Os Ensinamentos dos Sutras
Se olharmos para o tantra em geral, ele não pode ser entendido separado dos ensinamentos básicos do sutra. Tudo está construído sobre a fundação do sutra. Portanto, tem que ser praticado no contexto dos ensinamentos básicos do sutra. Quando tecemos um pano ou um tapete, há fios com os quais tecemos, e a palavra tantra vem da palavra que designa esses fios com os quais tecemos. Portanto, essas são as práticas com as quais tecemos todas as coisas que aprendemos no sutra. Quando nos visualizamos com a forma de alguma divindade, alguma figura búdica, todos os braços, faces e pernas representam todos os diferentes pontos do sutra.
Refúgio nas Três Joias
Todos temos um renascimento humano precioso. É muito importante apreciá-lo. É algo muito, muito precioso e valioso, pois é a única base com a qual podemos alcançar a libertação e a iluminação. Não deveríamos subestimar isso. Como um dos meus professores costuma dizer, é como se estivéssemos em férias temporárias dos reinos inferiores, e temos que ter muito cuidado, caso contrário voltaremos aos reinos inferiores.
Com certeza, a morte virá. Nunca sabemos quando será. A única coisa que ajudará são as medidas preventivas que teremos tomado para evitar voltar aos reinos inferiores, e certamente não vamos querer voltar para lá. Podemos pensar em todos os sofrimentos terríveis – em como seria horrível ser um inseto que está sendo comido vivo por outro inseto ou um tipo diferente de fantasma ou de criatura infernal. Todos temos conhecimento disso – e podemos ter medo dessa possibilidade. Não se trata do tipo de medo que nos paralisa e nos deixa desamparados e sem esperança, mas é uma situação na qual sabemos que há uma forma de evitar essa queda. Temos que ter um direcionamento seguro para nossas vidas, normalmente chamado de “refúgio”. É muito importante não trivializar isso.
Qual é a verdadeira fonte do refúgio, a fonte de como poderemos nos proteger de renascimentos piores? É a Joia do Dharma. O que significa isso? Há muitos níveis diferentes nos quais podemos entender a Joia do Dharma. Se olharmos para o nível mais profundo, isso se refere à terceira e à quarta nobres verdades:
- A terceira é a verdadeira cessação do sofrimento e de suas causas. A que isso se refere? Se pensarmos em termos de dzogchen, estamos falando sobre rigpa, a consciência pura. É algo que todos nós temos. É individual; não é algo coletivo ao que nos conectamos no céu. É o nível mais sutil e puro de nosso contínuo mental. Algo totalmente livre por natureza de todos os obscurecimentos – a verdadeira cessação do sofrimento e suas causas – um nível rico, ou pleno, com todas as qualidades positivas. No entanto, como está escrito em muitos textos Nyingma, rigpa, a consciência pura, precisa “reconhecer sua própria face”. Isso significa que, embora haja a consciência pura, nós não a percebemos, e por não percebê-la, não conseguimos utilizá-la.
- E temos a quarta nobre verdade, que é alcançar essa consciência pura para termos a realização plena de rigpa. Se pudermos ter acesso a esse estado puro e ele não for nublado pelo sofrimento e suas causas (que são a primeira e a segunda nobres verdades), evitaremos renascimentos piores como também evitaremos todos os renascimentos incontrolavelmente recorrentes. Estados piores ou melhores são todos ainda parte do samsara. Samsara significa renascimentos incontrolavelmente recorrentes, de novo e de novo. É incontrolável no sentido de que está sob a influência do carma e das emoções perturbadoras.
Essa é a Joia do Dharma. É o direcionamento que queremos ter. “Queremos realizar plenamente a rigpa que está dentro de todos nós e permanecer com ela.” Budas – e a Joia do Buda – são aqueles que alcançaram a rigpa plenamente e nos mostraram como alcançá-la, nos mostraram e ensinaram como é possível fazer isso. E a Joia da Sangha se refere à Sangha dos Aryas. A Sangha dos Aryas significa aqueles que realizaram a rigpa parcialmente, não plenamente como os budas. É muito importante entender isso.
Quando falamos sobre budas não estamos falando sobre uma figura histórica como há nas religiões bíblicas. Nas religiões bíblicas temos uma figura como Moisés ou Jesus ou Moamé, e eles recebem uma revelação ou instruções de Deus. São os únicos que a recebem, por isso temos que acreditar neles e segui-los para conseguir algum tipo de salvação. Não podemos fazer o que eles fizeram. Não podemos nos tornar mais um Moisés ou um Jesus ou um Maomé. É uma diferença muito importante. Mas podemos nos tornar budas. Shakyamuni, Guru Rinpoche – são apenas alguns de muitos, muitos, muitos seres que alcançaram a iluminação. Portanto, é muito importante não fazer deles mais um Moisés, um Jesus ou um Maomé. Todos nós podemos alcançar a iluminação. E eles podemos mostrar o caminho, podem nos inspirar, podemos pedir que nos inspirem, mas não é como se estivéssemos nos abrindo e graças a eles nos iluminamos. Isso não é budismo. Todos temos rigpa. Todos temos a consciência pura. Todos temos a base para alcançar a iluminação. Todos temos o que é conhecido como “natureza búdica”.
Carma
Pensamos então em todos os tipos diferentes de sofrimento:
- O sofrimento da infelicidade e da dor. Trata-se basicamente da possibilidade de sermos infelizes. Mesmo quando estamos sentindo algum tipo de prazer físico, pode ser que ainda assim estejamos infelizes mentalmente. Ninguém gosta disso. Ninguém quer isso. Ninguém quer ser infeliz.
- Depois, há a nossa felicidade habitual. Ela também é insatisfatória, pois não perdura, nunca é satisfatória, e sempre queremos mais. Sentimos medo constante de perdê-la, portanto nos apegamos a ela. Mesmo se formos muito felizes por muito tempo, essa felicidade acaba sempre por se transformar em infelicidade e faz com que nos sintamos insatisfeitos. É como quando comemos sorvete demais e acabamos ficando com dor de barriga.
- No entanto, o sofrimento real e mais profundo que queremos superar no budismo é ainda bem mais profundo do que isso. É a base da experiência dos altos e baixos da infelicidade e da felicidade comum. É o próprio samsara, o renascimento incontrolavelmente recorrente com nosso tipo comum de corpo e mente que fazem a experiência da infelicidade e da felicidade comum.
Tudo isso acontece por causa da compulsividade básica do carma. Quando falamos sobre carma, é muito importante entender a que isso se refere. Não estamos falando sobre o destino ou algo do gênero. Estamos falando sobre compulsividade. Há um aspecto compulsivo em nosso comportamento. Gostamos de certas coisas e desgostamos de outras coisas por causa de nossos hábitos de agir sob a influência da confusão. É isso que surge em nossa mente: “Eu gostaria de gritar com você”, “Eu gostaria de abraçar você”, e, então (trata-se do momento no qual o carma entra em ação), há uma certa compulsão que nos leva a gritar ou abraçar alguém em um momento inadequado. E parece que não conseguimos controlar isso. Simplesmente agimos ou falamos de forma compulsiva e desatenta.
O carma não se refere à ação em si, embora a palavra tibetana para isso seja a palavra tibetana coloquial usada para designar ação (las). Se o problema fosse a ação em si, então bastaria que parássemos todas as atividades e assim nos iluminaríamos. Certamente, não é esse o significado. Nosso objetivo é vir a ter um comportamento que não seja compulsivo e que seja motivado por compaixão. Nosso comportamento é compulsivo, pois está sob a influência de emoções perturbadoras – cobiça e apego e desejo, repulsa, raiva, ingenuidade, ciúme, orgulho, sendo que todas elas criam problemas. Tudo isso vem da falta de consciência da realidade. Não estamos conscientes de nossas naturezas puras. Nossa confusão faz com que nossa mente crie a aparência enganosa de coisas que existem de formas impossíveis, faz com que pareçamos uma coisa sólida, separada de todo o resto. Como uma pequena figura sentada dentro de nossa cabeça recebendo informações através dos nossos olhos e ouvidos em algum tipo de tela com autofalante, apertando os botões que fazem nosso corpo funcionar. O autor da voz que fala em nossa cabeça tem preocupações como: “O que será que os outros pensam de mim? O que eu deveria fazer agora?”
Por causa de nossa confusão, por não conhecermos nossa verdadeira natureza, nossa mente cria essa espécie de aparência de quem somos, e acreditamos que ela seja verdadeira, pensamos que corresponde à realidade. Nossa confusão faz com que tudo pareça existir de formas impossíveis, como se tudo estivesse encapsulado em plástico e existisse de forma isolada, independente de causas, condições, conceitos, da perspectiva relativa, independente de tudo. Como um problema (“Ai, tenho um problema horrível”), encapsulado em plástico, como um monstro, que nos assusta e perturba profundamente – “Puxa, não sei lidar com isso” – como se essa coisa, esse problema, não viesse de certas causas e não pudesse ser superado com diferentes métodos de resolução.
Tudo isso vem da falta de entendimento e de consciência da rigpa, ou da consciência pura. Rigpa é a fonte de todas as aparências. É parte daquilo que é conhecido como o “jogo da consciência pura”, como centelhas sobre a água ou imagens em um espelho. Quando temos aquilo que é chamado de “obscurecimento”, “nebulosidade”, rigpa se torna a fonte de todas as aparências daquilo que é impossível. É impossível que as coisas existam de forma isolada, encapsuladas em plástico. As coisas não existem dessa forma. Não há um pequeno “eu” sentado em nossa cabeça.
Rigpa é a fonte de todas as aparências. Usa-se a analogia do jogo da luz na superfície da água. É parte da natureza da consciência pura:
- Ela apresenta essas aparências, que se estabelecem espontaneamente (esse é o jargão técnico)
- A energia se comunica. Isso é conhecido como o aspecto da compaixão. Trata-se basicamente de comunicação.
- Ela é pura por natureza. Nunca foi maculada pela confusão. No nível mais profundo, ela nunca é maculada pela confusão.
São os ensinamentos básicos do dzogchen. No entanto, por causa de nossos infindos hábitos de confusão, rigpa torna-se obnubilada, como um céu nublado – as nuvens não perturbam nem prejudicam a natureza do céu, mas elas estão no céu. Por causa das nuvens, que funcionam como um filtro, rigpa se torna a fonte de todas as aparências confusas. Certo? Mas essas aparências não correspondem à realidade. Quando falamos de vacuidade, ou vazio, estamos falando sobre o fato de que não há uma realidade que corresponda às aparências. A realidade é completamente vazia, oca, ausente dessas aparências. Minha mente confusa pode fazer com que alguém pareça ser um monstro, por exemplo, se usarmos um exemplo fácil. Mas não há nenhum monstro real que corresponda à aparência. Quando falamos sobre vacuidade, é a essa ausência que estamos nos referindo. Há algo ausente.
Também podemos falar sobre a vacuidade-do-outro (gzhan-stong), outro tipo de vacuidade, que fala dessa consciência pura, rigpa, e do fato de que a natureza pura é vazia, ou ausente, de todos esses níveis confusos e grosseiros.
Renúncia
Portanto, precisamos desenvolver aquilo que é chamado de “renúncia”. Trata-se da determinação de sermos livres. Livres do que? De acordo com a primeira e segunda nobres verdades: livres do sofrimento e de suas causas. A que isso se refere? Às aparências confusas e à nossa crença de que elas correspondem à realidade, e a todas as emoções perturbadoras que vêm dessa crença, como por exemplo: “Ah, estou com medo” ou “Ah, isso parece tão maravilhoso, tenho que ter isso.” E assim por diante. Daí vem a determinação de sermos livres: “Tenho que me libertar disso. É horrível.”
Além de ser horrível, é totalmente tedioso. Se a renúncia for baseada na raiva, pode ser que pensemos: “Ah, isso é uma estupidez. Que burrice a minha acreditar nisso!” Então ela não funcionará. Certo? Pois ainda há uma emoção perturbadora. É melhor simplesmente desenvolver o tédio absoluto: “Isso é tão tedioso. Simplesmente não tem fim. Já chega.” Esse é o estado emocional que nos ajuda a desenvolver a renúncia.
É como se estivéssemos sob a influência de drogas e álcool por muito tempo. Se quisermos parar com isso por estarmos com raiva de nós mesmos: “Que burrice a minha agir assim!...” Mesmo se conseguirmos parar, sempre teremos medo de voltar a usar essas substâncias, pois há medo misturado à raiva. Para realmente parar, precisamos sentir muito tédio: “É sempre a mesma coisa. Cada vez que me embebedo, cada vez que fumo, é a mesma coisa. Que chatice!” É quando dizemos: “Agora chega.” É um estado mental muito menos perturbado. Isso é muito importante.
Os Três Treinamentos Mais Elevados
Tudo bem, então, queremos parar. Mas como fazemos para parar? Temos que nos libertar do carma, da compulsividade em nosso comportamento. Temos que nos libertar das emoções perturbadoras que impulsionam nosso comportamento. E para nos libertar delas, temos que nos libertar da nossa falta de consciência, ou da ignorância. E para termos concentração, o que significa evitar uma mente apática e distraída, precisamos de disciplina. Conquistamos a disciplina através do comportamento ético, evitando as ações destrutivas do corpo, da fala e da mente. Portanto, precisamos primeiro usar a disciplina, a concentração e o entendimento. Depois, temos que nos libertar do primeiro nível dessa confusão sobre como nós existimos, nós e os outros. Se conseguirmos dissipar essa confusão, alcançaremos a libertação dos renascimentos incontrolavelmente recorrentes.
Bodhichitta
Mas o que dizer a respeito de todos os outros? Estamos completamente interconectados com todos os outros, e todo mundo está sofrendo. Assim sendo, precisamos desenvolver amor, compaixão, reconhecendo a interconexão com todos. E assumir a seguinte responsabilidade: tentarei de todas as maneiras ajudar os outros a superar o samsara. A única forma de conseguir fazer isso é eu me iluminar. Se eu conseguir remover todo o obscurecimento de rigpa, de minha consciência pura, então revelarei a capacidade de rigpa, a qualidade de rigpa, de entender e saber tudo. Entenderei específica e totalmente o mecanismo de causa e efeito para conseguir entender todas as causas e a origem da situação samsárica de todas as pessoas, e qual será o efeito de qualquer coisa que eu possa vir a ensinar a elas. Se eu ensinar isso a você, como isso afetará você e todas as pessoas com quem você interage? Se não entendermos as consequências daquilo que ensinamos, não saberemos de fato qual é o melhor ensinamento para ajudar uma pessoa a alcançar a libertação e a iluminação. Esse deve ser nosso objetivo e a razão pela qual é imprescindível alcançar a iluminação.
Assim desenvolvemos aquilo que chamamos de bodhichitta. A bodhichitta é baseada no amor e na compaixão. O amor, o desejo de que todos sejam felizes e tenham as causas da felicidade, e a compaixão, o desejo que todos sejam livres do sofrimento e de suas causas. Mas a bodhichitta não é amor e compaixão. Muitas vezes as pessoas fazem essa confusão. Elas acham que estão meditando sobre a compaixão mas na realidade estão meditando sobre a bodhichitta. Não é a mesma coisa. Qual a intenção da bodhichitta? No que estamos focando? Estamos focando em nossa própria iluminação individual, não na iluminação do Buda Shakyamuni, não na iluminação em geral, mas na nossa própria iluminação, que ainda não ocorreu, mas pode ocorrer com base em nossa natureza búdica, a natureza pura de nossa mente. Portanto, é nisso que focamos com essas duas intenções: alcançar a nossa iluminação para que ela seja algo que esteja ocorrendo agora, no momento presente, e não algo que “ainda não está ocorrendo”, e para beneficiar todos os seres através disso.