere aos agregados básicos (phung-po) de nosso próximo renascimento, que são influenciados enormemente pela forma de vida que teremos. No entanto, os resultados amadurecidos incluem apenas os itens não especificados dentro de nossos agregados, como nossos corpos, mentes e tendências cármicas.

  • Nossas redes de força cármica são suas causas de amadurecimentos (rnam-smin-gyi rgyu). Elas dão origem aos resultados da mesma forma que uma árvore frutífera dá origem às frutas quando  está desenvolvida. 
  • Nossas tendências cármicas são causas de status equivalente (skal-mnyam-gyi rgyu). As causas de status equivalente são causas que têm o mesmo status ético dos seus resultados, como um momento de amor que dá origem a um momento de compaixão.
  • Nossas tendências cármicas também são causas obtentoras (nyer-len-gyi rgyu) de nossos corpos e mentes. Elas os originam da mesma forma que uma semente dá origem a um broto.
  • A escola Chittamatra afirma que nossas tendências cármicas também são a fonte natalícia (rdzas) de todos resultados, assim como um forno é a fonte natalícia de um pão. Todas as outras escolas afirmam que as tendências cármicas são apenas fontes natalícias de itens em nossos agregados que sejam formas de estar conscientes de algo e dos fenômenos não estáticos. O esperma e o óvulo dos pais e os elementos externos são fontes natalícias dos resultados que são formas de fenômenos físicos. 

Os itens naturalmente construtivos ou destrutivos, como as continuidades das redes de força cármica que continuam em nossa próxima vida, não estão incluídos nos resultados amadurecidos.

  • Nossas redes de força cármica são suas causas de status equivalente.
  • Nossas tendências cármicas são as causas obtentoras e as fontes natalícias.

Os Cinco Agregados 

Para entender a forma como todo esse mecanismo se desenvolve no ventre, precisamos ter pelo menos um entendimento superficial dos cinco agregados, ou seja, dos fatores que compõem cada momento de nossa experiência. A forma como vivenciamos as coisas, aquilo que vivenciamos, é um conglomerado de muitos fatores diferentes, que podemos dividir em cinco grupos. Eles não existem em caixas separadas. Trata-se apenas de uma maneira de esquematizar e organizar o material. Cada uma das cinco categorias é composta por muitos componentes. Por isso, são chamados de fatores “agregados”. Há um ou mais elementos de cada um desses cinco grupos que compõem nossa experiência a cada momento, e todos funcionam juntos como uma rede: tudo está interconectado. Não vou listá-los na ordem tradicional, mas de uma forma que será ligeiramente mais fácil de entender.

(1) O fator agregado das formas de fenômenos físicos (gzugs-kyi phung-po) consiste em estímulos visuais, sons, cheiros, sabores e sensações físicas, assim como em sensores físicos, isto é, as células sensoriais, as hastes e os cones dos olhos, e assim por diante. Também podemos falar do elemento físico do corpo em geral. Poderíamos entrar em uma discussão mais sofisticada sobre as formas que aparecem nos sonhos, e assim por diante, mas pularemos isso desta vez.

(2) A seguir vem o que geralmente é chamado de agregado da consciência (rnam-shes-kyi phung-po). Trata-se de tipos diferentes de consciência primária envolvidos em nossa experiência. No modelo ocidental, temos uma consciência geral que opera através dos olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo ou mente. No modelo budista, não falamos de um tipo geral de consciência. Falamos de tipos específicos de consciência para cada um dos canais sensoriais. Há seis tipos de consciência: a consciência dos estímulos visuais, dos sons, dos cheiros, dos sabores, das sensações físicas e dos fenômenos mentais, como pensamentos, sonhos e sono. A consciência primária lida apenas com o campo sensorial básico do qual estamos conscientes. Em cada momento da experiência, estamos em um ou outro canal. Estamos no canal visual, auditivo, conceitual, e assim por diante.

(3) Depois temos um agregado da distinção (‘du-shes-kyi phung-po). Frequentemente, ele é chamado de “reconhecimento”, mas não estamos falando de algo tão sofisticado quanto o reconhecimento. Estamos falando de algo muito básico. Algo que ocorre também em cada momento da experiência de uma minhoca. O termo ocidental “reconhecimento” significa que estamos vendo agora algo que se parece com uma experiência que tivemos no passado; logo, nós nos lembramos dessa experiência e a comparamos com a experiência do momento presente. O reconhecimento funciona quando reconhecemos a semelhança entre as duas experiências. Esse agregado não está falando disso. Em sua forma mais simples, estamos falando sobre distinguir algo em um campo sensorial, com uma característica específica, de forma que possamos focar e vivenciar esse objeto.

Por exemplo, o campo sensorial da visão é feito de todo tipo de formas coloridas. Isso é o que vemos com a consciência primária. Para focarmos e lidarmos com qualquer objeto desse campo sensorial, temos que distinguir um conjunto de formas coloridas com alguma característica específica de tudo que há no plano de fundo. Fazer isso é importante e também é essencial. Não poderíamos lidar com o mundo sem a capacidade de distinguir entre coisas distintas dentro dos campos sensoriais. Veríamos apenas uma massa indiferenciada de formas coloridas.

Dentro do campo auditivo do som, também temos que distinguir um som dos outros que escutamos simultaneamente. Temos que distinguir o som de alguém que está falando do som do trânsito. Também temos que distinguir palavras. Pensando bem, é realmente incrível. Há um fluxo de sons vindo da boca de alguém e somos capazes de distinguir e dividir sequências de sons em sílabas e palavras. Caso contrário, como poderíamos entender o que os outros estão dizendo?

Cada momento de nossa experiência contém algum aspecto do ato de distinguir. Não temos que saber o que é a coisa nem nomeá-la para conseguir distingui-la. Por exemplo, podemos distinguir uma sombra movendo-se na escuridão. Há um som. Não sabemos do que se trata, mas conseguimos distingui-la. Às vezes, não queremos nem mesmo saber do que se trata, como por exemplo quando ouvimos algo que se move nos arbustos ao lado de um caminho na selva.

(4) Depois, temos um agregado do sentir (tshor-ba’i phung-po). Nossa palavra “sentir” engloba bem mais do que é abordado aqui. Em quase todos os idiomas ocidentais, sentimento tem a ver com emoções. Em inglês, sentir refere-se também às sensações, como quente ou frio, suave ou macio; emoções, como paixão ou depressão; estados de saúde, como saudável ou doente; um estado de sensibilidade, como: “ela sente a arte ou tem uma sensibilidade apurada para a arte”; um limiar da sensibilidade, como: “ele me fez sentir magoado”; intuições, como “estou sentindo que hoje será meu dia de sorte”; ou opiniões, como: “O que você sente em relação a essa questão?”. Não estamos falando de nada disso aqui. Com certeza, não estamos falando sobre emoções. Esse agregado fala apenas de sentir algum nível de felicidade ou infelicidade. Em cada momento de nossa experiência, vivenciamos um objeto juntamente com um sentimento que se encontra em algum ponto da escala entre totalmente feliz e totalmente infeliz. Raramente, estamos exatamente no meio, ou no ponto neutro; há no mínimo um nível sutil de felicidade ou infelicidade. Mesmo quando parece que não estamos sentindo nada, estamos simplesmente desatentos em relação ao que está ocorrendo.

(5) O último agregado é o que chamo de “agregado das outras variáveis influentes” (‘du-byed-kyi phung-po). Às vezes isso é chamado de “vontades”, mas isso é escolher um elemento do agregado para nomear o pacote inteiro, portanto não se trata da melhor tradução. Embora o nome desse agregado e o nome do segundo elo de originação dependente seja o mesmo, no segundo elo “as variáveis influentes” se referem apenas ao carma de lançamento. Aqui, as variáveis influentes que constituem esse agregado incluem tudo que compõe e afeta a nossa experiência e que não está nos outros quatro agregados. É o agregado de todo o resto. Ele inclui todas as emoções, positivas e negativas, e outros fatores mentais, como a atenção, o interesse, a concentração, a sonolência e o tédio. Ele também inclui abstrações não estáticas, como potenciais cármicos, redes de força cármica, mas vamos deixá-las de lado por enquanto.

Falando superficialmente, podemos dizer que temos um fator agregado composto de elementos físicos e quatro compostos de elementos mentais, ou seja, formas de estarmos conscientes de algo. É errado pensar que “mental” se refere apenas a nossos pensamentos. Estamos falando de qualquer forma de estarmos consciente de algo. Ver, distinguir, sentir um nível de felicidade, sentir raiva, e assim por diante, são formas de estarmos conscientes de algo.  

O Quarto Elo: Faculdades Mentais Nomináveis com ou sem Uma Forma Grosseira 

Chegamos ao quarto elo de originação dependente, que eu chamo de “faculdades mentais nomináveis com ou sem uma forma grosseira” (ming-dang gzugs). Muitas vezes, ele é chamado simplesmente de “nome e forma”.

Cada um dos próximos quatro elos se refere a um período do tempo dentro do desenvolvimento do feto. No budismo, falamos sobre o plano dos seres sem forma (gzugs-med khams, reino sem forma), o plano da existência samsárica no qual vivem seres divinos sem forma grosseira. As faculdades mentais nomináveis semforma grosseira se referem aos agregados desses seres do plano sem formas. Na verdade, embora não haja formas grosseiras nesse plano, ainda há formas muito sutis. Seres no plano de objetos sensoriais desejáveis (‘dod-khams, reino do desejo) têm formas grosseiras, e seres no plano de formas etéreas (gzugs-khams, reino das formas) têm formas etéreas. As faculdades mentais nomináveis com formas grosseiras se referem aos agregados dos seres desses dois planos de existência samsárica. Em todo caso, o quarto elo se refere ao momento da concepção até o momento antes que as faculdades cognitivas de ver, ouvir, e assim por diante, sejam diferenciadas.

O que significa isso? Um esperma e um óvulo se juntam. Há um agregado de formas: os elementos do corpo se manifestam. Os outros quatro agregados, os agregados mentais, as formas de estarmos conscientes de algo, estão presentes em forma de latências (bag-chags, instintos), mas ainda não se manifestaram nem diferenciaram. Estão apenas presentes no nome; são meramente faculdades mentais nomináveis.

Temos que ser bem precisos aqui. Não estamos falando de um esperma e um óvulo que se juntam com o mero potencial de sustentar a existência; mas sim de um esperma e um óvulo aos quais a mente já está agregada. Já há a atividade mental, embora não seja uma atividade mental consciente em nenhum dos sentidos que conferimos à palavra “consciente”. O feto vivencia coisas, mas o agregado da consciência ainda não está dividida em ver, ouvir, cheirar, provar, tocar e pensar, e os quatro agregados mentais não estão diferenciados entre si.

A distinção entre ter um potencial para atividade mental e de fato ter uma atividade mental, ainda que ela seja inconsciente e indiferenciada, é muito importante e não tão óbvia. É a distinção que precisamos fazer para resolver a questão de quando se dá o início da vida, que é um ponto essencial para as considerações relativas à questão do aborto. Quando começa um renascimento? É uma pergunta muito difícil de responder. Quanto o esperma e o óvulo têm que se desenvolver antes de passarem do estágio de meramente terem o potencial de sustentar a experiência para o estágio de realmente sustentarem a experiência, mesmo que essa experiência seja inconsciente e não diferencie visão, olfato, paladar e assim por diante?

Uma abordagem fundamentalista diria que o quarto elo começa no momento da concepção e, portanto, a vida começa ali. Quando analisamos de forma lógica, não há um indício lógico que afirme que um esperma e um óvulo com o potencial de sustentar a vida necessariamente a estão sustentando. A vida não se resume a células vivas, caso contrário poderíamos dizer que o esperma ou o óvulo estão vivos. Trata-se de seres sencientes? Não. Esse é um ponto muito interessante e Sua Santidade o Dalai Lama disse que precisa ser investigado cientificamente. Há muitas implicações éticas relacionadas ao controle de natalidade e ao aborto. 

O Quinto Elo: Estimuladores da Cognição 

O quinto elo é chamado de estimuladores da cognição (skye-mched, estimuladores cognitivos). Isso se refere ao período entre o desenvolvimento dos seis estimuladores diferentes da cognição até antes do momento no qual o agregado da distinção é diferenciado. Os seis estimuladores da cognição são os objetos cognitivos e sensores cognitivos (dbang-po) de cada uma das seis faculdades cognitivas. No caso das cinco faculdades cognitivas, os objetos e sensores são formas de fenômenos físicos, como a visão e as células fotossensíveis. No caso da faculdade mental, os objetos podem ser qualquer fenômeno cognoscível e válido, enquanto os sensores são os momentos que precedem imediatamente a cognição.

O agregado da forma está diferenciado aqui em visão, audição e assim por diante, como também nas células que podem perceber esses estímulos. O feto se desenvolveu ao ponto de ter células sensoriais visuais, em outras palavras, bastões e cones nos proto-olhos, células sensoriais auditivas nos proto-ouvidos, e assim por diante. Além disso, o agregado da consciência também está diferenciado em consciência visual, consciência auditiva e assim por diante. Não se trata mais meramente de uma faculdade mental nominável. No entanto, nesse ponto, não há a distinção de formas ou sensações específicas; há apenas a consciência de campos sensoriais em geral. As outras três faculdades mentais ainda são apenas nomináveis. Quando pensamos sobre isso do ponto de vista do desenvolvimento, é muito interessante. Há a consciência da sensação física, mas não há a diferenciação entre quente ou frio e assim por diante.

O quinto elo se refere às células sensoriais e aos objetos sensoriais, ou campos sensoriais, que são experimentados através delas. São resultados amadurecidos e se referem ao que ocorre quando uma forma de vida começa a se formar. Para usar a analogia grosseira de um computador, até agora falamos do hardware. Agora precisamos falar do software. 

O Sexto Elo: a Consciência do Contato 

O sexto elo é a consciência do contato (reg-pa). O agregado da distinção e partes significativas do agregado de outras variáveis influentes estão funcionando. Não são mais faculdades mentais meramente nomináveis.

Chamar esse elo de “contato”, como é traduzido geralmente, dá a impressão de que se trata da ação física de entrar em contato com um objeto. Não é isso. É uma forma de estar consciente de um objeto que foi contatado porque foi distinguido. A consciência do contato diferencia um tal objeto como agradável, desagradável ou neutro. Por exemplo, dentro do campo de sensações físicas, agora o feto é capaz de distinguir experiências de quente ou frio, ou de pular para cima e para baixo, com as quais ele entra em contato cognitivamente. Por exemplo, ele está consciente de que a sensação física de pular para cima e para baixo é agradável, desagradável ou neutra.

O que determina isso? O carma. Aqui os resultados cármicos semelhantes à causa que os provocou começam a amadurecer (rgyu-mthun-gyi ‘bras-bu). Por termos criado situações agradáveis e desagradáveis em vidas passadas encontramos coisas que percebemos como agradáveis e desagradáveis nesse estágio de desenvolvimento. Embora o agregado da distinção e outras variáveis influentes, como a consciência do contato, estejam funcionando, o agregado do sentir ainda não está funcionando. Ele está presente, mas ainda tem uma forma não diferenciada, sendo uma faculdade mental nominável. Em outras palavras, temos consciência do contato com os objetos como sendo agradável, desagradável ou neutro, mas ainda não reagimos com sentimentos de felicidade, infelicidade ou neutralidade.

O Sétimo Elo: Sentindo um Nível de Felicidade 

O sétimo elo é sentir um nível de felicidade (tshor-ba). Nesse ponto, o agregado do sentir também funciona. Sentir é definido como a forma  como vivenciamos aquilo que amadureceu de nosso carma. Experimentamos o sentimento de felicidade de acordo com a consciência do contato com uma sensação física agradável ou da infelicidade de acordo com a consciência do contato com uma sensação desagradável. Ou não vivenciamos nem a felicidade nem a infelicidade, ou  um nível muito reduzido de uma ou da outra, de acordo com a consciência do contato com um sentimento neutro.

Esses quatro elos e meio – a consciência carregada que resulta, as faculdades mentais nomináveis com ou sem forma grosseira, os estimuladores de cognição, a consciência do contato e sentir um nível de felicidade – são os elos que resultam do carma de lançamento. Agora está funcionando o mecanismo plenamente amadurecido de todos os cinco agregados. Tudo está a postos para perpetuar incontrolavelmente a nossa situação samsárica.

Por exemplo, o feto no útero está consciente de que pular para cima e para baixo é uma sensação desagradável. Ele está infeliz e não gosta dessa sensação. Com repulsa, ele sente que tem que chutar para eliminar a sensação. Um impulso de chutar é originado; ele age de acordo com o impulso com outro impulso de energia e com chutes. Isso leva a mãe a sentir uma sensação física com a consciência do contato de algo desagradável. Ela experimenta um desconforto. Chutar com raiva e criar uma circunstância que leva a mãe a sentir desconforto acumula causas para ter sensações desagradáveis no futuro e vivenciar infelicidade. Outro feto pode ter consciência da mesma sensação de pular para cima e para baixo como algo que o acalma e relaxa, e reagir se sentindo calmo e feliz. Tudo vem do carma. 

Perguntas sobre o Renascimento Futuro 

O resultado do carma de lançamento amadurece imediatamente na próxima vida ou em alguma vida posterior? 

O resultado do carma de lançamento pode amadurecer imediatamente na próxima vida ou em qualquer renascimento posterior. No entanto, quando ele é ativado, ele nos lança imediatamente no próximo renascimento. Temos o resultado de milhões de carmas de lançamento em nosso contínuo mental. Quando o resultado de um carma de lançamento específico é ativado no momento da morte, ele nos lança no próximo renascimento, começando com o estado intermediário do bardo. No bardo, temos um corpo sutil feito de luz, que já tem a forma de nosso próximo renascimento. Se conseguirmos renascer como seres humanos, esse corpo terá a forma de como será nossa aparência aos oito anos de idade. 

Há ensinamentos que afirmam que a consciência no bardo vê seus futuros pais no abraço sexual. Como essa consciência sabe quando deve entrar?

Como dissemos, uma questão importante é quando começa o próximo renascimento. Trata-se de uma questão difícil. Há descrições clássicas da consciência que observa o pai e a mãe unidos e entra através da boca do pai e vai para seu órgão sexual e é projetada no útero materno com o esperma até encontrar o óvulo. Se renascer como homem, sentirá repulsa pelo pai e atração pela mãe, e se renascer como mulher, será o contrário disso. Logicamente, podemos diferenciar isso um pouco para incluir homossexuais e bissexuais. Alguém pode entrar no corpo de um homem e ter repulsa pela mãe, e assim por diante. O carma de lançamento determinará se a pessoa será homem ou mulher e o carma de finalização determina a preferência sexual.

A pergunta é, devemos entender essa descrição como literal ou metafórica? Em qualquer caso, se a consciência se reúne ao esperma e óvulo no momento da concepção ou mais tarde, ela não está pensando conscientemente: “Onde estão meu pai e minha mãe? Ah, aqui estão eles!” Ela não escolhe. Não fica dando voltinhas, observando diferentes casais, e esperando que o casal certo comece a fornicar. Ao invés disso, é quase como uma atração magnética. Não há absolutamente nenhum controle. Uma consciência simplesmente é levada ao uma base física específica. Tenho a impressão de que a descrição clássica de entrar pela boca do pai e assim por diante não deve ser entendida como literal. Mas quando discutimos alguma questão no dharma, temos que argumentar com razões do dharma, e não dizer: “não acho que seja assim”.

Essa descrição do renascimento é encontrada principalmente em fontes do tantra. No anuttarayoga, a classe mais elevada do tantra, queremos purificar o processo de morte, bardo e renascimento. Portanto, meditamos sobre um processo análogo à morte, ao bardo e ao renascimento para poder transformá-los e purificá-los. A descrição do universo em O Tantra Guhyasamaja, com o Monte Meru, os quatro continentes, os elementos e assim por diante, é a mesma que há nos textos do abidharma do sutra. O Tantra Kalachakra tem uma descrição diferente, na qual o Monte Meru e as mandalas dos elementos são proporcionais ao corpo humano. Com base nessa apresentação, podemos meditar de forma que a mandala de Kalachakra tenha as mesmas proporções que o universo e as mesmas proporções que o corpo humano. Dessa forma, podemos purificar tanto a nossa situação interna quanto a externa, ao mesmo tempo. Da mesma forma, quando queremos purificar o processo do renascimento no tantra anuttarayoga, fazemos uma meditação análoga ao processo do renascimento. Meditamos que a nossa consciência entra pela boca da divindade masculina, passa pelo órgão sexual masculino e entra no útero da divindade feminina, com uma experiência de felicidade. Todas as figuras na mandala são geradas de gotas no útero da divindade feminina e então essas figuras saem do útero e se acomodam na mandala externa.

Assim como a descrição do universo no Kalachakra é uma descrição conveniente para a meditação e não deve ser entendida literalmente, da mesma forma, a descrição do processo de renascimento que achamos no Guhyasamaja Tantra não deve ser entendida literalmente. Ela apenas oferece uma analogia conveniente para o propósito da meditação. Acho que é um argumento válido, consistente com a lógica budista, para afirmar que a descrição do renascimento que começa no momento que antecede a ejaculação do pai dentro do útero da mãe não deve ser entendida literalmente. 

E o que você pode nos dizer sobre bebês gerados pela fertilização in vitro ou óvulos fertilizados e congelados? 

Na apresentação tradicional, podemos nascer através do útero, do óvulo, do calor e da umidade ou da transformação. Os textos clássicos dizem que os seres humanos podem nascer dessas quatro formas. Temos que nos perguntar ao que isso pode estar se referindo. Talvez estejam falando de algumas dessas formas modernas de nascer. Referem-se a nascer de um óvulo como “nascer duas vezes”, pois a pessoa nasce dentro do óvulo e depois nasce a partir do óvulo. Podemos imaginar que haja um processo semelhante em dois passos quando o óvulo é fertilizado no útero de uma mãe e depois implantado no útero de outra mãe. Isso é nascer duas vezes. Quando um esperma e um óvulo são unidos em um tubo de ensaio e depois implantados no útero de uma mulher ou até mesmo desenvolvidos em um ambiente artificial, o que com certeza será o caso um dia, essas situações artificiais podem ser semelhantes à referência ao nascimento do calor e da umidade.  O nascimento através da transformação soa como clonagem para mim; há a transformação de uma célula em outro corpo, sem a fertilização de um esperma e um óvulo. Usando a nossa imaginação, podemos concordar que há esses quatro tipos de nascimento até mesmo entre seres humanos. Obviamente, precisamos do carma adequado para nascer de um ou de outro modo.

No que se refere a embriões congelados, é difícil dizer se a consciência entrou em um embrião ou não. Obviamente, há as duas possibilidades. Mas mesmo se ela tiver entrado, trata-se apenas de mais uma experiência. Há a experiência subjetiva e individual de estar em um estado de animação suspensa ou coma porque a circunstância da base física está congelada. É remanescente de um renascimento prévio em um inferno gelado. Esses fenômenos foram descritos nas leis do carma. 

Quando o feto começa a gerar um novo carma? 

As emoções perturbadoras são uma reação à felicidade e infelicidade, pois estamos apegados à felicidade ou não gostamos da infelicidade e queremos nos livrar dela. As emoções perturbadoras como o apego e a aversão vêm como uma reação aos sentimentos de felicidade e infelicidade. Essas emoções perturbadoras nos motivam a fazer algo em relação a elas. Há uma intenção envolvida nisso. Depois, há um impulso de energia com o qual o feto chuta a mãe. Isso começa a acumular mais carma.

Podemos ver que todo o drama começou de novo. Quando a mãe se ressente por causa do ser que está dentro de seu útero chutando e fazendo com que ela se sinta desconfortável o tempo todo, esse pode ser o início de um relacionamento ruim entre a mãe e a criança. O pai também pode se ressentir porque o bebê faz a mãe sentir tanto desconforto que ela não consegue demonstrar afeto ou dar atenção a ele. O carma amadurece nas circunstâncias vivenciadas pelo bebê. Nesse exemplo, ele nasce em uma situação na qual os pais sentem ressentimento pelo fato de que ele os perturbou com seus chutes durante todo o processo de gravidez. Provavelmente, ele chutará e chorará o tempo todo porque para ele tudo é desagradável e por isso ele se sente infeliz e tem raiva. Os pais podem estar querendo intensamente que o bebê pare de chorar, o que ele sente como ainda mais desagradável e faz com que se assuste ainda mais. Todo esse pacote é o amadurecimento do carma. O bebê faz apenas com que as coisas fiquem incontrolavelmente piores. Bem-vindos ao samsara!

Mas se a mãe já estiver no processo de purificação, pode ser uma condição favorável para o bebê, não é? 

Não necessariamente. Lembrem-se que o carma não amadurece de forma linear. Podemos praticar bem e meditar todos os dias e, ainda assim, ter câncer e morrer. O que amadurece pode vir de várias vidas atrás. Uma mãe pode ser uma praticante muito dedicada e ter um bebê que berra e chora e sempre está infeliz. Não há nenhuma certeza de que uma praticante terá um pequeno buda bonzinho. 

Um contínuo mental iluminado continua a renascer por compaixão, com total controle, ao invés de confusão, e no lugar, no tempo e nas circunstâncias que ele ou ela quiser, certo?

Correto.

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