Bodhichitta em 7 Partes: Equanimidade

Revisão

Hoje é nossa segunda sessão sobre a meditação de causa e efeito em sete partes para gerar bodhichitta. Ontem, como introdução, vimos alguns dos fatores envolvidos na geração do ideal de bodhichitta. Focamos principalmente na bodhichitta convencional, ou bodhichitta relativa, que visa nossa iluminação individual que ainda não aconteceu, mas que pode acontecer com base em nossos fatores da natureza búdica.  

Vimos algumas das características que fazem com que a bodhichitta seja algo tão profundo e importante e, portanto, tão exaltado pelos grandes mestres como sendo a joia mais rara. Eu não preciso repetir tudo o que disse ontem, mas é muito importante ter um bom entendimento do que é a bodhichitta, respeitá-la e não banalizá-la. Também é importante entender que, se realmente quisermos desenvolvê-la com profundidade e sinceridade, precisaremos trabalhar muito. É por isso que ela está no nível avançado de motivação. Não é algo com o qual começamos. 

A bodhichitta não faz parte do nível inicial de motivação, embora se possa obter essa impressão devido à organização de muitos dos lam-rims, onde o refúgio e a bodhichitta estão logo no início, como parte das práticas preliminares ou preparatórias. Como estão no início, obviamente se pressupõe que já temos essas coisas. Mas, precisamos entender o contexto em que os ensinamentos do lam-rim encontrados nos grandes textos são dados. Esses ensinamentos são para pessoas que já passaram por todo esse material e estão apenas revisando-o, em preparação para receber algum tipo de iniciação tântrica. Esse é o contexto real do Lam-rim chen-mo, da apresentação de Pabongka e assim por diante. 

Um outro ponto sobre a organização do lam-rim - o de apresentar logo no início do texto a relação com o mestre espiritual, ter o mestre espiritual como raiz do caminho - sempre enfatizo, quando ensino o relacionamento com o mestre espiritual, que a raiz não é a semente de um caminho. A raiz está lá quando a planta já está crescendo; é aquilo por meio do qual ela recebe seu sustento. O professor espiritual é aquele que nos dá inspiração, mas não é por onde realmente começamos. 

Foi interessante, eu estava vendo uma antiga apresentação Kadampa dos estágios graduais, de um mestre Kadampa chamado Sangwayjin, que prescindiu o lam-rim de Tsongkhapa e foi onde Tsongkhapa baseou seu Lam-rim chen-mo. Nessa apresentação, ele deixa esse assunto um pouco mais claro, o que me deixou muito feliz. Ele diz que a base - onde o caminho começa - é a crença confiante nas Três Joias, é a confiança no valor da prática, essas coisas. É aí que começamos - em primeiro lugar, tendo o desejo de melhorar, depois tendo algum conhecimento do Dharma e alguma confiança de que o caminho será útil e válido. É aí que começamos. Essa é a base do caminho. Portanto, o professor espiritual é a raiz – de onde obtemos sustento. 

Em todo caso, os ensinamentos da bodhichitta são introduzidos em um nível muito avançado no lam-rim. Se quisermos praticar os vários métodos - e há dois métodos que são indicados para desenvolver o ideal de bodhichitta: a meditação de causa e efeito em sete partes e a de equalização e troca de nossas atitudes em relação a nós mesmos e aos outros - precisamos apreciar o fato de que temos que ter estabilidade nos ensinamentos e treinamentos dos níveis inicial e intermediário.   

Equanimidade 

A meditação de causa e efeito em sete partes é organizada de uma maneira interessante. A forma como os pavimentos de um edifício são numerados nos Estados Unidos é começando pelo andar número um. Bem, não é assim que se faz aqui em Seattle. Aqui se faz no estilo europeu, onde há um andar térreo e, acima dele, os andares numerados - andar número um, dois, três, etc. Os ensinamentos sobre causa e efeito em sete partes são organizados desta forma: temos um nível no chão que precede a etapa número um. Esse andar térreo é a equanimidade. 

A equanimidade de que estamos falando aqui é a mesma equanimidade que os chamados praticantes Hinayana desenvolvem, o que significa que é a mesma equanimidade dos níveis inicial e intermediário de motivação. Esse ponto precisa ser entendido e levado a sério. Qual é o objetivo desta prática de equanimidade? É superar a atração por algumas pessoas, repulsa ou aversão por outras e indiferença pelas demais. “Outras”, em primeiro lugar, não significa exclusivamente pessoas: estamos falando de todos os seres sencientes. 

Não sei se o termo “ser senciente” é muito bom. Prefiro “seres limitados” que, infelizmente, parece “seres deficientes” quando traduzido para outras línguas. Não é um termo fácil de traduzir. Existem dois termos aqui. Um é “semchen” (sems-can) e o outro é “luchen” (lus-can). “Semchen” é quem tem uma “sem” (sems), uma mente limitada. Um Buda não tem uma “sem”, uma mente limitada. Muitas vezes, as pessoas pensam nos budas como seres sencientes, mas os Budas não estão incluídos nesse grupo. Os seres com mentes limitadas são os que queremos ajudar a obter iluminação ou liberação. “Luchen” é um ser com um corpo limitado. Um buda não tem esse tipo de “lu” (lus), ou corpo. Existe uma palavra diferente para o corpo de um buda. 

Basicamente, o que queremos superar é o favoritismo – sentir-se atraído por uns, repelido por outros e indiferente aos demais. Isso inclui todos os seres limitados em todas as diferentes formas de vida. E, claro, nos leva ao problema de saber se outros reinos realmente existem, o que não é fácil. Talvez eu devesse falar algo sobre isso. Mas para concluir o raciocínio que eu queria apresentar, o contexto principal para obtermos equanimidade é superar as emoções perturbadoras em relação aos outros. Esse é o contexto principal para esse tipo de equanimidade. Existe outro tipo de equanimidade, que envolve igualar nossas atitudes em relação aos outros. Essa é a maneira Mahayana de desenvolver a equanimidade. Tem a ver com não termos qualquer tipo de favoritismo ao direcionar nosso amor e compaixão aos outros - não sentir que alguns nos são próximos e outros distantes. 

Mas, aqui, o foco está em superar nossas emoções perturbadoras em relação aos outros, o que significa que precisamos realmente enfatizar o nível intermediário de motivação - o desejo de nos livrarmos do samsara. Portanto, queremos nos livrar dessas emoções perturbadoras - mas voltarei a isso. 

Aceitação de Outros Reinos de Existência

Quero dizer apenas algumas palavras sobre esses diferentes reinos, pois acho que muitas pessoas têm dificuldade em acreditar que eles existem. A maneira que penso sobre isso - e não ouvi isso de meus professores ou outros; esta é apenas minha própria análise - é em termos de felicidade e infelicidade. É disso que estamos falando quando falamos sobre o amadurecimento do carma. O carma amadurece, entre outras coisas, em felicidade e infelicidade. Isso é o mais geral. Quando falamos sobre felicidade, estamos falando sobre felicidade samsárica, que não dura etc. Pode ser um sentimento físico de felicidade ou um sentimento mental, e pode acompanhar todo tipo de sensação. 

Quando olhamos para a amplitude da percepção sensorial, por exemplo, descobrimos que nós, seres humanos, por causa de nosso hardware limitado, nosso aparato corporal, só somos capazes de experimentar amplitudes limitadas. Considere o espectro visual: não conseguimos enxergar o ultravioleta, não conseguimos enxergar o infravermelho, não conseguimos enxergar no escuro. Alguns animais enxergam muito melhor do que nós no escuro. Os cães conseguem ouvir sons com frequências mais altas do que nós, e certamente conseguem detectar os cheiros muito melhor do que nós. Com base nessa linha de pensamento, podemos concluir que o fato de certas faixas do espectro de percepção sensorial não serem captadas pelo aparato humano não significa que elas não possam ser conhecidas pela atividade mental. 

Prazer e dor não são o mesmo que felicidade e infelicidade; são sensações físicas. Felicidade e infelicidade são fatores mentais, que podem acompanhar essas sensações. Normalmente, quando falamos sobre os diferentes reinos, falamos sobre o prazer e a dor que se vivencia neles - embora os principais resultados do carma sejam, na verdade, a felicidade e a infelicidade vivenciadas nesses reinos. No entanto, se olharmos para o prazer e a dor, podemos ver que o aparato humano, o corpo físico, só consegue vivenciar uma determinada quantidade de prazer e dor. Quando a dor se torna muito forte, desmaiamos; ficamos inconscientes. Talvez entremos em choque antes, e o corpo se desliga. 

É a mesma coisa com o prazer. Se o prazer for muito intenso, um mecanismo automático, quase involuntário, entra em ação para destruir essa felicidade, para acabar com ela. Isso pode ser ilustrado através do prazer sexual: corremos para ter o orgasmo, o que reduz o nível de intensidade do prazer - no caso dos homens, reduz muito. E temos o caso - adoro este exemplo - da coceira. Você já pensou sobre o que é uma coceira? Uma coceira é um prazer intenso. É isso. Não é dolorosa: é prazerosa. No entanto, é muito prazerosa; por isso, somos compelidos a coçar, a acabar com ela. 

Essa, a propósito, é a chave para lidar com erupções cutâneas crônicas, coceiras crônicas. Tive uma há alguns anos, que durou quatro ou cinco anos.  Meu pescoço e couro cabeludo coçavam intensamente. Às vezes ainda coçam. A única maneira de lidar com isso - porque nenhum médico conseguiu descobrir o que era e prescrever um tratamento - era relaxar e aproveitar o prazer da coceira. Era a única maneira, o que não era muito fácil de fazer. No entanto, essa é a natureza essencial de uma coceira: prazer. 

Dado que nosso aparato é limitado, conseguimos vivenciar apenas uma determinada faixa dentro do espectro de prazer e dor e, consequentemente, felicidade e infelicidade. Se nos sentirmos muito infelizes, nos matamos. De muitas maneiras, também nos matamos quando estamos muito felizes, porque tudo é totalmente enfadonho. Em todo caso, não há nenhuma razão lógica para que não exista uma base física que consiga vivenciar faixas maiores. A atividade mental de qualquer ser tem a possibilidade – estou falando da atividade mental em geral - de vivenciar toda a gama ou espectro de sensações às quais todos os diferentes tipos de aparatos sensoriais respondem e, portanto, toda a gama ou espectro de dor e prazer, e a felicidade e infelicidade associadas. Pensar dessa maneira me ajuda a me sentir um pouco mais confortável com a ideia de que essas outras formas de vida existem. 

Estamos falando de nossos próprios contínuos mentais, individuais, e o que eles são capazes de experimentar. Seria necessário um hardware apropriado, um corpo apropriado com sensores apropriados, para poder experimentar uma amplitude maior, de um lado ou de outro, dos vários espectros associados aos vários sentidos. Pensar assim, acho eu, pode ser útil para se sentir mais confortável com essas diferentes formas de vida. 

Acho que é muito injusto com a tradição reduzir essas diferentes formas de vida a estados psicológicos dentro do reino humano. Isso é totalmente injusto com a tradição. A partir dos ensinamentos sobre o carma, podemos dizer que existem alguns vestígios de vidas anteriores que tivemos em cada um dos diferentes reinos e, portanto, vemos pequenos traços deles nesta vida. Mas isso não equivale à totalidade dos ensinamentos sobre esses outros reinos. 

Acho que este ponto é particularmente relevante em nossa discussão sobre equanimidade, sobre compaixão, sobre querer ajudar todos os seres a alcançar a iluminação. Não queremos que nossa visão de todos os seres seja uma visão excludente. Estamos pensando em contínuos mentais, basicamente contínuos mentais individuais - que são finitos em número, mas dos quais há uma quantidade enorme - sem começo e sem fim. Eles são incontáveis em número, mas são finitos. Não é que novos contínuos estejam sendo criados. Se pensássemos assim, teríamos que entrar em todo o problema de quem os estaria criando, de onde estariam vindo, etc. Isso - o conceito de um criador - não é aceito no budismo. 

Desenvolvendo Renúncia

Portanto, estamos pensando em todos os seres - seres limitados com mentes limitadas, atividade mental limitada e corpos limitados sustentando essa atividade - e queremos desenvolver equanimidade em relação a eles. Existe um método padrão para isso. Não quero ir direto ao método, senão terminaremos em cinco minutos. Para que esse método funcione – ou seja, para nos livrarmos do apego, aversão ou indiferença em relação a qualquer ser - ele precisa, como eu disse, ser compreendido no contexto do nível intermediário de treinamento. O nível intermediário de treinamento enfatiza a renúncia. Então, o que é renúncia? 

A tradução literal da palavra "renúncia" é "determinação". É a palavra “nay-jung” (nges-'byung), passar a ter “certeza” (nges) - portanto, determinação. A que estamos determinados? Estamos determinados a nos livrar do samsara. Estamos determinados a obter a liberação e estamos determinados a sair do samsara. Portanto, existem duas direções aqui. Uma é de atingir algo, que é a liberação, e a outra é de eliminar algo, que é o samsara. 

Isso significa – colocando de uma forma desagradável - desistir de certas coisas. Mas não estamos falando em desistir de objetos, de coisas. Estamos falando em desistir da maneira como vivenciamos com as coisas. Afinal, é disso que fala o budismo – que o sofrimento existe devido à maneira como vivenciamos as coisas, e que existem causas para isso. Queremos conseguir vivenciar as coisas sem sofrimento, ou seja, sem criar as causas do sofrimento. Queremos vivenciar as coisas com compreensão, o que nos leva à compaixão, etc. 

Agora, isso não significa que as coisas que vivenciamos existem objetivamente lá fora, de forma totalmente independente. Mas, novamente, como eu talvez já tenha mencionado, estamos falando sobre como estabelecemos que algo existe, e não como algo existe de uma maneira geral. Mas vamos deixar isso de lado por enquanto.  Como vivenciamos as coisas? É disso que queremos desistir, de vivenciar as coisas com apego, aversão e ignorância. Essas são as três atitudes ou emoções venenosas. 

Quando temos apego, por exemplo, não queremos abrir mão do que temos. Quando temos desejo, que é a outra face dessa emoção perturbadora – e ele é definido de diferentes formas em diferentes textos indianos, considerando esse ponto de vista - queremos obter o que não temos. O que é importante aqui é que essas emoções ou atitudes venenosas nos levam a vivenciar as coisas com sofrimento - elas criam problemas. 

Com a renúncia, como com qualquer outra motivação, existe um objetivo e existe um componente emocional. O objetivo é a liberação e o componente emocional é a repulsa. Estamos totalmente fartos desta situação de sofrimento que se manifesta repetidamente. Não estou falando em ficarmos aborrecidos ou zangados com isso: “Eu sou um idiota por ser assim”. Esse não é um estado mental que nos leva a sair do sofrimento, pois continua sendo um estado perturbador - ficarmos chateados conosco por sermos tão tolos. Sentimos apenas uma repulsa.

Acho que “repulsa” é uma boa palavra. Mas acho que também há outra conotação aqui, que é a de estarmos enfadados. Estamos tão enfadados e enfastiados com esta situação - “Isso é patético!” - que finalmente decidimos fazer algo a respeito. Dada a minha própria experiência de superar certas coisas com as quais estive muito envolvido na minha juventude, acho que é assim que realmente conseguimos parar de beber ou fumar ou o que seja. "Isto é ridículo! Isto é patético!” Não é “Eu quero ser o super policial” ou “Estou com raiva de mim mesmo”. Isso não funciona. É: “isso não é mais interessante”. Quando é chato e não é mais interessante, ficamos fartos. Já deu, então queremos parar, e assim temos uma chance maior de conseguir parar. 

Portanto, o estado mental da renúncia não deve ser perturbador. Mas isso não é muito fácil. Frequentemente, associamos a renúncia ao sentimento de culpa e à necessidade de nos privar. Pensamos: “Eu tenho que me policiar” e assim por diante. Isso não é renúncia. Isso é um esforço neurótico de impedir algo. Isso é que tem que ser abandonado. É disso que temos que estar cansados – de ser polícia. Precisamos desenvolver o sentimento de estarmos fartos de sentir atração por uns, aversão por outros e indiferença pelos demais, e de estarmos fartos de todos os problemas que vêm disso. Precisamos reconhecer os problemas que vêm disso, o sofrimento que vem disso. Caso contrário, por que desistiríamos? Por que iríamos querer sair disso e desenvolver equanimidade em relação a todos os seres? 

Não queremos ter todos os problemas que surgem quando estamos muito apegados a alguém ou muito chateados com alguém ou totalmente indiferentes a alguém ... não queremos lidar com o ressentimento e todas as coisas que acontecem. Tenho certeza de que todos já experimentamos os problemas que surgem de cada uma dessas três atitudes em relação aos outros. 

Os Três Treinamentos Superiores

O treinamento no nível intermediário de prática nos mostra como superar as três atitudes venenosas. Portanto, antes de passar para o nível avançado com a bodhichitta, precisamos ter um pouco de treinamento no nível intermediário, que envolve os três treinamentos superiores: disciplina ética, concentração e o que chamo de "consciência discriminativa" (sabedoria). 

Não gosto do termo "sabedoria". Ele é usado por muitos tradutores para traduzir diversos termos diferentes do budismo, e nenhum desses termos significam a mesma coisa.  “Sabedoria”, como tradução, meio que mistura tudo e torna o termo trivial. Neste caso, é “consciência discriminativa”, ou seja, a consciência ou compreensão que discrimina entre o que é correto e o que é incorreto, entre o que é realidade e o que é fantasia, o que é útil e o que é prejudicial. Existem muitas áreas diferentes nas quais ela pode focar. 

A consciência discriminativa – em sua definição - é o fator mental que adiciona certeza à distinção. “Distinguir” é a forma que prefiro traduzir o fator mental que muitas vezes é chamado de “reconhecer”. Não é reconhecer, de forma alguma. Reconhecer implica em já conhecer o objeto, do qual agora estamos nos lembrando, e aplicar o nome ou conceito que já aplicamos a ele. Esse não é o fator mental de que estamos falando aqui. É distinguir. Nós distinguimos um certo traço característico – distinguimos do que está ao fundo, basicamente. 

Se eu olhar para a forma colorida do rosto de uma pessoa – e isso é tudo o que eu vejo, na verdade: uma forma colorida - eu tenho que conseguir distingui-la das formas coloridas da parede e das pessoas ao redor, para poder lidar de alguma forma com a informação que está chegando. É disso que se trata a distinção. Distinguimos o objeto do que está ao fundo. E a consciência discriminativa adiciona certeza: "É isto e não aquilo." Portanto, discriminamos entre o que é útil e o que é prejudicial, o que é correto e o que é incorreto, etc. 

É sempre importante voltar às definições; caso contrário, não entenderemos realmente a que esses termos se referem. E teremos todo tipo de ideia enganosa, baseadas simplesmente, em nosso caso, nas palavras em inglês que são usadas para traduzir esses termos. Os tibetanos têm o mesmo problema. Se eles não souberem a definição, eles também podem ficar confusos sobre o que um termo significa. 

A importância dos três treinamentos superiores - disciplina ética, concentração e consciência discriminativa - é geralmente explicada através de uma metáfora: para cortar uma raiz, precisamos de um machado afiado - isso é a consciência discriminativa; para realmente conseguir cortar, precisamos acertar o alvo sempre - isso é concentração; e para pegar no machado, precisamos de força - isso é disciplina ética. Precisamos das três. Essa é a metáfora usada. E ela é boa. 

Precisamos de disciplina para não nos permitir cair sob a influência da atração, repulsa e indiferença. Por exemplo, quando estamos com um grupo de pessoas e nosso melhor amigo, ou um ente querido, entra na sala, temos que ter disciplina para não sair correndo até essa pessoa e ignorar as demais. Tive um exemplo muito bom disso. Eu estava traduzindo para o antigo Serkong Rinpoche, em algum lugar do Ocidente, e uma de minhas primas, que por acaso morava na cidade e que eu não via há muitos e muitos anos, chegou atrasada. Lá estava eu, traduzindo. Eu não podia me levantar e ir cumprimentá-la ou algo assim - embora ela tenha ficado um pouco chateada por eu não ter me levantado e ido até ela. Nesse tipo de situação, precisamos de disciplina para não nos levantarmos e, em seguida, concentração para permanecermos focados no que estamos fazendo. Eu precisava me concentrar na tradução e não permitir que minha mente vagasse até essa prima que eu não via há vários anos. 

Essa disciplina é muito necessária para a equanimidade. Precisamos ter autocontrole para pelo menos não ignorar os outros. Isso é algo que surge o tempo todo, não é? É algo que costumo vivenciar: as pessoas vêm me fazer perguntas e eu preciso ir ao banheiro, ou preciso passar para a próxima, ou preciso falar com outras pessoas, ou o que for. O que surge é a tendência de ignorar a pessoa, de abreviá-la. Podemos até ficar um pouco aborrecidos, especialmente se ela ficar falando sem parar, ao invés de ir direto ao ponto. Portanto, precisamos, claro, de paciência. Porém, o mais importante em nossa discussão aqui é a disciplina de não ignorar essa pessoa, e não olhar para o relógio e dizer: “Por favor. Saia” ou usar palavras ainda mais fortes - palavras que podemos dizer em nossas cabeças. 

Portanto, precisamos ter disciplina e concentração, e dar a mesma atenção a todos, estejamos ou não interessados no que eles dizem. Afinal, eles estão fazendo uma pergunta. Para eles, é importante. Caso contrário, por que estariam perguntando? Talvez estejam querendo apenas se exibir, mas isso é outra coisa. Qualquer que seja o caso, precisamos levar todos a sério. Isso, acho eu, é o que essa equanimidade quer dizer - que antes de pensar em ter amor e compaixão por todos, temos que levá-los a sério. 

Esta é uma atitude que enfatizo muito no treinamento de sensibilidade que desenvolvi, Desenvolvendo uma Sensibilidade Equilibrada. “Você é um ser humano” - estou falando aqui de seres humanos, mas poderíamos incluir os cachorros - “e você tem sentimentos assim como eu. Assim como a maneira como você me trata e fala comigo afeta meus sentimentos, a maneira como eu te trato e falo contigo afeta os teus sentimentos.” Portanto, "Assim como eu gostaria que você me respeitasse como ser humano, respeitasse meus sentimentos e os levasse a sério, eu gostaria de lhe respeitar e respeitar seus sentimentos, me importar com você e não o ferir". Desenvolvemos o que chamo de "atitude de cuidado". 

Essa é a base aqui: levar todos igualmente a sério. Então poderemos desenvolver amor, compaixão e essas outras coisas. Para isso, é preciso que tenhamos equanimidade em relação a todos. 

Superando a Atração, Repulsa e Indiferença

O que queremos superar, afinal, com a equanimidade? Queremos superar a atração, a repulsa e a indiferença, que se baseiam em desejo e apego, raiva e hostilidade ou então ignorância. É por causa da ignorância que ignoramos os outros. 

Novamente, temos que olhar para as definições. 

O que é apego ou desejo? Com o desejo, lembrem-se, queremos o que não temos. Com o apego, não queremos abrir mão do que temos. Com ganância, queremos mais. Tudo isso são aspectos dessa emoção perturbadora. O apego se baseia em superestimar as qualidades de alguma coisa. Aqui, no caso de uma pessoa, estamos superestimando suas qualidades e a identificando exclusivamente com essas qualidades. Elas podem ou não estar lá, mas o fato é que exageramos essas qualidades ou talvez adicionamos mais qualidades do que a pessoa realmente possui, e ignoramos totalmente suas características negativas. Então, com um forte senso de "eu", pensamos: "Eu quero ter isso" e " Eu não quero perdê-la". 

A raiva ou repulsa enfatiza e exagera as características negativas. Então pensamos: “Eu quero me livrar disso” ou “Eu não quero isso”.  Novamente, há um grande e forte “eu” aqui. 

Com ignorância, e a indiferença que vêm da ignorância, basicamente não olhamos para as qualidades da outra pessoa, por algum motivo. Ou estamos muito ocupados ou não nos importamos ou não estamos interessados. Ou podemos ter medo. Essa é outra razão para ignorarmos os outros. Podemos ter medo de cometer um erro ou medo de que a pessoa nos faça mal ou medo de nos decepcionar. Pode haver muitas variações para o medo. E ignoramos o fato de que “ela é um ser humano; ela tem sentimentos, assim como eu, e tem qualidades e defeitos”, e assim por diante, o que nos leva à indiferença. 

Portanto, temos atração, repulsão e indiferença. A fim de superar essas coisas, precisamos ir aos ensinamentos sobre consciência discriminativa do escopo intermediário. Só para fazer um exercício de equanimidade - imagine um amigo, um inimigo e um estranho, pense em como, em vidas anteriores, o amigo nos feriu, e como, em vidas anteriores, o inimigo nos ajudou, e como, em vidas anteriores, o estranho também nos ajudou - é muito bom, mas não adianta muito se não tivermos um nível mais profundo de compreensão do que isso realmente significa e não estivermos convencidos da lógica, de por que isso pode nos levar a um estado de equanimidade. 

Por favor, não banalize a equanimidade. É extremamente difícil ter equanimidade. É muito mais fácil pular essa etapa e desenvolver apenas amor e compaixão pelas pessoas de quem gostamos ou por algum “pobre sofredor” amorfo e pensar: “Eu irei ajudá-los”. Mas será que estamos realmente dispostos a lavar as feridas de um leproso, por exemplo? Queremos mesmo sujar as mãos ajudando alguém? “Vou dar algum dinheiro”, “Vou pagar outra pessoa para fazer isso”, mas “Será que eu realmente quero fazer isso?” 

Não é tão fácil, é? Quando alguém visita uma das organizações da Madre Teresa e vê o que elas realmente fazem, e as pessoas com quem trabalham, começa a reavaliar seu próprio nível de compaixão, amor e compromisso, e sua disposição de realmente ajudar os outros. 

Contínuos Mentais

Mas, voltemos ao contínuo mental - essa é a chave. O contínuo mental não tem começo nem fim. Isso não é muito fácil de entender, e também não é fácil confiar que é assim. No entanto, há muitas razões para isso se considerarmos como causa e efeito funcionam. É possível que uma causa surja do nada, uma causa que de repente dá início a algo, ou será que sempre tem que haver uma causa anterior? Em outras palavras, será que algo pode vir do nada? E será que algo pode virar absolutamente nada, sem provocar nenhum tipo de efeito? Do ponto de vista budista, isso é impossível. 

Portanto, temos esses contínuos mentais, sem começo, de momentos de experiência acontecendo um após o outro. Podemos olhar para uma pessoa - esta é uma pessoa, um indivíduo. E surgem, no contínuo mental, vários tipos de impulsos, com base em emoções perturbadoras que, por sua vez, surgem da inconsciência, da ignorância, da confusão, etc. Esses vários impulsos podem levar a vários tipos de comportamento impulsivo. Ou não. Podemos não agir de acordo com todos os impulsos que surgem. Por exemplo, podemos ter o impulso de gritar com alguém, mas não seguir esse impulso. O carma é esse impulso e, na maioria dos casos, o seguimos. 

Agir de acordo com esses impulsos traz consequências. Desenvolvemos determinados hábitos e tendências, bem como potenciais positivos e negativos (ou força cármica). Os potenciais positivos e negativos são normalmente traduzidos como “mérito” e “pecado”, termos que, conforme mencionei, sugerem conceitos irrelevantes e enganosos que vêm do Cristianismo. É a força positiva e a força negativa que irão, nas condições adequadas, gerar a experiência de outras coisas nesse contínuo mental. 

Ampliando a Base de Imputação

Temos contínuos mentais. E quanto ao “eu”, a pessoa que está envolvida aqui? Em cada um desses contínuos mentais individuais existe um “eu” imputado. O “eu” é uma imputação no contínuo mental. Podemos usar um exemplo muito, muito simples: um filme. Um filme tem um momento após outro, um momento após outro momento. Não vemos todo o filme Guerra nas Estrelas em um único momento. Guerra nas Estrelas é uma imputação em todo um filme, em toda uma sequência de fotogramas. Ou um ano - um ano é uma imputação em dias e momentos. Um ano não acontece de uma vez. Assim, o “eu” é uma imputação não apenas em um momento, mas em toda uma continuidade de momentos. É como o nome de um filme.

O que, então, é esse “eu”? Precisamos entender que esse “eu” não é algo estático, que não muda e não é afetado por nada. Não é algo sem partes; não é um monólito, que não tem aspectos diferentes. Também não é algo separado do contínuo mental, algo que poderia voar e ir para outro contínuo mental ou algo assim. Este tipo ou nível de “eu” é impossível. 

E esse “eu” ou pessoa - olhando para o próximo nível mais sutil – não é algo conhecível por si só. Em outras palavras, não podemos conhecer uma pessoa sem sabermos algo sobre a base de imputação da pessoa que aparece. Dizemos coisas como: “Eu quero me conhecer”. Conhecer o quê? Na verdade, é mais fácil entender considerando outras pessoas: “Eu conheço a Bárbara”. O que eu conheço? "Estou vendo Bárbara." O que estou vendo? Não podemos ver a Bárbara sem ver uma forma física. É com base em uma forma física que vemos a Bárbara: não vemos apenas a “Bárbara”. "Eu conheço a Bárbara." Conheço o quê? "Eu sei o nome da Bárbara." Nesse caso, conheço a Bárbara associada a um nome. “Eu conheço a personalidade”, “Eu sei como ela é”. Não conseguimos pensar na Bárbara em si - ou seja, sem algum conhecimento sobre a base na qual ela é imputada. Uma pessoa não pode ser conhecida por si só, não pode ser conhecida independentemente de outras coisas. 

Criamos muito sofrimento para nós ao pensarmos em termos de um "eu" auto-conhecível. O exemplo que adoro usar é: “Quero que alguém me ame pelo que sou, não pela minha aparência, nem pelo meu corpo, nem pela minha riqueza, nem pelo meu conhecimento, nem por qualquer uma dessas coisas. Eu quero que ele apenas me ame.” Que diabos significa isso? Como alguém pode nos amar separadamente da base de imputação do nosso "eu"? 

Esse é o eu sutil e impossível de uma pessoa. Isso nos leva a um entendimento mais Prasangika-Madhyamaka – de que existe uma relação íntima entre o “eu” e a base de imputação. A base da imputação é o contínuo de atividade mental momento a momento - sem começo, sem fim. O importante aqui, pois é um obstáculo para a equanimidade, é que identificamos cada pessoa apenas com o que vemos no momento, o que vemos neste momento, ou nesta fase –pode não ser necessariamente apenas um momento. Vemos os outros como amigos, inimigos ou estranhos ou - indo além desses rótulos - como um ser humano ou um mosquito. Mas isso é apenas uma fase do indivíduo, do contínuo mental. 

O que está acontecendo aqui é que estamos limitando a base de imputação da pessoa. Não estamos olhando para toda a base. E mesmo dentro dessa base limitada do contínuo mental, olhamos apenas para um determinado período de tempo, curto, e limitamos ainda mais a base olhando apenas para as qualidades, exagerando-as e talvez adicionando algumas que sequer existem, ou olhando apenas para os defeitos, exagerando-os e talvez adicionando alguns que não existem, ou ignorando completamente as qualidades, e então rotulando a pessoa nessas bases ainda mais limitadas. 

A chave para a equanimidade é a compreensão. Não se trata de nos impor algum tipo de disciplina: “Vou ficar sentado aqui. Não vou até lá cumprimentar minha prima, ignorando as outras pessoas.” Além disso, não é suficiente pensar: “Não vou fazer isso, pois são todos seres humanos; querem ser felizes e não querem ser infelizes”. Na verdade, isso não é profundo o suficiente. Pode funcionar, mas precisamos de algo um pouco mais profundo para realmente entender o que está acontecendo e fazer com que essa meditação da equanimidade funcione. Por que? Porque envolve trazer à tona as vidas passadas e, portanto, bases diferentes sobre as quais imputar a pessoa - por exemplo: “Este amigo deve ter me ferido em uma vida passada.” Essa é uma forma de ampliar a base de imputação. 

Se entendermos a ampliação da base em termos de rotulagem e base de rotulagem ou base de imputação e vacuidade da pessoa - que ela não existe separadamente da base ou não é conhecível separadamente da base – fica um pouco mais fácil trabalhar com essa equanimidade e ver que é algo razoável de se desenvolver. Não é algo sobre-humano, budista. Na verdade, é o correto - embora precisemos respeitar a verdade convencional.   

Respeitando a verdade convencional 

É muito importante ter essa compreensão da vacuidade - “OK, vou rotular cada pessoa na totalidade de seu contínuo mental, em vez de apenas em pequenas partes dele. Vou enxergar a todos em termos de seus contínuos mentais sem começo nem fim” - para não perder de vista o nível convencional: “Este indivíduo passou a ser meu bebê agora, e eu preciso prestar mais atenção ao meu bebê do que às formigas que estão na minha cozinha.” Não perca de vista a verdade convencional de onde a pessoa está agora, no que diz respeito à sua relação com ela. 

Se ignorarmos o nível convencional, a equanimidade pode nos levar a ferir as pessoas que nos são mais próximas. Precisamos estar realmente atentos a isso. Eu conheço pessoas que têm filhos, mas são muito engajadas socialmente, passam todo o tempo ajudando os pobres ou fazendo alguma outra coisa em que estão interessadas, e ignoram os filhos. Seus filhos se sentem ignorados. Eles dizem: "Minha mãe" ou "meu pai está aí ajudando essas outras pessoas - mas e eu?" 

É importante não ignorar ou descartar a verdade convencional. É por isso que nos ensinamentos está escrito que, claro, devemos desenvolver equanimidade em relação a todos os seres e a vontade de ajudar igualmente a todos - e a equanimidade de que estamos falando aqui tem a ver com não ficar emocionalmente chateado, ou ser atraído por alguns, como se por um ímã, e repelido por outros (e o ímã não funciona com pedras ou plantas; portanto, não somos atraídos nem repelidos - não há emoção perturbadora) - mas, ainda assim, ajudamos aqueles a quem conseguimos ajudar melhor e com quem temos conexões mais fortes. 

Se alguém estiver totalmente fechado para nós, se não estiver receptivo, não haverá muito o que fazer. Se o próprio Buda (não tinha o que fazer em tal situação), o que nós haveríamos de fazer? É sempre muito preocupante pensar no exemplo de Buda. “Nem todo mundo gostava dele, então por que eu deveria esperar que todos gostassem de mim?” Essa é uma boa pergunta. É realmente sensato pensar em quando as pessoas não gostam de nós. Estamos tentando tanto ser bodhisattvas, e eles pensando que somos idiotas e nos criticando. 

Equanimidade com Base na Razão

A chave para desenvolver essa equanimidade é ter algum tipo de compreensão. Nos textos, encontramos duas maneiras de desenvolvê-la. A primeira é o lado do método. Com ele, desenvolvemos primeiro o amor e a compaixão. E, com base nisso, desenvolvemos a aspiração: “Quero me tornar um Buda para poder ajudar a todos”, o que leva a: “Eu preciso compreender a vacuidade para fazer isso. Eu preciso me tornar um Buda.” Esse é um dos métodos. No outro método, que é para os que têm uma tendência mais intelectual, a compreensão da vacuidade vem em primeiro lugar. E, com base nessa compreensão, obviamente se tem compaixão e amor por todos. 

Sua Santidade sempre diz que esta segunda maneira de desenvolver a equanimidade é mais estável. Embora possamos prosseguir em um nível emocional e ter sucesso, fica um pouco instável. Podemos nos desequilibrar emocionalmente. Quando temos pelo menos um conhecimento básico, ele ajuda muito a nos aterrar. E, como eu disse, a chave é o contínuo mental - não perder de vista todo o contínuo mental. 

Isso se conecta muito bem com a renúncia. Estamos pensando em nós quando pensamos em termos de contínuos mentais sem começo e sem fim. Como é enfadonho que nossos contínuos mentais tenham sempre altos e baixos, a felicidade e infelicidade mundana, que nunca nos satisfaz e com altos e baixos, altos e baixos. Queremos nos livrar do sofrimento onipresente que perpetua a base para esses altos e baixos - o renascimento samsárico. 

Se pensarmos em nossos próprios contínuos mentais dessa maneira e estivermos determinados a nos libertar desse filme horrível, que se repete continuamente, pensaremos assim também no que diz respeito aos outros. Portanto, o amor, a compaixão, etc., que desenvolvemos pelos outros, e o desejo de levá-los a liberação, devem estar baseados em vê-los em termos de todo o seu contínuo mental, todo o contínuo mental individual. Portanto, com equanimidade, começamos a pensar nos outros como contínuos mentais, em vez de identificá-los apenas com o que estamos vendo.    

Perguntas

Talvez vocês tenham algumas perguntas antes de entrarmos no método em si – que muitos de vocês já devem conhecer. Ele está amplamente disponível em livros.

Você pode voltar e descrever brevemente o método menos estável?

O método menos estável para desenvolver amor e compaixão é aquele que se baseia apenas na emoção. Ele envolve passar por toda a sequência de “todo mundo foi minha mãe; todos foram tão gentis comigo”, etc., o que, na verdade, não revela com muita força essa equanimidade. É muito difícil, em um nível emocional, dizer: “Bem, não vou me deixar atrair por uns e ser repelido por outros, nem vou ignorar os demais”, e decidir não se comportar dessa maneira. Fazer isso puramente em termos emocionais é muito difícil. Sem que haja compreensão, não vejo outra maneira de fazer isso a não ser como um policial, usando de disciplina. 

É por isso, eu acho, que essa base é instável para desenvolver o que chamamos de grande amor e grande compaixão, ou seja, amor e compaixão direcionados a todos, independente da atitude deles atualmente. (Por outro lado,) se pensarmos em termos do contínuo mental, entenderemos que eles já fizeram de tudo conosco e por nós. Então, qual é o problema com o que fizeram recentemente? 

Mas é com uma base instável de equanimidade que a pessoa prossegue emocionalmente com “todo mundo já foi minha mãe”, etc. É difícil realmente acreditar quando não pensamos em termos do contínuo mental e de que não existe um começo. 

Podemos, no entanto, fazer uma versão Dharma-Light disso: “Todos poderiam me levar para casa, me dar uma refeição e cuidar de mim como uma mãe”, pensando nos outros apenas em termos desta vida. Mas isso é muito difícil de aplicar ao mosquito ou à formiga. Com essa versão, tendemos a limitar nosso foco apenas a pessoas. O que é muito limitado. “Quero que todos sejam felizes, e não infelizes” tende a focar apenas naqueles de quem gostamos. Talvez possamos ter uma compreensão maior, mas, ainda assim, não é estável. Não é muito estável, pois para realmente ter grande amor e compaixão - não estamos nem falando em bodhichitta ainda - temos que direcioná-los a todos, o que significa não ter atração, repulsa ou indiferença. 

Isso, é claro, nos leva a todo o material do lojong, o treinamento de atitude - não esperar nada em troca, não esperar um agradecimento. Se alguém, como o meu amado filho, que tanto ajudei, me ignorar e me tratar mal, vou considerá-lo um professor. Encontramos todas essas coisas nas Trinta e Sete Práticas do Bodhisattva e no lojong, o material de treinamento de atitude. Isso é coisa séria. Essas coisas acontecem na vida real: ajudamos as pessoas e elas não apreciam nossa ajuda; elas nos ignoram. Esperamos pelo menos algum tipo de agradecimento, de reconhecimento ... " seja bondoso comigo, em retribuição". Há uma emoção perturbadora por trás disso. 

Esse tipo de coisa mina nossa compaixão, nosso desejo de ajudar os outros. Começamos a ajudar para nos sentirmos bem ou úteis, para sentir que nossas vidas têm sentido. Nos tornamos quase que – perdoem-me o exemplo – um vampiro, em relação aos outros, extraindo nosso senso de valor do fato de os ajudar. Isso é coisa de vampiro. É uma sutil exploração. Novamente, tudo se resume à compreensão da vacuidade. “O que estabelece minha existência?” “Existo porque sou importante para as outras pessoas? É isso que me faz existir? É isso que estabelece minha existência? Consigo ajudar outras pessoas; portanto, existo?” Pense nisso. 

Muitos idosos morrem de irrelevância. Isso foi documentado. Se suas vidas são irrelevantes e ninguém os visita na casa de repouso - é apenas um grande nada que acontece (na vida deles), e tudo o que eles têm para fazer é assistir televisão - eles morrem de irrelevância. Não têm nada. Esta é a falácia: “O que me faz existir é o fato de eu ser relevante para os outros, importante para os outros e que os outros se importam comigo”. Claro que, biologicamente, isso é necessário, mas me desculpe, biologia é samsara. Do um ponto de vista samsárico, é verdade que precisamos de atenção - particularmente os bebês e idosos - e precisamos de algum tipo de interação com os outros. Dependemos totalmente disso. No entanto, isso não estabelece nossa existência. 

Esses são pontos muito profundos para se pensar, muito profundos. Por isso - voltando ao que eu mencionava - é incorreto falar de modos impossíveis de existir como se fossem (realmente) modos de existir. Essa não é uma tradução correta. O termo se refere a modos de se estabelecer ou provar a existência. 

O que estabelece que o amor existe? Há todo um espectro de emoções que surgem não apenas no meu contínuo mental, mas no contínuo mental de todas as pessoas. Nesse vasto mar de emoções, existe uma caixa encapsulada em plástico que é o amor? - eu sinto uma “coisa”, e você também sente, e eu tenho que gerá-la ou algo assim? Não. O que estabelece que o amor existe? O fato de que a palavra ou conceito “amor” existe. Alguém inventou a palavra a partir de sons sem sentido e criou uma definição para ela. Isso estabelece que o amor existe, e nada mais; é apenas uma convenção. Porém, isso não quer dizer que não existe tal coisa; essa convenção refere-se a alguma coisa. Mas, não há nada no espectro emocional que corresponda a essa palavra. Se houvesse algo lá que correspondesse à palavra, seria uma caixa. Nada existe dessa maneira. A caixa “amor” não estabelece que o amor existe, pois não existe tal coisa. Isso é impossível. 

Isso é rotulagem mental, a visão Prasangika. O que estabelece que as coisas existem? Apenas aquilo a que as palavras se referem com base em alguma base de rotulagem. Não há nenhuma “coisa” de referência, nenhuma coisa em uma caixa, no objeto em si, que corresponda à palavra. Isso, em poucas palavras, é Prasangika, Gelug Prasangika. As outras tradições tibetanas definem Prasangika de maneiras diferentes. Precisamos estar cientes disso. Tsongkhapa foi um reformador muito radical. Ele mudou e modificou a compreensão de quase tudo o que veio antes. Ele foi muito revolucionário.    

Acho que, conforme me esforço para ter mais equanimidade, fico meio preguiçoso. Quando tento pensar em todos como iguais, penso: “OK, não preciso me esforçar para fazer parte das vidas deles, pois posso vê-los em todas as possibilidades do futuro em suas próprias vidas”. Onde isso me coloca na escala da responsabilidade social e em relação a grupos como o Buddhist Peace Fellowship, que estão fazendo coisas concretas para ajudar os outros, mas não estão necessariamente pensando no seu entorno em termos de equanimidade?

Se entendi corretamente, sua pergunta é: ao tentarmos desenvolver equanimidade, isso de alguma forma diminui nossa responsabilidade social, pois sentimos que podemos ser qualquer coisa para qualquer pessoa e elas podem ser qualquer coisa para nós?
Minha resposta volta ao que eu dizia: não devemos perder de vista a verdade convencional de onde todos estão agora e do que podemos fazer agora. Há uma diferença entre querer ajudar a todos igualmente, com base na equanimidade, em considerarmos todos iguais - que é a equanimidade Mahayana - e o que estamos focando aqui, que é a equanimidade de não sermos emocionalmente perturbados por causa da atração, repulsa e indiferença para com os outros. Esse é o foco aqui. Mesmo assim, respeitamos a verdade convencional. Nos perguntamos: “O que posso fazer?” “Com quem tenho conexão?” “Quem é receptivo?” "Quem está aberto a mim?" “Onde posso dar a melhor contribuição?” Então contribuímos. 

Recebi esse conselho pessoalmente de Sua Santidade o Dalai Lama. Quando eu disse: “Estou envolvido com muitos projetos diferentes e muitas coisas diferentes. O que devo fazer?" Ele disse: “Olhe para ver o que você pode fazer e quase ninguém está fazendo, no que você é realmente bom, e onde há necessidade disso, então faça isso. As outras coisas, você pode faz um pouco. Mas foque no que você pode dar uma contribuição rara e no que você é bom em fazer.” Isso é respeitar a verdade convencional. Vemos quem está receptivo a nós. 

Se estivermos em posição de ajudar outras pessoas, muitas podem nos procurar em busca de ajuda. Como escolher com base na equanimidade? Esse é o desafio da equanimidade. E a equanimidade é livre de emoções perturbadoras, o que significa que não ficamos chateados quando recebemos trinta e-mails perguntando: "Por favor, explique isso ou aquilo para mim", o que exigiria cinco páginas de explicação – e, quando nosso amigo mais próximo envia um e-mail, estamos dispostos a sentar, entrar em uma sala de bate-papo e escrever um monte para essa pessoa. É aí que essa equanimidade é aplicada. 

(No que diz respeito aos demais e-mails,) vemos onde podemos ajudar melhor, qual pessoa é receptiva, o que podemos fazer e damos uma resposta. Isso é o que Sua Santidade disse. Podemos dar-lhes uma pequena resposta e encaminhá-los para outras fontes. Se não houver outras fontes, damos mais atenção à resposta. Ao mesmo tempo, não ignoramos nossos amigos íntimos que também desejam nossa atenção. Torna-se um grande ato de equilíbrio. Não é fácil ser um aspirante a bodisatva e querer ajudar a todos. Temos limitações de tempo, limitações de energia. É por isso que queremos nos tornar Budas. 

Esta é a maior barreira: o fato de que estou limitado agora. Tenho um hardware limitado. Eu fico cansado, estou envelhecendo, a memória está indo embora, a energia está indo embora, a saúde está indo embora. Que chato! Além disso, demorou muito para eu chegar a este estágio de poder ajudar no nível em que estou ajudando. Não quero voltar até o ponto de partida e começar de novo. E depois, novamente, o jogo acabar - de novo. Quando chegamos ao ponto em que temos todas as habilidades necessárias para fazer algum tipo de contribuição eficaz, temos que começar tudo de novo. Isso é muuuuito chato, não é? É disso que queremos nos livrar. 

É disso que queremos nos livrar. Não é apenas das manifestações que vêm com isso: queremos nos livrar da base para elas. E isso não é fácil - é o que eu estava tentando dizer antes - pois somos apegados aos nossos amigos e apegados ao nosso conforto, o que significa que rejeitamos as pessoas que fazem pedidos irritantes e coisas do gênero. E ficamos chateados quando estamos muito ocupados; ficamos estressados. É horrível. É isso que temos que desenvolver: um sentimento de “isso é horrível” - mesmo antes de desenvolvermos equanimidade. 

É isso que eu estou dizendo. Se pularmos imediatamente para “Não estou pensando apenas em mim” e “Aqui estão os ensinamentos avançados. Eu sou avançado” e “Vamos todos sentar e meditar sobre o amor e a compaixão” - porque isso nos faz sentir bem - nossa equanimidade não será estável. Pode ajudar um pouco, mas não será estável. Queremos algo estável - a menos que estejamos interessados apenas em beber o Dharma-Light. Dharma-Light é bom, se for isso que gostamos de beber, mas reconheça que é Dharma-Light. 

A Meditação da Equanimidade 

A meditação é pensar em três pessoas. Vamos nos limitar a seres humanos. Não vamos pensar na barata. Esse seria um nível muito mais radical de meditação da equanimidade, realmente radical. 

Primeiro, pensamos em alguém de quem gostamos muito, muito mesmo. Se essa pessoa entrasse na sala, iríamos querer correr até ela, abraçá-la e beijá-la, dar-lhe toda a nossa atenção e ignorar todos as outras pessoas. Gostaríamos de simplesmente dizer "Desculpa!" (aos outros) e ir ter com essa pessoa. 

Então pensamos em outra pessoa que, se entrasse na sala, nos faria querer dizer: "Oh, não!" - alguém que realmente gostaríamos de evitar, por um ou outro motivo, ou que achamos muito irritante. 

Depois pensamos em alguém totalmente desconhecido. Normalmente, pegamos fotos de pessoas em uma revista – mas não de uma modelo, toda produzida. Escolhemos uma pessoa qualquer. Pode ser alguém na rua, a pessoa que arrecada os ingressos no cinema - ou seja, alguém que nem consideramos uma pessoa. Aqui, neste país, todos são amigáveis e conversam uns com os outros, mesmo que sejam totalmente estranhos. Mas na Alemanha, onde moro, as pessoas não fazem isso. Em todo caso, podemos imaginar alguém que ignoraríamos totalmente. 

Existem duas situações. Uma é quando pensamos nas pessoas. A outra é quando realmente interagimos com ela - por exemplo, quando alguém realmente irritante, como um operador de telemarketing, nos liga. Qual é a diferença em nossa atitude em relação ao operador de telemarketing e em relação ao nosso melhor amigo quando ele liga? Esse é um bom exemplo. O operador de telemarketing é alguém que foi nossa mãe em uma vida anterior e que quer ser feliz e não quer ser infeliz e que não quer que respondamos com um palavrão muito forte e desliguemos o telefone? Como ele se sentem? 

Pensamos em cada uma dessas pessoas individualmente, uma por uma, depois de escolhê-las. Podemos olhar uma foto se for mais fácil. Ou, podemos apenas pensar nelas, visualizá-las, o que seja. 

Quando focamos na pessoa de quem gostamos e por quem nos sentimos atraídos, permitimos que surja aquele sentimento de forte atração. “Você é uma pessoa fantástica e eu realmente gostaria de estar com você.” Queremos encontrá-la a ela e estar com ela. Não queremos perdê-la. Então, paramos por um momento e nos perguntamos: “Por que me sinto assim? É porque ela foi boa comigo?” ou “Porque me sinto bem quando estou com ela?” ou “Porque ela me dá atenção” ou “Porque me dá isso e aquilo?”. Quais são os motivos? 

Isso é o que eu estava dizendo antes sobre a base da rotulagem - que rotulamos a pessoa nessas coisas. Poderíamos avaliar se essas coisas estão corretas ou incorretas. Mas, obviamente, há uma variante aqui - podemos ver se estamos exagerando as qualidades ou inventando algo. “Esta é a pessoa mais maravilhosa do mundo!” Provavelmente ela não é. É realmente interessante, pensamos: “Quero que ele me ame”. E se for outra pessoa? Outra pessoa não conta. “Eu quero que ele me ame e me dê atenção.” 

Você já viu o documentário – eu esqueci o nome - sobre os pinguins na Antártica? Tem um lugar enorme com cem mil pinguins, todos parecidos. Então pensamos: “Quero que aquele ali me ame - aquele pinguim e não qualquer pinguim”. Isso meio que coloca nossa seletividade em perspectiva e nos ajuda a ver que eles são todos iguais, basicamente. É uma imagem útil. Pelo menos, eu acho útil. 

O que fazemos é ampliar - para usar a terminologia que eu estava usando antes - a base para a rotulagem. Pensamos na pessoa em termos de uma vida anterior, se quisermos, que é a forma como a meditação é apresentada. “Em uma vida passada, ela me machucou muito. Ela bebeu meu sangue” - então, pensamos em todo tipo de imagem adorável (os mosquitos bebem nosso sangue, não apenas os vampiros) - “e em vidas futuras, ela também pode ser terrível para mim”. 

Se quisermos fazer uma versão Dharma-Light, podemos pensar: “Antes de conhecê-la, ela era uma estranha para mim” e “Ela poderia me machucar muito”. Na verdade, aqueles a quem mais nos apegamos e que mais amamos são os que mais podem nos machucar. Se eles nos ignoram ou nos rejeitam, dói muito mais do que um completo estranho nos ignorar ou rejeitar. Portanto, essa pessoa é na verdade uma potencial fonte de infelicidade. Não pensamos nisso quando nos apaixonamos por alguém. Estar apaixonado por alguém causa um grande desequilíbrio. É uma sensação boa – por isso nos engana - mas se essa pessoa nos ignorar ou nos deixar, não corresponder às nossas expectativas ou não nos der suficiente atenção, sentir-se bem pode facilmente se transformar em sentir-se muito, muito magoado. 

Portanto, pensamos em termos de uma base mais ampla para a rotulagem. “Se eu simplesmente correr para essa pessoa e colocar todas as minhas esperanças nela, posso me decepcionar muito e me magoar muito. Na verdade, estou correndo para a proverbial sereia, aquele espírito canibal que vai me comer quando eu chegar lá.” Usamos esse tipo de imagem. Então decidimos ter equanimidade em relação a essa pessoa - não atração. Isso é muito, muito difícil se nossa equanimidade estiver baseada apenas em emoção. Será muito difícil, ao visualizar essa pessoa ou olhar para sua foto, sentir realmente: “Vou olhar para essa pessoa sem apego”. 

Se você pensar bem, existem forças oponentes (antídotos) para superarmos as emoções perturbadoras. Aqui, estamos trabalhando especificamente com as emoções perturbadoras da atração, do apego, do desejo e da ganância: queremos mais tempo dessa pessoa do que ela pode ou deseja nos dar. Somos muito gananciosos com as pessoas por quem estamos apaixonados. Dizer: “OK, agora vou olhar para ela sem isso” não é fácil, não é mesmo? Temos uma resistência interna muito, muito forte, uma resistência muito forte. É por isso que alguma compreensão da vacuidade, e pensar em termos de rotulagem mental, contínuo mental e essas coisas ajuda. “A quem estou apegado? A que estou apegado?” Desta forma, procuramos olhar para a pessoa sem apego, desejo e ganância. 

Depois, olhamos para a pessoa de quem não gostamos. Chamá-la de inimiga é um pouco forte para muitos de nós. Podemos não conhecer ninguém que possamos chamar de “inimigo”, mas certamente conhecemos pessoas de quem não gostamos e com quem não queremos sair, pessoas que realmente preferiríamos evitar. Portanto, temos aversão a essa pessoa. “Repulsa” também é um termo útil. Realmente não queremos estar com essa pessoa; nós não gostamos dela. E, novamente, fazemos o mesmo tipo de coisa. Deixamos esse sentimento de repulsa ou aversão surgir. Precisamos reconhecer que temos essa emoção perturbadora em relação à pessoa. É por isso que a deixamos surgir. Não é que estejamos nos treinando para sentir essa emoção perturbadora; é que queremos reconhecer isso. 

Então, sem deixar que a emoção saia do nosso controle, paramos. Apertamos o botão de pausa e perguntamos: “Por que me sinto assim?” Novamente, é porque "ela fez algo que eu não gosto", ou "ela me magoou" ou "ela fez as coisas de uma maneira diferente da maneira que eu faço". Pode ser algo muito inocente. “Essa pessoa é realmente irritante porque descasca a toranja e a come como uma laranja, em vez de comê-la com uma colher.” Isso é ridículo. Mas com que frequência ficamos incomodados com pessoas que fazem as coisas de maneira diferente da nossa? “Ela deixa a louça na pia durante a noite e lava pela manhã. Isso não é bom." Ficamos com raiva da pessoa. “A louça precisa ser lavada imediatamente.” Na verdade, antes mesmo de terminar a refeição, começamos a limpar a mesa e lavar a louça. 

Novamente, olhamos para as mesmas coisas: estamos exagerando algumas características negativas e ignorando as positivas. Além disso, em vidas anteriores, em tempos passados, ela foi bondosa conosco, e no futuro pode ser de novo. Alguém de quem não gostamos pode, em diferentes circunstâncias, tornar-se um bom amigo e nos ajudar. Então, novamente, olhamos para a pessoa sem essa aversão, sem essa repulsa. Não precisa ser uma raiva forte; pode ser apenas aversão ou repulsa. 

Fazemos o mesmo com a pessoa que consideramos uma estranha, uma pessoa que podemos encontrar e não lembrar de nada. Quem se lembra da pessoa que nos vendeu o ingresso no cinema? Quem se lembra de como ela era, quanto mais alguma coisa sobre ela? Novamente, perguntamos: “Por que eu ignoro essa pessoa?” “Bem, ela não me fez nada que fosse particularmente notável, nada particularmente bom ou desagradável. Ela é um nada, basicamente. Poderia ter sido uma máquina que me vendeu o ingresso”. O que estamos fazendo aqui? Estamos ignorando todas as características dessa pessoa. Então, pensamos: “No passado, ela pode ter sido muito bondosa conosco. No futuro, ela pode se tornar nossa melhor amiga. Todos os amigos que temos eram estranhos antes de os conhecermos, então ela também pode ser uma joia preciosa.” Este é o tipo de imagem usada. E, novamente, tentamos olhar para ela sem indiferença, sem ignorá-la. 

A maneira como olhamos para cada uma dessas três pessoas não é a maneira Mahayana de igualar nossas atitudes - pensando: “Todos querem ser felizes e não querem ser infelizes, nisso todos são iguais.” Não estamos olhando para os aspectos positivos a fim de equalizar nossas atitudes com equanimidade - não ter sentimentos de proximidade ou distância. Estamos olhando sem emoções perturbadoras. Estamos nivelando o terreno - essa é a imagem usada. Esses são dois tipos diferentes de equanimidade. Um está livre de emoções perturbadoras. O outro é uma atitude igual para com todos, reconhecendo que todos são iguais em querer ser feliz e não querer ser infeliz - portanto, não há nenhum favoritismo. Esse é o método Mahayana. 

Depois disso, imaginamos as três pessoas juntas. O que costumo recomendar é imaginar as três à mesa de jantar conosco. Agora estamos jantando com essas três pessoas - aquela por quem estamos absolutamente apaixonados, aquela que absolutamente não suportamos e que é realmente desagradável e irritante, e o lixeiro, aquele que coleta o lixo. Como lidaríamos com isso? Se realmente conseguirmos imaginar essa situação, veremos como nossas emoções são conflitantes. Aqui estão essas três pessoas juntas - como lidar com isso? É muito, muito desafiador - se levarmos a sério – imaginar-nos à mesa de jantar com essas três pessoas. Poderíamos, se quiséssemos deixar um pouco mais colorido, incluindo o latido de um cachorro... e um mosquito. Levar ao nível de ter equanimidade em relação ao mosquito e ao meu melhor amigo é realmente avançado, super avançado e além do que a maioria de nós consegue imaginar. Mas isso é o que realmente estamos sendo solicitados a desenvolver aqui. Não é fácil. 

Imaginamos essas três pessoas e temos equanimidade. Em seguida, aplicamos a linha de raciocínio: “Aqui está alguém que me ajudou hoje e me feriu ontem, e alguém que me feriu hoje e me ajudou ontem - qual é a diferença?” E não há diferença, é só uma questão de quando ela nos ajudou e quando nos feriu. Mas todos – considerando tempos sem princípio e contínuos mentais sem princípio - nos feriram e nos ajudaram inúmeras vezes. No idioma indiano se diz: “igual, igual”. No entanto, não perdemos de vista o nível convencional, a verdade convencional do que está acontecendo agora em termos de como usamos nosso tempo devido às nossas limitações. 

Esta é a meditação. Fazer isso por apenas alguns minutos não é suficiente. É algo que requer muito trabalho - trabalho emocional. É, emocionalmente, um trabalho muito difícil. É por isso que recomendei que tentássemos antes desenvolver alguma compreensão da vacuidade e da rotulagem mental. Isso ajudará a tornar esta meditação menos desafiadora emocionalmente. Se fizermos esta meditação com seriedade e escolhermos as pessoas certas - alguém por quem somos loucos, alguém que realmente não suportamos e um Zé Ninguém - emoções muito fortes surgirão. Não queremos escolher exemplos leves aqui. Se quisermos chegar a algum lugar com esta meditação, temos que escolher exemplos poderosos. E será um grande desafio emocional, algo de que será muito fácil desistir. “Não consigo desenvolver equanimidade. Amo essa pessoa e não quero desistir de amá-la. Por que eu desistiria de estar apaixonado por ela? É tão bom estar com ela. Fico muito feliz por estar com ela. Por que devo ter a mesma atitude em relação ao mosquito ou à pessoa chata no trabalho ou ao vizinho barulhento ou à pessoa que tenta me ultrapassar na estrada e à pessoa que amo?” 

Sem uma compreensão por trás desta meditação, acho que, emocionalmente, é muito, muito difícil desenvolver a equanimidade. Portanto, é uma meditação avançada. Está no escopo avançado, e não no inicial. Não devemos menosprezar o fato de que deve ser desenvolvida com base em algum treinamento nos níveis inicial e intermediário. Isso nos leva ao final de nossa sessão. Vamos terminar aqui e continuaremos depois do almoço. 

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