O que você nos aconselharia para conseguirmos ter consciência disso no cotidiano?
Meu conselho é perceber que é ridículo quando, como nesse exemplo, estou em uma relação com alguém e quero que a pessoa “me” ame pelo que “eu” sou de verdade e não pelos outros aspectos de mim. Isso não tem nada de real, não existe esse tipo de “eu”. Se a pessoa “me” ama, esse “eu” só pode ser conhecido com base em minha personalidade, minhas posses, no que eu conquistei, em meu corpo e todas essas outras coisas. Não há nada de errado com isso. Tem que ser com base em tudo isso; não pode ser com outra base.
Além disso, quando amamos alguém, não podemos amar apenas a pessoa em si, ainda que possa parecer que “eu amo apenas você (a sua pessoa) e eu quero apenas você”. Levamos o pacote completo da pessoa – seus pontos fortes, seus pontos fracos, suas relações familiares, seu nível de inteligência e sua força física. Levamos o pacote completo; não é possível amar apenas a pessoa em si. No entanto, muitas vezes negamos certos aspectos que achamos desagradáveis, não queremos lidar com eles e tentamos ignorá-los. Mas não é possível ignorá-los, pois fazem parte do pacote completo. Não há um “você” que podemos amar separadamente do resto. Quando amamos alguém tendo em mente sua base inteira de imputação, o amor é muito mais realista.
Sei também que algumas pessoas aqui estão envolvidas com o treinamento de Tara Rokpa, um treinamento no qual revemos nossa vida inteira nesta vida, partindo do momento presente até a infância, depois voltando para o presente e voltando para a infância. Com isso podemos perceber – não fiz o treinamento, mas imagino que podemos perceber – a não-estaticidade, o fato de que mudamos, somos influenciados e afetados por tantas coisas diferentes, e assim por diante; no entanto, de acordo com o tema sobre o qual temos falado aqui, também podemos perceber que o “eu” é uma imputação nessa história e que não podemos conhecer realmente o “eu” quando acreditamos que existe um “eu” cognoscível, que funciona separadamente de todo o resto. Esse tipo de treinamento pode nos ajudar a integrar nossa história, tudo que estudamos, todos que conhecemos e todas as experiências que tivemos e que os outros tiveram e pelas quais foram influenciados.
Entendo que o “eu” não acontece em um instante, não é o filme inteiro que vemos em um instante, pois isso seria impossível. O que nos resta então? O que é o “eu”? Entendo o que ele não é, mas não o que ele é. A segunda pergunta é sobre a consideração incorreta de um “eu” impossível que surge automaticamente. Por que ela surge automaticamente? Deve haver uma razão que faz com que ela surja automaticamente.
Antes de tudo, o que nos resta é um “eu” que existe como imputação na enorme base dos cinco agregados que mudam constantemente e ele só pode ser conhecido com base nesses agregados. Para podermos nos aprofundar no que nos resta, temos que entrar no próximo tópico, que é a vacuidade de todos os fenômenos, e é apenas nesse contexto que podemos nos aprofundar na questão: “O que nos resta?” e “Podemos nos aprofundar ainda mais nisso?”
Por que o apego ao “eu” impossível surge automaticamente? Bem, como expliquei antes, no que se refere a causas da consideração incorreta – hábitos, tendências, a confirmação por outras pessoas, a influência de objetos como, por exemplo, quando escutamos a voz no telefone e não vemos a pessoa, etc. Isso é horrível: nossa mente tem produzido essas aparências desde sempre, portanto o hábito está profundamente arraigado.
Cada causa prévia tem um conjunto próprio de causas prévias. É assim que funciona.
Isso não é estranho?
Sim, é estranho. É o samsara sem início.
Com o exemplo de uma relação, você falou sobre como desejamos que o outro nos ame e como queremos que ele seja. Na maior parte das vezes, acho que não é assim nas relações. Tentamos ver a pessoa de uma forma “holística”, aceitando “o pacote completo” do outro com seus aspectos positivos e com os outros, não tão positivos, sabendo que é assim, mas que isso pode mudar com o tempo. Não temos uma imagem fixa do outro, não nos iludimos o tempo todo, achando que ele é assim e não assado. Na maior parte do tempo, nas relações com amigos ou companheiros, tentamos ver o outro com espontaneidade, com todos os seus aspectos, e não o dividimos em partes que eu quero e partes que eu não quero.
Se você consegue se relacionar assim, isso é maravilhoso. No entanto, acho que para a maioria de nós chega um momento na relação no qual dizemos: “Você acabou de fazer isso!” ou “Você me decepcionou!”. Por isso, nos sentimos irritados e com raiva. Pensamos só nessa faceta do outro: “Você fez isso!” Não pensamos na pessoa como um todo: “Bem, talvez ele ou ela estivesse envolvida com outras coisas. Talvez não estivesse se sentindo bem.” Talvez isso ou aquilo. A concepção errônea surge automaticamente: é o problema por detrás dessa ideia de uma pessoa autossuficientemente cognoscível. Outro exemplo: “Eu gostaria que você estivesse aqui. O que há por detrás disso?
Um grande desejo.
O que está por detrás é só “você”. Não pensamos em todas as outras coisas que formam a base de quem você é.
Não consegui ainda fazer a minha pergunta.
“Não consegui fazer a minha pergunta” é outro bom exemplo. O que isso significa? O seu corpo não conseguiu perguntar? Sua voz não conseguiu?... Não, foi só o “eu”. Eu não consegui fazer a minha pergunta. Agora eu respondo: “Qual é a sua pergunta?” Ao que ou a quem estou perguntando? Estou perguntando ao corpo? Estou perguntando à mente? Não, estou perguntando a “você”. E agora você vai responder. O que ou quem está respondendo? É uma voz que vem de um corpo que serve como base da imputação da pessoa que se chama Lisa.
Minha pergunta é, quando falamos de projeção, será que é errado projetar ou será que há projeções incorretas e projeções corretas? Projeto algo permanente que, na verdade, é impermanente. Projeto felicidade que, na verdade, é infelicidade. Você explicou que se trata de considerações incorretas. As considerações são projeções? As projeções estão erradas ou há projeções corretas e incorretas?
Sinto muito se eu confundi você, mas eu estava tentando simplificar as coisas, então usei a palavra “projeção”, mas não a estava realmente usando como termo técnico. Há muitos termos técnicos diferentes incluídos aqui, mas no início eu não os diferenciei.
Por exemplo, chamamos algo de “inserção”. Isso significa acrescentar algo que não existe. É descrito como colocar uma pena na ponta de uma flecha. A pena não apareceu naturalmente ali. Basicamente, quer dizer que podemos acrescentar algo impossível, que nunca existiu, como uma forma impossível de existir, ou podemos acrescentar algo que poderia existir, mas não existe neste momento, ou então podemos exagerar a importância de algo que existe. Acrescentamos ou exageramos as qualidades positivas de algo quando sentimos apego ou desejo. Acrescentamos ou exageramos as qualidades negativas quando sentimos raiva ou repulsa.
O inverso da inserção é chamado de “repúdio”: negamos algo que existe. Negamos que há algo errado com nossa relação até mesmo quando ela não nos faz bem. Negamos a existência da morte. Muitos problemas vêm do estado de negação.
Na palavra “projeção”, bem ampla e difundida, também está incluído o “rotular mental de uma categoria”, que é o processo da cognição conceitual. Por exemplo, quando pensamos na categoria “mesa”, podemos rotular mentalmente com ela o objeto que está aqui ao meu lado, ou o outro objeto mais à frente, que tem uma forma ligeiramente diferente, e os objetos que estão à frente de cada um de vocês. Podemos encaixá-los todos nessa categoria com a qual os rotulamos mentalmente. Além disso, podemos “designar” essa categoria com um nome, como “mesa” e, através dessa categoria, designamos cada item que rotulamos mentalmente como parte dessa categoria. Obviamente, há nomes diferentes em idiomas diferentes com os quais a categoria pode ser designada.
Os nomes e categorias podem ser convencionalmente corretos ou incorretos. Quando olhamos para esse objeto e pensamos que se trata de uma mesa, isso está convencionalmente correto. Todos aqui concordariam com isso. No entanto, se olharmos para ele e o rotularmos de “cachorro”, os outros não concordarão com isso, e o objeto não se comportará como um cachorro. Se eu o colocar no portão esperando que comece a latir e assustar as pessoas, o objeto não fará isso, portanto há algo incorreto aqui. A “consideração incorreta” é um termo bem técnico, mas poderia incluir, por exemplo, pensar que esse objeto é um cachorro em vez de uma mesa.
O “eu” é imputado nos agregados ou rotulado nos agregados.
O “eu” ou uma pessoa é uma imputação nos agregados e pode ser conhecido conceitualmente ou não-conceitualmente – podemos pensar em uma pessoa ou ver uma pessoa – e muitos indivíduos podem ser rotulados com a categoria “eu” ou a categoria “uma pessoa”. A categoria só pode ser conhecida conceitualmente. Mas vamos investigar o que isso significa.
Quando vou a um hospital psiquiátrico, vejo muitos pacientes que têm problemas com o “eu”. Esse “eu” deveria ser, então, mais do que uma imputação em agregados. Caso contrário, por que haveria tantos problemas? O “eu” dos pacientes não é bem estruturado e eles fazem bem ao não desconstruir o “eu”. No entanto, eles têm muitos problemas.
Temos que retornar ao que eu mencionei antes. Talvez eu não tenha falado suficientemente disso. Há uma diferença entre o “eu convencional” e o “eu falso”. O eu convencional é uma imputação nos agregados, como também a idade, e vamos nos aprofundar no que isso realmente significa. O que chamamos de “ego saudável” no ocidente é aquele que se considera como um eu convencional. Já um “falso ego”, um “ego inflado” é quando inserimos ou sobrepomos ao eu convencional as qualidades que lhe faltam. Algumas qualidades podem existir, mas não existem no nosso caso, como quando alguém de 75 anos pensa ter a mesma habilidade de fazer trabalhos físicos que uma pessoa de 25 anos. Algumas qualidades que inserimos são qualidades impossíveis, como a ideia de sermos a pessoa mais importante do mundo e querermos que as coisas sejam sempre como nós queremos ou a ideia de sermos autossuficientemente cognoscíveis. Com os dois tipos de inserção, teríamos um ego inflado. Pessoas que têm muitos problemas psicológicos têm um ego tremendamente inflado ou não têm um ego saudável, quando não têm nem mesmo um senso de um “eu” convencional.
Não sei se vocês fazem essa distinção em italiano, mas há uma distinção em inglês, pelo menos entre “ego” e “eu”. Um ego é uma forma da pessoa estar consciente do “eu”. Com um ego saudável, temos consciência de nós mesmos como sendo um “eu” convencional. Com um ego inflado, temos consciência de nós mesmos como sendo um falso “eu”. Assim juntamos a explicação budista com a psicologia ocidental. O “eu” convencional e o falso “eu” são, respectivamente, objetos de um ego saudável e de um ego inflado. Um ego e um “eu” não são equivalentes; eles estão relacionados.
Por isso, quando nos aprofundamos nos estudos de budismo é muito importante que sejamos alunos qualificados. As qualificações principais são a maturidade e um senso saudável de “eu”. Caso contrário, se desconstruirmos o “eu” e não tivermos um senso saudável de “eu”, nada nos restará. Portanto, não é recomendável ensinar a vacuidade a crianças ou a jovens adolescentes, que ainda não desenvolveram um senso de um “eu” individual, pois eles desconstruirão demais. Os ensinamentos sempre repetem essa advertência e podemos até fazer votos de que não ensinaremos a vacuidade a quem não estiver preparado para aprender sobre o assunto. Há o perigo real da pessoa refutar tudo e acabar desenvolvendo uma psicose.
Há também o perigo de que o ego possa até ficar mais forte?
Sim, com a arrogância de que entendemos a vacuidade, quando na verdade não entendemos, o ego pode ficar mais inflado e forte por causa dessa inserção.
Você falou sobre o sofrimento nas relações, que resulta das emoções perturbadoras e surge da projeção de formas impossíveis de existir de um “eu”. No entanto, há outro tipo de sofrimento, talvez até mais profundo, que vem de uma falta de propósito, de sentido ou significado. Vejo isso nos meus filhos.
Você está falando de não achar um sentido para a vida? Novamente, isso é não ter um senso saudável de um “eu” convencional. Há muitos fatores envolvidos nisso. Um deles lida com o que chamamos de “refúgio”, que eu chamo de “direcionamento seguro”. Nosso direcionamento no budismo é alcançar um cessar verdadeiro de todas as emoções perturbadoras que causam sofrimento e alcançar um verdadeiro caminho mental – entendimentos e realizações que nos trarão felicidade como também a habilidade de ajudar os outros, como o Buda fez plenamente e a Arya Sangha fez parcialmente. Com esse objetivo, temos um direcionamento seguro; ele nos dá um sentido.
O termo “refúgio” é muito passivo, pois tem a ver com buscar alguém ou algo que toma a responsabilidade de nos proteger e nós não temos que fazer nada além de nos submeter a isso. O refúgio não é só isso. Em vez disso, se temos um direcionamento seguro, quanto mais avançamos nele, mais nos protegemos do sofrimento. Isso nos faz entender aonde estamos indo. O direcionamento nos ajuda a estabelecer um senso de eu convencional. É claro que podemos exagerar a importância disso: “Vou salvar o mundo, porque sou santo Alex.” No entanto, ter um direcionamento seguro e positivo é fundamental. É onde começamos no budismo; é absolutamente essencial.
Crianças não precisam aprender jargões técnicos. Basta lhes falar de possíveis sentidos e propósitos. Por exemplo, crescer, se tornar uma pessoa boa e gentil, não ter raiva, aprender muito para poder ajudar os outros, e assim por diante. Uma criança pode entender isso sem ter que aprender sobre coisas como o Buda, o dharma e a sangha, e mesmo assim ter a sensação de que “estou fazendo algo importante”, “estou chegando a algum lugar”. Isso ajuda a estabelecer um ego saudável baseado no “eu” convencional.
Não temos que explicar em termos de “inserção” e “eu convencional”. Ter um direcionamento seguro e positivo ajuda a estabelecer um senso de um “eu” com propósito. Depois, podemos nos preocupar sobre possíveis exageros. É claro que a forma de explicar e apresentar isso a uma criança dependerá da idade dela. Não podemos explicar a uma criança de três anos da mesma forma que explicamos a uma criança de dez anos.