Revisão
Temos falado sobre consideração incorreta e, quando consideramos incorretamente o “eu”, uma pessoa, seja no que diz respeito a nós mesmos ou aos outros, o que está incorreto é considerar que existe um “eu” separado de um corpo e de uma mente. Que tipo de relação esse “eu” tem com o corpo ou a mente? Pode ser que imaginemos, que sintamos, ainda que incorretamente, que há um “eu” que vive dentro do corpo, dentro da nossa cabeça, como se ela fosse a sua casa.
Pode ser que também pensemos que o “eu” é algo que possui o corpo, o controla e o usa, como se existisse um “eu” por detrás de uma tela de computador, com a informação chegando pelos olhos, pelos fones de ouvidos, e esse “eu” estivesse sentado na torre de controle. Pensamos: “O que ‘eu’ devo fazer agora?” ou “O que ‘eu’ devo dizer agora?” e apertamos o botão, nossa mão se move e faz isso, ou a boca diz aquilo, e assim por diante. “Tive que ‘me’ forçar a sair da cama de manhã. O alarme tocou e tive que ir trabalhar.” Como se existisse um “eu” dentro de mim que agora tem que apertar um botão e fazer o corpo sair da cama. É uma visão incorreta, mas parece realmente ser assim.
É interessante quando começamos a analisar, pois temos esses sentimentos, quando, por exemplo, as mulheres justificam seu direito de abortar. “É o ‘meu’ corpo; ele ‘me’ pertence e posso fazer o que ‘eu’ quiser com ele. É ‘minha’ escolha.” O que está por detrás disso? Não estamos discutindo se aborto é certo ou errado; estamos falando dessa postura em relação ao corpo, como se ele fosse a propriedade da pessoa, como se fosse “meu” e existisse um “eu” separado dele que pudesse fazer o que quisesse com ele.
Pode ser que tenham nos ensinado a ter essa postura em relação a nós mesmos, ao nosso corpo ou à nossa relação com nosso corpo; mas esse sentimento ou essa crença também pode surgir automaticamente. No entanto, é uma consideração incorreta. É fato que existe uma pessoa, um “eu”, que é uma imputação em um corpo, uma mente e assim por diante, mas ele não é uma entidade separada. O corpo está mudando de momento a momento e sua idade muda de momento a momento; da mesma forma, como o corpo, a mente e os sentimentos, que mudam de momento a momento, percebemos o mundo de formas diferentes e fazemos coisas diferentes a cada momento. Existe um “eu” que está mudando. Ele não é separado do resto e não é uma entidade dentro do corpo.
Apego por um “EU” Impossível
Falamos de vários tipos de consideração incorreta, e agora podemos juntar todas elas. Todos nós sjá experimentamos aquilo que chamamos de “apego ao ‘eu’ impossível”. Há um apego baseado em doutrinas e um apego que surge automaticamente. Quando o budismo fala de um apego ao “eu” impossível baseado em doutrinas, está falando de uma ideia que temos do “eu” que nos foi ensinada e que aceitamos, que vem especificamente de um sistema não-budista indiano.
A Asserção Não-Budista Indiana de um Atman
Sistemas filosóficos e religiosos indianos falam de um atman. Acho que provavelmente a tradução mais adequada para este termo seria “alma”. É uma alma que vai de uma vida para a outra. Não pensamos automaticamente que temos uma alma que passa de uma vida para outra, então isso tem que nos ser ensinado. Essa alma tem certas características que fazem parte de um pacote. Quando falo de um “pacote”, estou falando de um grupo de três características específicas que se juntam.
Uma característica é que se trata de algo estático. Não estamos falando sobre “eterno”, pois no budismo também dizemos que o contínuo mental não tem início nem fim. Até mesmo o “eu” convencional não tem início nem fim, mas não estamos falando disso. Estamos falando sobre um “eu” que não muda de momento a momento; ele fica sempre igual; é sempre o mesmo. Isso significa que o “eu” não é afetado por nada. Como uma mala que se move em uma esteira rolante do tempo, desde a infância até a velhice, de um corpo a outro corpo.
Ela não tem partes; esse é o significado da palavra “um”, usada para falar dela. “Um” quer dizer que se trata de um monólito; não tem partes. Pode ser que tenha o tamanho do universo, como a ideia de “atman é Brahma. Eu sou o universo” ou pode ser uma pequena faísca de vida, ou algo assim. No entanto, essa é apenas uma das características – não ter partes, ser monolítica.
A terceira característica é que ela pode existir separada de um corpo e uma mente – isto é, quando ela se liberta. Então, ela entra no corpo e permanece estática. Ela não tem partes e, quando está dentro do corpo, ela o controla e assim por diante. Após a morte, ela passa para outro corpo e faz isso até se libertar do renascimento e, depois, continua a existir sozinha.
Apego Baseado em Doutrinas
O budismo faz algumas diferenciações que podem não ter ficado claras, portanto explicarei um pouco melhor.
Já encontramos certos aspectos da alma impossível quando falamos da consideração incorreta – especificamente, considerar incorretamente que algo não-estático é estático. É como se existisse um “eu” estático, que permanece sempre igual e é permanente, não afetado por nada. Pode ser que acreditemos que existimos dessa maneira com base no que aprendemos ou em crenças que surgiram automaticamente. O mesmo ocorre quando acreditamos que podemos continuar a existir sem um corpo após a morte.
Pode ser que nossa ideia de uma alma com algumas dessas qualidades venha de uma fé cristã ou de outra religião que aprendemos. Essas crenças podem levar a muitas emoções perturbadoras. No entanto, quando falamos sobre o apego ao “eu” impossível baseado em doutrinas, estamos falando sobre um “eu” que possui uma combinação dessas três qualidades específicas de um “eu” impossível, que são ensinadas nos sistemas indianos não-budistas. Não acreditaríamos automaticamente no pacote completo com todas essas qualidades.
Vocês entendem isso? Buda ensinava especificamente aos indianos, por isso falou sobre a visão incorreta de um atman ou uma alma. No entanto, diferentes aspectos dessa alma podem ser encontrados em religiões não-indianas e filosofias não-indianas. Se soubermos a que se referem os termos técnicos usados no budismo, não nos sentiremos confusos em relação ao que pode surgir automaticamente, ao que nos foi ensinado e assim por diante.
Como podemos entender, então, o que passa de uma vida para a outra, já que o budismo também afirma o renascimento? Não sou um especialista em teologia cristã e tenho certeza que há muitas visões diferentes no cristianismo em relação à natureza da alma, mas o budismo não concorda com a visão cristã de que a alma é criada por Deus. Não sei se o cristianismo afirma que, depois de criada, a alma se torna eterna, não muda e tem apenas outra vida depois dessa, no céu ou no inferno. Há outras visões que talvez tivéssemos que refutar.
Estou falando disso porque há muita confusão entre os ocidentais ao estudar esse assunto, pois há muitas emoções perturbadoras que têm como base uma visão incorreta do “eu”, que nos foi ensinada. Mas o apego a um “eu” impossível, baseado em doutrinas, se refere apenas à visão do “eu” ensinada em filosofias indianas não-budistas como o hinduísmo, o jainismo, etc.
Como ocidentais, podemos objetar: “Não estudei hinduísmo nem jainismo, por que isso é relevante para mim? Não acredito nisso, nunca ouvi falar disso, então por que, segundo a apresentação budista das etapas do caminho, tenho que me livrar dessa visão incorreta baseada em doutrinas?” Ainda assim, cada uma das qualidades da alma ensinada no hinduísmo ou jainismo é baseada em alguma consideração incorreta. Se olharmos para nosso próprio conceito de alma ou nossa crença de que não existe uma alma: “No momento da morte, eu me transformo em nada.”, veremos que há outros tipos de consideração incorreta envolvidos. O budismo fala de todas as nossas concepções errôneas. Não está se referindo apenas a uma concepção errônea formulada na Índia antiga.
É isso que estamos questionando: “Quem você pensa que eu sou? Sou uma alma, sou outra coisa, sou meu corpo, sou minha mente? O que sou eu? No que se baseia meu egoísmo, que me faz querer ser o primeiro da fila, conseguir ter tudo que eu quero, ser o mais importante ou achar que eu deveria ser a coisa mais importante em sua vida?” Quais são as qualidades desse “eu”?
Quando acreditamos nesse tipo de “eu”, um “eu” sólido, sentimos: “as coisas sempre têm que ser do jeito que ‘eu’ quero.” Há apego, há cobiça e assim por diante; se as coisas não forem como “eu” quero, haverá raiva. Ou sentimos ciúme: “você não me ama, você ama outra pessoa.” Podemos ser arrogantes: “Sou tão maravilhoso”; ou indecisos: “O que ‘eu’ devo escolher? Há 150 tipos de cereais para o café da manhã; qual ‘me’ fará feliz?”. Quero fazer a melhor escolha, aquela que ‘me’ fará feliz. “Qual computador ou telefone devo comprar?” Há milhares de escolhas, mas quero escolher o que for certo para “mim”. O que é esse “eu”?
Perguntas sobre o “Eu”
No cristianismo, tentamos ter um “eu” ético que não deseja ter tantas coisas; então qual o sentido do que estamos falando? Lutar contra o egoísmo parece ser algo comum a todos os caminhos espirituais.
Isso é verdade, mas a questão que surge disso é o que já mencionamos antes: “quando estamos refutando uma concepção errônea sobre o “eu”, será que refutamos suficientemente?” Em outras palavras, em outras filosofias – até mesmo no budismo há muitas tradições – pode ser que refutemos certas características impossíveis. No entanto, se não tivermos nos aprofundando suficientemente e refutado tudo que estiver errado, ainda podemos manifestar níveis sutis de egoísmo.
Por exemplo, pode ser que sejamos extremamente generosos e façamos muitas coisas por outras pessoas ou por nossos filhos, o que dá a impressão de que não somos egoístas. Ainda assim, queremos que gostem de nós; desejamos reconhecimento. Lembramos aos outros o que fizemos: “Fiz tanto por você e você não dá valor ao que fiz.” Há ainda um sentimento de um “eu” sólido por detrás da generosidade, ainda que não sejamos egoístas.
Além disso, podemos dar uma de mártir: “sou um mártir, sou um santo, estou fazendo tanto pelo mundo”, etc. A coisa se torna uma grande viagem do ego. Ou “para superar meu egoísmo tenho que me chicotear e maltratar porque sou uma má pessoa, sou egoísta.” Com certeza, tendo essa crença podemos ser muito generosos e úteis para todos, mas ainda é um estado mental bem perturbado e ainda acreditamos em um “eu” culpado, nefasto, um “eu” sólido. Estou dando um exemplo extremo; no entanto, nossas concepções errôneas podem ser muito sutis.
Por que temos que renunciar ao atman?
O que importa é que não estamos negando a existência do “eu” convencional. Podemos chama-lo de alma ou atman, não importa qual nome damos a isso. Existe um “eu” convencional e o budismo não refuta isso; não estamos dizendo que não existe nada. No entanto, a questão é: “Como ele existe?” Quando não temos um senso do “eu” convencional, não temos motivação para fazer nada. Por que deveríamos tentar alcançar a iluminação?
Quando temos uma visão correta do “eu” convencional, conseguimos progredir em nossos objetivos. Conseguimos nos levantar da cama, nos vestir, cuidar de nós mesmos. No entanto, há um dualismo em relação ao “eu” do qual “eu” tenho que cuidar, como se houvesse dois “eus” diferentes. “Tenho que parar de ser assim e ‘me’ controlar ou controlar ‘meu’ egoísmo.” Imaginando ter uma visão correta do “eu” convencional, temos um “eu” que nos julga e repreende e outro “eu” que faz coisas erradas? É uma visão bem neurótica que cria muita culpa.
Na psicanálise, esse é o “superego”.
Esse superego é algo separado, que existe por si só? Existes dois “eus”, um “eu” e um “superego”? Isso é bem estranho.
O budismo fala sobre fatores mentais. Eles estão incluídos nos cinco agregados, que é um esquema de classificação para muitos diferentes componentes não-estáticos que formam cada momento de nossa experiência. Por exemplo, em algum momento da experiência a consciência do ouvido ouve o som do despertador. Há o fator mental do sentimento que o acompanha, que talvez não seja tão feliz, e o fator mental que distingue o som do despertador do som dos pássaros cantando ou do som dos carros passando lá fora. Pode haver também os fatores mentais da preguiça e da raiva: “Não quero acordar ainda.” Como se existisse um “eu” separado disso tudo que agora tem que se levantar. Ainda assim, esse momento também pode estar acompanhado do fator mental da intenção de acordar e do fator mental da disciplina.
Há muitos fatores envolvidos e isso acontece de um momento para o outro e o outro. Não precisa haver um “eu” separado sentado na torre de controle com o som do despertador chegando através de fones de ouvido, depois esse “eu” pressiona o botão da disciplina e aí a disciplina aparece e então: “tenho que conseguir sair da cama”. Não é assim que funciona.
Com o entendimento correto dos agregados e dos fatores mentais e do “eu” que não existe separadamente, simplesmente nos levantamos. Nós simplesmente fazemos isso sem todos esses pensamentos desnecessários e bobos, como: “Ai, ‘eu’ não quero acordar” e “Tenho que ‘me’ forçar a acordar” e “Por que eu? Por que sempre tenho que acordar para ir trabalhar?” Todos esses pensamentos inúteis geralmente nos fazem muito infelizes.
Quando ouvimos o despertador tocando nos sentimos infelizes. E daí? “Tudo bem, pode ser que eu não me sinta muito feliz em acordar. Não importa. Não estou apegado a isso, não me identifico com isso.” No próximo instante, por causa do hábito da disciplina e da motivação, nós nos levantamos.
O que é o “eu” ao qual me refiro? Quem se levantou? Eu me levantei; não foi outra pessoa. Há então um “eu” que é uma imputação no contínuo dessa sequência de momentos, feito de todas essas partes que estão mudando, “eu” e suas funções. Não é só um corpo se levantando da cama; eu saio da cama. Não há duas coisas separadas saindo da cama, um corpo e “eu”. “Meu corpo sai, mas eu não quero sair.” Não é assim. Temos que analisar profundamente qual é a causa de nossa infelicidade quando temos que acordar de manhã.
Perguntas e Discussão sobre Reencarnação
Você conhece duas encarnações de Serkong Rinpoche. Olhando para a segunda, o que o faz lembrar da primeira? O que você acha que eles têm em comum? O que você vê nesse contínuo que se parece com a outra encarnação?
Este é um tema bastante vasto. Temos que considerar “contínuos” e, primeiro, um contínuo de uma vida. Quando olhamos para o “meu” contínuo, ou de outra pessoa, como do meu professor Serkong Rinpoche, provavelmente não havia nem mesmo uma célula em seu corpo – estou falando do mais velho, de quando ele nasceu até ele morrer – que permaneceu igual em toda sua vida. Tudo mudou. Isso é realmente incrível quando pensamos em quanta comida entrou e quantos dejetos saíram dele. Seu corpo mudava de momento a momento e nada permaneceu igual. Além disso, seu conhecimento também mudava de momento a momento. Com certeza, aos dois anos de idade e aos 60 anos de idade ele não era o mesmo.
Tudo mudou, mas havia uma continuidade; havia um contínuo. Como foi mantida a continuidade? Essa é uma grande questão que é analisada e explicada no budismo com muitos níveis diferentes de profundidade. Entre a infância e a idade adulta, será que ele se transformou em outra pessoa? Não. Como quando falamos de uma única vida, o mesmo acontece quando falamos de duas vidas. Basicamente, há um contínuo de momento a momento a momento e nada permanece igual. Uma pessoa, um indivíduo, é uma imputação baseada nesse contínuo.
O que mantém o contínuo; no que ele é baseado? Ele é baseado em uma sequência de causa e efeito. É bem simples. Colocamos comida na boca e, no próximo momento, há a sensação da comida que desce e, no próximo momento, há a sensação de que a fome está passando e assim por diante. Há uma sequência causal. Isso faz sentido. O “eu” é apenas uma imputação nessa sequência causal.
Há também muitos hábitos que são imputações nesse contínuo. O que é um hábito? “Tenho o hábito de beber café.” O que é isso? Não bebo café a cada momento de minha existência, mas há uma sequência de vários momentos nos quais eu bebo café e, com base nisso, dizemos que há um hábito. É uma forma de organizar as coisas. O hábito é algo sólido? Podemos achá-lo em algum lugar? Não. Será que ele existe? Sim. Ele produz efeitos? Sim. Se eu tiver o hábito de beber café, provavelmente beberei outro café amanhã.
Quando falamos de um contínuo de uma vida para a outra, como é o caso de meu professor Serkong Rinpoche. O que achamos que os dois têm em comum além de terem o mesmo nome? O que tem continuidade? Alguns hábitos, alguns instintos. Se olharmos para nossa história, especialmente no espaço de muitas vidas, há tantos hábitos, tantas coisas diferentes; nem todas se manifestarão ao mesmo tempo.
Eu tinha hábitos aos três anos de idade que não tenho agora. Isso está muito claro. Quando eu era bebê, tinha o hábito de fazer minhas necessidades nas calças e lambuzar minha cara de comida, já que eu não conseguia mirar a boca com a colher quando eu comia. Eram hábitos repetitivos quando eu era um bebê. Não tenho mais os mesmos hábitos. Não faço mais isso – ou, pelo menos, espero que não. Com Serkong Rinpoche, há certos hábitos que são parecidos aos que ele tinha na vida passada, por exemplo, seu senso de humor e assim por diante.
Poderíamos objetar que “bem, muitas pessoas têm um senso de humor, não é necessariamente a continuidade do senso de humor da vida passada.” É verdade. No entanto, o que foi mais convincente para mim foi a familiaridade que ele tinha com pessoas que ele conheceu na vida passada. Pode ser que já tenhamos sentido isso: encontramos alguém e sentimos automaticamente que conhecemos essa pessoa há muito tempo. Nós nos sentimos automaticamente próximos a ela, ou nos sentimos automaticamente distantes, como se houvesse uma aversão instantânea a ela.
Eu encontrei o jovem Serkong Rinpoche pela primeira vez quando ele tinha quatro anos de idade. Ele veio para Dharamsala e, quando entrei em seu quarto, o assistente que cuidava dele perguntou a ele: “Sabe quem é esse?” e o pequeno disse: “Não seja bobo, claro que sei quem ele é.” Logo desde o começo, ele se sentiu completamente à vontade comigo, foi muito próximo e atencioso. Ele não era assim com as outras pessoas. E ele tinha apenas quatro anos! Não se pode fingir algo assim nessa idade. Havia essa sensação se proximidade, como havia com o outro Serkong Rinpoche. É claro que as coisas mudam a cada momento, então a proximidade é apenas uma imputação nessa continuidade, mas isso foi muito convincente para mim.
É claro que há também algumas coisas que ele talvez lembre da vida passada. Certa vez, estávamos assistindo um vídeo juntos, a gravação de um ensinamento que ele deu na vida passada e ele disse: “Ah, eu me lembro de ter dito isso, de ter feito isso.” Ele não tinha por que mentir.
Agora falaremos sob a perspectiva da apresentação de Nagarjuna. Será que Serkong Rinpoche é a mesma pessoa, totalmente idêntica àquela da vida passada? Não. Ele é totalmente diferente? Não, não totalmente diferente. É um contínuo, uma continuidade. Há algo sólido que passa de uma vida para a outra, como uma bagagem? Não. Existe um contínuo? Sim, há continuidade. Portanto, não é nem igual nem diferente, nem totalmente idêntico nem totalmente diferente e desconexo.
Por que algumas memórias da vida passada são mais claras para o Rinpoche do que outras?
O mesmo acontece quando pensamos: “do que nos lembramos desta vida?” Você se lembra de tudo que comeu em toda a sua vida? Você consegue se lembrar de cada palavra que você acabou de dizer há 30 segundos e repeti-las com exatidão?
Por que nos lembramos disso e não nos lembramos daquilo? É uma pergunta difícil. Suponho que tenha a ver com nosso nível de interesse e de atenção. Naquele momento, você sentiu ou não sentiu uma emoção muito forte? Quando há uma emoção forte, geralmente tendemos a nos lembrar mais. Pode haver algum detalhe que nos lembre de uma situação específica, mas se não esbarrarmos nesse detalhe ao longo do caminho, não conseguiremos nos lembrar da tal situação.
Há muitos fatores pelos quais nos lembramos de algo – tudo depende das circunstâncias. O mesmo ocorre com hábitos. Há tantos hábitos, mas nem todos se manifestarão na próxima vida – alguns se manifestarão, outros não. Tudo depende das circunstâncias. Se eu tiver tido o hábito de comer mangas e renascer em um lugar sem mangas, não comerei mangas e nem mesmo pensarei em comer mangas.
Sua explicação não me convenceu. As impressões mais profundas na mente do Rinpoche deveriam ser a parte mais recente de sua vida passada, pois estão mais frescas. Por que ele deveria se lembrar de um ensinamento qualquer que ele deu, mas não do mais recente?
Nós não nos lembramos do que está mais fresco. Nós nos lembramos de algumas coisas e não nos lembramos de outras. Depende de muitos diferentes fatores. Pode ser que nos lembremos de uma canção de ninar de nossa infância, mas não de onde colocamos nossa chave ontem à noite. É muito difícil analisar e explicar por que nos lembramos de uma coisa específica e não de outra.
É completamente arbitrário?
Não. Não se pode dizer que seja arbitrário, que nos lembramos das coisas por acaso. Tem que haver certas circunstâncias. O jovem Serkong Rinpoche não se lembrava de tudo. Assistimos a muitos vídeos diferentes dos ensinamentos de seu antecessor, mas ele só se lembrou de um deles, que lhe pareceu mais familiar. Por que? Não sei, não sei o que ele estava pensando quando deu aquele ensinamento. É muito difícil responder a essa pergunta porque trata daquela mesma questão: “Já que temos tantos potenciais cármicos acumulados desde tempos sem início, que trazem todos os tipos de resultados, por que um potencial cármico específico amadurece nesse momento e não em outro?” É como quando perguntamos por que nos lembramos de algo agora e não de outra coisa.
O budismo explica que as coisas não ocorrem sem motivo algum. Se fosse assim, qualquer coisa poderia acontecer a qualquer momento e não haveria uma continuidade nem sentido algum em nada que acontece. Não é o caso. Se os acontecimentos dependem das circunstâncias, quais são elas? Pode ser que eu me depare com um objeto ou uma situação semelhante a algo que vivenciei antes. Pode ser a influência de uma pessoa. Pode ser a influência do tempo. Pode ser a influência de tantas coisas diferentes.
Como nos lembramos do nome de alguém? Tantas vezes, não nos lembramos do nome de uma pessoa. Sabemos o nome; sabemos que sabemos o nome, mas não conseguimos nos lembrar. Isso me acontece muito; o que faço então? Eu recito mentalmente o alfabeto, uma letra depois da outra. Pronuncio cada letra e, geralmente, isso me faz lembrar do nome. Ontem mesmo aconteceu isso. Eu não me lembrava do nome de um amigo na Letônia, então recitei o alfabeto. Quando chegue à letra K, eu me lembrei: “ah, ele se chama Karlis.” Pode haver muitas coisas que nos lembram e ajudam. Nesse caso, dizer a letra K foi uma circunstância. Podemos criar circunstâncias para nos lembrarmos de algo conscientemente ou simplesmente ver algo ou encontrar alguém pode nos fazer lembrar.
Há outras coisas que não requerem esse tipo de método para que eu possa me lembrar delas. O hábito é tão forte que, quando vejo o Massimo ou a Claudia, não tenho que pensar no alfabeto para me lembrar do nome deles. Simplesmente me lembro. No entanto, há uma circunstância que faz com que eu me lembre do nome deles agora – temos nos encontrado todos os dias desse curso. Mas pode ser que, daqui a um ano, eu não me lembre do nome da pessoa que traduziu para mim na Itália. Eu simplesmente não me lembro.
Tem que haver interesse também. Certa vez, fiquei na casa de um amigo por quatro meses. Eu usava o banheiro todos os dias. Certa vez, fui comprar uma cortina para o chuveiro em uma loja e meu amigo me perguntou: “Qual cor devemos comprar? O que combina com as paredes?” Eu não fazia a mínima ideia da cor da parede. Eu usava aquele banheiro todos os dias. Meu amigo perguntou: “Qual a cor do quarto onde você está dormindo?” Eu não sabia, pois isso não me interessava. Fazia meses que estava dormindo naquele quarto. Não fazia a mínima ideia da cor das paredes. Nunca havia prestado atenção na cor, como poderia me lembrar?
Se uma coisa é importante para nós, como: “onde estacionei meu carro?” Nesse caso, nós nos lembramos. Se não for importante, então: “Não me lembro onde estacionei meu carro”. Aí temos um problema sério.
Se você morrer hoje à noite, sua experiência mais recente antes de morrer terá sido dar esse ensinamento. Por que você não se lembraria dele quando for uma criança de dois anos?
Há muitas circunstâncias. Eu teria que aprender tudo de novo; teria que estudar de novo. A base física do cérebro e todo o resto não estariam suficientemente desenvolvidos. Eu não teria as habilidades linguísticas para repetir tudo. Só porque algo aconteceu recentemente, não quer dizer que nos lembraremos disso. Você consegue se lembrar e repetir exatamente, palavra por palavra o que você acabou de dizer? A maioria de nós não consegue fazer isso. Ou o que você acabou de escutar?
Isso é muito difícil. Temos realmente que ter uma intenção forte para conseguirmos fazer isso. Digamos que somos um intérprete e nos lembramos do que a outra pessoa acabou de dizer. Se fôssemos um professor e alguém nos perguntasse: “Você poderia repetir isso? Não entendi.” Seria uma vergonha dizer: “não me lembro do que acabei de dizer.” Temos que nos lembrar para poder repetir. Portanto, há motivações diferentes. A motivação é importante.
Será que eu entendi bem? Quando você encontrou o atual Serkong Rinpoche, você reconheceu hábitos do anterior, mas não traços da personalidade dele?
Eu não disse que não havia traços da personalidade. Eu disse que havia continuidade, mas não de tudo. Não é a mesma personalidade, mas eu não tenho a mesma personalidade da adolescência. Algumas coisas são parecidas, outras bem diferentes.
Algumas coisas como amor e compaixão deveriam ser expressadas continuamente durante a vida de um bodhisattva. No entanto, pelo que você diz, a única coisa que permanece nesse contínuo é uma série de causas e circunstâncias e nada mais.
Bem, sim, tudo surge a partir de causas e circunstâncias. Por exemplo, eu tentei ilustrar que pode ser que eu encontre centenas de pessoas muito amáveis, por que uma delas seria a continuidade da vida passada de meu professor e não as outras? Só porque uma pessoa é amável, não quer dizer que é a reencarnação de uma pessoa específica.
Com um tulku, um lama reencarnado, isso é muito especial, porque alguém o reconhece e lhe dá o nome do antecessor – pelo menos, o nome geral, como “Serkong”. Ele também tem um nome pessoal, que é diferente. O que teria acontecido se ninguém tivesse reconhecido a criança, se ninguém o tivesse encontrado, e eu o encontrasse por acaso? Seria a mesma coisa. Ainda haveria aquela sensação de proximidade.
Eu encontrei muitas pessoas em minha vida com as quais isso aconteceu: as duas partes se sentiram muito próximas. Isso realmente aconteceu. Às vezes ensino para cem pessoas em uma sala e meus olhos sempre se sentem atraídos por uma pessoa específica, no fundo da sala. A pessoa desperta repetidamente a minha atenção e, de repente, no fim do ensinamento, ela vem conversar comigo e rapidamente desenvolvemos uma amizade muito próxima.
O antigo Serkong Rinpoche era assim. Estávamos em um grupo de pessoas e ele dizia: “Aquela pessoa ali, descubra o nome dela.” Certamente havia uma relação muito forte dele com a tal pessoa. Não sabemos qual foi a vida passada da pessoa ou qual era o seu nome, mas ainda assim podemos vivenciar esse tipo de coisas. Eu mesmo vivi isso e talvez vocês tenham vivido algo parecido, aquelas amizades instantâneas, uma sensação instantânea de proximidade com alguém. Por que? Será apenas desejo – por acharmos a pessoa atraente? Não necessariamente.
Como o jovem Serkong Rinpoche foi realmente extraordinário. Ele nasceu no Vale Spiti, no lado indiano do Himalaia. O antigo Serkong Rinpoche era quase considerado o santo daquele vale. Como ele reavivou o budismo naquela região, todos tinham uma foto dele em casa e aquele pequeno menino, de um ano e meio ou dois anos de idade, pouco depois de aprender a falar, ia até a foto, apontava para ela e dizia: “Esse sou eu!”
Quando as pessoas que conviviam com o antecessor dele viajaram pela região, procurando pela reencarnação dele, aquele pequeno menino reconheceu um dos membros do comitê de busca. Ele correu para abraça-lo e se lembrou de seu nome. Depois, ele só falava em ir para Dharamsala. Ele sentiu – e me disse isso depois – que havia uma pessoa importante que precisava encontrar. Era Sua Santidade o Dalai Lama. Quando deixou Spiti para ir até Dharamsala, ele tinha quatro anos de idade e nunca perguntava por seus pais, nunca chorava. E não foi assim porque seus pais eram pessoas cruéis e horríveis; na verdade, eram pessoas muito boas. Como pode ser?
Por causa de tudo isso, estou bastante convencido de que ele é de fato a reencarnação do velho Serkong Rinpoche. Tenho refletido sobre o renascimento por muito, muito tempo. Estou envolvido com o estudo do budismo há mais de 45 anos. Ainda assim, isso realmente me fez ir além na pergunta: “Será que eu realmente acredito no renascimento?” É muito difícil ter um sentimento visceral em relação ao renascimento. Podemos até acreditar intelectualmente, mas sentir emocionalmente é outra coisa. Será mesmo? É difícil, mas essa história me convenceu. No entanto, será que ele é a mesma pessoa, idêntico ao outro? Não. De fato, é assim.
Resumo
Bem, vamos parar por aqui hoje. Talvez possamos passar alguns minutos, antes de vocês irem embora, tentando digerir tudo isso que falamos. Vamos tentar nos lembrar. Permitam-me ajuda-los a lembrar do que foi dito. Vou recapitular os pontos principais.
Estávamos falando sobre vacuidade, vocês se lembram disso? Depois, sobre a inexistência do “eu” impossível. Pode ser que achemos que ele existe, pode até parecer que existe, mas não há nada de real nele.
Depois falamos sobre as duas vidas de Serkong Rinpoche. As duas pessoas receberam o mesmo nome. Será que elas eram exatamente iguais, uma pessoa estática que passou de uma vida para a outra, não afetada por nada e, portanto, o jovem deveria se lembrar instantaneamente de cada palavra que ele disse na vida passada? Não, não existe esse tipo de pessoa. Ele é afetado por causas e circunstâncias: onde ele nasceu e as pessoas que cuidaram dele; todo tipo de coisas afetam o que se manifesta durante a vida. Será que existe uma pessoa, Serkong Rinpoche, separada de tudo isso, desses dois corpos? Não. Se existisse, onde estaria ela? O que seria ela? Será que existe um Serkong Rinpoche que viveu dentro do corpo velho e agora está dentro do corpo jovem? Não, isso é impossível.
Costumamos pensar assim. “Quem serei na próxima vida?” como se pudesse haver um Alex que de repente renasce dentro do cachorro Fifi, o poodle. Eu acordo e, como num filme de Hollywood, percebo: “Meu Deus, estou dentro do corpo de um poodle!” e todo mundo me chama de Fifi e pinta minhas unhas de rosa, ou algo assim. Não é assim. Não há um “eu” sólido que migra para outra vida, igual ao “eu” desta vida, mas que agora está em outro corpo. Isso é impossível.
Neste caso, não podemos rezar para Serkong Rinpoche, já que ele não existe mais?
Há um contínuo. Da mesma forma que essa cadeira não é sólida, meu corpo não é sólido. Ainda assim, eu não caio através da cadeira. Da mesma forma, ainda que não haja um Serkong Rinpoche sólido, que vai de uma vida para outra como uma bagagem em uma esteira rolante, ainda assim é benéfico oferecer orações para ele. Shantideva falou sobre como podemos acumular força positiva rezando para um buda que já morreu, ou para uma stupa. Podemos fazer isso porque há um contínuo.
Você poderia ser um pouco mais preciso?
Podemos ser mais precisos; é verdade, é exatamente assim. Por isso, ainda não falamos de rotular mentalmente. Temos que nos aprofundar para podermos abordar a questão de como estabelecemos que existe algo como um “eu”, isto é, uma imputação em um contínuo individual de agregados que sempre mudam.
Sua apresentação sobre a reencarnação soa estranha para mim. Entendi que não há um Serkong Rinpoche que reencarna, mas apenas pequenas partes dele: partes muito pequenas?
O nariz dele reencarnou?
Se não foi o Rinpoche, quem reencarnou senão uma parte minúscula do contínuo?
Você está querendo dizer que não foi o Rinpoche inteiro que reencarnou? Ele todo não reencarnou, mas uma parte pequena dele reencarnou, é isso? Não. Não há nem mesmo hábitos passados que podem ser encontrados. O que é um hábito? Não existe nada de sólido que pode ser encontrado, nenhum hábito, nariz, Serkong Rinpoche, o que quer que seja, que passou de uma vida para outra. Lembrem-se de nosso exemplo do que são hábitos: “Bebi café ontem, bebi café hoje e beberei café amanhã.” Então como podemos entender tudo isso? Você disse que há um “hábito”. Um hábito não é algo sólido. Da mesma forma, há uma pessoa que continuou de uma vida para outra. É um indivíduo; ele existe, mas não é sólido. Por favor, pensem nisso.
[Meditação]