A Importância do Renascimento, das Iniciações, dos Votos e dos Professores Espirituais no Tantra

Posso responder algumas perguntas sobre os pontos que acabamos de abordar e depois podemos prosseguir. Vamos manter nossas perguntas específicas a este tema. À tarde, podemos abrir para perguntas mais gerais sobre o tantra.

Perguntas e Respostas

Fortalecendo a Crença no Renascimento

Você distinguiu o Dharma-Light da real prática do Dharma com base na compreensão do renascimento. Você também mencionou que tem esse sentimento visceral de realmente acreditar em vidas futuras e praticar dessa forma. Para muitos de nós, até que realmente tenhamos uma compreensão da vacuidade, isso é um desafio. Temos muito chão até chegarmos lá. Entretanto, quais seriam as suas recomendações para fortalecermos a crença em vidas futuras, não apenas como uma coisa mental, mas de forma que realmente sintamos que é assim? O que podemos fazer para tornar isso mais forte?

A abordagem que eu mesmo usei foi me dar o benefício da dúvida. Isso significa assumir que (essa crença) está correta e então ver o que se segue. Se olharmos para as maneiras de se saber alguma coisa, conforme descritas na epistemologia budista, isso é chamado de “presunção”. Vamos presumir que o renascimento existe, embora não estejamos realmente convencidos. Depois vemos o que segue a partir disso. O que segue é que as vidas passadas dão sentido às leis do carma. Elas fornecem uma explicação para o que acontece conosco nesta vida, e isso eu achei muito poderoso para mim. Elas explicam o que aconteceu em minha própria vida.

Por exemplo, fui para a Índia aos 24 anos para estudar com a comunidade tibetana e escrever a minha dissertação de doutorado, e instantaneamente tudo se encaixou. Uma semana depois de chegar sem nenhum tipo de planejamento, alguém me deu uma casa para morar. Conheci os tibetanos que seriam meus professores e providenciariam tudo para mim; havia um monge tibetano que morava comigo. Em uma semana tudo se encaixou e me senti muito confortável. Toda a minha vida parecia estar em uma esteira rolante que me levou a isso. Nenhuma dessas coisas fazia sentido alguma em termos de minha formação, família ou qualquer outra coisa. A única explicação possível seria conexões de vidas passadas.

Isso me ajudou a sentir que o que estava acontecendo não era loucura. Da mesma forma, se olharmos para qualquer um de nós, veremos que não nascemos como uma folha em branco. Mesmo quando crianças, alguns de nós éramos muito gentis e fáceis de cuidar. Por exemplo, não chorávamos, exceto quando estávamos com fome, etc. Porém, outros saem do útero furiosos e lutando. De onde vem esse comportamento? Mesmo gêmeos idênticos podem ter temperamentos muito diferentes.

Isso começa a fazer um pouco de sentido quando trazemos a ideia do renascimento. E podemos olhar para outras coisas que fazem sentido, como a ideia de que todo mundo já foi nossa mãe. Isso é muito difícil de considerar. Qual é o benefício de trazer a ideia do renascimento aqui? O renascimento é relevante porque, se não o levarmos em consideração, podemos sentir que só podemos nos relacionar com pessoas que são como nós. Não podemos nos relacionar com pessoas que são do outro lado do mundo, muito menos com animais e insetos. Talvez só possamos nos relacionar com pessoas do nosso gênero, religião e assim por diante. Ao passo que, se abrirmos em termos de vidas passadas, isso nos permite relacionar-nos com qualquer pessoa, pois ninguém é definido pela forma presente em que se encontra.

Dando ao renascimento o benefício da dúvida, podemos ver o que se segue, e se fizer sentido, podemos trabalhar com isso. O que, eu acho, é muito útil. Apenas como uma história divertida, lembro que meu tio favorito morreu enquanto eu estava na Índia. Teve uma mosca que se recusou a se afastar do meu rosto. Eu estava constantemente afastando-a. Eu estava tentando ser um bom budista e não iria matá-la nem nada, mas ela continuou voltando e pousando no meu rosto. Então comecei a me perguntar: quem é essa mosca? Talvez tenha sido meu querido tio que morreu e agora é uma mosca. Se eu renascesse como uma mosca, instintivamente teria essa ligação com alguém e gostaria de estar com essa pessoa. Eu esperaria que meu sobrinho não apenas não me esmagasse, mas me acolhesse. Isso também ajudou.

Meu Relacionamento Próximo Com Meu Professor em Duas Vidas

Mas o que realmente me convenceu foi conhecer meu professor, Serkong Rinpoche, em duas vidas. Tive uma relacionamento próximo com ele em sua vida anterior e agora nosso relacionamento próximo, que veio de sua parte, começou quando ele tinha quatro anos. Isso me fez ultrapassar o limite (da dúvida), e senti que devia ser mesmo real. No entanto, essa não é uma experiência que a maioria de nós possa ter.

Você pode contar essa história?

Eu era muito próximo a Serkong Rinpoche. Ele basicamente me treinou em tudo. Ele sentiu a conexão comigo e, quando comecei a visitá-lo, disse para eu ficar ali ao lado dele, que me treinaria. Traduzi para ele grande parte do tempo. Não foram todos os dias, mas quase todos os dias durante nove anos.

Na época, o budismo tinha degenerado no Vale de Spiti, uma região tibetana na Índia, mas na fronteira com o Tibete. Ele o restabeleceu e iniciou os mosteiros de uma maneira melhor. Lá ele morreu e seu renascimento, seu “tulku”, também foi encontrado nessa região, exatamente no dia em que fez nove meses de sua morte. Ele não iria desperdiçar tempo ficando no bardo ou algo assim. Por ser um professor tão proeminente no vale, a maioria das pessoas tinha fotos dele em suas casas. Quando ele tivesse idade suficiente e pudesse falar, apontaria para uma foto e diria: “Sou eu”. Quando seus ex-atendentes apareceram em busca de crianças com a idade certa, nascidas na época certa, ele correu para os braços de um deles e sabia seu nome. Foi aquele tipo de reconhecimento clássico de um tulku, que deve ocorrer por parte do tulku e não de quem está buscando.

Os atendentes o levaram de volta para Dharamsala e ele nunca chorou por querer voltar para casa. Não que ele odiasse os pais ou que eles fossem pessoas terríveis. São pessoas maravilhosas, mas tudo o que ele queria era ir para Dharamsala. Ele disse que sentia que havia alguém muito importante que precisava encontrar lá. Era Sua Santidade o Dalai Lama. Ele foi um dos professores de Sua Santidade. Isso era tudo o que ele queria.

Quando ele tinha quatro anos, fui conhecê-lo pela primeira vez e os atendentes lhe perguntaram: “Você sabe quem é?” Ele disse: “Não seja idiota; claro que eu sei quem é. Desde o início ele foi completamente carinhoso, caloroso e ficou à vontade comigo. Da minha parte, queria ser bastante cético, mas da parte dele não havia problema. Isso meio que me convenceu de que se tratava de um renascimento. Não havia outra explicação.

É assim que trabalhamos com o renascimento. Presumimos que é verdade e então vemos o que deriva disso. Se o que derivar fizer sentido, talvez o renascimento faça sentido.

Obrigado pelo bom conselho. Apenas uma pergunta para complementar; minha impressão é que algumas tradições budistas não acreditam na reencarnação. Lembro-me que o meu primeiro encontro foi com monges da floresta na Tailândia e lembro-me claramente que o monge estava falando de apenas uma vida e refutando outras vidas, dizendo que isso é tudo o que sabemos.

Novamente, eu diria que o buda ensinou com meios hábeis. Ele era convidado para visitar várias famílias e, após a refeição, era convidado a ensinar algo ao chefe e aos membros daquela família. Ele ensinou coisas diferentes para pessoas diferentes pois reconheceu que pessoas diferentes estavam em níveis diferentes, tinham origens e disposições diferentes. Tendo sido tradutor e, de certa forma, estando nos bastidores de grandes lamas quando explicavam coisas para pessoas diferentes, (posso dizer que) eles são muito diferentes com cada pessoa. Por exemplo, com uma pessoa podem ser muito severos e com outra muito gentis. Para uma pessoa dirão uma coisa e para outra algo completamente diferente. Só porque o monge explicou assim para você não significa que explicaria assim para um tailandês, por exemplo.

Além disso, temos que considerar que o Budismo foi da Índia, onde parte da cultura já tinha a ideia de renascimento, para muitos outros lugares, incluindo a China. Na China, eles não tinham o conceito de renascimento. Eles gostavam dos ancestrais e mostravam reverência a eles, como se ainda estivessem por perto depois de terem morrido. Isso era totalmente contraditório ao budismo. O budismo diz que nossos antepassados renasceram e agora são outra pessoa, portanto, não devemos nos apegar tanto a eles. No entanto, olhamos para o Budismo Chinês ou para o Budismo Vietnamita com Thich Nhat Hanh, por exemplo, que veio da China, e eles ainda têm reverência pelos antepassados. Isso é meios hábeis.

Individualidade e a Abordagem Progressiva Apresentada nos Sistemas Filosóficos

Sobre este tema do encontro do budismo com o mundo ocidental, descobri que por vezes a ideia de renascimento para nós, ocidentais, torna-nos mais envolvidos com o que éramos antes ou com o que poderemos tornar-nos no futuro, em vez de lidarmos com esta vida aqui e agora. Essa é uma das armadilhas em que às vezes caímos. A outra é a reificação da ideia de “eu”. Eu sou alguma coisa e esse caroço, essa alma, irá renascer na próxima vida. Começamos a pensar de forma quase materialista sobre o “eu”, eu e meu ego.
Uma perspectiva que tenho sobre o renascimento é que a vida reencarna através de “mim”. Não é que eu esteja reencarnando, é a própria vida que está reencarnando, e não serei o mesmo “eu” que era. As formas de vida estão mudando ao longo da história deste planeta, por isso penso que a vida está reencarnando através de mim em muitas formas diferentes, no futuro e no passado; isso me ajuda a não me reificar tanto. Também ajuda com a bodichita, já que a vida está reencarnando através de mim, eu posso ser um servo da consciência tornando-me iluminado.

Existem vários pontos no que você disse. O último ponto é que temos que ter muito cuidado para não perdermos o senso de individualidade, pois esse senso é a base para assumirmos a responsabilidade pelo que fazemos. A questão é que experimentamos as consequências do que fazemos. Não é que exista uma “vida” universal ou uma mente universal, ou um tipo universal de vida. O Budismo certamente aceita a individualidade; não é que todos nós sejamos uma grande sopa. Pensar que somos é como algumas ideias hindus de que todas as correntes se fundem no grande oceano e somos todos um com Brahma. Contudo, não é assim de acordo com o Budismo.

Se olharmos para os sistemas filosóficos budistas indianos, veremos que são apresentados numa ordem progressiva. Não vamos imediatamente para o nível mais avançado. A princípio, eles ensinam que existe algum tipo de solidez no “eu”. Queremos gradualmente ganhar uma compreensão mais profunda e sutil de como o eu realmente existe.

Assim, quando olhamos para onde o tema do renascimento aparece na ordem progressiva dos ensinamentos, é no contexto de causa e efeito. Se agirmos de determinada forma, seremos responsáveis por isso e experimentaremos as consequências. Mesmo que não as experimentemos nesta vida, não é que irão expirar e perder a validade. Ainda assim experimentaremos as consequências. Mesmo quando pensamos em termos de um “eu” sólido, obter essa base ética é essencial para o caminho budista. Esse é outro ponto.

Outro ponto que gostaria de mencionar é em resposta à sua questão sobre o perigo de ficar muito focado no passado. Podemos ficar realmente curiosos a respeito de quem éramos em uma vida anterior. E daí? Mesmo se descobríssemos, e daí? Quanto a quem seremos numa vida futura, tendemos sempre a pensar em um ser humano e não em uma galinha ou barata. Esqueci a referência, mas um mestre disse que se olharmos para o nosso corpo, ele nos dará alguma indicação de como foram as nossas vidas anteriores, e se olharmos para a nossa mente, ela nos dará uma indicação de como serão nossas vidas futuras. Em outras palavras, precisamos olhar para o nosso corpo e para as situações físicas que vivenciamos durante a vida – como no meu exemplo, chegar à Índia e lá permanecer 29 anos, sem nunca ter tido problemas de visto, quando todas as outras pessoas tiveram. De onde vieram essas condições? Tem que haver alguma causa anterior para elas. As coisas não acontecem sem um causa. Tive boa sorte ou os deuses sorriram para mim? Não, não é assim.

Se olharmos para nossas mentes, para que tipo de pensamentos costumamos ter, teremos uma indicação do que está por vir no futuro. Sempre uso um exemplo divertido: se nossa mente fica vagando por todo lado e não conseguimos manter o foco em nada, o que será que isso indica? Isso é a mentalidade de uma mosca, que nunca fica no mesmo lugar, sempre voando aqui e ali. Imagens de animais são muito usadas nos ensinamentos tibetanos, pois são muito úteis.

Serkong Rinpoche sempre costumava usar a imagem de agirmos como um cachorro esperando receber um tapinha na cabeça depois de fazermos algo útil para nosso professor ou qualquer outra pessoa. Esperamos que alguém diga: “Bom menino, boa menina?” E depois, abanamos o rabo? O que ele queria dizer era que não devemos fazer coisas boas para receber um agradecimento ou um tapinha na cabeça, ou abanar o rabo. Devemos fazer coisas boas para beneficiar os outros. Essas imagens podem ser muito poderosas e nos ajudar a lembrar.

Com vidas passadas e futuras, podemos ficar fascinados e absorvidos pelo que foi e será, mas isso também pode ser usado como uma forma de entender o que está acontecendo conosco agora e que causas estamos gerando para o futuro.

Iniciação 

OK. Agora, voltando ao nosso tema, o tantra. Quer pratiquemos o tantra numa versão “light” ou na versão real, com renascimento, ainda assim precisamos receber uma iniciação para acessar a prática. Literalmente, a palavra tibetana para iniciação, wang, significa dar poder (empower), e a palavra sânscrita, abhishekha, significa semear, semear sementes que crescerão, embora precisemos regá-las para que realmente cresçam. Para realmente receber uma iniciação, precisamos manter os votos. Sakya Pandita, um grande mestre tibetano, disse que sem votos não há iniciação.

Tomando Votos

Não tomaremos conscientemente os votos se estivermos ali apenas como um cachorro ou um bebê que alguém trouxe consigo; ou simplesmente estivermos ali, sem a mínima ideia de quais são os votos ou do que estamos fazendo, se estivermos apenas repetindo palavras tibetanas que não entendemos e, portanto, sem significado para nós. Estaremos apenas falando “blá, blá, blá”. Portanto, não receberemos a iniciação. É simples assim. Os votos são essenciais.

Atisha, outro grande mestre indiano, que ajudou a criar o novo período do Budismo Tibetano, disse que, como base para os votos de bodisatva, precisamos de algum nível de votos de pratimoksha. Isso não significa necessariamente que temos que ser monges ou monjas, mas precisamos pelo menos dos cinco preceitos. Se olharmos para o abhidharma, pelo menos um dos cinco preceitos é necessário. Não precisamos considerar todos os cinco, mas pelo menos alguns, como base para os votos de bodisatva. Se não jurarmos pelo menos parar de matar os outros, por exemplo, como poderemos jurar trabalhar para o benefício de todos os seres. Além disso, não há votos de tantra sem os votos de bodisatva.

Portanto, em todas as classes do tantra, como parte da iniciação, tomamos os votos de bodisatva. E nas duas classes superiores do tantra, o yoga tantra e o anuttarayoga tantra, existem, além disso, os votos do tantra. É muito importante e essencial mantê-los da melhor forma possível. Isso significa não os transgredir conscientemente. Se você os transgredir, o que inevitavelmente acontece, pelo menos não fique feliz com isso. Não diga que foi uma idiotice tomar os votos e não tenha a intenção de não mantê-los.

Há uma série de fatores que precisam estar presentes para perdermos totalmente os votos. Caso não estejam, o que estaremos fazendo é enfraquecê-los. Eles podem ser fortalecidos ou revigorados com o arrependimento, através da prática de Vajrasattva e assim por diante, mas o melhor mesmo é não os enfraquecer. Também podemos retomar os votos como uma prática diária para reafirmá-los. É necessário que haja uma base ética para a prática do tantra.

Agora surge um problema com o Dharma-Light, pois se olharmos para os votos, uma das transgressões dos votos de bodisatva é abandonar o Dharma sagrado, negar que qualquer um dos ensinamentos das escrituras derive do Buda, o que incluiria os ensinamentos sobre renascimento. Se dissermos, por exemplo, que renascimento é uma idiotice e que não precisamos disso no Budismo, ou que o Buda realmente não falou sobre isso, estaremos violando nossa votos de bodisatva. Isso é algo que precisamos ter em mente. É por isso que eu disse que é importante pelo menos manter a mente aberta e dizer que isso está no Budismo, não negar que faz parte do Budismo. Podemos admitir que ainda não compreendemos, mas que estamos dispostos a analisar isso no futuro, quando nosso entendimento aumentar. Isso é bom, não tem problema. Assim, não quebramos nossos votos de bodisatva.

Outra transgressão dos votos de bodisatva seria manter uma atitude antagônica e distorcida, o que costuma ser traduzido como “visão falsa”. Mas isso soa como dizer que alguém é um herege e não é exatamente disso que estamos falando. Não é apenas negar um ensinamento budista básico - como o refúgio ou a iluminação, ou negar que haja qualquer valor em ser construtivo, e teríamos que incluir a negação do renascimento aqui também –, é ser antagônico. Como querer discutir e ser teimoso com todo mundo, dizendo que estão errados e são uns idiotas por conta do que acreditam. Há toda uma lista de atitudes que acompanham isso para que haja uma ruptura completa. Envolve ser realmente hostil, negativo, argumentativo e conflituoso. Portanto, precisaríamos pelo menos ser agnósticos em relação à questão do renascimento, mesmo se fizermos esses votos com base no Dharma-Light.

Bodichita

Está muito claro nos votos de bodisatva e nos votos tântricos que os perderemos se desistirmos da bodichita, e aqui todos os fatores acompanhantes – como não ter arrependimentos – nem sequer precisam estar completos. Para desistir da bodichita, precisamos já tê-la desenvolvido até certo ponto, não é? Não podemos abrir mão de algo que ainda não desenvolvemos.

É muito claro, então, que precisamos ter pelo menos algum nível de bodichita. Muita gente confunde compaixão e bodichita. Elas não são a mesma coisa. Compaixão é a base da bodichita. Assim como o desejo de que os outros sejam livres do sofrimento e das causas do sofrimento, compaixão é o suporte para a bodichita.

Bodichita tem como base o amor e a compaixão, e a resolução excepcional de que vamos assumir a responsabilidade universal de ajudar a levar todos os seres à iluminação. Não é que alguma outra pessoa vá fazer isso, nós é que vamos assumir a responsabilidade de ajudar a todos. Não se trata apenas de ajudar velhinhas a atravessar a rua, mas de ajudar todos os seres a superarem o sofrimento mais profundo, que é o renascimento incontrolavelmente recorrente, ou samsara, e conduzi-los à iluminação. Não é apenas para ajudar a libertá-los da infelicidade ou da felicidade comum.

Para gerar um estado mental de muito clareza, precisamos saber em que a mente está focando e como está tomando esse objeto. O que ela está fazendo com respeito a esse objeto? Não é possível meditar sobre algo se não soubermos qual é o estado mental que estamos tentando gerar e o que almejamos com ele. O que almejamos com a bodichita? Almejamos nossa iluminação como indivíduo. Não é a iluminação do Buda Shakyamuni ou uma iluminação geral e vaga, mas, para cada um de nós, é a nossa própria iluminação como indivíduo, que ainda não aconteceu, mas que pode acontecer com base nos nossos fatores da natureza búdica.

Tempo

Isso se torna um ponto interessante quando falamos sobre tempo. Desculpe-me por trazer um tópico paralelo, mas acho que é relevante. No Budismo não falamos em termos de passado, presente e futuro. Falamos em termos de ainda-não-estar-acontecendo, estar-acontecendo e não-estar-mais-acontecendo. Se falarmos nestes termos, do ponto de vista de hoje, o amanhã ainda não está acontecendo. No entanto, será que existe algo como um amanhã? Sim existe. Podemos planejá-lo, de forma válida. E, do ponto de vista de hoje, o ontem não está mais acontecendo. Existe algo como um ontem? Existe? Podemos nos lembrar de ontem, então sim, existe; no entanto, não está acontecendo agora.

Portanto, não pense em termos de “minha iluminação futura." Isso pode cair em uma forma estranha e irrelevante de pensar, como se o futuro existisse em algum lugar lá fora e, se formos mais rápido que a velocidade da luz, chegaremos ao futuro e tudo mais. Estamos falando de algo que ainda não aconteceu, mas que pode acontecer. Como isso pode acontecer? Com base nas causas que podem ocasioná-lo.

Portanto, essa iluminação individual que ainda não aconteceu é o que almejamos no futuro em nosso continuum mental. Qual é a maneira como nossas mentes interpretam isso? Querendo atingir essa iluminação. E o que nos empurra para isso é o amor e a compaixão. Quando falamos sobre motivação no budismo, a palavra implica em algo que nos impulsiona. Temos que ter um objetivo, e temos que ter uma base emocional que nos leve a esse objetivo. Também precisamos ter um propósito. O que faremos quando atingirmos esse objetivo? Isso é uma motivação.

Por exemplo: “Vou conseguir ter vidas futuras melhores porque realmente não quero renascer como uma barata, e temer que isso aconteça. Estou confiante de que existe uma maneira de obter vidas futuras melhores. O que vou fazer com uma vida futura melhor? Vou trabalhar mais para a libertação e iluminação, a fim de ajudar os outros. Farei um uso positivo da minha vida futura. É por isso que quero obtê-la, para poder continuar no caminho."

É disso que a motivação está falando. Queremos alcançar o estado iluminado de um buda, a nossa iluminação que ainda não aconteceu. Queremos alcançá-la, e a força motriz é o amor e a compaixão e assumir a responsabilidade universal. É tudo baseado em equanimidade, em termos uma atitude equânime com todos, não ajudar apenas os nossos amigos. Podemos perceber a igualdade de todos; reconhecer que todos querem ser felizes e ninguém quer ser infeliz. O que faremos quando chegarmos à iluminação? Nós não vamos ficar curtindo algum campo búdico, vamos trabalhar para beneficiar o maior número possível de seres que sejam receptivos à nossa ajuda. O sol só pode brilhar para aqueles que se expõem a ele. Por exemplo, se alguém entra em uma caverna, o sol não conseguirá alcançá-lo.

É desse tipo de bodichita que estamos falando. Para desistir dela, temos que tê-la gerado pelo menos um pouco intelectualmente e, pelo menos, saber o que é e ter algum tipo de sentimento em relação a ela. Se dissermos que ter bodichita é muito difícil ou algo ridículo, e pensarmos que nunca conseguiremos chegar lá, ou que não podemos ajudar aquela pessoa terrível que fez coisas horríveis, não vamos trabalhar em direção à iluminação para beneficiar a todos os seres. Nesse caso, teremos desistido da bodichita.

Quando se diz nos ensinamentos que é horrível desistir da bodichita, ou do refúgio ou da direção segura ou do vínculo estreito com um professor, isso pode ser entendido em muitos níveis. Mas no nível mais básico, refúgio, bodichita e nosso professor espiritual, cada um nos mostra o caminho para o estado iluminado de um buda. Se desistirmos dessas coisas, está escrito que iremos para um inferno horrível. O que isso significa? Podemos interpretar literalmente, é claro. No entanto, também podemos interpretar conforme eu estava explicando em relação à direção segura ou refúgio, que desistimos de dar uma direção positiva e significativa a nossas vidas.

Muitos de nós sentimos que nossas vidas não têm sentido e não nos levam a lugar algum. Todos os dias são iguais e questionamos o motivo de estarmos vivos. É apenas para assistir mais programas de TV, ir ao cinema e comer mais? Muitos professores gostam de usar exemplos bem gráficos, como o de que estamos usando este corpo humano apenas como uma fábrica para a produção de resíduos – urina e fezes; esse é o nosso trabalho na vida. Colocamos alimentos para dentro e fabricamos e produzimos esses resíduos. É só para isso que estamos usando nossa vida humana preciosa? Esperamos que seja para algo mais do que uma fábrica de resíduos.

Se desistirmos desse ideal de bodichita – o que almejamos e a direção que estamos tomando – e também dissermos que realmente não há ninguém, nenhum professor, que represente alguém que tem bodichita, seremos lançados em uma vida sem sentido novamente, e isso é um inferno. A vida não vai a lugar algum e não tem sentido. Como isso é horrível. Portanto, não queremos desistir da bodichita. No entanto, precisamos tê-la gerado antes de podermos desistir dela.

O Voto Tântrico de Meditar Continuamente Sobre a Vacuidade

O mais difícil dos votos e do qual precisamos estar especialmente conscientes é o voto tântrico que podemos transgredir se não meditarmos continuamente sobre a vacuidade. É assim que está expresso no voto. Estaremos desistindo do voto se não meditarmos. Prometemos meditar todos os dias, e o costume habitual é três vezes pela manhã e três vezes à noite. Isso significa simplesmente estar atento à vacuidade, o que significa que precisamos que ter algum entendimento da vacuidade. Se não tivermos alguma compreensão, entraremos em um tipo de viagem esquizofrênica estranha de que na verdade somos Tara ou Chenrezig. Podemos ficar com um ego grande e inflado e ter problemas psicológicos muito sérios por causa disso.

Portanto, esse entendimento da vacuidade, e lembrarmos continuamente durante o dia e à noite do que realmente está acontecendo, é essencial. Isso não ocorre apenas na prática tântrica, mas também em nosso cotidiano. Dentre os votos tântricos, esse é provavelmente o mais difícil de manter, e não se deve encarar isso levianamente. Como Sua Santidade o Dalai Lama diz, quando vamos a essas iniciações, podemos ir como o que ele chama de observador neutro. Nós, ocidentais, geralmente dizemos que é “ir pelas bênçãos”, emprestando um termo cristão. É inspirador ir para uma iniciação assim, mas não estamos realmente fazendo os votos, especialmente se houver um compromisso de prática, que exige que façamos uma longa prática todos os dias para o resto de nossas vidas. Também não estamos prontos para fazer isso.

Não tem nenhum problema, e é maravilhoso, participar para obter inspiração. Vá lá como um observador neutro. No entanto, para realmente obter a iniciação é preciso fazer os votos e participar nos procedimentos da iniciação com consciência, e levar a sério os compromissos assumidos.

Um dos mestres Drikung Kagyu mostrou que a palavra tibetana para iniciação significa “aspergir”; ela asperge as sementes, em dois sentidos. Um é que esse aspergir nutre as sementes das nossas duas redes, de força positiva e consciência profunda, para que se transformem e cresçam. Temos que ter algum entendimento do vazio ou vacuidade, algum entendimento de bodichita com um estado mental de bem-aventurança, e estar realmente feliz por estar lá, e pelo menos ter algum nível de consciência dessas coisas durante a iniciação. Se tivermos isso, a iniciação fará com que essas sementes que já estão presentes na natureza búdica sejam ativadas e provoquem essa transformação. Além disso, através da experiência de receber a iniciação, mais sementes são plantadas e também as redes são reforçadas. É isso que está acontecendo durante uma iniciação.

Professores Espirituais

Durante uma iniciação, tomamos votos e temos alguma experiência consciente, além, é claro, de estabelecermos uma conexão estreita com o professor espiritual que a está conferindo. Mas precisamos ter avaliado essa pessoa muito bem antes. Mesmo que não recebamos orientação pessoal individual desse professor, tudo bem. Existem muitos tipos diferentes de professores que podemos ter.

Qual é o critério para alguém ser realmente nosso mestre espiritual? Se olharmos os textos, o mestre espiritual é alguém de quem recebemos votos. Então, nós realmente estabelecemos uma conexão com a pessoa. No entanto, também podemos ter um instrutor. Podemos ter alguém que nos dê muitas informações. Também podemos ter alguém com quem treinamos, de certa forma, como numa academia, que nos ensina os rituais e todos os detalhes. Não vamos começar a ver o professor como um buda e tudo mais, o que é ainda outro nível, mas, pelo menos, esse professor representa para nós o que estamos tentando alcançar. Além disso, nos comprometemos fortemente e estabelecemos uma conexão com ele ou ela.

A palavra damtsig, ou samaya, é realmente difícil de traduzir. É uma conexão, algo que nos conecta. Pode nos conectar à prática ou nos conectar a um juramento. A forma como costuma ser utilizada é em relação ao professor. Quando temos damtsig, o que chamo de “vínculo estreito”, com um professor ou professora, temos uma conexão profunda com ele ou ela, que se baseia em um grande respeito mútuo. Baseia-se em cada um de nós respeitar a natureza búdica e o potencial do outro. Como poderíamos agir como idiotas diante dessa pessoa? Como poderíamos sentar e limpar o nariz ou fazer coisas ridículas, como perder a paciência?

Vou dar um exemplo. Um dos meus professores foi Yongdzin Ling Rinpoche. Ele era o chefe da tradição Gelug e tutor sênior de Sua Santidade o Dalai Lama. Ele era um homem formidável, e a maioria das pessoas tinha pavor dele. Ele era a encarnação de Rá Lotsawa, aquele que trouxe Yamantaka, Vajrabairava, essa energia realmente forte, para o Tibete. Ele era extraordinário, absolutamente extraordinário. Quando dava uma iniciação, simplesmente apontava para todas as características da mandala que se construía ao seu redor enquanto a descrevia. Ele era esse tipo de professor.

Eu costumava ir vê-lo e sentar em seu quarto. Os tibetanos têm sofás baixos onde as pessoas se sentam. Ele estava de um lado e eu do outro, e de repente havia um escorpião no chão bem na nossa frente. Ling Rinpoche disse, de uma forma muito dramática: “Oh, um escorpião; ó meu Deus." Olhou para mim e perguntou: “Você não está com medo?” Eu disse: “Como posso ter medo na sua frente?” “Você é Yamantaka, Vajrabairava, como posso ter medo na sua frente?” Ele riu, e então o atendente entrou e colocou um copo em cima do escorpião e um pedaço de papel embaixo e o tirou de lá, como se tudo tivesse sido encenado. Foi muito engraçado.

Outro incidente foi com o jovem Ling Rinpoche, a reencarnação. Tem uns biscoitos que gosto muito, os McVities Digestive Biscuits, um biscoito britânico. Um dia, quando era criança, fui visitar Ling Rinpoche no sul da Índia, e o atendente chegou com chá e um pacote dos meus biscoitos favoritos. Ling Rinpoche apenas olhou para mim e riu, com um olhar do tipo “eu sei quem você é”. Esse é Ling Rinpoche e isso é damtsig, essa ligação estreita em que respeitamos tanto a pessoa que é impossível surtar por haver um escorpião na nossa frente.

É esse tipo de coisa que a gente tem a intenção de estabelecer e pelo menos tenta estabelecer com o professor que está conferindo a iniciação e dando os votos. Isso é muito importante no que diz respeito ao cumprimento dos votos. Com tanto respeito pelo professor, não vamos quebrar os votos. Se sentirmos que há certas coisas, por exemplo, nos votos de pratimoksha, que não conseguimos manter, não vamos simplesmente desistir e dizer: “Para o inferno com isso”. Mesmo os votos de bodichita, não queremos devolvê-los. Eles são para sempre e precisamos levá-los muito a sério.

Portanto, a gente realmente avalia o professor para ver se consegue ter essa conexão com ele. Será que ela ou ele é uma pessoa que realmente vai nos inspirar, ou é alguém que por acaso está lá e todo mundo vai lá porque é um lama famoso? Se for esse o caso, é melhor ser um observador neutro do que comprometer-se com um relacionamento profundo com o professor. Mesmo que não passemos muito tempo com ele, tem que ser uma pessoa que nos inspire. É disso que se trata a iniciação.

Quer estejamos praticando o tantra como Dharma-Light, para melhorar esta vida, ou realmente esperando ser aquele, dentre trilhões de seres, que alcançará a iluminação nesta vida, o sortudo, que chegará lá nesta vida, ou pensando no longo prazo, sabendo que isso levará muito tempo e não será fácil, considerando o quão completamente confusa está a nossa mente − independentemente do nível em que vamos entrar na aventura do tantra, as preliminares, a iniciação, os votos e a relação com o professor são essenciais.

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