Os Doze Elos: A Ignorância

Os Doze Elos de Originação dependente Descrevem o Renascimento e como Pará-lo

Os doze elos de originação interdependente (rten-‘brel yan-lag bcu-gnyis) descrevem o mecanismo do renascimento. O renascimento diz respeito à continuidade da mente. Quando falamos da mente no budismo, não estamos falando de uma “coisa” que existe dentro de nossa cabeça. Estamos falando sobre uma atividade que ocorre o tempo todo. Não estamos fazendo uma divisão, típica do pensamento ocidental, entre a mente e o coração ou o aspecto racional/intelectual, de um lado, e o aspecto emocional/intuitivo, de outro lado. Estamos falando sobre um tipo de atividade que inclui o lado racional e o lado emocional, o pensar e o sentir. Estamos falando também da percepção: ver, ouvir, cheirar, degustar, e sentir sensações físicas. Portanto, estamos falando sobre a atividade mental de experimentar. E estamos sempre experimentando algo: a atividade mental sempre tem conteúdos. Ela é também uma experiência individual e subjetiva. Ela continua, de momento a momento, sem pausa. Temos a experiência do estado desperto, do sono, dos sonhos, e até mesmo da morte.  Essa atividade não tem início nem fim.

A nossa experiência individual e subjetiva das coisas está mesclada à confusão, ou maculada por confusão. A confusão tem acompanhado a nossa experiência desde sempre. Mas a confusão não é uma parte intrínseca de nossa experiência. Ela pode ser removida ou separada de nossa experiência. Ela pode ser removida temporariamente como também pode ser removida de forma que nunca volte a ocorrer. Isso é assim porque a confusão pode ser substituída pelo entendimento, e o entendimento pode se sobrepor à confusão de modo que ela nunca volte a ocorrer. A razão disso é: quanto mais examinamos o entendimento, mais ele se estabelece; quanto mais examinamos a confusão, mais ela se desfaz.

Por não ter início nem fim, a continuidade da experiência individual e subjetiva perdura de uma vida para outra. O renascimento pode ocorrer de duas formas. Em uma delas, a confusão segue sendo parte da experiência, de vida em vida. Quando o renascimento é mesclado à confusão, vários tipos de problemas fazem parte da experiência. De fato, o budismo diz que, se olharmos com atenção, cada momento de nossas vidas está pleno de problemas de todos os tipos quando a nossa experiência é mesclada à confusão. Isso se chama “samsara”. Gosto de traduzir o samsara como “renascimento incontrolavelmente recorrente.” Em outras palavras, ele se repete continuamente, é cheio de problemas, e não temos controle em relação a isso. De certa maneira, ele se autoperpetua.

Pode parecer pouco razoável dizer que tudo é sofrimento, mas se dissermos que todas as nossas experiências ou tudo aquilo que fazemos em nossas vidas é permeado de problemas, fica um pouco mais fácil de entender. Portanto, prefiro dizer “problemas” do que “sofrimento”. Mesmo quando vivenciamos a felicidade, há um problema nisso. Ela não perdura e tampouco sabemos o que virá a seguir. Nosso humor mudará, e nunca sabemos quando isso ocorrerá, e nunca sabemos qual será nosso próximo humor. Isso é um problema.

Como a confusão é algo que pode ser separado e removido de nossa experiência, o renascimento pode continuar sem confusão. Tecnicamente, essa situação não será realmente um renascimento, mas ainda será a continuidade de nossa experiência individual e subjetiva. É chamada de um estado de “libertação” ou “nirvana”, no qual a pessoa se libertou do samsara. O processo de se libertar do samsara e alcançar a libertação, e, eventualmente, a iluminação de um buda, é complicado e envolve passar por diversos estágios. A continuidade da experiência individual e subjetiva perdura durante todo o processo de purificação: começa completamente mesclado à confusão e progride até estar livre da confusão, em um estado de realização plena de todos os potenciais que temos.

Para sermos capazes de nos libertarmos da experiência incontrolavelmente recorrente do renascimento, com sua confusão e seus problemas, é importante entender como ela acontece e como se desenvolve. Isso está descrito naquilo que chamamos de “doze elos da originação dependente”. De uma forma tipicamente budista, não se trata de uma descrição simples ou linear. Neste fim de semana, tentaremos examinar todos os aspectos da descrição de como funcionam os doze elos. Em outras palavras, examinaremos as causas de continuarmos a ter renascimentos incontrolavelmente recorrentes com problemas e confusão. Também exploraremos como um entendimento correto da vacuidade ou da realidade é capaz de romper essa sequência incontrolavelmente recorrente para que possamos eventualmente alcançar a libertação e a iluminação.

Podemos discutir o mecanismo do samsara em termos desses doze elos em muitos níveis de complexidade. Nesse fim de semana proponho que examinemos esse tema com um nível de complexidade que não seja nem simples nem complicado demais. Se for simples demais para vocês, por favor, sejam pacientes. Se for complicado demais, por favor, também sejam pacientes. Algumas apresentações dos doze elos também dizem que os doze elos ocorrem a cada momento ou que todos eles ocorrem no espaço de uma vida. Aqui nós falaremos deles em termos do processo de renascimento. É a forma mais comum de nos referirmos a eles.

"Elos" Assimétricos

A palavra elo é usada aqui porque o processo é descrito como uma corrente. Eu disse antes que não se trata de uma corrente linear; os doze elos não se seguem em sequência linear.

No pensamento grego antigo, o que era considerado verdadeiro era equivalente ao que era bom e bonito. Na forma de pensar dos antigos gregos, a beleza era simétrica:  era a proporção áurea. É quando tudo funciona de forma uniforme, bonita e ordenada. A verdade tinha que ser assim. Aí a coisa era boa. Em um nível inconsciente, temos essa herança dos antigos gregos. Quando tudo dá certo, é organizado e simétrico, nós nos sentimos confortáveis e satisfeitos com a situação. Quando não é assim, não nos sentimos bem, não é mesmo?

Como disse um de meus professores tibetanos, não há nenhuma razão para o universo ser simétrico ou pela qual as coisas deveriam funcionar uniformemente. Se o universo fosse simétrico, no momento do big bang todas as estrelas estariam configuradas simetricamente. Mas elas não estão em simetria, não é mesmo? Isso demonstra que não há uma simetria inata no universo. Como outro professor meu disse muito bem: “A simetria é uma estupidez.” Portanto, não queiramos que os doze elos sejam simétricos, bonitos e organizados, pois eles não são.  Tentemos expandir nosso conceito de beleza para além da simetria.

O Primeiro Elo: A Ignorância (A Inconsciência)

O primeiro dos doze elos é chamado de “inconsciência” (ma-rig-pa). Ainda que seja geralmente traduzido como “ignorância”, não me parece ser uma tradução satisfatória, pois isso sugere que somos burros. Literalmente, trata-se de uma falta de consciência – em outras palavras, inconsciência. Quando eu disse que a confusão está mesclada à nossa experiência, eu me referia à inconsciência. Olhemos para a definição disso. 

Os mestres indianos Vasubandhu e Asanga explicaram a inconsciência como a escuridão ou o peso de não saber. De acordo com algumas outras descrições, como a descrição de dharmakirti, ela pode incluir a escuridão ou o peso de compreender as coisas de uma forma errônea ou invertida. Ou não sabemos algo ou entendemos algo errado.

Há muitas coisas que podemos não saber ou sabemos de uma forma incorreta. Por exemplo, não sei o nome de todos aqui nesta sala. Não estamos falando de inconsciência em relação a esse tipo de coisas, mas em relação a dois tópicos específicos. O primeiro é a causa e o efeito comportamental. Não se trata da causa e do efeito físico, como saber a distância que uma bola será projetada se a chutarmos com uma força específica. Estamos falando sobre causa e efeito em termos de nosso comportamento. Em outras palavras, a causa é o nosso comportamento – como agimos, falamos, e pensamos – e o efeito é a nossa experiência. A causa e o efeito comportamental tem a ver com a conexão entre os nosso comportamento e a experiência que dele resulta.

Se não tivermos consciência da causa e do efeito comportamental, agiremos de forma destrutiva, pois não entenderemos quais são os resultados de nossas ações. Por conseguinte, cairemos em renascimentos piores. Agiremos de forma destrutiva e, como resultado, renasceremos em estados que não serão absolutamente conducentes ao progresso espiritual.

O segundo tópico do qual não temos consciência é a natureza da realidade. Em outras palavras, trata-se de como tudo existe. A inconsciência em relação à realidade faz com que geralmente tenhamos renascimentos samsáricos, tanto em situações conducentes quanto em situações não conducentes para a prática espiritual. Todos nós temos esses dois tipos de inconsciência.

Qual a função da inconsciência? O que ela faz conosco? Asanga disse que, primeiro, ela nos deixa atordoados ou confusos. Aturdidos seria uma outra palavra. Não sabemos o que fazer. Não sabemos o que está ocorrendo. Como realmente não entendemos, nos sentimos confusos. Em segundo lugar, ela nos deixa indecisos: não temos certeza do que queremos. Não sabemos como agir ou nos relacionar com as pessoas, embora tenhamos muitas ideias. Geralmente, optamos por uma atitude incorreta que nos torna teimosos, pois insistimos em alguma maneira estranha de entender as coisas.

Se olhássemos para o estado mental ou emocional sendo descrito aqui, quando estamos confusos, atordoados, indecisos e teimosos, insistindo em algo de que não temos certeza, qual palavra descreveria esse estado? Vocês o reconhecem? É a “insegurança”. Todos nós a conhecemos. Embora não haja uma palavra como “insegurança” nos idiomas budistas originais, acho que nós conseguimos entender do que estamos falando aqui. A inconsciência nos deixa inseguros.

O primeiro elo da originação interdependente é a inconsciência em relação à realidade, não a inconsciência em relação à causa e ao efeito comportamental. É basicamente disso que estamos falando aqui. Agora temos que examinar com mais precisão.

Inconsciência da Realidade

Como parte de nossa experiência individual e subjetiva, as coisas parecem existir com um tipo de identidade sólida. Elas parecem existir de forma sólida ou concreta. A terminologia empregada aqui é muito difícil. Temos que usar termos gerais para termos um entendimento geral e podermos entrar em detalhes mais tarde. “Sólida” é a palavra mais simples que me ocorre para usar nesse contexto.

Por exemplo, pode parecer que realmente temos problemas sólidos e concretos em nossa vida. Talvez nosso parceiro tenha nos deixado. No momento, o que está de fato acontecendo é que estamos olhando pela janela e estamos nos sentindo tristes. Mas parece que temos um problema monstruoso – concreto, sólido e pesado. Esse tipo de coisa acontece conosco o tempo todo. Compreendemos, ou percebemos, as coisas dessa forma.

Ainda que talvez tenhamos realmente um problema, a ideia de um problema “monstruoso” não corresponde à realidade. Não há nenhuma coisa grande e pesada sentada em nosso quarto. Uma forma realista de olhar para a situação seria pensar que a pessoa foi embora, que isso não é fácil e estamos tristes, mas é a vida. O que esperávamos do samsara? Lidamos com a situação e tentamos achar uma solução. A forma como essa situação parece existir, como um problema monstruoso, não corresponde à realidade. Infelizmente, o problema parece existir dessa forma e, de fato, nos sentimos como se tivéssemos um problema horrível.

Quando entendemos algo como sendo um problema monstruoso, pode ser que não tenhamos consciência de que isso não corresponde à realidade. Ou pode ser que pensemos de forma incorreta e acreditemos que a realidade seja assim. Essas são as duas definições de inconsciência. Nos dois casos, há sofrimento.

Os Dois Níveis de Inconsciência de Como As Pessoas Existem

Há dois níveis de inconsciência sobre como as pessoas existem: inconsciência baseada em doutrinas (kun-brtags) e inconsciência que se origina automaticamente (lhan-skyes). A primeira delas é traduzida às vezes como sendo inconsciência “baseada no intelecto”. Eu costumava traduzi-la como “inconsciência baseada em ideologias” ou “inconsciência baseada em propaganda”, mas agora prefiro “baseada em doutrinas”.

Inconsciência baseada em doutrinas é a inconsciência que vem de conceitos que aprendemos com as asserções das filosofias indianas não-budistas sobre o “eu” (bdag, sct. atman) e que aceitamos como verdadeiros. De acordo com essas filosofias, o “eu” de uma pessoa existe como uma mônada estática e sem partes (um monolito permanente) independente dos fatores agregados do corpo e da mente.

A maioria dos ocidentais nunca estudou as filosofias indianas não-budistas e, portanto, não têm uma autêntica inconsciência baseada em doutrinas, advinda do estudo e da crença na visão compartilhada de que existimos como um “eu” com essas três características definidoras. No entanto, acho que podemos postular uma forma análoga de inconsciência baseada em doutrinas que deriva de conceitos adquiridos de fontes que afirmam apenas uma ou duas dessas características. Tecnicamente, essa inconsciência vem de uma consideração incorreta (tshul-min-gyi yid-byed), como quando consideramos algo não-estático como sendo estático. Ela pode vir de conceitos sobre como existimos que adquirimos a partir da influência de nossas famílias, da sociedade, televisão, religião, política, dos anúncios e assim por diante. Pode ser que não tenhamos aceito esses conceitos de forma consciente e deliberada. Muitas vezes nós os assimilamos inconscientemente.

Depois, há a inconsciência originada automaticamente, que até mesmo os animais têm. Mas não deveríamos pensar que os animais não têm também uma inconsciência análoga fundamentada em doutrinas. Os animais têm conceitos, embora não se trate de conceitos verbais. Por exemplo, um cachorro, como um ser humano, pode ficar neurótico se tiver sido espancado e tiver escutado constantemente que é um mau cachorro.

A inconsciência originada automaticamente não é algo que precisamos aprender. Desde o nascimento, vivemos na confusão sobre como nós existimos. Embora não sintamos e acreditemos automaticamente que, como indivíduos, temos as três características que as filosofias indianas não-budistas afirmam ser partes do “eu”, é provável que sintamos automaticamente que temos uma ou outra dessas qualidades.

Quando falamos desse primeiro elo como sendo a inconsciência em relação a como as pessoas existem, estamos falando sobre esses dois tipos de inconsciência, a fundamentada em doutrinas e a originada automaticamente. Examinemos esses dois tipos de confusão. É importante reconhecê-las dentro de nós mesmo, então vamos focar nossa discussão na inconsciência relacionada a como nós existimos.

Essa inconsciência é relacionada ao nosso “eu” convencional e como ele existe. Temos a impressão de que “eu” existo como uma entidade concreta, que não pode ser afetada pelas circunstâncias, que permanece sempre igual, uma entidade separada de minha experiência. Em um nível mais profundo, parece que o “eu” é um chefe controlador sentado dentro de nossa cabeça, recebendo informações de um monitor com alto-falantes, apertando botões, e usando o corpo e a mente como uma máquina. Olhemos para exemplos de cada uma dessas características para identificar do que estamos falando.

  1. Primeiro, vamos olhar para elas em termos de uma inconsciência análoga, fundamentada em doutrinas sobre como existimos. As nossas famílias, a sociedade e a mídia nos dizem que devemos ser um homem forte ou uma mulher forte. “Independente do que acontecer, não deixe isso te afetar. Seja um homem forte ou uma mulher forte. Mantenha sua postura. Não importa o que acontecer, seja sempre forte.” Pensemos sobre isso por um momento e tentemos reconhecer esse padrão em nós mesmos. Parece que há um “eu” concreto que sempre é forte e não pode ser afetado pelos acontecimentos. Não nos livramos disso pensando que é uma burrice pensar assim.
  2. Outro aspecto disso é que parece que somos sempre iguais e únicos. “Seja alguém nessa vida. Encontre a si mesmo. Seja você mesmo. Seja sempre fiel a si mesmo.” A nossa sociedade e nossas famílias nos dizem isso. Está enraizado em nossa cultura. O que está por detrás disso? O sentimento de que somos sempre o mesmo “eu”, verdadeiro e único. Se ainda não achamos nosso “eu”, temos que achá-lo e viver de acordo com ele. É estranho. Pensem nisso. São pensamentos fundamentados em doutrinas e profundamente enraizados em nossa mente. Por favor, observem que todos esses pensamentos geralmente são inconscientes.
  3. A terceira característica é que esse “eu” aparentemente sólido parece separado de nossa experiência. “Seja sempre jovem e bem-apessoado.” Isso quer dizer que pode haver um “eu” separado dos sentimentos ruins ou do envelhecer, que pode sempre se sentir jovem e bem. Quando acordamos de manhã e estamos sonolentos, nosso cabelo está desgrenhado e olhamos para o espelho, pensamos: “esse não sou eu.” Isso sugere que há um “eu” separado dessa experiência, que tem outra aparência. Baseados nessa crença, fazemos com que essa bola de carne com cabelo saindo por cima venha a se parecer com nosso “eu” verdadeiro. Aí, nós pensamos: “Agora sim, esse sou eu! Não era eu antes.” Estamos condicionados por nossas famílias, pela sociedade, e assim por diante, a agir dessa forma. Nós dizemos: “Hoje não estou sendo “eu”.” Bem, quem somos nós então? Também dizemos: “Não me reconheci naquela situação.” Realmente sentimos dessa forma. É uma pena que não percebamos que não existimos realmente dessa forma. Pensamos que somos realmente assim.
  4. Também nos dizem constantemente que temos que ter o controle de nossas vidas. Freud nos fala de um superego. É uma ideia estranha. Há um “eu” dentro de nós que controla outro “eu” que precisa ser controlado. Portanto, há dois “eus”. É como quando dizemos: “Não tenho me permitido me divertir ultimamente, mas agora vou relaxar.” Se pensarmos nisso, é realmente estranho. Um “eu” dará permissão a outro “eu” para que ele possa se divertir. Isso está profundamente enraizado em nossa psique e causa muitos problemas. Há diferentes aspectos da inconsciência baseada em doutrinas sobre como nós existimos.

Depois, temos a inconsciência originada automaticamente sobre como nós existimos. Isso ocorre porque automaticamente temos a impressão de existir de formas impossíveis. Faz parte de nossa experiência individual e subjetiva. Olhemos para as características do “eu” concreto que é o objeto dessa inconsciência que se origina automaticamente. Podemos entendê-la através de exemplos.

  1. Parece que há sempre um “eu” estático que não pode ser afetado pelas circunstâncias. “Eu me machuquei, mas aqui estou eu, inabalável.” Parece ser assim. Já que não engordamos imediatamente, pensamos inconscientemente: “Posso comer esse biscoito e não ser afetado por isso.”
  2. Somos sempre a mesma pessoa. Não parece que o “eu” que foi dormir à noite é o mesmo “eu” que acordou na manhã seguinte? “Fui dormir e agora acordei. Olha eu aqui de novo. O mesmo ‘eu’.” Temos automaticamente a impressão de que é assim.
  3. Parece que há um “eu” separado de minha experiência ou de meus agregados. “Machuquei a minha mão”. Pensem nisso. Não parece que há um “eu” separado da mão? O “eu” que machucou sua mão parece existir de forma sólida, separado da mão, da mesma forma que o “eu” que comeu o bolo parece existir de forma sólida, separado do bolo. Automaticamente, temos essa impressão. “Estou me sentindo horrível.” Parece haver um “eu” separado da experiência horrível. Temos automaticamente a sensação de que há um “eu” separado.
  4. Também nos parece automaticamente que há um “eu” que comanda e é o chefe. Por que? Por que há uma voz em nossa cabeça que diz: “O que devo fazer agora?”

Trata-se do primeiro elo da originação interdependente. É o principal catalisador de todo esse processo do samsara, a inconsciência em relação a como nós existimos – tanto a baseada em doutrinas quanto a originada automaticamente. Todos nós as temos. Não devemos pensar que apenas os outros, os burros, as têm. Nós as temos! No entanto, essa confusão não significa que somos burros. Ela é natural. É parte da experiência. Sentimos que as coisas são assim! Não obstante, isso não corresponde à realidade. Quando não entendemos isso, aceitamos e acreditamos nisso.

Vamos parar por aqui hoje à noite e amanhã examinaremos como a inconsciência em relação a como existimos perpetua o samsara. A questão importante relacionada ao que vimos hoje é que o primeiro elo não fala de algo teórico ou abstrato. É algo fundamental para todos nós. Todos nós temos isso. É a nossa experiência mais cotidiana. Ela acompanha a nossa forma de perceber as coisas, quer estejamos conscientes dela ou não.

Perguntas sobre Como o “Eu” Existe

Você pode nos falar mais das características da inconsciência em relação a como o “eu” existe?

Quando falamos “machuquei a minha mão” é como se houvesse um “eu” separado de algo que é diferente dele, algo que ele possui, e que agora está machucado. Dizemos: “Agora eu vou ao mercado”, como se estivéssemos indo buscar um “eu” separado e o lançássemos na experiência de ir ao mercado.

É realmente importante trabalhar com tudo isso. Essas características de algo que não pode ser afetado, que permanece sempre igual, separado do resto, falam sempre da mesma coisa, de um “eu” aparentemente concreto. Outro exemplo é alguém que foi abusado e espancado, e pensa: “vocês podem machucar o meu corpo, mas não podem “me” tocar.” Uma pessoa de boa aparência pode pensar: “Eu quero que alguém me ame por quem eu sou e não apenas pelo meu corpo.” O que realmente nos engana é que sentimos dessa forma; temos a sensação de que existimos como uma entidade sólida.

Como podemos dizer que fomos espancados de uma forma que não sugira uma separação?  

Há simplesmente a experiência de ser espancado. Por exemplo, alguns minutos atrás, houve a experiência de assistir à televisão. Agora há a experiência de ver o meu pai entrar na sala, a experiência de vê-lo gritando, a experiência dele batendo em mim e me dizendo que devo parar de assistir a televisão e ir trabalhar. Depois, há a experiência de ver meu pai saindo da sala e a experiência de assistir a televisão sentindo a dor. Isso foi tudo que aconteceu.

Se quiséssemos juntar todas as experiências e nos referir à experiência como um todo, diríamos que ela se refere a “mim”. É uma experiência individual e subjetiva de uma sequência de eventos conectados. O que acontece quando pensamos: “Ele está espancando meu corpo, mas não pode realmente me tocar. Não permitirei a mim mesmo sentir a dor e a raiva. Serei um homem forte”? O que está acontecendo é que esses pensamentos estão sendo pensados.

Só porque pensamos algo não significa que corresponda à realidade. Também podemos sentir coisas que não necessariamente correspondem à realidade. O que está acontecendo é apenas o sentir, o pensar, a experiência em si. A questão aqui é não exagerar a importância do que acontece. Aconteceu por causa de causas e circunstâncias que dizem respeito a mim e a meu pai. Se pudermos mudar algo na situação, fazemos isso. Adicionamos mais ingredientes à sopa cármica que afeta o que está ocorrendo. Quando nos sentimos como uma vítima sólida, pode ser que tenhamos essa sensação, mas as coisas não são realmente assim.

Quando tenho uma dor de cabeça, ela é a soma de todos os meus momentos passados? Ao mesmo tempo, cada momento é novo. Como podemos unir essas duas perspectivas?

O processo do amadurecimento do carma é extremamente complicado. Falaremos um pouco disso amanhã. Basicamente, todas as nossas ações que foram realizadas com algum nível de motivação, seja ela positiva ou negativa, resultam em um potencial que possibilita a experiência disso ou daquilo. Há um número incontável de potenciais. A questão é quais serão ativados em um dado momento e darão origem a essa ou aquela experiência, a esse ou aquele humor. O que fazemos agora pode facilitar as circunstâncias que ativarão um potencial de uma experiência desagradável ou agradável. Se começarmos a pensar que somos uma pobre vítima, certamente isso ativará um potencial de infelicidade, não é mesmo? Se pensarmos na situação do espancamento como resultado de muitos fatores diferentes, pode ser que não ative um potencial de prazer, mas a experiência de termos sido espancados mudará. Entender a situação e ter paciência desenvolve um potencial que nos possibilita acessar a capacidade de entender melhor e ter mais paciência diante das situações que enfrentaremos no futuro.

Há uma ideia da Nova Era de que temos que achar nosso “eu” verdadeiro. Será que isso não contribui com essa confusão?

Certa vez, um amigo me enviou um cartão postal que tinha uma foto de um jovem caminhando nas montanhas com botas de caminhada e com a roupa adequada. No caminho, ele encontrou alguém que era igual a ele, mas estava vestido com um terno de três peças e segurava uma maleta. O texto foi alterado por meu amigo que escreveu: “Ao fazer uma caminhada no Himalaia, Alex encontrou seu ‘eu’ verdadeiro.”

A ideia de que temos que achar nosso “eu” verdadeiro não existe apenas no movimento da Nova Era. Um maravilhoso psicólogo ocidental, Erik Erikson, falou sobre a crise de identidade no fim da adolescência. Ele criou o termo “crise de identidade”. As pessoas têm que estabelecer uma identidade separada de seus pais e sua família, e isso pode vir a ser muito estressante. Resolver essa crise é muito importante para a saúde psicológica.

Em todo caso, temos que diferenciar no budismo o que chamamos de “eu” convencional do falso “eu”. O “eu” convencional existe. É necessário ter um senso do “eu” convencional que seja capaz de funcionar no mundo. É importante ser introspectivo e conhecer a si mesmo, conhecer os próprios talentos, os pontos fortes, os pontos fracos, as nossas necessidades, as nossas limitações, e assim por diante, para podermos funcionar de uma forma saudável. Isso não é equivalente a achar nosso “eu” verdadeiro, um “eu” sólido que nunca muda, que é único, e assim por diante. Quando passamos por uma crise de identidade, é importante saber diferenciar entre esses dois. Não tem que ser no fim da adolescência. Pode acontecer em qualquer momento de nossas vidas.

Há também uma diferença entre autopreocupação e autoconsciência. “Autopreocupação” é como se sente um adolescente quando tem espinhas no rosto e acha que todos estão olhando para ele. Na verdade, provavelmente ninguém está olhando para ele, pois ninguém se importa de fato com isso. É um fato difícil de engolir. Todos os outros estão preocupados com seus próprios problemas; não estão nem um pouco interessados nos nossos problemas. A “autopreocupação” gira em torno do falso “eu” aparentemente sólido.    

“A autoconsciência” é estar consciente de nossas motivações, nossos sentimentos, ter uma presença mental em relação ao que está ocorrendo dentro de nós a cada momento. Quando encontrar ou conhecer a si mesmo significa se tornar consciente de si mesmo, de suas motivações, de suas emoções perturbadoras, é um processo muito saudável. Mas temos que ter cuidado para que isso não se torne uma preocupação consigo mesmo, um narcisismo, a única coisa na qual pensamos, sem que nos importemos com mais ninguém além de nós mesmos. Por outro lado, quando encontrar a si mesmo significa tentar descobrir o objeto da auto-preocupação, como se fosse o nosso “eu” verdadeiro, então é um processo muito prejudicial.   

Talvez não saibamos realmente qual é a nossa motivação, ou pensemos que seja isso quando na verdade é aquilo. Esse tipo de inconsciência não é o tema do primeiro elo da originação interdependente. Aqui estamos falando sobre a inconsciência em relação a como nós existimos – quando pensamos que existimos de forma separada, que permanecemos sempre os mesmos, não afetados por nada, e temos o controle de nossas vidas.

Quando a nossa experiência está mesclada a esse tipo de confusão, enfrentamos problemas em todas as situações. Por exemplo, o simples fato de encontrar e ver você pode se tornar um problema para mim. Por que isso seria um problema? Porque tenho a impressão que há um “eu” sólido dentro de mim e penso que esse “eu” sólido deveria ser amado e apreciado pelas pessoas. Assim sendo, quando eu me encontro com você, estou realmente preocupado com pensamentos do tipo: “Será que ela vai me dar atenção? Será que ela gosta mesmo de mim?” A interação com a outra pessoa acaba ficando cheia de problemas e inconsciência. E tudo gira em torno dessa crença em um “eu” sólido. Nós sentimos que ele existe. Por isso, acreditamos nele. O que está de fato acontecendo é que estou vendo você, falando com você, interagindo com você. Só isso. Entender o primeiro elo é realmente um passo essencial. É a chave para conseguirmos parar o processo samsárico que nos faz criar problemas para nós mesmos.

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