Renunciando ao Sofrimento

Revisão dos Três Caminhos Principais

Tsongkhapa enfatizou que existem três caminhos principais, três caminhos principais da mente, ou três modos de pensar, modos de entender, que são a essência do caminho gradual. São eles: a renúncia, ou a determinação de ser livre, o ideal de bodhichitta e a compreensão correta da vacuidade ou vazio.

A renúncia é um estado mental que olha em duas direções. Em uma olha em direção ao sofrimento e às causas do sofrimento, e na outra direção à liberação ou liberdade. Na direção do sofrimento e de suas causas, há uma disposição de abandoná-los, de livrar-se deles, e não apenas temporariamente, mas para sempre. Na outra direção, há uma determinação de alcançar esse estado de libertação.

Na apresentação usual da renúncia, o objeto ao qual queremos renunciar, ou do qual queremos nos livrar, é, antes de mais nada, nosso próprio sofrimento. Quando é o sofrimento alheio, chamamos de compaixão. A apresentação padrão ou mais usual é a de que o objeto da renúncia é o sofrimento geral do samsara e suas causas e, mais especificamente, nossa própria experiência samsárica. Samsara significa renascimentos incontrolavelmente recorrentes, juntamente com todos os vários problemas, sofrimentos e dificuldades que fazem parte deles.

O Sofrimento da Infelicidade e da Mudança

Quando olhamos para a apresentação geral do sofrimento no budismo, falamos em três tipos de sofrimento. Temos o sofrimento da infelicidade. Esse todos nós conhecemos; estamos muito familiarizados com ele, com todos os seus vários aspectos – tristeza, infelicidade, desprazer e assim por diante. A vontade de se livrar desse sofrimento e ser feliz é algo que está pressente até nos animais, portanto, não é nenhuma grande conquista do ser humano; não é nisso que o budismo está focando especificamente.

É sempre muito útil e importante, acho eu, e Sua Santidade o Dalai Lama enfatiza isso o tempo todo, diferenciar as coisas comuns que encontramos nos ensinamentos budistas das coisas que são especificamente budistas. Esse desejo de não sentir fome, não sentir frio, e assim por diante, e tentar sair disso, estar seguro, estar fora de perigo, não é algo particularmente budista; nem mesmo particularmente humano.

O segundo tipo de sofrimento é o chamado “sofrimento da mudança” ou o problema da mudança. Ele se refere às nossas formas comuns de felicidade e, embora, claro, elas sejam muito agradáveis, possuem alguns problemas associados. O primeiro é que eles não duram. O segundo é que nunca nos satisfazem, nunca achamos que temos o suficiente; nunca temos carinho, amor, prazer e assim por diante o suficiente. Afinal, sempre queremos mais. E quando não obtemos mais, sofremos muito. Em todos os momentos de felicidade comum há insegurança, pois nunca sabemos o que vamos experimentar no momento seguinte, como vamos nos sentir. Podemos nos sentir felizes agora, mas no momento seguinte, de repente, ficarmos deprimidos.

Com a renúncia, nos sentimos insatisfeitos com esse tipo de felicidade. Não nos satisfazemos com uma felicidade de segunda categoria. O que queremos ter é uma felicidade duradoura que satisfaz e nunca desaparece, não é mesmo? Bem, não há nada particularmente budista nisso. Temos esse mesmo tipo de desejo de felicidade eterna em várias outras religiões. Temos que abordar esses dois aspectos do sofrimento de uma forma bastante realista e sóbria.

Claro, só porque se livrar da infelicidade não é a coisa mais profunda que podemos fazer, isso não significa que não devemos tentar. Claro, se estivermos com fome, devemos comer. Em termos de felicidade comum, quando dizemos que queremos renunciar a ela, não significa que não faremos mais nada de bom ou nunca iremos rir e nos divertir. Certamente não é isso. A questão é não ver isso como o objetivo final, a melhor coisa do mundo. Vemos pelo que é. Não vai durar, não sabemos o que vai acontecer a seguir e nunca vai nos satisfazer. “OK, eu aceito isso, mas mesmo assim, se eu estiver numa situação relativamente mais feliz, posso aproveitar.”

Isso faz parte dos ensinamentos da vida humana preciosa e dos oito fatores de uma vida especialmente preciosa. Em outras palavras, podemos viver confortavelmente, ter o suficiente para comer e dinheiro suficiente, podemos ir aos ensinamentos, podemos estudar, podemos fazer retiros, podemos usar o que temos para ajudar os outros sem sermos esmagados pelo sofrimento e os problemas. Às vezes é muito importante relaxar e ter o que chamamos, de uma maneira relativa, de “bons momentos”, mas com o entendimento de que isso não é uma grande coisa. Isso nos dá mais energia, mais espaço para respirar, para que possamos novamente nos dedicar plenamente ao caminho espiritual, para ajudar os outros.

Se tivermos sofrimento grosseiro, tentamos transformá-lo ou até mesmo usá-lo no caminho. Quero dizer, antes de mais nada, tentamos sair dele, mas se for difícil sair, vamos dizer que ficamos doentes ou algo assim, então, enquanto tomamos remédios ou o que quer que seja, tentamos usar essa circunstância de uma maneira conducente ao caminho. Isso nos ajuda a desenvolver compaixão e compreensão por outras pessoas que também estão doentes ou incapacitadas.

Lembro-me de um amigo que desenvolveu uma doença que o deixou em uma cadeira de rodas. Ele disse que essa foi uma das coisas mais benéficas que aconteceram para ele, em vez de apenas correr como um louco pelo mundo, fazendo todo tipo de coisa, isso lhe deu a circunstância para realmente trabalhar em si mesmo, meditar e seguir o caminho espiritual. 

Conforme mencionei, se tivermos felicidade comum, a usaremos como circunstância para beneficiar os outros. Em ambos os casos, tentaremos não exagerar nem no sofrimento nem na felicidade comum. Não fazemos de nenhum deles uma grande coisa.

Diferenciando os Dois Níveis de Renúncia

Quando pensamos no tipo comum de sofrimento, o sofrimento da infelicidade, e também a insatisfação da felicidade comum, podemos considerá-los em termos de períodos de tempo. O escopo maior da renúncia, que é a descrição padrão dela, é a determinação de se afastar de todos os sofrimentos em todos os renascimentos incontrolavelmente recorrentes. Isso inclui tanto a infelicidade quanto a felicidade comum que podemos experimentar em qualquer tipo de renascimento, e temos a determinação de nos livrar disso.

Tsongkhapa, em seu breve texto Os Três Aspectos Principais do Caminho, diferencia dois níveis de renúncia. No entanto, ele não faz isso em apresentações maiores do lam-rim, os estágios graduais do caminho. Nelas, ele fala da renúncia em um único nível. Neste pequeno texto, porém, ele diferencia duas etapas. Embora o nível mais avançado seja o desejo de se livrar do sofrimento e de suas causas em todas as vidas futuras e alcançar o nirvana, a liberação, ele descreve um estágio anterior, que é nos afastar da obsessão com o que está acontecendo nesta vida – não apenas com os sofrimentos da infelicidade e da felicidade temporária, mas a obsessão com esta vida e tudo o que acontece nela, e se preocupar mais em ter uma situação mais favorável no próximo renascimento, ou em renascimentos futuros em geral.

Agora, o objetivo desse tipo de renúncia não é exclusivamente budista, é? Existem muitas religiões que nos ensinam a não ficarmos obcecados com esta vida e almejar um renascimento no céu, por exemplo. Isso não é exclusivamente budista. No budismo, buscamos uma das melhores situações de renascimento como um passo temporário, pois percebemos que, embora estejamos almejando a renúncia de qualquer tipo de renascimento, levará muito tempo para obtermos a liberação.

Nos levamos a sério e também levamos o nosso caminho espiritual a sério, e temos uma atitude realista. Com uma compreensão do renascimento – que é obviamente assumido aqui no budismo, mas que os ocidentais não conseguem assumir – dentro desse contexto, queremos ter certeza de que em renascimentos futuros, em vidas futuras, continuaremos a ter circunstâncias favoráveis para continuar trabalhando pela libertação. Levamos isso muito a sério. Não é que queiramos um renascimento cada vez melhor, um modelo novo de carro que a cada ano tem que ser melhor, para que o melhor renascimento que tenhamos seja o nirvana, a libertação. Isso é apenas um equívoco no que diz respeito à libertação.

O que queremos não é muita felicidade mundana, porque se tivermos muita felicidade, nos tornaremos muito preguiçosos. Não teremos motivação para fazer nada para sair, pois será muito confortável. Para renunciar a essa felicidade, temos que olhar com muita profundidade para esse tipo de situação, a fim de descobrir os problemas que existem nela; geralmente, pessoas muito ricas têm muitos problemas mentais e emocionais, isso é bastante óbvio. Queremos felicidade suficiente. É como ter comida suficiente, comida boa que nos sustenta. Queremos felicidade apenas o suficiente, circunstâncias favoráveis o suficiente para podermos dedicar nossa energia e tempo para progredir ainda mais – nem muita, nem pouca.

Como sugeri em nossa discussão sobre o Dharma-Light, mesmo esse nível de renúncia é muito avançado para nós, ocidentais, que temos dificuldade com a ideia do renascimento. Precisamos encontrar um passo preliminar que nos dará acesso ao caminho budista. É como tentar entrar em um trem que se move muito rápido. O caminho budista já está se movendo muito rapidamente, e não conseguimos alcançá-lo com muita facilidade, então temos que, de alguma forma, pular nele em um estágio anterior. O trem tem que desacelerar muito para que consigamos embarcar.

Como eu disse, quando adicionamos uma etapa anterior, temos que deixar bem claro que isso não está nos ensinamentos originais. Estamos tentando acrescentar algo que não viole ou comprometa de forma alguma os ensinamentos do Buda. O mais importante para garantir isso é nunca negarmos ou rejeitarmos o resto do caminho, o Dharma Real. Vemos cada passo preparatório que damos simplesmente como isto, uma preparação. Acho que neste contexto, com esta abordagem sincera, podemos falar do que geralmente é nosso objetivo como praticantes ocidentais no começo: apenas melhorar nosso samsara, desta vida, através dos métodos do Dharma.

Podemos formular isso de uma maneira semelhante a como Tsongkhapa formula neste texto. Tsongkhapa formulou os dois estágios como o afastamento da obsessão por esta vida e o interesse maior por vidas futuras. Sua Santidade sempre diz que 50/50 é uma abordagem saudável aqui. Não seja um fanático. Temos que cuidar desta vida também; afinal, estamos aqui. O segundo nível, o mais avançado, é nos afastarmos da obsessão com os renascimentos futuros e almejarmos a libertação total.

Cuidamos dos renascimentos futuros apenas para o caso de não alcançarmos a liberação nesta vida. É claro que, almejar um objetivo maior, como algo secundário, nos ajuda alcançar os objetivos menores.

Uma formulação semelhante e que eu acho que poderia ser nosso passo saudável do Dharma-Light seria nos afastarmos da obsessão apenas com este momento, com a gratificação imediata, e pensar mais nas consequências de longo prazo. Nos interessamos pelo que vai acontecer conosco mais tarde em nossas vidas e assim não abusamos de nosso corpo com drogas e coisas selvagens quando jovens e não cultivamos uma postura horrível sem pensar em: “Como isso vai afetar minha saúde mais tarde?” Por exemplo, ter artrite por ter ficado curvado sobre um computador aos 20 anos.

Claro, podemos adicionar um sabor de Mahayana aqui, podemos pensar nas consequências do que estamos fazendo para os outros. Podemos até adicionar um pouco do sabor de vidas futuras aqui, que seria aceitável para a nossa mentalidade ocidental, e um passo intermediário muito bom para pensarmos em termos de vidas futuras. Isso seria desviar nosso interesse da obsessão apenas com a situação imediata e passar a nos interessar pelas consequências que isso terá nas gerações futuras.

Por exemplo, em vez de explorar todos os recursos e destruir o meio ambiente, perguntamos: “Qual será o efeito disso para os nossos filhos e netos e para as gerações futuras?” Acho que este é um passo intermediário válido, assim como Tsongkhapa acrescentou o passo intermediário válido da renúncia, pensando em se afastar da obsessão apenas com esta vida.

O Sofrimento Que Tudo Permeia

Como eu disse, o Buda mencionou três tipos de sofrimento. Superar os dois primeiros, o problema do sofrimento e o problema da mudança ou felicidade comum, não é exclusivamente budista. O que é exclusivamente budista aqui é o terceiro tipo de sofrimento, chamado de “Sofrimento Que Tudo Permeia”, o problema que tudo permeia, e ter a determinação de se livrar dele. Isso está se referindo ao renascimento samsárico incontrolavelmente recorrente, com um corpo e uma mente que experimentam os dois primeiros tipos de sofrimento. Para renunciar a esse problema que tudo permeia, precisamos renunciar à sua causa.

Qual é a verdadeira causa de todo sofrimento? A verdadeira origem, a verdadeira causa de todos os nossos problemas, todo o nosso sofrimento em todas as vidas samsáricas, é o que chamamos de “falta de consciência”, geralmente traduzido como “ignorância”; mas isso, pelo menos em inglês, tem a conotação de ser estúpido. Mas não tem nada a ver com estupidez aqui; é que não sabemos, ou então acreditamos em algo que não está correto ou que sabemos de uma forma incorreta. Isso não significa que há algo de errado conosco; portanto, não há culpa envolvida aqui, nenhum julgamento moral.

Em geral, no budismo, diferenciamos dois níveis de falta de consciência. Um deles lida com a falta de consciência em relação ao carma, o mecanismo de causa e efeito comportamental. Não estamos falando das leis da física, onde sabemos que se chutarmos uma bola, ela percorrerá uma certa distância com base na força e no ângulo. Não estamos falando desse tipo de causa e efeito. Estamos falando de causa e efeito comportamental, e não estamos necessariamente falando sobre o efeito de nosso comportamento sobre os outros; estamos falando sobre o efeito de nosso comportamento sobre nós mesmos, em termos do que vivenciaremos no futuro como resultado de nossas ações agora.

Portanto, não temos consciência e somos ingênuos em relação a quais serão as consequências de nossas ações, de nosso comportamento, em relação ao que viveremos no futuro. Ou realmente não sabemos, ou nem pensamos em qual será o efeito. Achamos que não haverá efeito, como: “Posso abusar do meu corpo, forçar muito, usar drogas, ficar acordado a noite toda e não sofrer nenhum efeito”. Ou sabemos, mas de uma forma incorreta e pensamos: “Se eu ficar bêbado e usar drogas o tempo todo, isso vai me deixar feliz. Isso vai resolver meus problemas.”

Quando pensamos em nos afastar da obsessão com a gratificação imediata, o que precisamos trabalhar é nossa ignorância em relação às consequências do comportamento e começar a pensar em termos do que vamos vivenciar mais tarde em nossas vidas. Na maioria das vezes, no entanto, não vivenciamos os resultados de nosso comportamento atual nesta vida, pois não estamos falando apenas do que chamamos de “resultados imediatos” do comportamento – por exemplo, se estuprarmos alguém, podemos experimentar o prazer e a felicidade de um orgasmo. Não estamos falando desse tipo de resultado, que está em nossa experiência imediata. Não estamos falando apenas do que acontece imediatamente quando ficamos com raiva e nos sentimos um pouco melhor porque gritamos ou damos um soco na cara de alguém.

Estamos falando do “resultado que irá amadurecer”. Esse é o termo técnico. Em outras palavras, o que estamos vendo são os tipos de tendências que geramos a partir desses comportamento e hábitos e que afetarão muito o nosso comportamento e experiência futuros, em termos de como nos comportaremos e os tipos de situações e relacionamentos que tenderemos a encontrar. Eles também afetam nosso humor, se temos bom humor, mau humor, etc., independentemente do que estivermos fazendo e, em uma perspectiva mais ampla, o tipo de situação de renascimento que tenderemos a enfrentar - esses são os tipos de resultados que amadurecem, e eles amadurecem principalmente em vidas futuras. Isso é algo realmente muito importante de entender, mas não muito fácil.

Como eu estava tentando mostrar anteriormente, não podemos eliminar o renascimento da apresentação budista, pois podemos ser um praticante muito sincero, trabalhar muito, muito duro durante nossa vida e então desenvolvermos um câncer terrível e doloroso e morrer uma morte horrível e dolorosa. E aí podemos dizer: “Eu não merecia isso”, porque não estamos olhando para o que estamos vivenciando a partir da perspectiva de vidas anteriores. Essa é uma maneira muito confusa de olhar para a questão.

Claro, o que não temos aqui na apresentação budista é que o que vivenciamos é uma recompensa ou punição, o que seria uma ética baseada em seguir regras. Não é assim que a ética budista funciona. Em nossas culturas ocidentais, a ética é baseada em duas fontes. Em primeiro lugar, existem certas leis, certas regras que são leis divinas, estabelecidas por um ser divino todo-poderoso, e temos que obedecê-las. Se não as obedecemos é porque somos maus; somos culpados e então seremos punidos. Se as obedecemos é porque somos bons e seremos recompensados. Este é um aspecto de nossa ética ocidental, a herança bíblica. Podemos ver que toda a questão da ética é basicamente uma questão de obediência. É muito interessante e culturalmente muito específico. Isso é característico de uma cultura específica; não é uma coisa geral, universal.

A outra herança que temos é a dos gregos antigos. Aqui, temos leis que não são estabelecidas por um ser divino, mas por um rei ou um grupo de pessoas, uma legislatura. São as leis civis. Com elas, temos a mesma questão de obediência às leis, às leis civis: se formos bons cidadãos, seremos recompensados e correrá tudo bem, e se desobedecermos às leis civis é porque somos criminosos e seremos punidos.

A ética budista não se baseia de forma alguma na obediência; portanto, quando fazemos algo antiético, não é porque somo desobedientes ou maus. Quando nos comportamos de forma destrutiva, é porque estamos agindo com base em emoções perturbadoras – ganância, apego, ódio, raiva, ingenuidade e assim por diante. Essas emoções são destrutivas e baseadas na falta de consciência, já o comportamento construtivo não é baseado em ganância, raiva, ingenuidade e assim por diante. Pelo menos no nível mais fundamental, o comportamento construtivo pode ser baseado em boas intenções, mas muitas vezes as boas intenções estão misturadas com uma total falta de consciência.

Quando agimos de forma destrutiva, ou outra pessoa age de forma destrutiva, o motivo não é porque ela é desobediente ou uma má pessoa; o motivo é que ela simplesmente não está consciente das consequências, ela simplesmente não sabe. Existe uma falha em seu entendimento. A mariposa voa para a chama não porque é má ou desobedeceu à lei “Não entre na chama”. Ela voa para a chama porque não sabe; é completamente ignorante. Esse é um exemplo muito claro. Essa mariposa voando para a chama nos inspira ou nos move a sentir compaixão, não a sentir raiva indignada: “Você é uma mariposa má, você tem que ser punida!”

Assim, o primeiro tipo de falta de consciência é a falta de consciência em relação às causas e efeitos do comportamento, e o que podemos incluir aqui não é apenas a falta de consciência em relação às consequências dele, mas também em relação a como isso funciona. As consequências não são recompensas ou punições por obediência ou desobediência.

Quando diferenciamos esses três níveis ou três etapas graduais do escopo da renúncia – renúncia em relação à obsessão com o momento imediato, renúncia em relação a esta vida e em relação à todas as vidas futuras – a primeira causa do sofrimento que renunciamos, ou da qual queremos nos livrar, é a nossa falta de consciência em relação às causas e efeitos do comportamento. Agimos de forma destrutiva, querendo apenas a gratificação imediata e sem saber como isso afetará nossa experiência futura nesta vida, ou agimos de forma destrutiva nesta vida porque não entendemos e não temos consciência de como isso vai afetar nossa experiência em vidas futuras.

Distinguindo o Falso “Eu” do “Eu” Convencional 

Existe um segundo tipo de falta de consciência, que é muito mais profundo, que é a falta de consciência em relação à realidade, à realidade das pessoas, de como nós e os outros existimos. Na maioria das explicações budistas, esse é o principal tipo de falta de consciência com que lidamos, mas na apresentação budista mais sofisticada, dizemos que é a falta de consciência não apenas em relação a como as pessoas existem, eu e você, mas também em relação a como tudo mais existe.

Isso nos leva à discussão sobre a vacuidade. O que acontece é que nossas mentes projetam fantasias impossíveis de como as coisas existem. Por exemplo, em relação ao “eu” como pessoa, a mente tende a projetar a aparência de que o “eu” existe de uma maneira concreta e separada, que é uma entidade independentemente existente, dissociada do corpo, dissociada da mente, dissociada das emoções. Podemos falar disso em muitos níveis diferentes, mas o nível real que está sendo discutido aqui é que existe um eu autossuficiente conhecível, ou seja, que pode ser conhecido sem que, ao mesmo tempo, se conheça mais nada.

Quando nos olhamos no espelho, por exemplo, qual é a aparência que vemos? “Eu me vejo no espelho.” Dizemos isso, não é? Parece que é assim. Não pensamos: “Vejo um corpo no espelho e, com base nesse corpo, vejo a mim mesmo”. Ao batermos o pé contra o pé de uma mesa no escuro, dizemos: “Eu me machuquei”, como se pudéssemos conhecer esse “eu” independentemente do pé e da dor. Quando dizemos: “Eu conheço o Patrício”, é como se fosse possível conhecer o Patrício separadamente de conhecer como é seu corpo ou qualquer coisa sobre ele. É como se pudéssemos conhecer “o Patrício”. Da mesma forma, acreditamos: “Eu me conheço”, ou “Não me conheço”, ou “Não estou agindo como eu mesmo hoje” ou “Tenho que me encontrar”.

Todas essas coisas são indicativos desse tipo de aparência que nossa mente produz automaticamente, de um eu existente de forma independente e autossuficientemente conhecível. A ignorância é de não saber, não saber que isso não corresponde à realidade. A ignorância nos faz acreditarmos que isso é realmente verdade, que existe um eu autossuficientemente conhecível, uma espécie de entidade com uma grande linha sólida ao seu redor. Como nos identificamos com o que chamamos de “falso eu” no budismo, agimos com base nisso. Sentimo-nos inseguros e então temos que defender esse “eu”, temos que afirmá-lo, temos que prová-lo e melhorá-lo. Esse falso eu sólido sempre tem que obter o que quer. É a coisa mais importante do universo, porque há uma linha sólida em torno dele: “Existem eles lá fora que estão contra esse eu aqui”. “As coisas têm que ser como eu quero.” Ficamos com raiva quando não são e, com base nisso, agimos de maneira destrutiva.

Esta é a forma mais comumente aceita de ignorância/falta de consciência aqui neste contexto. Ela é aceita por todas as apresentações budistas. Esse tipo de eu, grosseiramente inflacionado, com uma linha grande e sólida em volta, é impossível. Não corresponde a nada que seja real. Quando falamos de vacuidade, estamos falando da ausência dessa forma impossível de existir desse eu impossível. Além disso, quando dizemos “ausência”, não queremos dizer apenas, por exemplo, que alguém está ausente desta sala mas está em outro lugar. Estamos falando de uma ausência absoluta, nunca existiu. É disso que se trata a vacuidade, em termos muito simples. Isso não significa, no entanto, que não existimos. Existimos; o “eu” que existe é o que chamamos de “eu” convencional.

Podemos entender a diferença entre o “eu” convencional e o falso eu com um exemplo muito simples: estou sentado nesta cadeira. Bem, este corpo está sentado na cadeira, não está? Existem duas coisas diferentes sentadas nesta cadeira, o corpo e eu? São duas coisas separadas e independentes? Existem grandes linhas sólidas ao redor de cada um? Você pode me ver sentado na cadeira independentemente de ver o corpo na cadeira? Não, obviamente não; isso é impossível, mas parece que é assim. Parece que eu, com uma grande linha ao redor, estou sentado nesta cadeira. Nem entra na minha cabeça que tem um corpo nesta cadeira. Mas vamos ainda mais longe do que isso. Pensamos: “É a minha cadeira, não a sua cadeira, então não se sente nela!”

O falso eu, o eu impossível, é aquele que existe separadamente e pode ser conhecido separadamente, independentemente do corpo, neste caso. O “eu” convencional é aquele que é conhecido em termos do corpo, em relação ao corpo, não como uma entidade sólida, separada e independente.

Isso é muito profundo quando pensamos em termos de estados mentais: “estou deprimido”, “estou triste”, como se houvesse um eu separado da experiência de um sentimento mental, uma sensação mental, que está mudando a cada momento. “Olha aquela pessoa triste, aquela pessoa deprimida.” “Sou uma pessoa tão triste e deprimida”, independente dos momentos sempre mutantes de experiência. O eu impossível é esse eu separado, “coitadinho”, e o convencional, o que realmente existe, é um “eu” que se conhece em termos de momentos mutantes de experiência.

Acreditamos nesse falso eu, que é impossível, porque parece que existe como um eu separado, cognoscível por si só, independente do corpo, da mente, das emoções, de todas essas coisas. Acreditamos nisso, não temos consciência de que é falso e, assim, agimos de forma destrutiva ou ingenuamente construtiva. Para defender esse eu, muitas vezes agimos de forma destrutiva: “Sinto-me ameaçado pelo que você acabou de dizer, então tenho que gritar com você”. Ou agimos de forma construtiva, mas com ingenuidade, como “Sou bom para você e faço coisas boas para você porque quero ser amado, quero ser apreciado”.

No final, toda essa confusão gira em torno da crença no falso eu. Como resultado de acreditar nesse “eu” e agir com base nessa crença, vivenciamos renascimentos incontrolavelmente recorrentes como uma base contínua para vivenciarmos o sofrimento da infelicidade e o sofrimento da mudança, a felicidade comum. Este é o sofrimento que tudo permeia. Tudo o que vivenciamos – estamos falando de samsara – é resultado de um comportamento baseado nessa falta de consciência, através do que chamamos de carma. O que é tão horrível nisso é que isso se perpetua. Continua a haver essa sensação de um eu concreto que está vivenciando o carma e, com base nesse resultado cármico, produzimos mais causas. Produzimos mais e perpetuamos o processo. Isso é o que há de tão horrível nas situações samsáricas, elas vão se perpetuando, continuando e continuando, a menos que façamos algo a respeito.

Identificando Corretamente a Causa do Sofrimento

O sofrimento que tudo permeia, ou seja, o samsara, o renascimento incontrolavelmente recorrente e tudo o que acontece em cada renascimento, simplesmente continua com seus altos e baixos, altos e baixos, não vai a lugar nenhum. Esse é o sofrimento que tudo permeia, o terceiro tipo de sofrimento, que só é explicado e colocado no budismo. Quando falamos sobre a verdadeira renúncia, é a isso que estamos renunciando. Estamos determinados a nos livrar desse problema que tudo permeia do samsara, e de sua causa, a falta de consciência.

Almejamos a liberação completa do samsara, que chamamos de “nirvana”, onde esses renascimentos nunca mais ocorrerão. Não queremos apenas férias temporárias; queremos nos livrar completamente; isso é chamado de “verdadeira parada” ou “verdadeira cessação”, nunca mais se repete. Isso é distintamente budista.

Agora, estar determinado apenas a se livrar dos renascimentos incontrolavelmente recorrentes não é especificamente budista, porque todas as demais religiões indianas usam as mesmas palavras: “samsara” e uma palavra ligeiramente diferente, que o budismo também usa, “moksha”, para liberação. Elas almejam a mesma coisa: liberação do samsara, dos renascimentos incontrolavelmente recorrentes. Não há nada distintamente budista nisso. O que é distintamente budista é identificar corretamente a verdadeira causa do sofrimento, a verdadeira causa do samsara, e renunciar a ela, desenvolvendo a determinação de se livrar dela.

No processo de ter essa renúncia, embora nosso foco principal seja nos livrarmos do sofrimento que tudo permeia, a verdadeira causa do sofrimento, podemos precisar estar dispostos a desistir das circunstâncias que alimentam o samsara. Na verdade, nos dispomos a desistir de tudo o que for preciso para nos livrarmos do samsara. Isso é incrivelmente avançado. Estamos determinados a nos livrar de absolutamente tudo o que conhecemos em nossa experiência. Isso é realmente muito radical porque tudo em nossa experiência é samsara, esse sofrimento que tudo permeia.

Podemos ver por que Tsongkhapa sugere aqui um estágio anterior a esse tipo de renúncia. Esse nível de renúncia é um pouco demais para irmos diretamente. Para a maioria de nós, ocidentais, até mesmo esse passo mais fácil que Tsongkhapa sugere como o primeiro passo para a renúncia é avançado demais. Precisamos de um passo anterior. Então, progredimos através desses diferentes níveis de renúncia.

Para ter uma renúncia realmente sincera, lembre-se de que ela olha para duas direções: numa mira no sofrimento e quer se livrar dele, na outra mira no estado de liberação e quer alcançá-lo. É preciso uma identificação correta do objeto do qual estamos determinados a nos livrar ou do que estamos determinados a sair, e qual é o objeto ou estado que estamos determinados a alcançar. Temos que reconhecer corretamente os dois e saber o que são.

Além disso, temos que estar convencidos de que é possível nos livrar para sempre desse sofrimento e de suas causas, e que é possível alcançar o estado de liberação. Os dois obviamente estão interconectados; não é que só podemos alcançar um e não o outro. E isso não pode estar baseado apenas na fé cega de que “Bem, o Buda disse” ou “Meu professor disse, então eu acredito. Eu quero ser um bom discípulo, obediente, e vou obedecer e não falar nada”. O próprio Buda disse: “Nunca aceite algo que eu diga apenas por respeito a mim, teste você mesmo, como faz ao comprar ouro”. Precisamos realmente estar convencidos pela lógica e pela razão de que realmente é possível alcançar a libertação; caso contrário, nosso objetivo pode não ser sincero, pode não ser estável.

A questão da bodhichitta, que é dissociar-se da incapacidade de ajudar a todos e almejar alcançar a iluminação, aquele estado no qual seremos capazes de ajudar a todos, tem uma estrutura semelhante à renúncia. No entanto, quando falamos de bodhichitta, não costumamos incluir esse aspecto que a renúncia tem de “eu quero me dissociar dessa incapacidade”. A ênfase está em almejar a iluminação e para um propósito específico, beneficiar a todos os seres o tanto quanto possível.

No entanto, precisamos abordar a questão tanto com renúncia quanto com bodhichitta; a saber: é possível realmente alcançar a libertação do samsara, de renascimentos e sofrimentos incontrolavelmente recorrentes? É realmente possível alcançar a iluminação, o estado em que temos mais capacidade de ajudar a todos? Claro, precisamos reconhecer quais são esses dois estados. Mas além disso, será que é possível alcançá-los? Também precisamos estar convencidos de que “eu sou pessoalmente capaz de fazer isso”, não apenas de uma maneira geral “é possível”. Não “O Buda conseguiu, e essas outras pessoas conseguiram, mas eu sou muito idiota. Eu não sou bom, então não posso conseguir.”

Para nos convencermos disso, precisamos entender a natureza da mente e o que chamamos de “natureza búdica”, ambas as quais envolvem a compreensão da vacuidade.

Perguntas

Você está falando em atingir a iluminação para poder ajudar os outros, mas podemos ver que esses outros também estão muito, muito confusos em relação ao falso eu, e quando você tenta ajudá-los, ficam com raiva e não deixam. Como poderíamos ajudá-los?

Em primeiro lugar, sendo paciente. O caminho do bodhisattva envolve muitos estados mentais positivos e construtivos que precisamos desenvolver, o que nos permitirá ajudar os outros, e fornece muitos métodos para alcançá-los. Precisamos desenvolver a equanimidade, com a qual não temos favoritos; estamos abertos a ajudar a todos igualmente. Também precisamos de amor, o desejo de que os outros sejam felizes e tenham as causas da felicidade, e compaixão, o desejo de que os outros se libertem dos problemas e das causas dos problemas. Além disso, precisamos da atitude com a qual assumimos a responsabilidade de realmente fazer algo a respeito e não apenas a responsabilidade de ajudá-los um pouco, superficialmente, mas a responsabilidade total de ajudá-los a alcançar a iluminação. Para isso, precisamos alcançar a iluminação para que possamos ajudá-los o mais plenamente possível. Isso é bodhichitta; almejamos nossa iluminação individual.

Desenvolvemos esta atitude: “Vou tentar ajudar a todos igualmente, não desanimar, não desistir de ninguém só porque é difícil”. Então, precisamos das chamadas “atitudes de longo alcance”, às vezes traduzidas como “perfeições”: ser muito generoso, doar seu tempo, sua energia, não apenas dar flores. Além disso, ter autodisciplina ética para evitar fazer qualquer coisa prejudicial, disciplina para realmente se treinar e disciplina para realmente ajudar os outros, mesmo que não tenha vontade. Paciência para não ficar com raiva ou desanimar quando não quiserem nossa ajuda ou o que sugerimos não funcionar. Perseverança para não desistir, para continuar, aconteça o que acontecer, e amar o que está fazendo, se trabalhando e tentando ajudar os outros, fazer isso com muita alegria.

E temos também a estabilidade mental, que não significa apenas concentração, é estabilidade emocional também. Não temos altos e baixos o tempo todo em nosso humor e não nos distraímos: “Sinto-me atraído por isso porque é bonito”. E, claro, a consciência discriminativa para poder discriminar entre o que é útil, o que é prejudicial, o que é realidade e o que é apenas uma projeção ou fantasia. O treinamento do bodhisattva é muito extenso para desenvolvermos todos esses aspectos, bem como uma grande compreensão de meios hábeis, para que possamos ajudar os outros tanto quanto possível.

No entanto, mesmo que nos tornemos budas, não seremos capazes de simplesmente estalar os dedos e eliminar de forma onipotente o sofrimento de todos. Se isso fosse possível, o Buda já o teria feito. Podemos oferecer conselhos, podemos ajudar tanto quanto possível, mas a outra pessoa tem que seguir o conselho. A outra pessoa tem que ser receptiva; não podemos forçar nada. Como vimos, a causa mais profunda do sofrimento de todos os seres é a mesma: essa falta de consciência. Como budas, o que podemos fazer é explicar da maneira mais habilidosa possível – de acordo com o nível da pessoa – a realidade. Um buda não pode entender pela outra pessoa; ela tem que entender por si mesma.

Você tem falado sobre nos prepararmos para nossos futuros renascimentos e trabalharmos para eles, mas parece que é muito fácil obter mais renascimentos humanos ou renascimentos humanos preciosos. Lembro de ter ouvido falar que é muito, muito difícil. É mesmo?

É muito, muito difícil obter um precioso renascimento humano se não fizermos nada para gerar as causas. Não vai acontecer tão facilmente, por si só, como resultado do que fizemos há um milhão de vidas. Temos que colocar e gerar fortemente as causas para isso agora. Quais são as causas primárias? A causa mais importante é a autodisciplina ética. Isso é algo que, como humanos, somos capazes de fazer de maneira única. Os animais não conseguem fazer isso. Os animais são dominados por seus instintos - o gato vai torturar o rato e o leão vai caçar. Somos humanos e podemos exercer o autocontrole.

Além disso, o que é muito importante é fazer orações sinceras para alcançar um renascimento humano precioso, o que não significa fazer orações, como: “Oh Buda, conceda-me isso pois sou uma boa menina ou um bom menino e lhe louvo o tempo todo." O que fazemos é dar um direcionamento muito forte à nossa intenção e energia positiva, e especificamente com uma dedicação: “Que através da força positiva de tudo de construtivo que fiz e estou fazendo, que eu atinja a iluminação. Para atingir a iluminação, preciso continuar tendo renascimentos humanos preciosos que me permitirão continuar trabalhando nisso. Que eu sempre tenha um renascimento humano precioso, sempre encontre o Dharma, sempre seja cuidado por professores realmente bem qualificados em todas as minhas vidas até a iluminação.” Tornar as orações específicas é importante.

No Mosteiro Ganden, no Tibete, havia um trono, um assento muito alto do chefe da ordem Gelugpa, o trono Ganden. Um dia – também há animais no mosteiro – uma vaca entrou no templo e sentou-se no trono. Os monges ficaram muito surpresos com isso e perguntaram a um grande mestre: “Qual é a causa disso?” O professor disse: “Em uma vida anterior, este ser fez orações para poder sentar-se no trono de Ganden, mas não foi específico o suficiente”.

Além da autodisciplina ética e das orações específicas, precisamos complementá-las com as outras atitudes de longo alcance – generosidade, paciência, perseverança, estabilidade mental e consciência discriminativa. Essas são as causas de um renascimento humano precioso.

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