A renúncia é muito enfatizada nos ensinamentos budistas. É um dos três aspectos principais, do caminho sobre o qual escreve Tsongkhapa, que são absolutamente essenciais tanto para a prática do sutra quanto para a prática do tantra: renúncia, bodhichitta, e o entendimento correto da vacuidade. Obviamente, é algo que precisamos entender e tentar desenvolver. Tsongkhapa escreve sobre isso em seu texto, Os Três Aspectos Principais do Caminho (Lam-gtso rnam-gsum):
Quando você não gerar, nem mesmo por um único instante, uma mente que aspire às coisas maravilhosas do samsara recorrente, e quando desenvolver uma atitude que seja o tempo todo profundamente interessada na libertação, nesse momento terá gerado a renúncia.
Com a renúncia nosso objetivo não é a iluminação; nosso objetivo é a libertação do samsara. Trata-se de dois objetivos bem diferentes. Com a libertação, nós superamos nossos renascimentos incontrolavelmente recorrentes para não ficarmos mais sob a influência das emoções perturbadoras e do carma. Nesse sentido, não vivenciamos mais nenhum tipo de sofrimento. Mas isso não nos coloca na posição de saber como ajudar os outros da melhor maneira possível, mesmo embora estejamos livres do apego a uma existência verdadeiramente estabelecida. Normalmente, a nossa falta de consciência e nossa confusão em relação a como nós existimos causam nossas emoções perturbadoras. Quando agimos de acordo com elas, isso faz com que acumulemos o carma que impulsiona nossos renascimentos incontrolavelmente recorrentes ou o samsara. Assim sendo, mesmo que estejamos livres do apego à uma existência verdadeiramente estabelecida, com a libertação a nossa mente ainda criará aparências de uma existência verdadeira. Isso significa que, para nós, é como se tudo fosse aparentemente encapsulado, e existisse de forma isolada. Isso quer dizer que para nós é muito difícil entender real e totalmente o princípio da causa e do efeito. Explicando com outras palavras: Quais são as causas dos problemas das pessoas no samsara? E qual será o efeito de qualquer coisa que ensinemos a elas? Não apenas o efeito sobre elas, mas sobre todas as pessoas que interagirem com elas, sendo este o resultado daquilo que lhes ensinamos? Primeiro, temos que parar de acreditar nas aparências, o que ocorre com a libertação, e somente então seremos, pouco a pouco, capazes de fazer com que nossas mentes parem de produzir essas falsas aparências. De qualquer forma, não falaremos de iluminação aqui, e precisamos ter muita clareza em relação ao fato de que, quando falamos de renúncia, estamos falando de libertação.
Os Termos para “Renúncia” nos Idiomas Budistas Tradicionais
Sempre é útil olhar para os termos budistas nos idiomas tradicionais. A palavra em sânscrito que é traduzida como “renúncia” é nihsarana. Ela é composta de um prefixo, nih, e uma raiz, sarana. Nih é um prefixo que significa “fora” ou “sair”. E sarana significa “mover-se” ou “mover-se rapidamente”. Portanto, é um estado mental que deseja sair de, ou mover-se rapidamente para fora de alguma coisa. Queremos sair rapidamente do renascimento incontrolavelmente recorrente: do samsara.
Não é que estejamos sempre nascendo no samsara. O samsara não é um lugar. Temos que ter muito cuidado para não pensar que estamos renascendo no samsara. O samsara é uma situação. Ela se refere – e repito essa frase o tempo todo – ao renascimento incontrolavelmente recorrente. Isso é samsara. Samsara é continuar o círculo vicioso. A palavra se refere especificamente ao renascimento. Não temos controle sobre o renascimento. Ele se perpetua indefinidamente. Ele está sob a influência das emoções perturbadoras e do carma que é acumulado quando agimos de acordo com essas emoções. Portanto, o termo sânscrito significa que queremos sair desse círculo vicioso o mais rápido possível.
Se olharmos no dicionário o prefixo nih ou nis também pode significar “certo” ou “definido”. Com a palavra ngey (nges), os tibetanos escolhem traduzir o significado do prefixo, que provavelmente não é a conotação original da palavra em sânscrito. De qualquer forma, os tibetanos perceberam a possibilidade desse significado. Para sarana, que significa mover-se, os tibetanos escolheram uma palavra, jung (byung), que quer dizer “manifestar”, “fazer com que algo aconteça”. Portanto, é o estado mental que manifesta certeza. Isso adiciona uma dimensão um pouco mais vasta à palavra em sânscrito. Por isso, traduzo esta palavra como “determinação”: temos certeza. E é a determinação de que? É a determinação de sairmos do samsara; de sermos livres.
Quando olhamos para a tradução chinesa da palavra, há duas traduções diferentes. Uma delas, li, (离) significa “partir” – semelhante ao sânscrito – portanto, é o estado mental que visa partir do samsara. A segunda tradução que eles usam é shi chuxian (实出现), que significa “manifestar a coisa autêntica”. É interessante, a “coisa autêntica”. Novamente, se pensarmos sobre isso, significa conseguir essa coisa realmente definida e autêntica; que realmente estamos determinados a sair.
Quando olhamos para essas traduções diferentes, como as culturas diferentes entenderam essa palavra, isso nos dá uma noção um pouco mais vasta do que ela significa. O que é esse objeto que queremos deixar, do qual queremos sair? E estamos realmente determinados – vamos realmente fazer isso, temos que fazer isso. Basicamente, é o sofrimento, especificamente, o renascimento incontrolavelmente recorrente. É um tipo de sofrimento, certo? Faz parte da primeira nobre verdade – o verdadeiro sofrimento – e é o significado mais profundo da primeira nobre verdade. Queremos nos livrar de suas causas também – a segunda nobre verdade – e isso significa não nos sentirmos atraídos por nada que envolva o renascimento incontrolavelmente recorrente. Como renascimento incontrolavelmente recorrente são muitas palavras, vou abreviar para apenas “renascimento”. Portanto, não pensemos apenas no samsara, pois muitas vezes quando pensamos no samsara temos uma ideia diferente do que se trata. Estamos falando do renascimento. Não se trata de querer fugir, de pensar nisso como uma fuga do mundo. Não estamos falando sobre fugir, não queremos nos esconder e, dessa forma, escapar do mundo. Ao invés disso, queremos encarar o renascimento e analisar suas causas, e sair dele de uma forma muito racional.
Por Que Deixar o Samsara?
A pergunta é: Por que queremos deixar o samsara? Por que queremos sair dele? (Afinal, a renúncia fala de uma motivação). Portanto, no budismo, a motivação envolve algum objetivo que queremos alcançar; neste caso, trata-se de sair do ciclo de renascimentos. O segundo aspecto é algum tipo de emoção que nos leva a alcançar esse objetivo. Certo? Uma emoção. Um estado mental. Por que queremos alcançar isso?
Temos que falar em termos muito práticos sobre o que isso realmente quer dizer. Podemos explicar toda a teoria e todas as listas e assim por diante. Tudo isso é muito bom, mas o que isso realmente significa para nosso desenvolvimento pessoal em nosso cotidiano? É isso que importa.
Estamos tentando progredir através dos estágios graduais do caminho, do lam-rim, e não deveríamos pensar que isso é fácil. Muitas vezes pulamos os níveis iniciais e intermediários e vamos diretamente ao nível avançado. Chegamos ao nível avançado e dizemos: “Meu objetivo é alcançar a iluminação para beneficiar a todos os seres.” São palavras muito bonitas, mas não significam nada, não afetam realmente o que sentimos, pois não temos uma ideia clara do que é a iluminação. Está além de nossa habilidade pensar em cada um dos seres individuais, com mentes individuais, habitando todo o universo; é um escopo muito grande. São belas palavras, mas não são sinceras. Será que é realmente isso que estamos sentindo?
Uma Motivação de Escopo Inicial para a Renúncia
Comecemos pelo escopo inicial, que é extremamente difícil. Não deveríamos trivializá-lo, pois já é muito avançado. Na melhor das hipóteses, a maioria de nós está no estágio zero antes do escopo inicial, que é beneficiar esta vida através da prática do dharma; e diminuir um pouco nosso sofrimento. Isso está ótimo assim, se entendermos que se trata do passo zero e que ainda há mais passos a fazer, e que gostaríamos de ser capazes de progredir e fazer o restante dos passos. Mas temos que começar com o passo zero. Até mesmo pensar em melhorar o futuro desta vida e não apenas querer uma melhora instantânea já é uma conquista.
Mas o escopo inicial baseia-se em renascimentos futuros. É claro que isso quer dizer que temos que entender o que renascimentos futuros significam no budismo. Precisamos entender os ensinamentos budistas sobre renascimento, ou seja, entender o que a mente significa no budismo. E também precisamos entender o carma, e como nossas ações afetam as vidas futuras. Temos que estar convencidos de que tudo isso é realidade; é verdade. Com base nisso, temos que fazer algo para nos assegurarmos de que continuaremos a ter preciosos renascimentos humanos no futuro. E realmente fazer o que há para ser feito. Portanto, para atingir esse nível e ter isso como pensamento principal – é uma grande e incrível conquista. Não deveríamos subestimá-la.
O escopo inicial não é o nosso tema. Precisamos olhar para o escopo intermediário. No escopo intermediário, sabemos que não podemos realmente garantir que sempre teremos um precioso renascimento humano, não é mesmo? Estamos falando de um precioso renascimento humano, não apenas um renascimento humano.
Com o escopo inicial, focamos muito no sofrimento da infelicidade, um dos três tipos de sofrimento, chamado de “sofrimento do sofrimento (sdug-sngal-gyi sdug-bsngal)”. Basicamente, é isso. Vivenciamos a infelicidade com muitos, muitos objetos, não apenas com a dor. A dor é uma sensação física. Não estamos falando sobre sensações físicas. Estamos pensando em estados mentais; na infelicidade. Com o escopo inicial, pensamos em situações terríveis e na infelicidade que decorre delas, e no fato de que queremos evitar isso. Portanto, o precioso renascimento humano certamente é melhor para fazermos isso do que um renascimento como uma criatura do inferno, como um fantasma ou um animal.
Um Escopo Intermediário para a Renúncia
Aqui está o problema. O problema é que agora precisamos focar, com o escopo intermediário, naquilo que chamamos de “sofrimento da mudança (‘gyur-ba’i sdug-bsngal)”. O sofrimento da mudança é a nossa felicidade comum. Ela não perdura nem nos satisfaz; quanto mais felizes somos, pior a coisa fica. Talvez seja preciso esclarecer isso. Um exemplo clássico: se comer a nossa comida favorita fosse uma felicidade verdadeira, quanto mais comêssemos dela, mais felizes seríamos. No entanto, depois de um certo ponto, quanto mais nós comemos, mais essa felicidade muda e se transforma em sofrimento. Por isso a chamamos de sofrimento da mudança. Assim sendo, mesmo quando temos um precioso renascimento humano, pode ser que o percamos, pode ser que soframos novamente uma queda em um massivo sofrimento do sofrimento. Até mesmo dentro de nosso precioso renascimento humano, não haverá apenas a felicidade comum; haverá muita infelicidade também.
No escopo intermediário, além do sofrimento da mudança, queremos principalmente superar o “sofrimento que tudo permeia (khyab-par ‘du-byed-kyi sdug-bsngal)”. Trata-se do renascimento incontrolavelmente recorrente, pois o renascimento que recorre incontrolavelmente sob a influência do carma e das emoções perturbadoras é a base para os dois tipos de sofrimento. Esse tipo de corpo e mente são a base para a experiência do sofrimento da infelicidade e o sofrimento da felicidade comum. Portanto, continuará a ter altos e baixos.
Problemas com a Motivação de Escopo Inicial
O que acontece quando realmente tentamos desenvolver o escopo inicial? Há muitos problemas. No escopo inicial rezamos muito: “Que eu continue a ter um precioso renascimento humano, com todas as circunstâncias e condições e liberdades para ser capaz de continuar minha prática do dharma.” Evitamos o comportamento destrutivo, o que é a causa principal para engendrar um precioso renascimento humano. Praticamos muito as atitudes de amplo alcance: a generosidade, a disciplina, a paciência, etc. E oferecemos essas orações. Mas isso se mistura com: “Que nas minhas vidas futuras eu possa sempre estar com meus entes amados, meus parentes, meus amigos, meus colegas estudiosos do dharma, e com meus professores. E que eu sempre tenha recursos financeiros para ser capaz de estudar.” Há muito apego nisso. Portanto, não estamos realmente querendo a libertação. Certo? Queremos esse precioso renascimento humano, mas com todas as coisas boas que já tivemos. Isso nos atrai muito.
Temos que começar a focar nisso quando praticamos a renúncia. Temos que começar a pensar no sofrimento envolvido nisso. Estar com nossos amigos, com nossos entes queridos, etc – será que isso é realmente uma fonte de felicidade? Se não for, isso quer dizer que temos que ignorá-los? Não. Mas temos que olhar para eles de uma forma bem realista. Pensar na libertação do renascimento é muito, muito profundo. É muito difícil para nós até mesmo imaginar o que isso significa. Muito difícil. Então, nós pensamos, o que isso quer dizer? Isso quer dizer que não posso mais ter amigos? Isso quer dizer que não posso ter nenhum relacionamento amoroso? O que será que isso realmente quer dizer?
Não estamos falando sobre um conceito errôneo de renúncia, de que é necessário desistir de tudo e viver em uma caverna. Não se trata disso. Não é isso. A renúncia – é algo muito mais profundo, com todos os tipos de emoções e sentimentos que a acompanham. Portanto, temos que focar no renascimento. Quando pensamos em nossos amigos e parentes, pode ser que sejam boas circunstâncias, mas não é o que importa, não é nisso que temos que focar no escopo inicial. Devemos focar em melhores renascimentos futuros, em continuar a ter preciosos renascimentos humanos. É muito fácil desviar do rumo nesse nível do escopo inicial. Ter esses tipos de pensamentos: “Quero estar sempre com meus amigos, meus entes queridos, nas vidas futuras.” Nós queremos ter isso... Mas qual o motivo de querermos um precioso renascimento humano no futuro? É para podermos progredir no caminho espiritual e para continuarmos a nos desenvolver.
Se olharmos para isso de uma maneira um pouco mais realista – é como se partíssemos do princípio que sempre será possível obter um precioso renascimento humano, o que é incrivelmente difícil. Não há nenhuma garantia de que o conseguiremos, se olharmos para o que fazemos e pensamos na maior parte do tempo. Estou seguro de que a maioria de nós descobrirá que o nosso lado destrutivo e perturbado supera de longe o lado positivo e construtivo. No que se refere a causa e efeito, não será fácil sempre continuar tendo renascimentos humanos preciosos, nem mesmo uma única vez.
Mesmo se tivermos renascimentos humanos preciosos, não é horrível ter que começar tudo de novo a cada vez? “Quero continuar meu caminho espiritual.” Certo? É o escopo inicial. “Eu realmente levo isso a sério, trabalhei muito durante esta vida e, com a idade e mais maturidade em minha prática do dharma, atingi certo nível de entendimento, de concentração, de compaixão, e assim por diante. Quando eu renascer, embora o caminho possa vir a ser um pouco mais fácil por causa dos instintos que semeei, ainda assim será horrível ter que passar novamente por todos os estágios para voltar ao nível da vida anterior e poder prosseguir e progredir.” Temos que pensar nisso. Além disso, em cada vida teremos emoções perturbadoras, altos e baixos, raiva e cobiça, etc.
Uma Versão Dharma-Light da Motivação para o Escopo Intermediário
Há uma versão bem “light” do escopo intermediário, da renúncia. É quando queremos nos libertar das nossas emoções perturbadoras e de nosso carma sem fazer a conexão disso com o renascimento. É claro que isso faz sentido. É horrível ter esses altos e baixos, ficar com raiva, e ter tantas dificuldades nos relacionamentos por causa da raiva e do apego. Portanto, reduzimos a nossa prática do dharma a uma espécie de psicoterapia, talvez um pouco mais profunda do que as terapias disponíveis, com a grande quantidade de métodos que temos de milhares de anos de experiência budista. Mas ainda estamos pensando no que eu chamaria de uma versão bem “light” do escopo intermediário. Pois temos apenas o objetivo de nos livrarmos dos dois primeiros tipos de sofrimento: o sofrimento da infelicidade e o sofrimento da felicidade comum. Não estamos pensando no renascimento.
O Escopo Intermediário Autêntico inclui, além do que acabamos de mencionar, o renascimento – o terceiro tipo de sofrimento, que é a base para os dois primeiros tipos de sofrimento. Pode ser que estejamos focando em nos libertar de nossas emoções perturbadoras, mas é possível que não consigamos fazer isso nesta vida. E depois vem o renascimento. Se não tivermos pensado em como parar isso, como evitar isso, certamente não prosseguiremos no caminho da libertação. Na verdade, estaremos perpetuando nosso samsara. Por que? Porque não entendemos realmente o ensinamento budista sobre causa e efeito e provavelmente não temos clareza em nosso entendimento sobre renascimento. A coisa toda se torna muito confusa em nossa mente. Embora seja benéfico pensar que “Quero me livrar de todas as minhas emoções perturbadoras”; o objetivo da prática budista vai muito além disso.
Acho que podemos desenvolver o descontentamento diante de todos os problemas que enfrentamos, diante do fato de que tivemos um relacionamento ruim que acabou e que teremos outros relacionamentos ruins, pois as síndromes se repetem incessantemente. Pensando assim, podemos ter a determinação necessária para tentarmos nos libertar disso. Por que precisamos do budismo? Será que estamos transformando o budismo em mais um tipo de psicoterapia? Temos que desenvolver a renúncia – e é perigoso dizer isso – em nossa vida comum. Digo que é perigoso, pois pode facilmente ser mal interpretado. Vida comum quer dizer que temos que recomeçar tudo, como um bebê, passando por todas as dificuldades de ser um bebê – de não conseguirmos nos expressar, não sermos capazes de fazer nada, e termos que aprender tudo de novo. Bebês desamparados. Que grande perda de tempo, não é mesmo? Queremos prosseguir no caminho. Queremos nos desenvolver. Queremos, e esse é o escopo intermediário, sair totalmente do sofrimento. Ou, no escopo avançado, queremos ser capazes de ajudar os outros.
Uma Motivação de Escopo Avançado para a Renúncia
Aqui a nossa renúncia é ainda mais forte, quando estamos trabalhando no nível avançado. Temos que alcançar o estado iluminado de um buda para realmente poder ajudar a todos. Nossa mente está suficientemente expandida para entender o que é a “iluminação” e qual o significado de “todos”. Realmente queremos fazer isso, é um desejo muito forte. Todos foram nossas mães e tão gentis conosco – todos esses pensamentos estão presentes. E que perda de tempo colossal ter que voltar sempre de novo ao início, estar em um útero, ser um bebê, ir à escola, repetir todas as práticas preliminares, e todo o treinamento. Então, quando tivermos quarenta ou cinquenta anos, seremos talvez capazes de retomar onde paramos na vida passada. Que tédio. E uma grande perda de tempo. Muito, muito ineficaz. É a isso que renunciamos.
E esquecemos desejos como, por exemplo: “Ah, quero estar com meus amigos. Será tão legal.” Vamos ter que esquecer e deixar de lado tudo isso. Esse não é o nosso foco aqui. É um apego que pode nos aprisionar, e acabaremos não focando naquilo que realmente importa, e de onde precisamos sair. E não se trata apenas de querer estar com amigos e entes queridos. “Será tão bom estar novamente com meu professor.” Até isso pode se tornar um problema. O que importa não é estar com o meu professor, de quem eu gosto tanto. O que importa é conseguir ter professores espirituais – não importa quem – e conseguir prosseguir no caminho. Mas não se trata simplesmente de ter bons momentos e me sentir bem por estar com meu professor. Isso não é realmente o que queremos. Certo? Quero dizer, como arhat, poderíamos estar em uma terra pura estudando com budas Sambhoghakaya. Isso é muito melhor que estar em um centro de dharma.
Portanto, quando tentamos imaginar como seria ter a renúncia em nosso cotidiano, não estamos falando de renunciar a sorvete, ou dormir menos horas por noite, desse tipo de coisas, mas nosso foco deveria ser: “Fico imaginando o que vou querer no futuro, e o que me dá energia para praticar o máximo possível agora? Quero progredir o máximo de que eu for capaz agora, para que na próxima vida, se eu tiver um renascimento humano precioso, talvez me custe um pouco menos de tempo chegar onde estou agora, perto do fim de minha vida.” Dessa forma, podemos realmente trabalhar bastante para nos livrarmos de nosso apego, de nossa raiva, desse tipo de coisas. É a isso que a renúncia se refere.
Assim sendo, em nossas orações – oremos por um precioso renascimento humano, mas, além disso, oremos pela libertação. E não vamos querer apenas preciosos renascimentos humanos para estar com nossos amigos e entes queridos. Certo? Geralmente, é nisso que a maioria de nós pensa quando quer ter um renascimento maravilhoso. Se formos sinceros com nós mesmos, não é mesmo assim? E estamos apenas perpetuando mais e mais samsara por causa desse apego. Estão vendo a contradição nisso? Quero estar com meus amigos e entes queridos para trabalhar na superação de meu apego. Isso é contraditório, não é? Quero ter circunstâncias maravilhosas para poder trabalhar na superação do meu apego às circunstâncias maravilhosas. Isso é estranho, não é mesmo? Portanto, temos que ser fortes para tentarmos realmente focar naquilo que queremos e precisamos conquistar.
Renúncia aos Ativadores do Carma para o Renascimento
Um aspecto da renúncia é superar o terceiro tipo de sofrimento, o renascimento incontrolavelmente recorrente, e superar suas causas. Agora entramos nas emoções perturbadoras, etc. Era isso que eu estava tentando enfatizar. Não queremos apenas renunciar às causas – as emoções perturbadoras são as causas; essa é a segunda nobre verdade – queremos renunciar à primeira e à segunda nobre verdade: o resultado das causas, que é o sofrimento. Lembremos que o Buda ensinou primeiro a primeira nobre verdade e em segundo lugar a segunda nobre verdade. Por isso, elas estão nessa ordem. Portanto, queremos renunciar ao sofrimento, que é a primeira nobre verdade; e depois à causa, ao renascimento incontrolavelmente recorrente. Temos que identificar corretamente o que significa a primeira nobre verdade. Não é somente o sofrimento do sofrimento e o sofrimento da mudança. É também o sofrimento que tudo permeia. Como sempre diz Sua Santidade, há muitas religiões e filosofias que têm o objetivo de libertar do sofrimento do sofrimento e do sofrimento da mudança. Certo? Elas falam do nascimento no céu, no paraíso, e da superação dos prazeres mundanos e da felicidade mundana. Outras religiões ensinam isso. Essa não é uma característica específica do budismo.
Falemos das causas, e da segunda nobre verdade. O que queremos que pare, a fim de que os renascimentos parem? Isso nos indica aquilo com o que temos que lidar quando praticamos a renúncia: como viver de acordo com a atitude da renúncia? Achamos a resposta para isso nos ensinamentos sobre os doze elos de originação dependente; eles ensinam o mecanismo do renascimento, do samsara. Trata-se de um sistema muito complexo e agora não é o momento nem o lugar para nos aprofundarmos nos doze elos; aqui focaremos apenas nos pontos relevantes.
A partir de nossa falta de consciência da realidade, e de como as coisas existem, agimos de formas destrutivas, ou formas construtivas mescladas com confusão, e isso cria tendências cármicas (sa-bon). Essas são imputadas ao contínuo mental, são ativadas no momento da morte, e produzem aquilo que chamamos de “carma de lançamento” (‘phen-byed-kyi las), que nos lança a vidas futuras. Essas tendências são ativadas até mesmo no cotidiano e produzem os nossos altos e baixos comuns – o sofrimento da infelicidade, o sofrimento da felicidade comum.
Como paramos o renascimento? Temos que parar de ativar essas tendências cármicas. Se for impossível ativar uma tendência cármica, então não teremos mais essas tendências. Certo? Uma tendência pode apenas ser imputada se houver instantes passados e a possibilidade de instantes futuros de algo. Se instantes futuros de algo não forem mais possíveis, não se pode mais dizer que há uma tendência: uma tendência é apenas imputada em relação a algo prévio e algo possível que ainda não ocorreu. Portanto, se for impossível ativar as tendências para que haja uma futura ocorrência, a tendência acabou.
É difícil entendermos isso. Tentemos usar um exemplo. Se olharmos para essa mesa – vamos usar um exemplo mecânico – veremos que há a possibilidade de colocarmos um copo de água sobre ela. No passado houve copos de água sobre ela e ainda há a possibilidade de que haverá mais copos de água sobre ela. Mas se a mesa for queimada e se transformar em cinzas, não haverá mais a possibilidade de colocar um copo de água sobre ela, não é mesmo? Portanto, aquela tendência ou possibilidade acabou. Estamos falando disso, com um exemplo muito simples. Assim sendo, queremos nos libertar daquilo que ativa tendências cármicas, e achamos descrições muito boas disso nos doze elos.
Anseio ou Sede
Há duas coisas que ativam as tendências cármicas (é claro que cada uma delas têm muitas partes, como explicam os ensinamentos budistas.) A primeira é chamada de “anseio” (sred-pa). É a palavra que designa sede, ter sede. Quando ansiamos por algo estamos sedentos por algo. Qual o objeto aqui? O objeto é felicidade, a infelicidade ou um sentimento neutro. Temos sede de quê? Quais os nossos anseios? Não queremos nos separar da felicidade comum que temos agora, e queremos parar com a infelicidade que temos agora, ou ansiamos por um sentimento neutro para simplesmente podermos continuar existindo. Também há outras explicações.
O que isso engloba? É o processo que conhecemos durante toda nossa vida: às vezes nos sentimos felizes, às vezes nos sentimos infelizes. Não tem que ser dramático; podem ser níveis baixos desses sentimentos. E não importa qual o objeto que estamos vendo, ouvindo, cheirando ou degustando, ou qual a sensação física que temos no momento – quente, frio, prazer, dor – ou o que estamos pensando. Às vezes, com o mesmo objeto nos sentimos felizes, outras vezes infelizes. Às vezes temos um sentimento neutro, nem feliz nem infeliz; por exemplo, quando estamos em um sono profundo.
O que ocorre com os anseios? Vamos ter esses altos e baixos a vida inteira – felizes, infelizes, neutros. Mas nós os estamos exagerando. Exageramos as boas qualidades da felicidade, e negamos suas imperfeições – o fato de que ela acabará, de que mudará, etc. Negamos o sofrimento da mudança. Temos que obter a felicidade; temos que mantê-la e não podemos perdê-la. Nós exageramos sua importância, primeiro a transformamos em algo sólido, depois a inflamos como se fosse algo realmente fantástico. E fazemos o mesmo com a infelicidade. Nós a transformamos em algo sólido e depois exageramos suas qualidades negativas, e nos esquecemos das boas qualidades, do fato de que ela pode nos ajudar a desenvolver compaixão por pessoas que tenham sofrimentos semelhantes aos nossos. Temos que nos livrar dessa coisa horrível, dessa infelicidade. E também transformamos o sentimento neutro em algo de sólido, queremos continuar nele. E assim ficamos inconscientes, adormecidos, para sempre.
Isso indica no que precisamos trabalhar, pois esse tipo de anseios, no que se refere a nossos sentimentos de felicidade e infelicidade, ativarão tendências cármicas e perpetuarão nosso samsara. Queremos parar com isso. O que significa isso? Quer dizer que não devemos fazer um drama quando estamos felizes ou infelizes. Ou quando temos um sentimento neutro, como por exemplo, no sono: “Ah, mal posso esperar para adormecer e não ter que pensar em nada. Não terei que pensar em nada, em nenhum dos problemas do meu cotidiano.” Esses sentimentos estão sujeitos a altos e baixos constantes: portanto, ao invés de nos apegarmos a eles, queremos nos libertar deles sem exagerar sua importância.
Em um nível mais profundo, queremos nos livrar desses altos e baixos dos sentimentos. Mas aqui vem a parte complicada, pois é bem fácil transformar os altos e baixos em algo sólido e ansiar então por libertar-nos deles. Como desenvolvemos a renúncia sem ansiarmos pela liberdade? É a parte complicada. Muito, muito complicada. Muito delicada. Temos que trabalhar nisso. Por que não pensamos nisso por um, talvez dois ou três minutos?
Okay. A resposta é que precisamos entender que esses sentimentos não existem dessa forma sólida, essa aparente existência criada por nossa mente. Em outras palavras, quando ansiamos por esses sentimentos (ou ansiamos por nos libertar desses sentimentos, ou nos libertar do anseio por esses sentimentos) se tivermos esses anseios, é porque estamos transformando os sentimentos em coisas sólidas. Estamos nos agarrando à existência sólida dos sentimentos de felicidade ou infelicidade, e ao próprio ato de ansiar. Então, nós pensamos: “Ah, tenho que me livrar disso!” Bem, como nos livramos disso?
A Vacuidade como Antídoto para os Anseios
Podemos nos livrar disso com o entendimento da vacuidade: entendendo que os sentimentos não existem. Trata-se de uma forma impossível de existir. As coisas não existem como entidades sólidas, encapsuladas isoladamente. É claro que o tema da vacuidade é muito longo e profundo; e, repito, não temos tempo de nos aprofundarmos nele. Mas o que é ser feliz? Ou infeliz? Temos a palavra “feliz”. Temos a palavra “infeliz”. Elas se referem a algo. Mas o que vivencio e chamo de “feliz” nesse momento, e o que vivencio e chamo de “feliz” daqui a cinco minutos, é bem diferente, não é? E o que você vivencia também é diferente. Você chama isso de “feliz”. Será que sentimos algo? Sim. Mas podemos achar esse sentimento? Podemos colocá-lo em um pacote e dizer isso é “feliz” , isso que estou sentindo agora, e que agora você pode sentir também, da mesma forma que eu estou sentindo, de um momento para o outro, como se a fosse a mesma coisa, algo de sólido? Não, não é assim.
Então, ao invés de transformarmos essas coisas em um monstro do qual temos que nos livrar, nós as dissolvemos com o entendimento da vacuidade. O que isso significa no cotidiano? Por isso eu disse com palavras muito simples: não devemos fazer um drama por causa de nossos sentimentos. “Agora estou feliz.” “Agora estou infeliz.” E daí? Simplesmente continuamos com nossa prática, com nosso trabalho: se estivermos ajudando os outros, continuamos com o que estamos fazendo para ajudar. Simplesmente continuamos. Não importa se nos sentimos felizes ou infelizes. Simplesmente agimos. “Estou infeliz agora.” Isso não me surpreende. Por que não? Porque fiz muitas coisas destrutivas no passado, e agora estou infeliz. O que eu esperava? Que eu ficasse feliz o tempo todo nesse ponto do meu desenvolvimento espiritual?
É como quando você vive como eu vivo – moro em uma rua movimentada. Há carros passando diante de minha janela o dia inteiro. Na verdade, vivo em uma esquina movimentada, portanto, há trânsito de carros dos dois lados. Para poder viver em uma situação dessas, aprendi a ignorar totalmente o barulho da rua. Realmente, durante o dia, quando estou trabalhando e focando em meu trabalho no site, não escuto absolutamente o barulho do trânsito. Não presto atenção nisso.
Portanto, o mesmo vale para aquele momento: estou sentado ali. Não estou muito feliz. Nem estou completamente deprimido ou algo assim. Como qualquer outro ser humano, às vezes me sinto ligeiramente feliz, outras vezes ligeiramente infeliz. E daí? Ignoro esses sentimentos. Acho que essa é a chave. Mas devemos fazê-lo com o objetivo de “Não quero continuar ativando o samsara, o renascimento, a base para ter mais altos e baixos.” Quando não fazemos dramas, evitamos apego e repulsa.
Agora chegamos às emoções perturbadoras: apego à felicidade (tenho que ser feliz) e repulsa pela infelicidade (tenho que me livrar dela). Isso significa também nos livrarmos das expectativas, do que queremos, e das preocupações em relação ao que pode vir a acontecer e que não queremos que aconteça. Não temos expectativas de que seremos felizes ou preocupação em ser infeliz. E não ficamos estagnados no momento presente: “Tenho que manter o que tenho agora porque é tão bom!” Isso é parte da renúncia. Nós a praticamos com o entendimento de que queremos parar a ativação de todas as tendências que perpetuam os altos e baixos e, especificamente, as vidas futuras que continuarão a ser a base para os altos e baixos e para a felicidade/infelicidade.
Uma Atitude Obtentora
Há uma lista de coisas que pertencem ao segundo item que ativa as tendências cármicas. O primeiro eram os anseios, relacionados aos sentimentos de felicidade e infelicidade. O segundo é chamado, literalmente, de obtentor (len-pa, nye-bar len-pa). É uma emoção ou atitude que obterá (ou conquistará) um renascimento futuro. Certo? Há uma longa lista de cinco coisas.
A primeira seria o desejo por algum objeto sensorial. Vejam bem, estou generalizando os termos para poder explicá-los. Geralmente, ou normalmente, eles são explicados em termos do momento da morte, mas acho que podemos falar deles em termos gerais, pois há explicações que fazem isso. Portanto, trata-se de desejo por objetos sensoriais: objetos visuais, sons, sabores, cheiros, sensações físicas. Estamos apegados ao sentimento da felicidade, ansiamos por sua continuidade. Dentro desse estado, ansiamos por algum objeto sensorial de que gostamos muito e que nos faz muito feliz. Ou estamos infelizes e queremos algum objeto sensorial que não temos. Não devemos exagerar as qualidades dos objetos sensoriais; não transformá-los em coisas grandes e sólidas – como chocolate, a coisa mais maravilhosa do mundo. Não devemos pensar: “tenho que comer chocolate!”. Ou seja, não fazer drama em relação a nenhum objeto sensorial.
Muitas vezes, pensamos na renúncia em termos de: “tenho que parar com isso.” Nunca mais comer chocolate. Na verdade, estamos falando de parar com o anseio: “Quando tenho chocolate, tenho que guardar um pouco. Se eu não tiver, tenho que comprar. Se eu estiver sentindo falta de chocolate, tenho que me livrar desse estado de falta, e comprar mais.” Se vocês já tiveram um vício, acho que conseguem entender bem do que estamos falando aqui. Não tem que ser vício por drogas, por uma droga pesada; pode ser vício por cigarros, por café, por muitas coisas. Ah, isso nos faz ficar preocupados: “Será que conseguirei comprar cigarros? Será que conseguirei ir tomar um café? Como vou conseguir aguentar o resto da manhã se não beber o meu cafezinho?” Certo? Ficamos na expectativa, esperamos com fervor, nos alegramos só de pensar nisso: “Ah, esse cafezinho vai me deixar mais acordado e vou conseguir trabalhar melhor.”
É exatamente disso que estamos falando aqui. É uma parte daquilo que perpetuará nosso renascimento samsárico. Ficamos presos em todas essas possíveis experiências ao nosso redor, e elas são quase como uma cola. Pensamos que tudo isso nos trará felicidade. É claro que isso nos traz a felicidade comum – o sofrimento da mudança – porém esse não é o objetivo. Mas atenção, a felicidade comum é com certeza um estado mais conducente ao progresso espiritual do que a infelicidade. É um estado mais conducente à prática; contanto que não seja extrema, como está descrito ser nos reinos dos deuses. Em outras palavras, os extremos da infelicidade extrema, do sofrimento, como nos reinos infernais; ou da felicidade extrema, como nos reinos dos deuses, não são nem um pouco conducentes à prática. Estar em algum lugar no meio, como é o caso dos seres humanos com um renascimento humano precioso, com alguns altos e baixos, é bem melhor para a prática. Em outras palavras, um pouco de infelicidade ajuda a desenvolver a compaixão. Um pouco de felicidade pode nos deixar mais dispostos a trabalhar em nós mesmos. Quando estamos felizes demais não queremos fazer nada.
Em todo caso, o mesmo ocorre com os objetos sensoriais. Se tivermos objetos sensoriais e eles forem úteis, tudo bem. Se não os tivermos, não nos preocupemos. Se precisarmos de algo, podemos nos esforçar para consegui-lo sem fazer um drama por causa disso. Acho que, no nível mais simples, essa é a chave: não fazemos drama por nada, o que é um estado mental muito relaxado, por sinal. Queremos minimizar, e até mesmo parar, a ativação do carma, e usar o nosso tempo para tentar acumular mais e mais potenciais positivos.
O resto da lista tem a ver com tipos diferentes de atitudes. Como não temos muito tempo, falarei deles rapidamente. Tem muito a ver com a nossa atitude em relação a vidas futuras e o renascimento.
Primeiro, há uma perspectiva distorcida (log-lta). Pensamos que nas vidas futuras todas as informações serão deletadas de nosso hard drive, em nosso computador interno, e começaremos do zero. Em outras palavras, sem causa nem efeito. Ou negamos completamente o renascimento. Ou não temos um direcionamento estável e seguro – não temos Buda, Dharma, Sangha – que possa nos indicar o rumo da libertação. Se não levarmos a sério o princípio da causa e do efeito e o renascimento, então faremos muitas coisas que certamente nos levarão a continuar renascendo, não é assim? Portanto, ao trabalharmos com a prática do dharma, não fazemos um drama de nossos sentimentos ou de quaisquer objetos, e também pensamos: “O renascimento existe. Tenho que sair dele. Causa e efeito acontecerão. E existe um caminho para sair disso, indicado por Buda, Dharma e Sangha.” Não temos tempo para pormenorizar o significado disso tudo. É realmente muito profundo.
A próxima é chamada de perspectiva extrema (mthar-lta), que é o sentimento que nossos corpos durarão para sempre e que não vamos morrer. Ou pensamos que não há continuidade depois de nossa morte, há um grande nada – geralmente, temos muito medo do Grande Nada. Mas, repetindo o que já falei, temos que evitar isso. Quando pensamos assim, nossa confusão apenas ativa o carma. Ao invés disso, devemos pensar que vamos morrer e após a morte haverá um renascimento. A questão da qual estou falando aqui é que temos que encarar o problema do renascimento – levá-lo a sério, analisá-lo, trabalhar para nos livrarmos dele – a invés de negar simplesmente a sua existência e querer fugir dele com pensamentos do tipo: “Bem, vou viver para sempre.” Sem fazer drama, pensamos: “Sim, eu levo o renascimento a sério. Sim, quero sair disso. Sim, causa e efeito são a chave do carma. E, sim, não quero ativar o carma.”
A próxima é ter uma perspectiva equivocada e achar que é suprema (lta-ba mchog-‘dzin). Tem a ver com o que é chamado de consideração incorreta (tshul-min yid-byed). Isso diz respeito ao corpo, por exemplo, quando pensamos que ele é limpo e é a fonte de uma felicidade verdadeira. Ou então quando pensamos que ele é sujo e a fonte de uma dor verdadeira, como quando temos câncer. Isso também nos manterá apegados ao renascimento, pois superestimamos o tipo de corpo que podemos ter. Pensamos que o corpo é tão maravilhoso ou tão horrível. Mas não devemos exagerar a importância do corpo, certo? É bom ter um sentimento mais neutro, sem apego, enquanto fazemos o melhor uso possível do corpo que temos.
A próxima é ter uma moralidade ou conduta equivocada e achar que é suprema (tshul-khrims-dang brtul-zhugs mchog-tu ‘dzin-pa). Ocorre quando consideramos uma moralidade ou conduta equivocada como sendo a moral ou conduta suprema. “Moralidade” tem a ver com renúncia, é isso que significa. Pensamos que a renúncia a comportamentos triviais, como uma dieta ruim e hábitos físicos prejudiciais, nos fará viver para sempre. Essa é a questão abordada aqui: pensamos que seremos salvos por algo que é trivial quando comparado ao que está envolvido na conquista da libertação. Pensamos: “Se eu me alimentar bem...” A moralidade é renunciar a algo, então pensamos: “Vou renunciar aos maus hábitos alimentícios, vou renunciar ao sedentarismo, e assim por diante, e então viverei para sempre. Esse é o caminho mais elevado que posso trilhar, o caminho supremo.” Isso apenas perpetuará nosso apego ao renascimento, aos corpos, a um tipo de alimentação.
A “conduta iludida” refere-se a uma ação. Ao invés de renunciarmos a algo, estamos fazendo algo. Por exemplo: “Comerei somente comida orgânica. Serei vegetariano. Isso me tornará sagrado e viverei para sempre.” Isso é uma bobagem. Não estou dizendo que é inadequado comer comida orgânica ou ser vegetariano. Isso é bom, mas não devemos exagerar a importância disso. Novamente, não queremos o apego a uma conduta que apoie somente uma vida samsárica. Essa é a questão.
A última da lista é a afirmação de nossas identidades (bdag-tu smra-ba). Afirmar nossa identidade refere-se a uma perspectiva iludida em relação a nossos agregados (‘jig-lta). Trata-se da perspectiva mais profunda, que consiste no apego a um “eu” sólido e na identificação desse “eu” supostamente sólido como sendo o proprietário desses agregados – desse corpo e dessa mente – aquele que os controla, o habitante que vive dentro deles; e esses agregados, esse corpo e essa mente, são “meus”. Novamente, se pensarmos em um “eu” sólido, e exagerarmos a importância desse “eu”, dos meus sentimentos, dos objetos, do meu corpo, ficaremos presos em renascimentos. Ativaremos tendências cármicas, e isso produzirá renascimentos e amadurecerá em nossa infelicidade comum e felicidade comum.
O Que Ocorre depois de Atingirmos a Libertação?
Portanto, estamos falando da renúncia. Queremos basicamente nos livrar do sofrimento do renascimento. As causas do renascimento são todas as coisas que ativam o carma que produz o renascimento. Qual o resultado? O que aconteceria se nos tornássemos um arhat liberto? O que vem depois disso? É muito importante saber disso. Se nosso objetivo é a libertação, o que significa isso? O que acontecerá comigo depois disso? Por que eu deveria desejar isso? Caso contrário, pode ser que pensemos que a libertação é apagar o “eu” como quando apagamos uma vela.
Após atingir a libertação, nosso corpo é um tipo de fenômeno físico, ainda composto de elementos grosseiros, que pode ser visto ou reconhecido pela consciência visual ou mental, até mesmos pelos seres comuns; e embora ainda possa estar sujeito à doença e à morte, não vivenciamos nenhum dos três tipos de sofrimento. Não temos a experiência da infelicidade nem da felicidade comum, e não temos o renascimento. Dependendo do nosso nível de absorção meditativa, teremos um nível mais estável de felicidade ou de um sentimento neutro.
E em vidas futuras, nosso corpo ainda será um fenômeno físico, porém composto de elementos sutis – mas não o vento mais sutil, como o nirmanakaya e o sambhoghakaya de um buda, que pode se manifestar de inúmeras formas; não é isso – é um corpo composto de elementos sutis, chamado de uma “forma de fenômeno físico que tem a natureza funcional da mente (yid-kyi rang-bzhin-gyi gzugs).” Ou, resumido, um “corpo mental (yid-lus)”. Mas isso não quer dizer que é uma forma de se estar consciente de algo (shes-pa). É um fenômeno físico. O nome fala de como ele funciona para produzir uma cognição si mesmo. É como um objeto que só pode ser percebido pela consciência mental. O corpo funciona para produzir a cognição de si mesmo, do corpo, como um objeto que só pode ser percebido pela consciência mental. Esse tipo de corpo funciona assim; por isso tem esse nome. A palavra “função (rang-bzhin)” está lá. Como podemos perceber esse objeto? Como podemos perceber o corpo de um arhat nas vidas futuras? Seu corpo é feito de elementos sutis, é semelhante ao corpo dos deuses do plano das formas etéreas. Como podemos percebê-lo? Pessoas comuns não conseguem vê-lo, apenas percebê-lo mentalmente. Por isso, é chamado de corpo mental. Não pensem que é um tipo de mente, pois não é. Mas os arhats conseguem ver o próprio corpo e o corpo de outros arhats.
Imagine que somos arhats, seres libertos. E agora? Embora arhats possam desenvolver a bodhichitta, talvez não façamos isso. O que faz um arhat? Estamos em uma terra pura, com um corpo puro que muda de um momento a momento, mas é eterno – não envelhece, não degenera, não fica doente nem morre – e praticamos várias meditações. Às vezes ficamos totalmente absorvidos na vacuidade, outras vezes ficamos absorvidos em outras coisas. Quando estamos absorvidos na vacuidade, a mente não cria a aparência de uma existência verdadeiramente estabelecida. E quando estamos focados em outras coisas, ou não estamos meditando, a nossa mente ainda cria aparências de uma existência verdadeiramente estabelecida.
Agora, como arhats, também podemos ter bodhichitta. Podemos desenvolvê-la antes de obter a libertação ou depois. E como um arhat bodhisattva, podemos permanecer em uma terra pura e estudar o mahayana com um buda sambhoghakaya, receber os ensinamentos e depois fazer as meditações, a prática – permanecer em uma terra pura e alcançar a iluminação – ou podemos nos manifestar como seres humanos (ou qualquer outra coisa, mas, geralmente, como seres humanos) e, como um bodhisattva, trabalhar para ajudar os outros seres. Nesse caso, ainda temos corpos mentais que não degeneram. Nosso corpo mental muda momento a momento, mas não envelhece, adoece ou morre. Ele tem uma base que o sustenta. Esse é o um ponto importante. Esse último ponto não é muito fácil de entender.
Esse é um ponto difícil. Temos os elementos grosseiros de um corpo comum, que vêm de uma mãe e de um pai. Exatamente o mesmo mecanismo aplica-se a um buda nirmanakaya. Os elementos grosseiros que vêm dos pais são a base de sustentação do corpo mental de um arhat, a base para se rotular “corpo mental”, da mesma forma que os elementos grosseiros de um corpo humano servem como base de sustentação para o nirmanakaya de um buda.
Não pense no nirmanakaya de um buda ou no corpo mental de um arhat como sendo um eu sólido, um atman estático, que entra no corpo, senta-se dentro dele, o possui e controla, e então sai quando termina. Isso é totalmente falso. No caso de um buda, o eu de um buda é um fenômeno de imputação que tem como base o vento mais sutil e a mente mais sutil do buda, e todo esse “pacote” toma os elementos grosseiros de um corpo grosseiro como seu suporte. Da mesma forma, o eu de um arhat é um fenômeno de imputação com base nos elementos sutis e na consciência sutil do arhat, e todo esse “pacote” também toma os elementos grosseiros de um corpo grosseiro como seu suporte.
A relação entre o corpo real de um buda, ou o corpo mental de um arhat, e essa base física é como a relação entre algo que é sustentado e a base que o sustenta. Ambos estão mudando momento a momento. No entanto, um corpo mental continua indefinidamente, mudando momento a momento. Às vezes pode ter uma base física mais grosseira, e é sustentado por ela. O corpo grosseiro no qual se sustenta também muda momento a momento; envelhece, adoece, morre. Mas o corpo mental que se sustenta nele, apesar de estar mudar momento a momento enquanto o corpo faz diferentes coisas, não pense que é estático: não é como um atman; não é como uma alma, e não tem nenhum sofrimento samsárico. Não envelhece e não morre. Isso não é fácil de entender. Eu avisei no início. É muito difícil de entender, mas é a chave para entendermos o que ocorre quando nos tornamos seres libertos, se não ficarmos simplesmente em uma terra pura.
Se, com a bodhichitta, quisermos trabalhar neste mundo e ajudar os outros seres o máximo possível, outras pessoas nos verão. As pessoas comuns verão o nosso corpo grosseiro, e ele envelhecerá, etc. Mas a nossa maneira de vivenciar o mundo será através do corpo mental, e sem sofrimento. O grande, grande perigo aqui é que tendemos a pensar nesse corpo mental como um atman, como uma alma, permanente e estático, e isso é o que queremos, a vida eterna disso. Isso está cem por cento errado. Se esse for o nosso objetivo, e não compreendemos o que é ser um arhat, nunca alcançaremos esse estado.
Pergunta
Renascimento quer dizer renascer como um bebê ou também pode significar “renascer” nesta vida com uma atitude diferente?
Não, estamos falando de renascer, literalmente, como um bebê. Não significa mais do que isso – é só isso, como está descrito na apresentação dos três tipos de sofrimento. Essa é a nossa tendência como ocidentais: não queremos realmente lidar com o renascimento e a possibilidade de voltarmos a ser um bebê. Para a maioria de nós, é algo muito difícil de entender. Por isso, eu disse que podemos praticar uma versão mais simplificada disso, e trabalhar apenas para nos livrarmos das nossas emoções perturbadoras, e assim por diante, que trazem um “renascimento” de relacionamentos ruins e coisas do gênero durante esta vida. Isso seria uma versão simplificada. Não é a coisa autêntica da qual falam os ensinamentos budistas. É benéfica, mas não é o ensinamento autêntico. Certo?
Conclusão
Em suma, precisamos entender a renúncia – a determinação de sermos livres, de deixarmos algo para trás, de sairmos do renascimento incontrolavelmente recorrente libertando-nos de suas causas. Temos que entender o que é o renascimento. Temos que entender suas causas. Temos que desenvolver um estado de descontentamento completo em relação a ele, e temos que desenvolver o tédio. No entanto, não devemos exagerar sua importância. Não devemos exagerar a importância da felicidade nem da infelicidade, não devemos exagerar a importância de nosso corpo e nossas experiências; mas devemos trabalhar com a vacuidade para nos livrarmos de todo esse apego, todos esses equívocos. E também devemos aplicar o entendimento da vacuidade e do rotulamento mental ao resultado, ao que estamos tentando alcançar, para que possamos entender como será ter o corpo de um arhat. Como será obter a libertação. Esse é o estágio no qual nos encontramos agora com a renúncia. É claro que ele é necessário como trampolim para a iluminação, mas a renúncia fala da libertação. Lembrem-se do que falamos no início: ela não está falando da iluminação.
Bem, falamos de muitas coisas e já ultrapassamos bastante o tempo estipulado, mas há muitas teorias que precisamos compreender. E também há a questão: “O que isso realmente significa na prática?” A nível prático, não subestimem tudo isso. A meu ver, uma das questões que sempre se destaca é: “Que tédio ter que passar por tudo isso de novo – ser um bebê, receber a educação, fazer tudo isso para poder continuar no caminho. Que chato. Realmente quero evitar isso. Para evitar isso, tenho que superar todas as causas disso, desse carma que impulsiona o renascimento. Portanto, durante a prática, não devo exagerar a importância de nada.” Acho que esse é o cerne da questão aqui. Não devemos exagerar a importância de nossos sentimentos. Não devemos exagerar a importância de nada que existe ao nosso redor. Não devemos exagerar a importância de nossos objetivos. Simplesmente façamos o que temos para fazer. Façamos as práticas. Façamos o trabalho. Ok?