Revisão
Já discutimos a origem de nossos problemas, que é nossa ignorância ou desconhecimento a respeito do mecanismo de causa e efeito comportamental e da natureza da realidade; ou não entendemos ou entendemos incorretamente. Por causa de nossa falta de consciência a respeito da natureza da realidade, buscamos uma existência verdadeira. Podemos definir existência verdadeira de muitas maneiras diferentes, mas, para simplificar, poderíamos dizer que as coisas parecem existir como “coisas” concretas e acreditamos que esse é realmente o jeito que elas existem. Nosso corpo parece ser sólido e concreto quando, na realidade, é composto de átomos e campos de energia. Não é sólido. Da mesma forma, nossos problemas parecem concretos, mas na verdade são compostos de um momento após o outro, momentos que estão sempre mudando. Não há nada de concreto neles.
Podemos buscar existência verdadeira nas pessoas ou fenômenos. As "pessoas" podem ser nós ou os outros. Até então, focamos principalmente nos problemas que temos em função da visão que temos de nós mesmos, de quem somos. Discutimos isso em termos dos cinco agregados. Cada momento de nossa experiência é composto por um ou mais itens de cada um desses cinco conjuntos. Sempre existe alguma forma de fenômeno físico envolvido em um momento - nosso corpo, nosso cérebro, as células fotossensíveis de nossos olhos e assim por diante. Nas formas também estão as imagens, sons, cheiros e assim por diante - por exemplo, a visão do corpo de outra pessoa. Depois, temos a consciência primária: o canal em que estamos vendo, ouvindo, provando, cheirando, sentindo uma sensação física ou pensando. Também temos a distinção. Dentro do campo específico de nossa consciência - visual, auditivo ou qualquer outra coisa - estamos distinguindo um objeto do plano de fundo. Há também algum nível de felicidade subjetiva ou infelicidade. Depois, há esse outro grande conjunto de tudo o mais que afeta nossa experiência, que inclui todas as emoções, positivas e negativas, todos os nossos anseios e impulsos para fazer as coisas (carma), bem como interesse, atenção e concentração - aspectos que nos ajudam a focar em algo. Também neste grande conjunto estão as coisas da terceira categoria básica de fenômenos não estáticos: coisas não estáticas que não são nem uma forma de fenômeno físico nem uma maneira de se estar ciente de alguma coisa. Nele estão incluídos nossos hábitos, nossa idade e o "eu" convencional.
O "eu" convencional é realmente uma imputação, mas só podemos estabelecer sua existência pelo rotulamento mental. A cada momento, temos esses cinco agregados variáveis, e cada um deles mudando em uma velocidade diferente. Quando praticamos a meditação da atenção plena na tradição Teravada, tentamos estar atentos a constante mudança do que está acontecendo, de modo que, eventualmente, vemos que não há um "eu" sólido em toda essa mudança. De qualquer forma, quando falamos sobre o “eu” convencional no Mahayana, é apenas uma abstração, imputada como uma maneira de agregar uma continuidade individual de fatores variáveis da experiência subjetiva que estão sempre mudando.
Esse processo de mudança está ocorrendo em uma sequência individual, como um filme, e a sequência é determinada pelo carma, pela causa e efeito comportamental e por tudo aquilo com que interagimos externamente. Assim como em um filme, existe uma continuidade, embora não exista nada sólido passando de um quadro para o outro; da mesma forma, nada sólido vai de um momento para o outro no filme de nossas vidas. No entanto, há uma continuidade. Mas tenha cuidado aqui com a analogia do filme. Não estamos falando da tira de plástico na qual os quadros de um filme são impressos ou da tela em branco na qual o filme é projetado. Estamos falando do filme em si, quando ele está passando.
Assim como o filme não é a mesma coisa que o título do filme, o “eu” convencional também não é apenas uma maneira de se referir a esse fluxo de agregados com uma palavra. O "eu" convencional não é uma palavra; é aquilo que a palavra significa: é o significado da palavra com base em uma continuidade de fatores que estão em constante mudança. O "eu" convencional é como uma ilusão, porque não há nada sólido nele. O problema é que não parece ser assim. Parece-nos que há algo sólido e acreditamos que isso é verdade.
O nível mais grosseiro do que aparece é aquilo que os budistas dizem que os hindus acreditam. Digo assim para ser justo com os hindus. Nesse contexto, não importa em que os hindus de hoje em dia acreditam. O budismo está se referindo a uma visão falsa que nos parece verdadeira. O que aparece para nós não é como a analogia do filme, mas sim um "eu" sólido, como se fosse uma estátua sólida, movendo-se ao longo da vida em uma correia transportadora.
Existem três características para esse falso "eu". Primeira: ele é estático, o que não significa apenas que não está mudando, mas que não é afetado por nada e não afeta nada. Parece estar a parte do processo de causa e efeito, como se pudéssemos nos refugiar em um pequeno "eu" especial interno, e evitar tudo mais. A segunda é que parece que esse “eu” é monolítico, não tem partes e permanece sempre o mesmo. A terceira característica é que ele é dissociado dos agregados, não faz parte deles, como se pudesse sair e voar para outro corpo e mente.
Quando falamos da vacuidade do "eu", não estamos negando ou refutando o "eu" convencional, nem estamos negando a existência da projeção de um "eu" falso. O que estamos refutando é que o "eu" convencional existe como um falso "eu". A palavra vacuidade significa "uma ausência". O que está ausente é o fato de nossa projeção de um falso "eu" se referir a algo real - um objeto de referência real para nossa projeção está ausente. Ele está ausente, não no sentido de que um elefante está ausente da sala porque está na outra sala. Está ausente no sentido de não haver um elefante rosa nesta sala. Elefantes cor-de-rosa não existem. Mas é mais do que isso. Está ausente no sentido de que esta sala não existe como sendo assombrada por um monstro. A vacuidade está se referindo à ausência de uma maneira impossível de existir que nunca existiu. A maneira de existir que é refutada é a do "eu" convencional existindo como o falso "eu".
Quando eliminamos essa maneira totalmente imaginária e impossível de existir - como um "eu" estático e monolítico, dissociado dos agregados -, enxergamos o que resta. O que resta é um “eu” que muda o tempo todo, etc., mas que projetamos ser o chefe, o controlador pressionando os botões e decidindo o que fazer, que se preocupa e é o autor da voz em nossa cabeça. Para todos nós isso parece ser o que realmente somos.
Quando vemos que isso também não se refere a nada real e que é apenas uma projeção baseada em aparências, o que nos resta projetar é um "eu" que, apesar de tudo, ainda pode ser conhecido por si mesmo. Quando você quer que alguém te ame, te ame pelo que você é e nada mais, você não está achando que ela pode te amar sem amar simultaneamente algo a seu respeito, como seu corpo, seu intelecto, sua personalidade, seu senso de humor, sua maneira de fazer as coisas, suas posses, etc.? Mas isso é impossível.
Então ficamos com o rotulamento mental. Ainda assim, pensamos - e nossas mentes fazem parecer assim - que deve haver alguma marca individual e definidora dentro de mim que faz de mim "eu" e não "você", e permite que eu seja rotulado corretamente como “eu” e não como “você”. É difícil dizer o que me faz “eu”, mas achamos que deve haver algo. Mas, quando investigamos se existe algo que nos torna quem somos, e permite um rotulamento correto, descobrimos que não há nada que possa ser encontrado. Ficamos com o fato de que nossa existência como "eu" é estabelecida apenas em termos de rotulamento mental.
Os Três Fatores que Determinam a Validade de um Rotulamento Mental
Será que todos os rótulos mentais são corretos? Se alguém achar que eu sou uma janela e me chamar de janela, isso significa que eu sou uma janela? Obviamente não. O rotulamento mental passa a ser válido com base em três fatores. O primeiro é que o rótulo deve ser uma convenção acordada e usada por um determinado grupo de pessoas e o que está rotulado deve conseguir funcionar de acordo com o rótulo usado. Podemos ser rotulados como "professor" por nossos alunos, "parente" por nossa família e "café da manhã" pelo mosquito. Todos esses rótulos são válidos, pois funcionamos dessa maneira para esses grupos de seres. E isso estabelece nossa existência convencional como professor, parente e café da manhã para cada um desses grupos, respectivamente.
O segundo fator é que o rotulamento não deve ser contradito por uma mente que vê validamente a verdade convencional. Se um grupo de pessoas míopes nos olha do outro lado da sala, sem óculos, e nos vê como um borrão, isso não nos transforma em borrões. Nós não somos um borrão. Isso é contradito quando elas colocam os óculos de volta.
O terceiro fator é que o rotulamento não deve ser contestado por uma mente que vê validamente a verdade mais profunda. Se um grupo de pessoas pensar que existe algo dentro de mim me fazendo ser "eu" ou algo dentro de mim me tornando verdadeiramente um monstro, isso não é verdade. Quando entendemos a realidade, vemos que ninguém existe dessa maneira. Uma pessoa pode agir como um monstro em certas situações, mas isso não significa que ela é eternamente imutável ou que é um monstro para todos. Ela teria que ser um monstro para seu cão também. O "eu" existe apenas em termos do rotulamento mental.
Quando vemos que nossa projeção de um falso "eu", um “eu” que existe como um monstro, por exemplo, não se refere a nada que seja real, paramos de projetar o falso "eu" e o "monstro". Quando paramos de projetá-los, isso não significa que o filme acabou. O filme de nossos agregados e do “eu” convencional continua. Por exemplo, quando vemos um filme de terror e paramos de projetar que existe um monstro real que vai nos pegar, o filme continua. O que acontecerá a seguir surgirá na dependência de causas e condições, com base no que já aconteceu no filme.
O mesmo se aplica a nossas vidas. O eu convencional continua quando compreendemos a vacuidade. A base na qual esse “eu” é rotulado é a continuidade de fatores agregados que compõem cada momento de nossa experiência subjetiva individual, seguindo um ao outro, com base em causas e efeitos comportamentais.
Visões Enganosas
Vamos falar um pouco sobre o que acontece quando nos apegamos à existência verdadeira e, embora esse apego possa ser em relação à existência verdadeira de pessoas ou de fenômenos, vamos falar apenas de pessoas. O apego à existência verdadeira de pessoas projeta algum nível de "eu" falso no "eu" convencional e acredita que esse "eu" falso é verdadeiro. Isso pode ser feito em relação ao nosso próprio “eu” ou de qualquer outra pessoa e qualquer forma de vida - humanos, animais, fantasmas e assim por diante. Para colocar em palavras muito simples, quando nos apegamos à existência verdadeira de uma pessoa, projetamos e acreditamos em algum tipo de "eu" sólido e substancial.
O que se segue com base em tal apreensão é uma visão enganosa em relação a uma rede transitória ('jig-lta). Visões enganosas são uma forma de emoção ou atitude perturbadora (aflição mental). Emoções e atitudes perturbadoras são fatores mentais que, quando surgem e acompanham um momento de cognição mental ou sensorial, nos fazem perder a paz e o controle. Elas causam desconforto a nós e aos outros. Quando não envolvem uma visão enganosa, chamamos, em termos ocidentais, de emoções perturbadoras, como a raiva e o apego. Quando envolvem uma visão, chamamos de atitudes perturbadoras. São cinco atitudes, e a primeira dessas atitudes perturbadoras acompanhadas de uma visão é uma visão enganosa em relação a uma rede transitória. "Rede transitória" refere-se à rede dos nossos cinco agregados transitórios, agregados que estão sempre mudando. Embora o apego à existência verdadeira de uma pessoa possa ser direcionado a nós mesmos ou a qualquer outro ser, uma visão enganosa em relação a uma rede transitória é definida como sendo direcionada apenas a nós mesmos.
A discussão sobre essa visão enganosa é bastante complexa. A maioria dos sistemas budistas afirma que focamos em uma rede de agregados e a consideramos incorretamente, como sendo um falso "eu", como sendo "eu" ou "meu". No sistema Gelug Prasangika, essa visão enganosa se concentra na rede de aspectos de nosso “eu” convencional; projetamos um “eu” falso e identificamos esse “eu” falso como idêntico aos agregados ou como “eu, o possuidor deles”. Para simplificar a discussão, vamos falar do ponto de vista da primeira posição.
Uma visão enganosa em relação a uma rede transitória tem um aspecto que diz respeito ao "eu" e três aspectos ao "meu". Como cada um desses quatro aspectos pode estar relacionado a qualquer um dos cinco agregados, há vinte visões enganosas em relação a uma rede transitória. Vamos falar apenas das visões enganosas em relação ao corpo.
A primeira é "eu sou esse corpo". É a ideia de que há um "eu" sólido, idêntico a esse corpo. Nos vemos no espelho e pensamos: "Eu sou uma pessoa idosa", "Eu sou uma pessoa gorda", "Eu sou uma pessoa magra" e assim por diante. Também podemos nos identificar com a mente: “Eu sou inteligente. Eu sou a minha mente.” Novamente, o falso “eu” envolvido aqui é estático, monolítico, não afetado por nada. Portanto, para uma pessoa que pensa que é gorda, não importa quanto ela pesa; em sua mente, ela é "gorda". Para alguém que pensa que é feio, não importa o quão bonito as outras pessoas digam que ele é, em sua mente ele pensa: "Você realmente não está falando sério. Eu sou feio."
Os três outros tipos de visão enganosa em relação a uma rede transitória consideram os agregados - por exemplo, o corpo - como "meu", no sentido de algo que o falso "eu" possui, controla ou habita. O primeiro tipo considera os agregados como algo que possuo, que é "meu". Quando dizemos: "Isso é meu; eu o possuo; eu o tenho”, podemos usar essas expressões de duas maneiras: “Este corpo é meu” ou “Este frango é meu”. Há uma diferença. O corpo está sempre conosco; o frango nem sempre está conosco. Algumas formas que esse equívoco assume entre os homens é: “Eu tenho um órgão sexual. Eu tenho um corpo musculoso.” Ou, para uma mulher: “eu tenho um útero. Eu posso ter um filho.” Mas, assim como a analogia “eu tenho um frango”, poderia ser “eu tenho dinheiro ou tenho uma casa bonita ou um carro veloz. Eles são 'meus'.” Nós concebemos erroneamente um “eu” sólido, que possui parte de nossos agregados como posse, como “meu”.
Já falamos do segundo tipo de visão enganosa em relação a uma rede transitória, que é vê-la como sendo "minha", ou seja, conceber erroneamente nossos agregados, como nosso corpo ou útero, como algo que esse "eu" sólido controla e usa como eu quiser. O terceiro tipo diz respeito à nossa cabeça, ou cérebro, onde estaria localizado o “eu” sólido. Pensamos: "Há uma voz na minha cabeça, então estou na minha cabeça".
As Três Atitudes Venenosas
Essas subcategorias de uma visão enganosa em relação a uma rede transitória nos dão muito o que pensar. Precisamos reconhecê-las em nós mesmos. Achamos que realmente é assim. Por exemplo, pensamos: "Eu tenho uma boa mente", como se houvesse um "eu" sólido que pudesse possuir uma mente. Com base nessa visão que temos de nós mesmos, desenvolvemos as emoções perturbadoras. Ficamos inseguros quanto a esse "eu" aparentemente sólido e à mente boa que ele possui; e, com arrogância, por exemplo, sentimos que temos que provar o quão inteligente somos, respondendo a todas as perguntas na aula e não dando chance a mais ninguém.
As emoções perturbadoras mais comuns são as três emoções e atitudes venenosas – ingenuidade (ignorância), desejo (apego) e hostilidade (aversão). O termo para "ingenuidade" - em sânscrito, moha - não é muito fácil de traduzir. Antes eu traduzia como "ignorância da mente fechada" ou "confusão tola". É uma subcategoria da ignorância ou do desconhecimento, que pode ser sobre causa e efeito comportamental ou sobre a realidade. O desconhecimento sobre causa e efeito comportamental acompanha apenas os estados mentais destrutivos, já o desconhecimento sobre a realidade pode acompanhar não apenas os estados mentais destrutivos, mas também os estados construtivos e eticamente neutros. "Ingenuidade" refere-se apenas ao desconhecimento - seja sobre causa e efeito ou sobre a realidade - que acompanha os estados mentais destrutivos.
Por exemplo, com uma visão enganosa em relação a uma rede transitória, podemos identificar o "eu" sólido com o nosso gênero - ser homem. Um exemplo de ingenuidade baseada nisso seria o desconhecimento que acompanha matar alguém que nos insultou, acreditando que isso prova que somos homem. Por outro lado, quando ajudamos alguém a realizar trabalhos físicos pesados, achando que, ao fazer isso, estamos provando que somos homem - nossa atitude é um exemplo de inconsciência ou ignorância, mas não ingenuidade. Abrir uma garrafa de cerveja com os dentes e pensar que isso prova que somos homem também é ignorância, mas não ingenuidade. Obviamente, ingenuidade também não é uma tradução muito boa para essa atitude venenosa; mas não consigo pensar em nenhuma maneira melhor de traduzir.
A segunda emoção venenosa é o desejo. Com essa emoção perturbadora, exageramos as boas qualidades de alguém ou de algo que não temos e achamos que precisamos ter. De acordo com outra definição, essa emoção perturbadora é o apego. O apego também exagera as boas qualidades de algo ou alguém, mas, neste caso, alguém ou algo que temos e não queremos deixar de ter. Por exemplo, podemos nos ver como um “eu” sólido e ver nossa mente e os livros em nossa casa como “meus”. Com o desejo, exageramos as boas qualidades dos livros, os consideramos atraentes por si só, e achamos que temos que comprar mais e mais - mesmo que não tenhamos tempo para lê-los – a fim de provar que somos "intelectuais". Podemos fazer o mesmo com amigos, atenção ou qualquer outra coisa, na esperança de assegurar nossa identidade.
A terceira emoção venenosa é a raiva ou hostilidade. É um estado de espírito brutal, que exagera as más qualidades de algo ou de alguém e quer prejudicar ou se livrar dessa pessoa ou coisa. A raiva pode ser direcionada ao nosso próprio sofrimento ou a situações que podem causar sofrimento. Podemos ficar com raiva de uma pessoa ou de nossa doença ou dos muros da prisão. É como se nossa doença pudesse ser eliminada e fuzilada. Algo está nos ameaçando, ameaçando nossa identidade como um “eu” sólido. Por exemplo, podemos sentir: “Sou uma pessoa organizada e asseada. Eu tenho certos hábitos. É assim que mantenho minha cozinha” Aí alguém entra, muda as coisas de lugar e faz algo de maneira diferente, e passamos a hostilizar essa pessoa e querer tirá-la da “MINHA cozinha” - “É assim que eu faço!” Isso é hostilidade.
Essas emoções e atitudes venenosas agem como circunstâncias para que um impulso cármico surja. O carma é um impulso ou ímpeto. Poderia ser o ímpeto de dizer algo muito cruel: "Saia da minha cozinha, seu idiota!" Ou vemos um livro na loja e pensamos compulsivamente: "Eu preciso dele!" Vemos que há um grupo de homens por perto e um garrafa de cerveja e pensamos: "Eu tenho que mostrar a todos como eu sou homem!" O ímpeto de dizer algo cruel, de comprar um livro ou abrir uma garrafa de cerveja com os dentes é carma. Agimos com base nesses impulsos, que depois produzem efeitos. A próxima cena do filme pode não ser muito agradável.
Apresentando de uma forma bem simples, é assim que as coisas funcionam. É por isso que queremos nos livrar do apego à existência verdadeira. Não é suficiente nos livrarmos apenas de nossa visão enganosa em relação a uma rede transitória. Se nos identificamos como uma pessoa baixa, gorda e feia que ninguém ama, podemos perceber que isso é ridículo. Não se refere a nada real. Mas isso não elimina nosso apego à existência verdadeira. Podemos ter um corpo relativamente pequeno, gordo e feio e perceber que essa não é nossa verdadeira identidade, e ainda assim sermos apegados a um “eu” sólido e, com isso, agir egoisticamente. Temos que chegar à raiz: o apego à existência verdadeira.
Devo acrescentar que, quando não nos apegamos a um “eu” sólido, não buscamos uma identidade para esse “eu” em nossos agregados, como nosso corpo. Portanto, não pensamos que esse “eu” sólido possui algo como um corpo sexualmente atraente. Sem esse equívoco, não temos o desejo que faz com que inconscientemente sintamos que, ao mantermos relações sexuais todas as noites com um parceiro diferente, isso prova que temos um corpo sexy e que existimos. Podemos ver, por este exemplo, que, se nos livrarmos da raiz dos nossos problemas, o resto desmorona.
Ouvir e Pensar
Mas como meditar sobre isso? Como usar isso? Primeiro, deixe-me explicar um pouco sobre a teoria da meditação. "Meditação" significa gerar um hábito positivo. Primeiro, tentamos ouvir uma explicação correta. Depois, pensamos sobre isso, para que consigamos entender. Se todo o nosso tempo de meditação for gasto no segundo passo, tentando entender, por exemplo, o que significa a vacuidade, tudo bem. Precisamos de tempo para fazer isso. Não é fácil. Precisamos entender o que ouvimos ou lemos e nos convencer de que está correto. Se não acharmos correto, por que iriamos querer adotar? A meditação em si implica tornar o que ouvimos e entendemos parte de nós mesmos, internalizar isso. No caso da meditação sobre a nossa própria vacuidade, precisamos conseguir gerar um entendimento correto e praticar nos ver segundo esse entendimento. Através da repetição frequente, a meditação gera esse entendimento como um hábito benéfico.
Para compreendermos a vacuidade e nos convencermos de que isso é correto, precisamos analisar usando a lógica. Como sabemos das coisas? O que é uma maneira válida de saber? No budismo, falamos sobre duas maneiras válidas de saber algo. Ou percebemos diretamente através dos nossos sentidos, ou inferimos. Por exemplo, olhamos para uma montanha e, ao ver uma casa, sabemos validamente que há uma casa na montanha. Sabemos disso por cognição direta, sem precisar confiar na lógica.
Mas, como sabemos que existe alguém morando ou usando a casa? Todos os dias vemos fumaça saindo da chaminé. Não conseguimos ver alguém lá dentro, mas conseguimos inferir que, se há fumaça saindo pela chaminé, e não apenas uma vez, mas todos os dias, alguém deve estar acendendo um fogo, então deve haver alguém morando lá ou indo lá todos os dias. Sabemos disso por cognição inferencial.
Para inferir, precisamos confiar em uma linha de raciocínio válida. Nesse caso, seria a seguinte: Onde há fumaça, há fogo. A fumaça sai da chaminé todos os dias; portanto, deve haver fogo na casa todos os dias. Se há fogo na casa todos os dias, deve haver alguém lá todos os dias acendendo o fogo. Se há alguém na casa todos os dias que acende o fogo, deve haver alguém vivendo na casa ou a visitando todos os dias. Precisamos confiar nessa linha de raciocínio para gerar a compreensão ou convicção de que existe uma pessoa lá.
O entendimento aqui é com convicção baseada na lógica. Esse é um ponto importante. Temos que estar convencidos de que isso é verdade. Há alguém morando lá ou indo lá todos os dias. Não é só pensar que talvez haja alguém. Da mesma forma, no que diz respeito à compreensão da vacuidade, não é apenas pensar que provavelmente não existe um “eu” sólido. Temos que saber que não existe um “eu” sólido. E para entender e nos convencer disso, contamos com a lógica. Esse é o segundo passo que leva à meditação - o passo de contemplar ou pensar.
Meditando
Na terceira etapa, passamos novamente pela lógica. Isso faz parte do que às vezes é chamado de "meditação analítica", mas prefiro chamar de "meditação de discernimento", pois análise é o que fazemos basicamente durante o segundo passo, pensar, a fim de obter entendimento e convicção. Neste passo, passamos pela lógica apenas para gerar uma compreensão e convicção fresca. "Fresca" significa que está vívida em nossa mente. Então paramos o processo do pensamento verbal e tentamos apenas discernir as coisas com essa convicção.
Falávamos antes sobre como podemos discernir que não há um elefante nesta sala. Podemos discernir isso, podemos ver isso. Podemos discernir que não há um monstro na sala. Também podemos discernir que a sala não é assombrada por monstros. Da mesma forma, discernimos que não somos assombrados por um falso "eu" interno. Tentamos discernir isso sem dizer nada em nossa cabeça.
Quando conseguimos realmente discernir a ausência de um falso "eu", deixamos que esse discernimento se sedimente. É a chamada "meditação estabilizadora" ou "meditação fixadora". Em seguida, alternamos meditações de discernimento e estabilizadoras. E quando nossa meditação estabilizadora não está mais tão clara, precisamos tentar discernir novamente essa ausência. Para fazer isso, talvez precisemos passar pela lógica novamente, para deixar nosso entendimento fresco mais uma vez. Quando nos familiarizarmos com a vacuidade, conseguiremos gerar esse entendimento repetidamente, sem precisarmos confiar na lógica; não precisamos gerá-lo por inferência.
Quando temos uma cognição inferencial através da lógica, sabemos conceitualmente. Isso significa que conhecemos algo através da categoria à qual isso pertence. Por exemplo, na verdade, não vemos a pessoa na casa da montanha, mas achamos que há uma pessoa lá, e para isso usamos a categoria geral pessoa. Em linguagem simples, pensamos na pessoa usando a ideia de uma pessoa. Essa ideia de uma pessoa não precisa ter uma forma específica associada a ela, como a aparência de uma pessoa, muito menos a aparência dessa pessoa específica. Mas pode ter algum tipo de imagem associada, para representar a pessoa, ou pode ter o som mental da palavra pessoa associado.
Da mesma forma, quando temos uma cognição inferencial da ausência de um “eu” sólido, focamos nessa cognição de maneira conceitual, por meio da categoria ausência. Mas quando focamos, por meio dessa categoria, na total ausência que é a vacuidade, algo tem que aparecer em nossa mente associado a essa cognição conceitual. O que aparece se assemelha à aparência de um espaço vazio.
O budismo define "espaço" como a ausência de qualquer impedimento tangível que obstrua a existência espacial ou o movimento de algo material. Qual é a aparência do espaço vazio? Bem, quando você vê a ausência de um elefante nesta sala, o que você vê? Você vê "nada". Mas sabemos que o que vemos é a ausência de um elefante, não é mesmo? Não é apenas um nada, certo? Pense nisso.
A vacuidade é como o espaço, no sentido de que é a ausência de qualquer maneira impossível de existir que impeça a existência convencional de algo ou o funcionamento de algo no contexto de causa e efeito. Quando focamos nela através da categoria vacuidade ou ausência, o que aparece associado a ela também é como um espaço vazio - nada. Mas entendemos que esse nada é a ausência de uma maneira impossível de existir.
No primeiro passo de nossa meditação sobre a vacuidade, temos uma cognição inferencial. Nossa cognição inferencial é conceitual, assim como todas as cognições inferenciais. Ela surge baseada diretamente em uma linha de raciocínio e foca na vacuidade por meio da categoria vacuidade. É como focar, através da categoria pessoa, na pessoa da casa na montanha. Não podemos vê-la, e não sabemos exatamente como ela é, mas temos a ideia geral de uma pessoa. Da mesma forma, não podemos ver e não sabemos exatamente como é a vacuidade - ou, mais precisamente, como é a aparência associada a uma cognição não-conceitual da vacuidade -, mas temos a ideia geral de uma ausência, como no caso de um espaço vazio.
No momento seguinte, após essa cognição inferencial, temos uma cognição conceitual direta da vacuidade. De acordo com a apresentação Gelug da escola Prasangika Madhyamaka do budismo indiano, a cognição direta tem dois aspectos: conceitual e não conceitual. Ambos são "diretos", porque nenhum deles depende de uma linha de raciocínio. A cognição direta conceitual da vacuidade ainda foca na vacuidade através da categoria "vacuidade" ou "ausência", o que parece ser o mesmo que a cognição inferencial. Ainda aparece um espaço vazio, um nada.
É preciso muito tempo, esforço e uma enorme acumulação de potencial positivo (mérito) para obter uma cognição direta não conceitual da vacuidade. Mas, eventualmente obtemos. Nesse caso, nosso foco na vacuidade não será através da categoria vacuidade. Ainda aparecerá um espaço vazio ou um nada, mas nossa cognição será muito mais viva do que quando era conceitual.
Quando obtemos uma cognição direta não conceitual da vacuidade, começamos o processo de nos livrar do apego a um verdadeiro "eu" sólido. Precisamos ganhar uma grande familiaridade com a cognição da vacuidade. É um processo longo, porque o desconhecimento, ou a ignorância, estão profundamente arraigados em todos nós. Primeiro, nos livramos do apego com base na doutrina, que veio do aprendizado de uma visão não-budista da realidade. Depois, com mais meditação, nos livramos do apego que surge automaticamente, que até os animais têm. Um cachorro, por exemplo, tem seu território, que considera "meu", e late para quem entra nele. Ninguém teve que ensinar o cachorro a fazer isso. E no fim, fazemos com que nossa mente pare de produzir e projetar aparências da existência verdadeira. Só então alcançamos a iluminação.